Elton John Congresso História

12
DOI: 10.4025/4cih.pphuem.756 “I’M BETTER THAN YOU”: O CANTOR ELTON JOHN E O GLAM/GLITTER ROCK ENQUANTO LUGARES DE “PERFORMANCE PÓS-MODERNA” E CULTURA DAS PERSONALIDADES Elton John da Silva Farias Mestrando em História, Bolsista Reuni de Assistência ao Ensino CAPES Universidade Federal de Campina Grande Este artigo tem por objetivo apresentar e problematizar a relação possível de ser tecida entre a discursividade artística e sonora que envolve o gênero musical Glam/Glitter Rock (gênero emergente a partir da primeira metade da década de 1970), o sistema do estrelato e a cultura da personalidade de modo que entendamos, a partir da leitura de duas canções do cantor Elton Hercules John, artista envolto por esse gênero, como se produziu um sentido de ser famoso na década supracitada. Ambas as canções, Bennie And The Jets (73) e The Bitch Is Back (74), compostas por Elton John e seu principal letrista, Bernie Taupin, foram compostas no cerne de um contexto em que o termo glamour é aderido ao vocabulário da chamada “indústria cultural” com aparente visibilidade. Se atualmente é possível entender certas ostentações de um status artístico de luxo, de “estrelas” famosas, tudo isso está relacionado a essa condição artístico-musical inventada nos anos 70 para aquilo que se entende por “pop/rock”. 1 A partir desse período o significado de ser famoso passa a adquirir uma roupagem bastante específica. O artista se vê possibilitado a adquirir o “costume” de colecionar carros, mulheres (e homens), jatinhos em seu dia-a-dia; de utilizar de sua condição de símbolo cultural, no palco, com vestimentas brilhosas, com artefatos espalhafatosos, por vezes circenses, para conquistar o apoio de uma multidão ávida por um espetáculo rico musicalmente, com proeminente ambientação colorida e chamativa. Steven Connor (1996), por exemplo, atribui tal situação ao que ele chama de “performance pós-moderna”. Exuberância e irreverência de palco parecem permear as ânsias da arte da conquista do público. Connor diz, referindo-se ao exemplo do cantor Bruce Springsteen, que a performance de palco cuidadosa musicalmente e exagerada visualmente oferece ao fã, ao ouvinte e ao curioso pela música (e no caso pelo rock) a oportunidade de “estar na presença de uma figura mítica, [de] fruir de certa proximidade erótica”, vivendo

description

Análise histórica

Transcript of Elton John Congresso História

  • DOI: 10.4025/4cih.pphuem.756

    IM BETTER THAN YOU: O CANTOR ELTON JOHN E O GLAM/GLITTER ROCK ENQUANTO LUGARES DE PERFORMANCE PS-MODERNA E

    CULTURA DAS PERSONALIDADES

    Elton John da Silva Farias Mestrando em Histria, Bolsista Reuni de Assistncia ao Ensino CAPES

    Universidade Federal de Campina Grande

    Este artigo tem por objetivo apresentar e problematizar a relao possvel de ser tecida

    entre a discursividade artstica e sonora que envolve o gnero musical Glam/Glitter Rock

    (gnero emergente a partir da primeira metade da dcada de 1970), o sistema do estrelato e a

    cultura da personalidade de modo que entendamos, a partir da leitura de duas canes do

    cantor Elton Hercules John, artista envolto por esse gnero, como se produziu um sentido de

    ser famoso na dcada supracitada. Ambas as canes, Bennie And The Jets (73) e The Bitch Is

    Back (74), compostas por Elton John e seu principal letrista, Bernie Taupin, foram compostas

    no cerne de um contexto em que o termo glamour aderido ao vocabulrio da chamada

    indstria cultural com aparente visibilidade. Se atualmente possvel entender certas

    ostentaes de um status artstico de luxo, de estrelas famosas, tudo isso est relacionado a

    essa condio artstico-musical inventada nos anos 70 para aquilo que se entende por

    pop/rock.1

    A partir desse perodo o significado de ser famoso passa a adquirir uma roupagem

    bastante especfica. O artista se v possibilitado a adquirir o costume de colecionar carros,

    mulheres (e homens), jatinhos em seu dia-a-dia; de utilizar de sua condio de smbolo

    cultural, no palco, com vestimentas brilhosas, com artefatos espalhafatosos, por vezes

    circenses, para conquistar o apoio de uma multido vida por um espetculo rico

    musicalmente, com proeminente ambientao colorida e chamativa.

    Steven Connor (1996), por exemplo, atribui tal situao ao que ele chama de

    performance ps-moderna. Exuberncia e irreverncia de palco parecem permear as nsias

    da arte da conquista do pblico. Connor diz, referindo-se ao exemplo do cantor Bruce

    Springsteen, que a performance de palco cuidadosa musicalmente e exagerada visualmente

    oferece ao f, ao ouvinte e ao curioso pela msica (e no caso pelo rock) a oportunidade de

    estar na presena de uma figura mtica, [de] fruir de certa proximidade ertica, vivendo

  • 4352

    aquele momentneo encontro real com um espao que emociona, ensurdece, dispersa, alivia

    e fornece prazer.

    Assim, para podermos explicar essa simbiose entre glamour e rock, precisamos

    primeiramente mostrar como o termo Glam/Glitter foi construdo historicamente. Da

    maneira que est aqui colocado, ele uma transposio de nossa autoria apenas com o intuito

    de facilitar a compreenso do leitor. Assim, glam ou glitter so duas nomenclaturas que

    querem definir, no final das contas, praticamente a mesma coisa. Ambas so enunciaes que

    partem de lugares diferentes, apesar de estarem interligadas a uma mesma temporalidade. So

    sinnimos, jogo de palavras subjetivadas e praticadas que buscam aproximar um sentido,

    classificar alguns artistas a partir de certas proximidades de suas obras ou de suas

    indumentrias. a construo de uma subjetividade, agenciada pelo ato de enunciar um termo

    coletivo. uma moldura que no contempla satisfatoriamente todos os seus componentes,

    j que no d conta de todas as suas particularidades pessoais e criativas. Vivida de maneira

    dupla, seno ampla, a subjetividade de ambos os termos pode ser recepcionada pelos sujeitos

    que a pretenderam vivenciar (no caso, os msicos) ora como uma submisso aos sentidos

    envoltos (como o luxo, o brilho, a extravagncia das roupas, as semelhanas meldicas, dentre

    outros) ora como uma re-apropriao destes mesmos componentes significantes, seja para

    conotar uma inovao, uma distino ou at uma originalidade (GUATTARI & ROLNIK,

    1986, p.p. 25-126).

    A inveno de um determinado termo parte de uma emergncia. Da necessidade de

    produo de uma aparncia, da delimitao mental de superfcies conceituais que constroem

    um objeto de discurso. Seus enredos so pensados a partir de certas condies histricas que

    possibilitem ao outro (semelhante ou distante) dizer coisas distintas, convictas ou flutuantes,

    mas que mantenham relaes de semelhana, de vizinhana, [e at] de afastamento, de

    diferena, de transformao. Possibilita-se a esse objeto um campo de exterioridade,

    repleto de relaes discursivas, que criam noes, mas que no garantem unidade, apenas

    aproximaes, e constri aquilo que ao objeto parece ser uma concepo, uma definio

    (FOUCAULT, 1986, p.p. 46-56). o que se faz com um gnero musical como o

    Glam/Glitter.

    Partindo para discusses mais prticas: diz-se que a inveno de ambos os termos se

    deve a uma apresentao do cantor Marc Bolan e seu grupo T. Rex num programa de televiso

    ingls chamado Top Of The Pops em 1972. Enquanto se vestia em seu camarim para o show,

    Marc colocou um pouco de glitter ao redor de seus olhos, como forma de aliviar a tenso

    (SANTANA, 2002, p. 138). Seu primeiro show aps o programa esteve repleto de pessoas

  • 4353

    com os olhos pintados de maneira semelhante, alm das roupas coloridas e acessrios

    similares j cotidianos. A partir de ento, as rdios britnicas comearam a cunhar o termo

    Glam Rock e Marc Bolan foi considerado o seu iniciador.

    Por que, ento, unimos os nomes? Simples: na Inglaterra, onde o termo Glam teria

    sido acoplado ao rock, os grupos mais famosos entre 1972-73 eram o T. Rex e o Roxy Music,

    alm do cantor David Bowie, que passaram a ser rotulados de Glam rock pelas j citadas

    causas; nos Estados Unidos, entretanto, Elton John era o cantor mais visvel e suas plumas e

    paets fizeram com que as estaes de rdio falassem no termo rock glitter. A quando o

    cantor Gary Glitter ganhou notoriedade na Inglaterra, em 1974, estava dado o passo para a

    confuso dos termos.

    Dentro desse cenrio, cheio de purpurina, plumas, paets e luminrias, abrimos as

    cortinas de nosso espetculo...

    Anos 1970: Glam/Glitter Rock, o cantor Elton John e a Cultura das Personalidades

    Na opinio de Richard Sennett (1998), vivemos em uma poca em que o sentido de

    carisma ultrapassa os limites nicos do reconhecimento social: uma pessoa pode ser muito

    conhecida e querida, adorada em certos lugares, mas isso no vai garantir que ela seja uma

    personalidade famosa. No se no houver uma rede de finanas envolvida. Para que isso se

    faa valer, seria necessrio um amlgama de relaes artstico-financeiras que permeassem a

    construo retrica da fama de uma pessoa. Juno interessada entre o que se diz enquanto

    moda, entre a capacidade do artista em atrair pblico, dos jogos entre as teias do poder

    miditico e as concepes literrias circunscritas a uma obra musical. Lances capciosos que

    misturam oportunidades, astcias, vigor, escolhas, sorte, perdas, lamentaes e excluso: a

    oportunidade que algum tem de se instruir enquanto um excelente msico e de ter

    habilidades meldicas interessantes no consegue garantir sua firmao no sistema do

    estrelato. No evita que se possa cair na obscuridade de ser um intrprete praticamente

    esquecido, j que as pessoas perdem o desejo de ver uma apresentao ao vivo, caso no

    possam ver algum que seja famoso. (SENNETT, 1998, p. 351).

    Assim se configuraria o sistema do estrelato: haveria uma correlao direta entre o

    desejo da platia, no centro musical, de ouvir a interpretao ao vivo de qualquer msica, e a

    fama do intrprete da msica. Os msicos que conseguem sair em tourne so aqueles que se

    beneficiam com essa correlao (SENNETT, 1998, p.p. 352-353). Entreter, emocionar,

    causar desejos erticos, corporais, propor alegria, surpresa, inovao, espanto. A atuao do

  • 4354

    intrprete e sua capacidade de transformar em entusistico um espao morto, escuro,

    imvel, ora repleto por paredes fechadas (quando em teatros e casas de show), ora ao ar livre

    (em estdios e/ou arenas) e circunscrito por instrumentos inanimados, seria o principal

    componente do ngreme diploma da extraordinariedade artstica e da experincia coletiva

    atravs da msica. Ou seja, da fama.

    E os msicos de Glam/Glitter tiraram proveito de tais necessidades. No se

    envergonharam em lidar com a indstria cultural, submeteram-se a ela e ao mesmo tempo

    debocharam de suas nsias em controlar as vontades das pessoas. No se intimidaram com a

    oportunidade de ganhar dinheiro, mas no se limitaram ganncia! Entenderam uma

    mensagem de nosso sculo: a idia de no haver fenmeno musical a menos que a

    interpretao seja fenomenal, como diria Sennett. Supuseram que o pblico, em geral, no

    est interessado apenas em ouvir a msica, mas em senti-la, vibrar com seus compassos

    apolneos, gesticulando dionisiacamente para que diversas emoes aflorem e possam ser

    descarregadas.

    Usos de uma cultura da personalidade. Envoltos por esta noo, os msicos de

    Glam/Glitter investiram, dentre outras coisas, na promoo de um indivduo magistral,

    espetacular, carismtico, majestoso. Seja no acerto ou na falha, ele o mximo, consegue se

    superar e alcanar sucesso, aclamao. Acredita-se no que tais artistas fazem como possvel

    de ser feito, de ser imitado, crvel no momento em que podemos dar crditos a seus atos

    discursivos e no-discursivos. Uma estrela cadente que representa muitos sonhos libertrios,

    de escape das regras morais. Uma personalidade significaria, assim, o desejo de poder realizar

    atos que quase ningum pode, de carregar no currculo condecoraes e homenagens que

    possam polir suas mais rgidas mscaras.

    Assim sendo, dois casos interessantes de como os msicos do Glam/Glitter podiam

    lidar com seus prprios contextos, e com a produo de discursividade que os rodeava, so os

    das canes Bennie And The Jets e The Bitch Is Back, ambas do cantor/compositor britnico

    Elton John em parceria com seu principal letrista, Bernie Taupin. Nas duas oportunidades, a

    dupla constri imagens e significados para a idia da personalidade, daquela pessoa envolta

    pelos desejos e sonhos de uma vida artstica extraordinria, idolatrada. Pardias sarcsticas

    acerca da fama e daquilo que ela pode proporcionar foram escritas pela dupla de

    compositores. Uma multiplicidade de processos de produo maqunica [musical], a mutao

    de universos de valor [do Glam/Glitter rock e do estrelato] e de universos histricos [dos anos

    1970] (GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 32). Discursos que produzem imagens nas mentes

    dos ouvintes, que permitem uma subjetivao de idias acerca da produo do estrelato

  • 4355

    naquele perodo (no caso das canes citadas, uma composta em 1973 e a outra em 74,

    respectivamente). Intensifica-se, ento, um lugar para os superstars, sujeitos adorados,

    estranhos, irreverentes, entertainers majestosos que se utilizam da indstria cultural de suas

    maneiras mais variadas.

    Fico e contextos do cotidiano se misturam. No h distines precisas. Nem precisa

    haver. Em Bennie And The Jets, a indstria cultural suntuosamente explorada, torna-se alvo

    de uma temtica musical. Emerge e sucumbe ao poder do artista. E essa aparncia glam

    travestida na perspectiva da cultura da personalidade se impe. Quem seria Bennie? Um

    homem ou uma mulher? Nenhum e ambos ao mesmo tempo. Na cano, essa personagem

    aparece como ela, uma pessoa extravagante, com botas eltricas coloridas e um casaco de

    pele carssimo, mas possui um nome artstico ambguo, um tanto masculinizado, o que nos

    remete a um senso de androginia prprio do Glam/Glitter rock. Bennie uma lder, uma

    show-woman, algum que est sempre na mira dos holofotes e dos crticos, que quer apenas

    uma desculpa para tocar e festejar, ter alegria, aclamao, reverncias contnuas a seu nome.

    Ela seria aquela personalidade que consegue mudar certos rumos da criao artstica.

    Acompanhada por uma banda fenomenal (The Jets), exigncia maior do sistema do

    estrelato, ela moveria platias, comoveria fs, enlouqueceria tietes, representaria o

    Glam/Glitter Rock e os contextos musicais emergentes em meados dos anos 1970:

    Hey kids, shake it loose together (Ei garotada, vamos agitar juntos por a) The spotlight's hitting something (O holofote est mostrando algo)

    That's been known to change the weather (Que se sabe que vai mudar o clima) We'll kill the fatted calf tonight (Ns vamos preparar uma grande festa hoje noite)

    So stick around (Ento fique por aqui) You're gonna hear electric music (Voc vai ouvir msica eltrica)

    Solid walls of sound (Paredes slidas de som)

    Say, Candy and Ronnie, have you seen them yet (Digam, Candy e Ronnie, vocs j os viram) But they're so spaced out, Bennie and the Jets

    (Mas eles esto to estonteados, Bennie and The Jets) Oh but they're weird and they're wonderful

    (Oh mas eles so extraordinrios e eles so maravilhosos) Oh Bennie she's really keen (Oh Bennie ela realmente alucinante)

    She's got electric boots a mohair suit (Ela tem botas eltricas, um terno de pele de angor) You know I read it in a magazine (Voc sabe, eu li isto numa revista)

    Bennie And the Jets (Bennie And The Jets)

    Hey kids, plug into the faithless (Ei garotada, se liguem nos incrdulos) Maybe they're blinded (Talvez eles estejam cegos)

    But Bennie makes them ageless (Mas Bennie os torna imutveis) We shall survive, let us take ourselves along (Ns devemos sobreviver, vamos seguindo adiante)

    Where we fight our parents out in the streets (Onde ns possamos disputar com nossos pais nas ruas)

  • 4356

    To find who's right and who's wrong (Pra saber quem est certo e quem est errado)

    A cano Bennie And The Jets representa um modelo de desejo fantstico para o

    artista que tivesse intenes de vivenciar o estrelato. quela altura, entre 1973-74, poucas

    canes, nos Estados Unidos, alcanavam propores to altas. O que, para seus criadores, foi

    uma controvrsia. Elton John no queria que a cano fosse lanada como single de

    divulgao do lbum em que a mesma estava inserida. O disco duplo Goodbye Yellow Brick

    Road, que j estava na posio 1 das paradas de sucesso pop, ficando l por nada menos que

    8 semanas, precisava de uma msica que atendesse atmosfera da poca. Bennie And The

    Jets no parecia atender a essas exigncias, soava muito estranha, nada comercial, sem

    muitas pretenses, no atendia s demandas de um compacto de sucesso. Mas as

    experincias humanas no devem necessariamente ser medidas por projees de sentidos

    priori. A interveno do promotor de discos da MCA Records, Pat Pipolo, iria mudar tal

    conjuntura: ele foi decisivo para que a cano fosse lanada como single e, para espanto de

    todos, principalmente de Elton John, ela chegaria primeira colocao das paradas norte-

    americanas.

    Essa condio no foi, no entanto, meramente ocasional. Antes mesmo de ter sido um

    single, a cano era constantemente tocada nas estaes de rdio norte-americanas voltadas

    para o pblico negro. Pat Pipolo sabia disso. Mas Elton John era um cantor branco, ingls,

    anglicano. Sua msica, at ento, no costumava freqentar as audincias R&B nos Estados

    Unidos.2 Devido constante segregao racial que permeava o cotidiano dos norte-

    americanos, no parecia comum um branco ter um sucesso negro. Elton teria questionado

    Pipolo se era da inteno do promotor arruinar sua carreira, causar um problema de ordem

    social entorno de seu nome. Parece que no era. E a cano se tornou muito popular entre

    negros e brancos, a partir de 1974, numa das naes mais discriminatrias do sculo XX... De

    ambos os lados...

    Mas a cano uma stira divertida. Nela, a indstria cultural promete, com seus

    holofotes e cmeras, mudar o clima, apresentar o novo, vasculhar os sonhos, as inquietudes

    das pessoas. Ela permite que se prepare uma grande festa hoje noite em casas de show, em

    teatros e estdios esportivos. Uma grande cantora, conduzida por uma banda de msicos

    extraordinrios e maravilhosos, comanda o espetculo. No toa, pois a emergncia de

    cantoras de sucesso, no universo da msica rock dos anos 70, se tornaria uma constante. Diria

    Roberto Muggiati em 1982 que

  • 4357

    elas passaram a sair da penumbra em 1973, atravs de Suzi Quatro, nativa de Detroit que se tornou conhecida em Londres tocando baixo eltrico e gingando seu rock vigoroso em roupas justas de couro preto. Dois anos depois surgia Patti Smith etiquetada o Rimbaud do rock (...). Alm de uma nova safra de cantoras (Chrissie Hinde, Pat Benatar, Kate Bush, Stevie Nicks, Joan Jett, Debbie Harry), muitas vezes liderando seus prprios grupos (masculinos, mistos ou femininos), h o fenmeno relativamente novo dos grupos formados exclusivamente por mulheres. (MUGGIATI, 1982, p. 182).

    Bennie And The Jets foi produzida para demonstrar a natureza moderna da cena

    musical de meados dos anos setenta.3 Uma cano sobre a e para a indstria cultural,

    detalhadamente trabalhada em estdio, com o uso de todos os artifcios que os equipamentos

    das gravadoras passariam a oferecer a partir daquela dcada. Gravada por Elton e sua banda,

    ela parecia comum, sem muito a oferecer, soava como qualquer outra gravao de

    estdio, dizia Gus Dudgeon, produtor musical do cantor poca. Ela precisava de um toque

    a mais, de um atrativo maior. Se ela estava em busca de representar o estrelato, precisava se

    sobressair, chamar a ateno. Assim,

    juntamos alguns efeitos sonoros, basicamente de um concerto de Elton feito quatro ou cinco anos antes. Juntamos os aplausos de um concerto de Jimi Hendrix na Ilha de Wright e um ambiente propcio para soar como uma cano ao vivo. Juntamos assobios e palmas no ritmo errado porque o pblico ingls est sempre no ritmo errado.4

    Divertido e irnico. Tendo o pblico ingls como alvo, a cano chega ao topo nos

    Estados Unidos em 1974 e no nem lanada na Inglaterra como single at 76. Talvez porque

    a idia de estrelato fosse mais vigente entre os norte-americanos. No entanto, especulaes

    parte, Bennie And The Jets, como a maioria das canes populares, e diferentemente do que

    muitos pensam, fala no apenas a partir de sua letra, mas nos diz muito quando podemos

    ouvir sua melodia. Voc vai ouvir msica eltrica / Paredes slidas de som. Os ouvintes e

    fs so usados como um instrumento musical, como uma percusso inovadora de mos,

    palmas e assobios sincopados levada de piano, bateria e cordas. O piano, como o prprio

    astro, comanda o ritmo, guia os caminhos dos demais instrumentos e tenta mostrar como

    possvel fazer rock base de teclas. Suave de incio, envolvente em sua continuao, a

    melodia vai crescendo progressivamente at alcanar compassos mais acelerados, eltricos,

    dos quais, ao final, o piano de Elton e a guitarra de Davey Johnstone duelam entre si,

    condecorados com os aplausos do pblico-instrumento. Na performance vocal, Elton John

    ainda se permite fazer um dueto consigo mesmo, nos momentos finais, cantando ora com uma

  • 4358

    voz masculinizada, ora com voz afeminada, encerrando-a com esta ltima, simbolizando seu

    ar tendenciosamente andrgino.

    A cano tambm mostra a importncia e o peso da eletrificao na msica que

    agradava aos adolescentes (SANTANA, 2002, p. 95). Seu primeiro acorde de piano,

    solitariamente tocado, possui uma pausa proposital, reforando ainda mais o ar de

    apresentao ao vivo. Dizem alguns no haver nenhuma pausa de abertura melhor em toda a

    msica popular (HIGGINS, 2008, p. 14).

    Uma cano embriagada e embriagante, que simboliza tanto o convencional (massivo,

    da cultura dominante, da mdia fonogrfica), pois Bennie ela realmente alucinante / Ela

    tem botas eltricas, um terno de pele de angor / Voc sabe, eu li isto numa revista, quanto o

    no-convencional (contracultural, marginal, indevido), j que Bennie era uma gria

    muito utilizada nos centros urbanos norte-americanos, nos anos 70, para designar uma droga

    incomum, que deixa seus usurios lentos, leves e provoca sensaes de prazer, alm de uma

    vontade aleatria de soltar sorrisos contnuos e inconseqentes: a Benzina; qualquer coisa,

    aps se cheirar o lquido, motivo de risadas, de lentido e conforto. O mais curioso que o

    usurio da droga, nos Estados Unidos, era chamado, coloquialmente, de Jet. Na letra, eles

    esto to estonteados (spaced out). Em ingls, quem est spaced out, est atordoado,

    envolvido a um estado mental disperso causado pelo uso de drogas. Esse jogo de palavras

    feito por Taupin nos indica a inteno de relacionar Bennie Benzina. Assim, a cano,

    involuntariamente ou no, tenta passar um esprito que amlgama esses desejos distantes, e

    conflitantes entre si, de conveno e no-conveno.

    Personagens ficcionais que inventam uma realidade. Esta, por sua vez, no pode

    ser definida, nem delimitada, apenas modulada. A partir deste princpio se constri The Bitch

    Is Back. Com uma idia avulsa, um insight de momento, a partir de uma brincadeira, tem-se a

    possibilidade de se compor uma cano sobre a imagem dos superstars do perodo. Da

    particularidade se discute certo mago coletivo. De uma homenagem direcionada, de uma

    ironia banal do cotidiano, que tinha de tudo para cair no esquecimento, surge uma cano

    popular tambm irnica, crtica, agressiva, sem pudores ou restries. O leitor deve no estar

    entendendo muito, mas j vamos chegar l. The Bitch Is Back nasce de um encontro entre

    Elton John, Bernie Taupin e Maxine Fielbeman (ento esposa de Taupin). O cantor, no dia em

    questo, em um ataque de chiliques, nervoso com a rotina de gravaes e turns, chega ao

    estdio Caribou, localizado em um rancho nas montanhas do Colorado, nos Estados Unidos,

    berrando palavras indelicadas e frases de descarrego emocional. Como um superstar

    manhoso, exigente e mimado, ele reclama de tudo, exige perfeio, quer que as coisas fiquem

  • 4359

    prontas com rapidez. Em sua nsia por fama e aclamao, Elton inventa de gravar um lbum

    inteiro em pouco mais de uma semana. Isso depois de uma turn nos Estados Unidos e antes

    de uma outra que envolveria o Japo e a Austrlia. Sem descanso. Para aliviar as tenses,

    Maxine o cumprimenta com a frase uh-oh, the bitch is back (uh-oh, o puto est de volta).

    Elton no responde. Bernie pensa naquela frase como um ttulo ideal para uma letra, analisa o

    contexto em que sua obra e sua imagem estavam inseridas, pensa em toda a ateno que se

    dava ao que a dupla produzia, de todo o impacto que suas canes causavam:

    I was justified when I was five (Eu era comportado quando eu tinha cinco anos) Raising cane, I spit in your eye (Cortando cana eu cuspi no seu olho)

    Times are changing (Os tempos esto mudando) Now the poor get fat (Agora os pobres ficaram gordos)

    But the fever's gonna catch you (Mas a febre vai te pegar) When the bitch gets back, ah, ah, ah (Quando o puto estiver de volta, ah, ah, ah)

    Eat meat on Friday that's alright (Comer carne na Sexta-feira, est tudo bem)

    Even like steak on a Saturday night (De vez em quando quero um bife na noite de Sbado) I can bitch the best at your social do's (Eu posso atrapalhar o melhor de seus eventos sociais)

    I get high in the evening sniffing pots of glue, oh, oh, oh (Eu fico chapado de noite cheirando potes de cola, oh, oh, oh)

    I'm a bitch, I'm a bitch (Eu sou um puto, eu sou um puto)

    Oh the bitch is back (Oh o puto est de volta) Stone cold sober as a matter of fact (Sbrio e controlado para dizer a verdade)

    I can bitch, I can bitch (Eu posso atrapalhar, eu posso incomodar) `Cause I'm better than you (Porque eu sou melhor do que voc)

    It's the way that I move (Este o caminho que eu trao) The things that I do, oh, oh, oh (As coisas que eu fao, oh, oh, oh)

    I entertain by picking brains (Eu entretenho fazendo cabeas)

    Sell my soul by dropping names (Vendo minha alma descartando nomes) I don't like those, my God, what's that? (Eu no gosto disso, meu Deus, o que fazer?)

    Oh it's full of nasty habits when the bitch gets back, ah, ah, ah (Oh ficar cheio de hbitos horrveis quando o puto estiver de volta, ah, ah, ah)

    Cultura do entretenimento, aliando conveno e no-conveno, clamor e deboche.

    Um superstar impressionante que entretm as pessoas fazendo cabeas, levando milhes ao

    delrio, movendo idias e fazendo-as circular, por entre fs ensandecidos e ouvintes curiosos,

    comportando-se quando a ocasio exige ou atrapalhando o melhor de seus eventos sociais.

    O artista de Glam/Glitter deveria ser provocativo, chocante, ousado. Levado pelo estrelato,

    conduzido pela necessidade de conforto, ele conduz a liberdade de dizer eu posso, eu

    quero, eu devo fazer. No se importando demais com os olhares, ele fica chapado de

    noite cheirando potes de cola, oferece essa possibilidade s pessoas de escolherem seus

    prprios caminhos, suas devidas decises. Rodeado pelo desejo de apario na mdia, ele vai e

  • 4360

    vem, entra e sai das paradas de sucesso, lembrado e esquecido para ser lembrado

    novamente. Aparece, agrada, incomoda e desaparece. Mas no deixa de ser um puto (como

    algum que se vende e se aproveita daquilo) que, constantemente, est de volta.

    A cano requer para si o mbito do sistema do estrelato. Jovens artistas com

    dificuldades financeiras, mas com esforo e empenho, conseguem jogar com as exigncias da

    fama. Os pobres ficaram gordos, no dito toa, mas por mrito. Por seu valor enquanto

    msicos habilidosos, instrumentistas bem treinados. A indstria cultural apenas se aproveita

    dessa situao para ganhar dinheiro e fundar grandes corporaes, ajudando a alavancar

    sujeitos antes annimos, agora adorados (e tambm odiados). A febre de sua fama contagia

    o cada um das maneiras mais variadas possveis. Seja no trabalho, em casa, nos bares e

    festas. Necessidade do sculo XIX, proliferada pelo XX, bastante enftica na dcada de 1970,

    a emergncia do sujeito pblico carismtico, evidenciado e vangloriado, ganha fora entre

    os artistas de Glam/Glitter. Eu posso atrapalhar, eu posso incomodar, porque eu sou melhor

    do que voc uma possibilidade que o estrelato vai espargir aos artistas reconhecidos.

    Grande presena de palco e grande estima vo permitir que hbitos gloriosos e

    impossveis para uma pessoa comum sejam praticados por rockstars com bastante

    freqncia.

    Rock enrgico, The Bitch Is Back foi um choque para certa ala conservadora norte-

    americana. Muitas estaes de rdio do pas passaram a no querer execut-la para que

    problemas fossem evitados com a pronuncia da palavra bitch (que significa cadela, quando

    dirigida a caninos, e puto ou puta quando mencionada para humanos). Houve muita

    resistncia para a cano ser tocada em rdios, sejam FMs ou AMs. Mas Elton John j era

    por demais famoso nos Estados Unidos. No tocar suas canes significava perder dinheiro e

    audincia. Quando foi lanada como single, em Agosto de 74, veio a cartada final contra tais

    veculos miditicos: ao chegar ao 4 lugar nas paradas de sucesso, ficando nas listas das mais

    vendidas por um tempo de apenas 14 semanas, as rdios tinham que toc-la, j que era

    exigncia de boa parte de seu pblico. Mas no foi to fcil. Algumas estaes, como a

    WNEW de Nova York, cederam e tocaram a cano sem maiores problemas; j outras

    censuraram a palavra bitch com um beep toda vez que Elton John a cantava. Detalhe: a

    palavra em questo repetida 44 vezes ao longo da cano, o que deve ter causado uma

    experincia singular de audio para os ouvintes e/ou fs do cantor... (HIGGINS, 2008, p. 12).

    H ainda o efeito lingstico andrgino de The Bitch Is Back, efeito este possvel,

    dentre outras coisas, por conta da lngua inglesa. Em portugus, por exemplo, ficaria mais

    fcil identificar ou diferenciar puto de puta, j que os gneros poderiam ser mais

  • 4361

    codificveis. J, em ingls, quando algum pronuncia Im a bitch, o sentido que se obtm

    s pode ser inteligvel a partir do momento em que se conhece quem est falando. Mesmo em

    portugus, o conceito binmio, em termos de gnero sexual, no poderia ser garantido apenas

    por seu pronunciar, tambm dependeria da subjetividade de quem o estivesse pronunciando.

    Mas na lngua anglo-saxnica, a subjetividade que a expresso carrega tem muito mais

    primazia do que no simples ato de falar e s pode ser traduzvel para o portugus (ou para

    outra lngua) se soubermos quem est falando, de onde se fala e para quem se fala. No caso

    das intencionalidades andrginas do Glam/Glitter rock isso no importa muito. Bitch,

    apesar de ser mais utilizada para definir uma prtica sexual geralmente feminina (a da

    prostituio ou mesmo da mulher que a pratica), tambm pode dar sentido a garotos de

    programa e/ou s pessoas que adoram debochar de situaes convencionais, de regras de

    etiqueta, pois ficar cheio de hbitos horrveis quando o puto estiver de volta. Os

    Glam/Glitter rockstars, irnicos com as posturas definidas de gnero, costumavam, de modo

    simblico, cuspir nos olhos dos conservadores e moralistas.

    Assim, todas essas palavras que foram acima postas podem nos dar uma idia das

    imagens de uma banda ou de um artista de Glam/Glitter rock em meados da dcada de 70 e de

    seus usos do sistema do estrelato e do palco enquanto lugares de performance ps-moderna.

    As superprodues incentivadas naquele perodo tinham o respaldo das companhias de disco

    que dificilmente no teriam o retorno financeiro esperado, e quando este no era bem maior

    que o estimado. Mas, para alm disto, como diria Valria Santana, a espontaneidade dos

    sentimentos imediatos e o despojamento vinculado informalidade faziam do Glam/Glitter

    um gnero musical dos mais prediletos nos anos 70, perodo em que, de acordo com o cantor

    Alice Cooper, musicalmente tudo era desculpa para festejar e dizer, provocando, Im better

    than you (Eu sou melhor que voc).

    Notas

    1 Aproveitamo-nos do conceito de pop/rock trabalhado por Paul Friedlander para mostrar que o gnero rock

    tem vrias vertentes e ramificaes, musicais e lricas, que o diversificam e inserem-no nas tendncias da indstria cultural. Cf. FRIEDLANDER, Paul. Se estivesse lendo sobre Rock, eu gostaria de ter em mente.... In: Rock and Roll: uma Histria Social. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 12.

    2 Procuremos explicar melhor. Desde a dcada de 1950, nos Estados Unidos, as paradas de sucesso (charts) so divididas em algumas categorias, fortemente inter-relacionadas segregao racial, com a inteno de moldar seu pblico, sendo elas: Billboard Pop Charts (Paradas de Sucesso da msica pop/rock, freqentemente associadas juventude, aos brancos e mdia radiofnica e televisiva), Black Charts (Paradas de Sucesso destinadas ao pblico negro e mdia especializada nesse grupo de expectadores recentemente, a partir da dcada de 90 e com as mudanas em relao idia de apartheid, a Billboard trocou essa nomenclatura por R&B Charts, talvez uma maneira politicamente correta de manter a segregao e a

  • 4362

    distino entre msica negra e msica branca), Adult Contemporany Charts (Paradas de Sucesso destinadas ao pblico adulto), Country Charts (Paradas de Sucesso voltadas tradicional msica country).

    3 SUPERSEVENTIES Website. Bennie And The Jets. Disponvel em: http://www.superseventies.com/ 1974_7 singles.html. Acesso em: 12 / 09 / 07.

    4 Palavras de Gus Dudgeon. Cf. SMEATON, Bob. Bennie And The Jets. In: Classic Albums: Goodbye Yellow Brick Road. Estados Unidos da Amrica: Eagle Rock Entertainment, 2001. 1 disco de vdeo digital (DVD) (90 min.).

    Referncias Bibliogrficas

    CONNOR, Steven. Cultura Ps-Moderna, introduo s teorias do contemporneo. So Paulo: Edies Loyola, 1996. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1986. FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: uma Histria Social. Rio de Janeiro: Record, 2002. GUATTARI, Flix & ROLNIK, Suely. Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis, RJ: Vozes, 1986. HIGGINS, John F. Rocket Man Tour, Elton John Tour book. Bervelly Hills, USA: Howard Rose Agency Ltd.; London, UK: Twenty-First Artists, 2008. MUGGIATI, Roberto. Histria do Rock. So Paulo: Editora Trs, 1982 [Vols. 1-4]. SANTANA, Valria de Castro. Children Of The Revolution: o Glitter Rock de Elton John (a obra, os artistas, o pblico). Uberlndia: Universidade Federal de Uberlndia Campus Santa Mnica, Dissertao de Mestrado, 2002. SENNETT, Richard. O Declnio do Homem Pblico: as tiranias da intimidade. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.