Elza, Do Trem — Revistadoispontos

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revistadoispontos.com Elza, do trem by Revistadoispontos • 6 min read • original (ILUSTRAÇÃO: Lucas Lameira) por Mateus Fagundes e Simião Castro Acordar domingo cedo para pegar o trem. A frase pode remeter a histórias antigas, mas não. Já é século 21. E o trem, o da Estrada de Ferro Vitória a Minas, até moderno. Entretanto, esse é sim o começo de uma história. De dois jovens. De muitas cidades. De ferro. De minério de ferro. De uma trilha. Da Trilha do Minério. De uma mulher. Estávamos ansiosos com essa viagem. Seria nossa primeira vez à bordo. Chegar a Praça da Estação, em Belo Horizonte, foi como voltar no tempo. Tempo frio, inclusive, com sol discreto que dava um charme

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Elza, do trem

by Revistadoispontos • 6 min read • original

(ILUSTRAÇÃO: Lucas Lameira)

por Mateus Fagundes e Simião Castro

Acordar domingo cedo para pegar o trem. A frase pode remeter ahistórias antigas, mas não. Já é século 21. E o trem, o da Estrada deFerro Vitória a Minas, até moderno. Entretanto, esse é sim o começode uma história. De dois jovens. De muitas cidades. De ferro. Deminério de ferro. De uma trilha. Da Trilha do Minério. De uma mulher.

Estávamos ansiosos com essa viagem. Seria nossa primeira vez àbordo. Chegar a Praça da Estação, em Belo Horizonte, foi como voltarno tempo. Tempo frio, inclusive, com sol discreto que dava um charme

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à ocasião – contrariando o fato de ser março: mês das águas e calorintenso.

Compramos as passagens, ficamos por pouco tempo no barulhentosalão de embarque, com muita gente, muita mala, muitos abraços.Quem se atrasa, fica para trás. Mas ainda não havíamos visto a mulherda história…

Já dentro do trem, nos acomodamos em confortáveis poltronas daclasse executiva. A passagem até Ipatinga – nosso ponto de parada –custa R$ 38. Até Vitória – Cariacica, na verdade, Estação PedroNolasco –, o valor é de R$ 82. Em classe econômica os valores são,respectivamente, R$ 24 e R$ 54. A composição desce as montanhas deMinas em direção a Vitória todos os dias, pontualmente às 7h30.

Eis que ela chegaImpossível calcular quantos mineiros – e o quanto de minério – jáforam transportados pelos trilhos da Vitória a Minas. Quanto aço,produtos agrícolas, carvão, ferro gusa que passaram por ali ealcançaram o exterior. Quanta gente, quantas histórias e vidas secruzaram e mudaram no caminho do trem – tudo modificado parasempre.

Vidas como a dela, que chega para sentar-se na poltrona ao lado. Detrajes simples, acompanhada de uma menina (seria sua neta?). Asrugas fortes, que lhe contornam o nariz e a boca, falam mais que suaidade. Pronunciam que a vida fora dura com ela. Mais dura que o solque certamente o trabalho lhe fizera tomar. O que a expressão tristeao redor dos olhos parece confirmar.

Nossas malas ocupavam os lugares dela. Muito simpática, pediulicença e tiramos nossas bagagens dali. A empatia foi clara. Alisoubemos que teríamos uma boa companhia na viagem que nem haviacomeçado.

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— Prazer, Mateus. Simião, meu amigo.— Prazer, Elza.

Apita o trem. Ela nos pergunta para onde iríamos e logo sentenciouseu destino. Resplendor, bem na divisa com o Espírito Santo. Vi queela estava aberta a uma conversa e não me contive. Perguntei senascera lá. Ela respondeu que estava indo para lá visitar a família,onde havia morado desde os três anos, mas que nascera no interior doRio de Janeiro. Pegaria também documentos na cidade para entrarcom o pedido de aposentadoria.

Com a fala fácil e solta, conta que é empregada doméstica, mas antestrabalhava na roça para uma sobrinha, “passando humilhação”. Elzadiz que a parente não a tratava bem. Cansada das dificuldades que avida na roça trazia, Elza e seu marido decidiram acompanhar os filhosque moravam em Betim, região metropolitana de Belo Horizonte. Osdois mudaram-se para a cidade no dia 1º de outubro de 1998 – ela temótima memória para datas e acontecimentos de sua vida e de seusfamiliares. Foi quando começou a trabalhar como empregadadoméstica. E o marido como ajudante de pedreiro. “Ele nuncareclamou da sorte. Acorda todo dia às 4h30 da manhã e ainda assim éfeliz”, orgulha-se.

Canarinho na gaiolaElza não gosta da cidade. No concreto, ela se sente como um“canarinho preso na gaiola”. À medida que o trem vai deixando aospoucos a cidade de Belo Horizonte ela diz ir se acalmando. “Vou vendomato, capim, gosto mesmo é da roça, do cheiro do mato”. Ela se dizfeliz ao ver as pastagens e cavalos de raça no caminho. É a quarta vezque faz a viagem de trem até a cidade onde cresceu.

Digo que também me agrada a paisagem, pois também sou do interior.E critico a vida na cidade, à qual ainda estou me acostumando.Comento que estou gostando da viagem e falo do quanto seria bom ter

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um transporte assim, de qualidade, dentro de Belo Horizonte.Reclamamos – eu e ela – do trânsito e da vida agitada.

Com uma hora, já estamos em Barão de Cocais. Ela começa a ficaransiosa e deseja fumar, mas as regras do trem não permitem. Isso a fazconfessar que não gosta de viajar de trem. Está nele porque é barato.Acha a viagem demorada.

São um pouco mais de 12h de BH até Vitória, a mais ou menos 55Km/h. Por um caminho que, primeiro, corta as regiões da Serra doEspinhaço, chega ao Vale do Rio Doce e acompanha o curso de águaaté o Espírito Santo. Já em terras capixabas, abandona o rio – que dánome à empresa que administra a linha – e segue em direção aooceano.

Capciosamente, pergunto se ela já havia completado a viagem até omar. Muito simpática, ela ri e diz que do mar só conhece as imagens datelevisão. “E nem tenho vontade de conhecer”, enfatiza. Porém,irritada por não poder fumar, e reclamando dos funcionários do tremque a impediram disso, Elza diz que nunca mais vai andar de trem navida.

(ILUSTRAÇÃO: Lucas Lameira)

Sobrinho-filhoElza é uma dessas mulheres à moda antiga. Matriarca que se sacrificapelos filhos. Dela mesmo são quatro. O mais velho, que é sobre quemfala mais, tem problemas mentais, é alcoólatra e cego de um olho.Além de ter morado quatro anos com uma mulher da idade da mãe.

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A menina que viajava com ela é uma de suas netas, Claudiana, de cincoanos, filha de Luciana. A garota tem os traços da avó. E o cabelocomprido e desgrenhado também lembra muito o dela – exceto pelotom louro da menina, e o castanho da mais velha. Elza tem ainda maisdois filhos e uma neta de cada um deles.

A matriarca criou ainda o sobrinho mais velho, filho de uma irmã. Orapaz cresceu com seus filhos e era muito bom para ela. Querido comose tivesse nascido dela mesma. Talvez por isso a lembrança de suamorte a machuque tanto, e a faça chorar pela primeira vez na viagem.O moço, ainda jovem, morreu num acidente de moto, em 1º de maio de2006. Sua última estação fora a estrada.

Com lágrimas rolando pelo rosto, Elza conta todos os detalhes datragédia, conforme os relatos que ouviu. O deslocamento de arprovocado por uma carreta, no anel rodoviário de BH, teria jogado amoto do sobrinho contra a lateral de um ônibus. Diz-se que, embora decapacete, ele caiu no chão morto. A irmã dela, mãe do rapaz, sofreumenos que ela, pois não teve “contato com o filho”. Ela nunca visitarao rapaz em Betim. O marido nunca deixou.

Chamando por elaPara Elza, os filhos não podem se afastar dos pais, ainda mais quandotodos moram no que lhes pertence. Ela mesma, no entanto, teve de seafastar dos pais em razão dos trilhos da própria vida. Nuncaabandonou, porém, a forte ligação que cultiva com a família.

Casou-se com um bom homem, que lhe dava liberdade. E lembrou-sedos pais que casaram-se no interior do Rio de Janeiro e depois forammorar em Resplendor. A mãe abortou espontaneamente várias vezes.Vivos, são três irmãos apenas. Ela é a mais nova. E deve ter algo emtorno dos 65 anos.

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É com muita mágoa que Elza fala sobre a vida sofrida do pai. Ele eracuidador da Fazenda Santa Bárbara, em Resplendor. Segundo ela,trabalhou lá por 42 anos sem nunca receber direitos trabalhistas. Elaprocura dar noção do tamanho da propriedade. Diz que tem “terreirode pedra. ‘Cabe’ mais de 4 mil engravatados. Carros de luxo para opessoal da roça: S10, D20…”

Indignada, confidencia que o pai não teve assistência alguma antes demorrer “de derrame”, em outubro de 1995. E que os patrões sóajudaram no enterro dele com R$ 310 porque seu irmão ameaçouentrar na justiça.

Morte, aliás, é assunto recorrente na conversa com Elza. Ela vai àslágrimas pela segunda vez quando fala que a mãe morreu chamandopor ela, na cidade de Resplendor, em 2010. Vítima também de umacidente vascular cerebral, partiu depois de ficar dois anos na cama.Tinha 88 anos, estava magra e debilitada. Os olhos de Elza brilham –não pelas lágrimas, porém – ao lembrar da devoção que seus paistinham um pelo outro. “Os dois só se separaram por Deus”, emociona-se.

Estamos cada vez mais próximos do nosso destino. A viagem passourápida em razão da conversa tão intensa e profunda. O trem chegaligeiro em Ipatinga. Simião e eu nos despedimos de Elza e desejamos aela e a neta uma boa viagem. Que ficasse com Deus e que tudo dessecerto com sua aposentadoria. É hora de descer na estação. O tremapita e leva Elza mais uma vez para o seu destino.

É quando me lembro de um detalhe: Elza de que mesmo? Nãoperguntei o sobrenome! Acho que não importa muito também. Paranós ela sempre será a Elza do Trem.

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