Em Busca de Imagens guardadas

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Em busca das Imagens guardadas* Capa do catálogo da exposição ‘Novas Visões – Fotografia contemporânea do Pará’, coletiva realizada em Niterói e no Rio de Janeiro em 1997 e 1998, respectivamente. “Destacada integrante da geração 90 da fotografia paraense, Flavya Mutran envereda pelos caminhos da interferência no processo de revelação de suas fotografias, atitudes presentes desde o início de sua carreira. De fato, as experimentações realizadas a partir de 1989 com seus trabalhos de estúdio e documentação do folclore e da arquitetura, mostram como foram incorporadas ao seu antigo acervo novas leituras provocadas pelas suas manipulações. De natureza inquieta, esta talentosa artista visual compõe, em 1992 e 1993, a primeira série ‘Caixa de Pandora’, que resulta em mais de uma dezena de obras únicas, materializadas em forma de caixas que semi-velam segredos, ressaltando a idéia de baús de memórias.

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*Texto extraído do catálogo da exposição ‘NOVAS VISÕES, FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA DO PARA’, realizada pela FUNARTE na Galeria de Arte da UFF em 26nov a 14dez de 1997 em Niterói/RJ e na Galeria Sergio Milliet, em 13jan a 6mar de 1998 no Rio de Janeiro/RJ, sob a curadoria de Ângela Magalhães, Nadja Peregrino e Paulo Máttar.

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Em busca das Imagens guardadas*

Capa do catálogo da exposição ‘Novas Visões – Fotografia contemporânea do Pará’, coletiva realizada em Niterói e no Rio de Janeiro em 1997 e 1998, respectivamente.

“Destacada integrante da geração 90 da fotografia paraense, Flavya Mutran envereda pelos caminhos da interferência no processo de revelação de suas fotografias, atitudes presentes desde o início de sua carreira. De fato, as experimentações realizadas a partir de 1989 com seus trabalhos de estúdio e documentação do folclore e da arquitetura, mostram como foram incorporadas ao seu antigo acervo novas leituras provocadas pelas suas manipulações. De natureza inquieta, esta talentosa artista visual compõe, em 1992 e 1993, a primeira série ‘Caixa de Pandora’, que resulta em mais de uma dezena de obras únicas, materializadas em forma de caixas que semi-velam segredos, ressaltando a idéia de baús de memórias.

A exemplo de alguns fotógrafos que aqui compõem o grupo Caixa de Pandora, Flavya simboliza esta narrativa mística, resgatando imagens antigas, cujas leituras desmistificam o que ela considera ruim. Em seu último trabalho da série pandoras de

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lata, de 1994, a autora encerra esta fase da redescoberta de material de arquivo, o que simboliza para a artista ‘o falecimento prematuro de alguns inocentes teimosias de amador.’1

Já na série ‘Pandoras de água’ de 1995, as fotografias em preto e branco estão montadas entre lâminas de vidro, emolduradas com alumínio, contendo substâncias como óleo e água no interior das lâminas. Montadas de forma horizontal, através de cabos de arame presos no teto, esta instalação permite que o observador interaja com a obra pelo toque nas molduras, provocando o deslocamento do líquido através da fotografia de um corpo feminino. A concepção desta instalação trabalha com a idéia das molduras como ampulhetas, onde a questão do tempo é enfocada sob o ângulo das transformações físicas e emocionais através de interferências e distorções do corpo feminino. Mais recentemente, no desenvolvimento do projeto ‘palimpsestos’, o sentido desta palavra Greco-latina é o leit motif da pesquisa de Flavya Mutran, instaurando para a artista uma ligação profunda com a morte e ressurreição da fotografia, um enfrentamento dialético que traduz a essência do trabalho aqui apresentado. Assim é que Flavya funde conceitos de recordar-esquecer e vai ao encontro de imagens de pessoas e lugares que impregnam seus filmes fotográficos – desentranha a lembrança de um tempo fugidio, começando por procurar as pontas dos filmes, com seus fotogramas operados pelo acaso, com cenas inacabadas, impressas por superposição de imagens. São atos falhos, lapsos e, por que não, premonições de imagens do invisível, descortinadas na virtualidade de sua memória, onde a reflexão sobre a experiência subjetiva pode levar à constatação de que existe algo como um ‘ruído mental’ de fundo, em ebulição permanente, de onde surgem pensamentos, idéias, juízos e emoções, que desaparecem posteriormente e que podem sempre ser resgatados pelo processo criativo.2 Assim, como um desafio pessoal, a artista busca constantemente ‘trazer à luz o que um dia, em algum lugar esteve ali, e que hoje são traços mnésicos, duráveis e infinitos, latentes e à espera de serem (re)descobertos.’3

Como uma arqueóloga, a artista escava, arranha, procurando o que está abaixo da camada da superfície da imagem, na procura do ponto de cisão entre o real e imaginário. Vai em busca de um olhar interior, embebedando-se de memória psíquica e de memória física – e também tecnológica, permitindo-se, também, encontrar a marca do sujeito, para fundar as imagens que é capaz de assimilar.4 As fotos que surgem são suporte tangíveis, sofrendo a interferência do grafismo da palavra – signos sobre a imagem – que buscam aproximá-la de sensações não vivenciadas através da

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2NOTAS1 Referência de texto de Flavya Mutran.? ‘La imagem visual como processo’, Jacobo Grinberg. Luna Córnea n°5. México, conselho Nacional para a Cultura e as Artes. 1994.3 Referência de texto de Flavya Mutran.4 ‘A luz e o cego’, Evgen Bavcar. Artepensamento, org. Adauto Novaes. São Paulo, Companhia das letras, 1994.

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fotografia. A estas fotos são incorporadas a resina que, em sua consistência sólida e transparente, funciona como uma forma de preservação.

Nas sombras e luzes do tempo congelado, imagem e palavra interagem, expressando a solidão que remete, em termos bíblicos, àquela sugerida pelos fiéis no muro das lamentações. As inscrições nas fotos aqui destacadas – ‘Tem umas pessoas que já o viram e o sabem’, ‘tempo, tempo, tempo’ – reinteram o sentido ‘do espiritual da arte transformando algumas imagens em pura abstração, outras em imagens de fantasmagoria surpreendente... ’5

Para Flavya Mutran, a fotografia passa a encarnar a idéia contida na palavra palimpsestos, ‘manuscritos sob cujo texto se descobre a escrita ou escritas anteriores’, ou seja, da fotografia que se sobrepõe a outra fotografia, ad infinitum. Através da multiplicidade de sobreposições e configurações poderia-se, ao final, o sentido de que a arte existe como uma trama de referências, não necessariamente localizada numa forma, médium ou local.”6

* Texto extraído do catálogo da exposição ‘NOVAS VISÕES, FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA DO PARA’, realizada pela FUNARTE na Galeria de Arte da UFF em 26nov a 14dez de 1997 em Niterói/RJ e na Galeria Sergio Milliet, em 13jan a 6mar de 1998 no Rio de Janeiro/RJ, sob a curadoria de Ângela Magalhães, Nadja Peregrino e Paulo Máttar.

FUNARTE. Fotografia Contemporânea do Pará: Novas Visões. Textos Ângela Magalhães e Nadja Peregrino; curadoria Paulo Máttar. Riode Janeiro : EdUFF, 1997. [pp. ].

5 Extraído de texto de Cláudio de La Rocque Leal, Belém/PA, abril de 1996.6 ‘Passagens da imagem: pintura, fotografia, cinema, arquitetura, de Nelson Brissac Peixoto. Imagem máquina, org. André Parente. Rio de janeiro, Editora 34, 1993.