Em Cena, Os Homens

5
Dossiia EM CENA, OS HOMENS.... MARIA LUIZA HEILBORN SERGIO CARRARA 0 presente dossiè ecoa a importancia crescente que o tema da mascu- linidade vem assumindo no ambito dos estudos sobre gOnero e sexualidade. Nos Estados Unidos ou inglaterra, o assunto ja vem ha algum tempo inspirando novos trabaihos em areas disciplinares maistradicionais, como a psicologia, a antropologla ou a hist:N*1a social. Nos Oltimos anos, nas universidadesanglo-americanas, vem sendo organizada uma nova sub-area de reflexao InterdisciplInar que, a exemplo dos women's studies dedica-se exciusivamente ao estudo do gènero masculino. Sao os chamados men's studies'. Na Franca, intelectuais do peso de Pierre Bourdieu têm visitado o tema em artigos e livros recentes2 . No Brasil, como demonstram os artigos reunidos nesse dossiO e em aigumas outras publicacaes, a masculinidade tambêm vem se tomando objeto de pesquisa. Ao que parece, nesse final de mllénio, os homens- enquanto representan- tes de urn genero - vem sendo definitivamente transformados em objeto de ciOncia. 0 significado deste fato deve ser salientado, caso quelramos entrar nessa discussao sem incorrer nos perigos de uma abordagem ingenuamente positivista, para a qual os homens e a masculinidade teriam estado sempre la, apenas a espera de urn Para uma recente avaliagdo crItica da product -10 da chamada area dos men's studies ver CARRIGAM, Tim, CONNEL Bob e LEE, John. Toward a New Sociology of Mascuninity. In: BROD, Harry (ed.). The Making of Masculinitles: the new men's studies. Boston: Allen & Unwin, 1987; CORNWALL Andrea, eUNDISFARNE, Nancy. Introduction e Dislocating Masculinity: gender power and anthropology, In: CORNWALL A., e UNDISFARME, N. (ed.). Dislocating Masculinity - Comparative Ethnographies. Londres e Nova Yorque: Routiedge, 1994; HARRISON, James B.. Men's Roles and Men's Lives, Signs, winter, 1978, p. 325-337; OLIVEIRA, Pedro Paulo. Discursos sobre a Masculinidade, Revista Estudos Feministas, vol. 6, n. 1. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1998. 2 BOURDIEU, Pierre. La Domination Masculine. Paris: Seull, 1998 e A Dominaddio Masculina. EducacCo e Realidacie, re 20, v. 2, jul/dez 1995, p. 133-184.

description

Artigo que põe

Transcript of Em Cena, Os Homens

  • Dossiia

    EM CENA, OS HOMENS....

    MARIA LUIZA HEILBORNSERGIO CARRARA

    0 presente dossi ecoa a importancia crescente que o tema da mascu-linidade vem assumindo no ambito dos estudos sobre gOnero e sexualidade. NosEstados Unidos ou inglaterra, o assunto ja vem ha algum tempo inspirando novostrabaihos em areas disciplinares maistradicionais, como a psicologia, a antropologlaou a hist:N*1a social. Nos Oltimos anos, nas universidadesanglo-americanas, vem sendoorganizada uma nova sub-area de reflexao InterdisciplInar que, a exemplo doswomen's studies dedica-se exciusivamente ao estudo do gnero masculino. Sao oschamados men's studies'. Na Franca, intelectuais do peso de Pierre Bourdieu tmvisitado o tema em artigos e livros recentes2. No Brasil, como demonstram os artigosreunidos nesse dossiO e em aigumas outras publicacaes, a masculinidade tambmvem se tomando objeto de pesquisa.

    Ao que parece, nesse final de mllnio, os homens- enquanto representan-tes de urn genero - vem sendo definitivamente transformados em objeto de ciOncia.0 significado deste fato deve ser salientado, caso quelramos entrar nessa discussaosem incorrer nos perigos de uma abordagem ingenuamente positivista, para a qualos homens e a masculinidade teriam estado sempre la, apenas a espera de urn

    Para uma recente avaliagdo crItica da product-10 da chamada area dos men's studies verCARRIGAM, Tim, CONNEL Bob e LEE, John. Toward a New Sociology of Mascuninity. In: BROD, Harry(ed.). The Making of Masculinitles: the new men's studies. Boston: Allen & Unwin, 1987; CORNWALLAndrea, eUNDISFARNE, Nancy. Introduction e Dislocating Masculinity: gender power and anthropology,In: CORNWALL A., e UNDISFARME, N. (ed.). Dislocating Masculinity - Comparative Ethnographies.Londres e Nova Yorque: Routiedge, 1994; HARRISON, James B.. Men's Roles and Men's Lives, Signs,winter, 1978, p. 325-337; OLIVEIRA, Pedro Paulo. Discursos sobre a Masculinidade, Revista EstudosFeministas, vol. 6, n. 1. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1998.2 BOURDIEU, Pierre. La Domination Masculine. Paris: Seull, 1998 e A Dominaddio Masculina. EducacCoe Realidacie, re 20, v. 2, jul/dez 1995, p. 133-184.

  • analista criativo que os abordasse. PrincIpaimente depots dos trabalhos de MichelFoucault, sabemos muito bem que o modo pelo qual os saberes clentificos constro-em seus objetos ndo operacdo simples, nem suas conseqUinclas socials sdosempre previsivels. Na maior parte das vezes, porrn, a construed de novas objetoscientificos sup6e e geralmente reforca processos de dominacOo que atingem certosgrupos socials. Assim aconteceu, por exemplo, corn os loucos, os sexuaimentedesviantes, as mulheres, as criancas ou os veihos, para os quais as al &alas bio-mdicas construfram nos CrItimos duzentos anos niches disciplinares especificos,como a psiquiatria, a ginecologia, a pediatria e a gerontologia. Porm, submeter oshomens - seu organismo, seu comportamento ou os valores socialmente atribuldosao genera masculino - ao crivo da especulacdo cientifica parece ter sido tarefa bemmats complicada. Ainda no drnbito das cidnclas blorncricas, uma andrologia -enquanto cincia dos problemas que afetam os homens - nunca conquistou omesmo grau de sistematicidade ou o mesmo prestigio acadarnico de disciplinascomo a ginecologia, embora sua constituted tenha tendo sido proposta pontual-mente ao longo desse nosso sculo 3. Talvez seja por isso mesmo que ainda hoje, noBrasil e em outios poises ocidentais, homens com problemas especificos aoteu sexocontinuem a ser tratados por urologistas, ou seja, por especialistas de uma disciplinaque teoricamente enderecada a um indivicluo universal, a urn ser humane ndomarcado por quaisquer atributos de genera.

    Contudo, a tenclncia de se deixar intocado o homem parece estarsendorevertida. Ironicamente, s6 agora eles se tomam objetodaquelas clncias que, mesmosem nunca terem abordado sistematIcamente a masculinidade, desde hd muito temposdo denominadas de "cincias do homem". Na verdade, nelas, como JO apontaraa critica feminista dos anos 70, o homem figurava ndo como urn objeto de reflexdoentre outros, mas como o referente implicit de seus discursos, como o representanteuniversal de toda a espcie humana. Esses serdo os momentos finals do percurso quelevara os homens a compieta perda dos privIlgios da universalidade? Talvez. Talvezseja tambrn o momento em que se tome claro que tats privilgios tern seu preco,pots, se o gdnero masculino ou as sIngularidades do organism dos homens tern sidomats dificilmente "objetificdvels" pelas diferentes cincias humanas, as solucdespara os seus problemas especificos sao por isso mesmo muito menos conhecidas.

    De todo modo, a correlacdo entre a emergncia do genera masculinocomo objeto de reflexdo das ciOnclas humanas e a perda dos privilOgios socials queate hoje a identidade de genera assegurou aos homens corroborada por diversostrabalhos. Muitos autores vem na atual preocupacdo corn o tema o reflexo da"crise" imposta a identidade masculina a partir dos anos 60, oriunda da segundavaga feminista e da emergOncia do movimento homossexual 4. Atravs de den0nclasenvolvendo violncia dornstica, assclio sexual, monop011o de postos e de funcOesno mercado de trabalho, atitudes homofdbicas etc. impOs-se um malordistanciamento

    3 Ver para Isso CARRARA. Mbuto a Vnus, a Luta Contra aSifilis no Brasi da Possagem doSitcuboosAnos40. Rio de Janeiro: Fiocruz 1996.

    De foto, alguns historiadores remontam tal crise aos finals do s6culo passado quando as mulheresemergem enquanto ator politico na cena pOblIca. Ver, por exemplo, MARIGUE. L'IdentItO Masculineen Crise au Toumant du Sicle. Paris: Rivages, 1987.

  • frente a comportamentos evaloresque ateentao estavam amplamente naturalizados,vistos como inerentes ao corpo e ao mundo mascuiinos. A masculinidade comecaa ser entao macs claramente percebida como culturaimente especifica, variandosegundo as sociedades ou, no ambito de uma mesma sociedade, segundo diferen-tes periodos de sua histarlas. A masculinidade "desconstruida" pode agora possuirtambem uma hIstarla, uma antropologia, uma sociologia.

    Alem disso, e para alguns ainda como reflexo da mesma "crise", oshomens comecam a se organizar, ao menos em alguns poises, em tomo dasingularidade de seu genera. Alguns desses grupos de homens se revestem de urncarater quase terapeutico, procurando ajudar os seus membros a superar os confiltosque o mundo moderno coloca a sua Identidade de gnero. Outros apresentam urncarater redentario, reunindo homens em busca de uma masculinidade menosagresslva, mats responsavel e domestics. Nos Estados Unidos, tal movimento jaconsegue arrebanhar milhares de adeptos (oriundos prIncipalmente da ciassemedia bronco) em gigantescas manIfestacaes pOblIcas. Para multos, tats gruposnada macs seriam do que a resposta aganIca do "sexo forte" frente a erosao final deseus privliglos socials. De todo modo, sua presences na cena p0blIca contribui paratornar urgente a reflexao sobre o assunto.

    Em poises como o Brasil, onde tats movimentos sao bem menos expressivos,outros elementos concorrem para a importancla que o tema vem assumindo.

    Cremos que uma certa agenda politica Internacional allada a nossacostumelra incorporacao de temas dos clnclas socials do moda podem explIcar ointeresse que a masculinidade vem despertando no pals. 0 aparecimento desseobjeto se inscreve num cenarlo do iniclo do decades de 90 quando tern lugar grandesconferenclas internacionals relativas aos dlreitos dos mutheres, que enfatizaram anecessidade de incorporar os homens como aivos de politicos de Implementacaode uma motor eqUidade entre os sexos. Essas conferenclas, que foram alm dosinteresses femininos, tratando de temas como direitos humanos, populaces, meinamblente, tiveram o merit de sallentar que especificamente nos questoes relativasla reproduces e ao controie do dIfusao do epidemia HIV/Aids era premente focallzarawes sobre a populaces masculina. Asslm, o despertar do interesse articula-seobviamente corn a possibilidade de financiamentos de pesquisas e intervencOes quecoda vez macs privIleglam os Integrantes do sexo masculino como aqueies a quernse cumpre conhecer, interrogar e mesmo offeror valores e comportamentos Essequadro parece ser o mats razoavel para elucidar o contexto de surgimento dointeresse que se combinou tambern a fenamenos socials especificos e datados,entre eles a mudanca do perfil epiderniolOgico da epidemia HIV no pais corn oaumento vertiginoso do contamlnacao sexual de mulheres por intermedio de seusparceiros fixos (maridos e companheiros) e tambern peia crescente visiblildade doviolencia domestIca. A an4:51ise do logics e do visa mascullnas expressas naarticulacao entre sexualidade, relacaes de gnero e organlzacao da familia tornou-se mats que nunca fundamental.

    6 Memos 'ma's claramente" porque, desde os 1rabolhos plonekos de Margaret Mead, o carbtersocialmente construldo dos pope's sexuals JO era discutido ao menos no ermbito do Antropologia Social.

  • AI6rn da "arise mascullna" e das novas agendas feministas ou de lutacontra a AIDS, ao contexto de emergOncla do gnero masculino como objeto dereflexao deve ser agregada a prOpria dlnarnica do campo de estudos de genera.Nele, o desiocamento da 6nfase do universofeminlno ou dos sexualmente desvlantespara os sistemas ou hlerarquias de g6nero em sua totalldade supunha eJa preparavaa incorporagao a anal's do terra da masculinidade. E na medida em que os estudosse sucedem fica coda vez macs claro ser impassive! falar em masculinidade semqualquer adjetivo. Ha masculindades. Ao menos no mundo ocidental, o modelo dohomem burgus bem comportado, cumpridor de seus deveres para corn a familiae o Estado, convive de forma tensa corn o modelo romantic do aventureiro solitario,avesso aos lagos familiares e pronto tanto para as agruras dos campos de batalha6,quanta para as delicias dos bordOis e dos bares. A masculinidade que se encena noescritario entre nuvens de fumaga de inCimeros charutos, opoe-se aquela outra quese manifesto ao ar livre, no esporte, no safari, no acampamento dos escoteiros, noturismo ecolOgico ou nas expedigOes clentificas. Contra o homem "tradicionar depoucas palavras, principalmente quando se trata de falar sabre si mesmo, insurge-se o homem "moderno" que, nos divas dos psicanalistas, vem se adestrando nassutilezas dos jogos verbais. Ha tamb6m a masculinidade que se constral comoparOdia nas boates freqUentadas por homens e mulheres homossexuais.

    Al6m de revelarem a existOncia de diversos (e as vezes divergentes)modelos de masculinidade em uma mesma sociedade, os estudos de generapropaem que se estude tambern o modo pelo qual as diferentes hierarquias socials(de genera, classe, raga ou idade) incidem umas sobre as outras, modulando-semutuamente. Nesse sentido, os atributos de gnero se constroem tambern demaneira situacional. Assim, muitos dos comportamentos que historicamente foramatribuidos as mulheres (emotividade exacerbada, misticismo, falta de auto-controle,sugestibilidade etc.) serviram tambrn para qualificar os homens pertencentes apovos e ragas em situacao colonial. A masculinidade de um Indiana que se afirmafrente ao colonizador ingl6s nao a mesma que se afirma frente a urn outro Indiana.Do mesmo modo, uma das dificels tarefas dos homens que envelhecem em nossassociedades 6 a de refazer sua identidade de genera frente a perda de vrios dosatributos que continuam a definir a masculinidade hegemanica (capacidade parao trabalho, forgo fisica, porOncia sexual). Enfim, ao analista vem se impondo nao soa tarefa de descrever os diferentes modelos de mascullnidade existentes emdiferentes contextos e situagOes socials, mas a de entender as relagOes sociolOgicase histaricas que mantrn umas cam as outras e as condigOes que possibilitam, emcoda momenta e lugar, a hegemonia de algum desses modelos sabre os outras.

    Os textos reunidos nesse dossi6 tratam de duos searas distintas da exper1-6ncia social de homens. De urn lado, dois artigos, ode Leal e ode Heilborn abordamatraves de material etnograflco os vinculos entre prticas sexuais, valores acerca dasexualidade e da reproducao, produgao do genera masculino e formas de organi-

    6 Para uma andiltse dos aspectos relativos ao man* da violencia e da forca fisica nos nomes, verNORBERT, Elias. Os Alemes - a luta pelo poder e a evolucOo dos habitus nos sculos XIX e )0( Rio deJaneiro: Jorge Zahar Editor, a propOsito do que ele design como ethos guerreiro.

  • zaedio da familia e da conjugalidade. Leal apresenta os resultados de uma pesquisaqualitative, que obteve tratamento estatistico dos dodos obtldos troves de entre-vistas realizadas corn cerca de 100 homens, de verlas idades, moradores de quatrovitas (favelas) na cidade de Porto Alegre. 0 trabaiho arrola as concepeOes sobrereproduce:to, concepeOes sobre aborto e preferencia por certas prditicas sexuals,contrastanclo-as corn a maneira como tats temas stio pensados por muiheresoriundas da mesma Inseredio social. J6 o officio A Primelra VezNunca se Esquece trateda entrada na vide sexual adults por parte de homens de diferentes insereOessocials. Nele, busca-se investigar de que modo a carreira afetivo-sexuaL como umades dimensOes datrajetOrla de vide, elucidative des tensOes inerentes 6 construedda identldade de genero masculine. Considerando que a Iniciativa a urn atributoculturaimente destinado aos homens na relecOo entre os dois sexos, a andlise reveiaquetanto no cortejar quanto na maneira como a concebida a iniciaedo sexual comourn aprendizado tecnico este em Jogo a capacidade dos sujeitos ern preencher tatsrequisitos de maneira satisfatOria. Nesse sentido, o homem timid aparece comouma especie de Vilma estrutural des relaedies de genera De outro ludo, o artigo deCarvalho enfoca a experiencia masculine em uma profisselo feminine, a educaedo.Temos aqui uma situaedo de reversdio da hlerarquia de genero: homens queprecisam elaborar de maneira malsou menoscongruente uma *escolha" profissionalque os lance em urn domfnio des muiheres. A seleedio desses artigos pare compor oDossie Masculinidade da Estudos Feministas acompanha os temas privileglados deandillse e urn certa tendncia que esteve presente nos primeiros esforcos dedesvendamento do mundo femlnino: der voz a temas e lugares tidos como invisfvels.

    Page 1Page 2Page 3Page 4Page 5