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EM NOME DA MÃE: UMA REFLEXÃO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO
GÊNERO EM OBRAS DA LITERATURA CONTEMPORÂNEA
IN THE MOTHER’S NAME: A REFLECTION ON GENDER REPRESENTATION IN
CONTEMPORARY LITERATURE WORKS
Shirley de Souza Gomes Carreira*
Resumo
Este artigo visa à análise de dois romances, Eugénia e Silvina, de Agustina Bessa-Luís, e Sula, de Toni
Morrison, do ponto de vista de uma linhagem matrilinear, em que as personagens femininas são mulheres
cujas identidades transgressoras vêm a ser o ápice de sucessivos processos de transformação, de
adaptação e de aprimoramento dos vícios e virtudes de suas antecessoras.
Palavras-chave: Genealogia Feminina, Transgressão, Eugenia.
Abstract
This article aims at the analysis of two novels, Eugénia e Silvina, by Agustina Bessa-Luís, and Sula, by Toni
Morrison, from the point of view of a matriarchal ancestry, where the female characters are women whose
transgressive identities come to be the apex of successive processes of transformation; of adaptation and
improvement of the vices and virtues of their predecessors.
Key words: Feminine Genealogy, Transgression, Eugenics.
1 Introdução
Às mulheres foi negada, historicamente, a sua genealogia feminina. A sua identidade foi construída
em associações ditadas pelo patriarcado. A imposição do sobrenome do pai, do qual a mulher só
poderia abrir mão na condição de substituição pelo sobrenome do marido, é símbolo de uma
relação de pertencimento que atravessou a história. Genealogicamente, a identidade feminina
sempre foi construída em relação a alguém, que era, historicamente, masculino, e essa dependência
gerou uma afasia cultural.
Após os anos 1960, e com o surgimento do Movimento Feminista, houve uma reação coletiva
contra a misoginia e a opressão histórica para com as mulheres; começou a tomar força uma
literatura de autoria feminina, que buscava expressar os múltiplos sentimentos que habitam o
universo feminino, bem como as suas necessidades e aspirações, conferindo-lhe um lugar de
existência social e uma voz.
Durante a maior parte de sua história, a maioria dos movimentos e teorias feministas tiveram
líderes que eram principalmente mulheres brancas de classe média da Europa Ocidental e da
América do Norte, mas mulheres de outras raças propuseram formas alternativas de feminismo,
cuja tendência evoluiu aceleradamente até 1960, quando houve o colapso do colonialismo europeu
na África, no Caribe e em partes da América Latina e do Sudeste Asiático. Surgiu, então, o
“feminismo pós-colonial”, em que mulheres das antigas colônias europeias e de países do Terceiro
Mundo começaram a criticar o feminismo tradicional ocidental como sendo eurocêntrico.
Nesse contexto, surgiram as primeiras obras que tratam das genealogias femininas à guisa de
denúncia das dificuldades e frustrações históricas e, via de regra, com uma representação de filhas
mulheres a rejeitar com veemência as próprias mães como modelos identitários.
Este trabalho propõe uma leitura comparativa de duas obras contemporâneas, Sula, de Toni
Morrison, e Eugénia e Silvina, de Agustina Bessa-Luís, do ponto de vista da representação de
linhagens femininas enquanto veículo de reflexões sobre a questão do gênero. Para tanto,
partiremos da definição de narrativa genealógica dada por Lélia Almeida (2004):
Chamo de genealógica, portanto, aquela literatura de autoria feminina, geralmente narrada em primeira pessoa, em que a protagonista, num procedimento memorialístico, resgata ou estabelece uma relação especular com outra, ou com outras mulheres, relação esta
fundamental para um afirmativo e importante desenvolvimento identitário para todas elas. Esta relação especular, que se dá numa tensão permanente de identificação e separação, é vital para o descobrimento da identidade das personagens envolvidas (online).
Agustina Bessa-Luís, escritora portuguesa contemporânea, em sua produção literária, relê os
códigos instituídos, produzindo um redimensionamento do papel social da mulher na sociedade
patriarcal. Em Eugénia e Silvina, a autora conta a saga de mulheres de nome Eugénia, cuja história
pessoal reporta-se a um retrato de Portugal, em seu aspecto religioso, político e histórico, que é
construído a partir dos mecanismos de repressão da sociedade portuguesa.
Por sua vez, Toni Morrison, escritora norte-americana, tem buscado trazer à luz discussões acerca
das relações raciais em seu país, demonstrando que a literatura escrita por mulheres pode ir muito
além das questões ligadas ao universo feminino. Em Sula, Toni Morrison narra uma história de
mulheres que encontram prazer na negação da ordem e por meio dela reafirmam a própria
identidade.
O comportamento amoral e o crime estão presentes nessas duas obras que constituem o objeto
de nosso estudo, instaurando a violação dos códigos estabelecidos pela Lei do Pai. Em ambos os
romances, as ações femininas estão pautadas em um embate contra os binarismos instituídos pelo
patriarcado. Buscaremos, assim, demonstrar que a representação de linhagens femininas em Sula e
em Eugénia e Silvina aponta não apenas para a contestação do patriarcado, mas forma uma imagem
especular que visa ao aparecimento de mulheres cujas identidades transgressoras vêm a ser o
ápice de sucessivos processos de transformação, de adaptação e aprimoramento dos vícios e
virtudes de suas antecessoras.
2 Sob a Égide da Deusa-Mãe: um olhar sobre Eugénia e Silvina
Eugénia e Silvina é um romance histórico e, por meio de uma narrativa cíclica, que frequentemente
debruça-se sobre si mesma, retomando fatos e acrescentando-lhes novos elementos, permite ao
leitor um olhar que, livre da rigidez da narrativa histórica canônica, reinterpreta eventos, lançando-
lhes suposições, indagações e ensejando diferentes interpretações. Baseado em uma história
verídica, o romance narra a polêmica gerada em torno do assassinato de João Trindade, em 17 de
julho de 1925, nas terras da Malhada, de sua propriedade, em um local chamado “Poça das
Feiticeiras”, devido ao fato de ali viverem os últimos descendentes dos druidas. O local, último
resquício da herança celta, é um reduto do culto pagão à Deusa-Mãe. Sua filha ilegítima, Silvina,
acaba por ser acusada do assassinato e, embora sem provas, é presa por 18 anos. Além do crime,
ela é acusada de manter relações incestuosas com o próprio pai. Ao fim desse tempo, é posta em
liberdade, tornando-se mulher religiosa e dedicada à causa dos desvalidos.
O romance focaliza, também, a sucessão de mulheres que viveram naquelas terras. São três as
mulheres de nome Eugénia; e, a cada uma delas, dá-se um processo de eugenia, ou seja, de melhoria,
ou aprimoramento, da espécie, uma vez que cada uma complementa e supera o papel
desempenhado pela sua antecessora na sociedade:
… Eugénia fora o nome da baronesa da Silva e, a partir daí, a exactidão, como um discurso silencioso, incluíra a imagem visual de quem o usou, na família; o nome de Eugénia era já a história duma espécie inscrita na Natureza e a que o nome deu a realidade possível. De geração para geração, o nome recebeu a sua actualidade, nascida de diversas linguagens repetidas, até que a imagem inicial, a da baronesa da Silva, se apagou (Bessa-Luís, 1990, p. 39).
A história das três Eugénias está entrelaçada à história das Mestras, descendentes dos druidas, que
viviam à beira dos cursos de água e eram protetoras da comunidade pagã. O romance dá conta de
que a Baronesa da Silva, Eugénia Cândida, fora curada de sua infertilidade graças à ação de uma das
Mestras. Como prova de gratidão, Eugénia devolveu-lhes as terras em que ficava a Poça das
Feiticeiras, parte da antiga Quinta das Mestras, onde no passado funcionara uma escola de
feiticeiras e que estava então anexada à propriedade da Baronesa.
Segundo Tatiana Caldas (2005, p. 4), a valorização da casta das magas reflete o veio feminista da
obra, uma vez que o imaginário apresentava um culto preponderantemente feminino. As Mestras
são elaborações simbólicas da face generosa da Deusa-Mãe. Revestidas de um caráter ora bom ora
mau, elas eram destemidas, assim como o foram suas ancestrais, que, bem antes da fundação da
escola de parteiras em Viseu, “conjuravam traições e tempestades” (Bessa-Luís, 1990, p. 52),
ignorando a ação do Santo Ofício.
No romance, o embate entre o cristianismo e o paganismo tem uma relação simbólica com o
contraponto efetuado pela mulher ao jugo masculino, ou seja, do conflito entre as tradições da
Mãe e as normas da Lei do Pai. A herança celta, especialmente no caso de Silvina, a parricida, e a
última das mulheres da Malhada, atua como reivindicação do poder feminino. O elemento pagão
atua, portanto, como eixo estruturador da subversão proposta na obra da autora.
A primeira Eugénia, a Baronesa da Silva, casou-se cedo, com um tio, João da Silva Mendes, e deu à
luz três filhos. Com a morte do marido, sendo “uma mulher fogosa e talvez descomposta de
maneiras”, trocou os sentidos reprimidos pela política e dedicou-se à causa liberal. Sua ferocidade
na defesa de ideais políticos tornou-se conhecida, sendo, inclusive, presa, e muitos diziam que ela
tinha um pacto com o diabo. Segundo o narrador, ela “personifica a mulher que se emancipa da
preguiça servil, para se produzir como pessoa destacada da condição feminina” (Bessa-Luís, 1990, p.
51). Com todo esse envolvimento político e a sua necessidade de marcar espaço no mundo em
que viveu, não sobrava tempo para amar e cuidar de seus próprios filhos. Assim, o narrador a
descreve:
A baronesa evitava os conflitos penosos e as máscaras que os figuram. Era uma mulher coriácea a qualquer fraqueza, mas nem por isso a sua saúde mental era sólida. A saúde mental não anda a par com a adaptação, pelo contrário; uma grande dose de subserviência às opiniões, que sofram já duma falta de ideal (e, portanto, soa opiniões de base hostil), produz uma forma fatal de contestação: a saúde afectiva é abalada. Francisco António sabia que a mãe não o amava; ele era apenas alvo de manipulação moral, como é, de resto, vulgar no âmbito familiar de estrato mais elevado (Bessa-Luís,1990, p. 14).
Seu filho, Francisco António, em um arroubo de juventude, engravidou uma criada, e desse
relacionamento nasceu a segunda Eugénia (da Silva Mendes), uma jovem loura, de olhos azuis, que,
mais tarde, a Baronesa decidiu criar como filha. Francisco partiu para Coimbra ainda jovem sem
saber da gravidez da criada, da qual só tomou ciência muitos anos depois, estando já casado com
outra mulher; e a menina foi criada pela mãe e pela avó materna até que, em um dos seus
rompantes de poder, a baronesa resolveu ficar com a criança.
O pouco contato de Eugénia com a mãe passou a repetir-se na história das mulheres da Malhada,
mulheres essas que, não tendo a imagem da mãe biológica como referente, tinham, em
contrapartida, uma forte ligação com a Deusa-Mãe, ou seja, com a imagem do inconsciente coletivo
que traduz a essência feminina.
Para manter a fortuna em família, a Baronesa decidiu casar Eugénia com o primo Henrique, filho de
Rita, sua segunda filha. A jovem, para quem a mudança de status trouxera, além da riqueza, uma
sensação forte de estranhamento, só comparável a outro nascimento, obedeceu às ordens da
Baronesa e casou-se sem amor. Embora casada com Henrique, era atormentada pelo amor que
sentia por seu meio-irmão, João, amor esse que, somado ao seu inconformismo com o casamento
arranjado, conduziu-a a um estado de “desarranjo mental”, que não só a levou a entregar-se à busca
de prazeres físicos, como também culminou com sua morte, de tuberculose, aos 30 anos, deixando
uma filha, que veio a ser a terceira Eugénia da linhagem.
Segundo Tatiana Caldas (2005), “a figura da mãe, em termos psicanalíticos, é vista como gênese de
muitas neuroses femininas, uma vez que está ao mesmo tempo no papel do outro, por diferença, e
do mesmo, por semelhança” (p. 7: grifos no original). Assim sendo, pode-se compreender que, no
romance, a figura materna bondosa e doce, persona com que se reprime o lado agressivo da
personalidade, tenha de ser afastada, para dar lugar à sombra, ou seja, o lado obscuro e combativo.
Por outro lado, há uma estreita ligação entre a libertação das amarras psicológicas e a atitude de
transgressão da Lei do Pai. A força feminina e pagã, ligada ao prazer e à liberdade, representa a
violação dessa lei, razão pela qual as religiões matriciais foram dizimadas. Pode-se observar, então,
que a inserção do paganismo no romance atua como mais uma dentre as estratégias
desconstrutoras do status quo patriarcal.
A terceira Eugénia (Nunes de Viseu), cuja mãe morreu quando ela tinha apenas seis anos de idade,
ficou aos cuidados do pai, Henrique, uma vez que, a essa altura, também a Baronesa da Silva já havia
morrido.
Se a primeira Eugénia tinha a firmeza e a crueldade de um homem em assuntos políticos e sua
sucessora, a segunda do nome, não conseguia conter os apelos da própria libido, essa também
apresentava um desvio da norma: era uma mulher além do seu tempo, pelas ideias e pelo
comportamento. Era uma mulher extremamente culta, dona de um rosto de menina, ou amnésico,
como a define o narrador, uma vez que tornava indefinida a sua idade, e dotada de grande beleza e
elegância. Sobre ela, diz o narrador:
A família dos Mendes depositara nessa criatura engenhosa em apropriar-se da grandeza humana, que é não deixar vestígios dos seus crimes, tudo o que fora o gérmen do génio, com muitos custos de fracassos, com muitas esperanças mal vingadas. Eugénia Viseu era
riquíssima, formosa, com uma inteligência clara e aquela bondade insuspeita de quem experimenta no bem os prazeres da liberdade cultivada. Não será isso bondade pura, mas é a bondade possível (Bessa-Luís,1990, p. 14).
A sua porção transgressora nutria um amor desmedido pelo próprio pai, Henrique, que a
impossibilitou de ter um relacionamento normal com qualquer outro homem. Mesmo com o
tenente Freitas Barros, a quem os comentários nos círculos sociais da época atribuíam o
estatuto de amante, houve um relacionamento assimétrico, em que ele pagava com a
companhia permanente os favores pecuniários que recebia.
O narrador cuida de estabelecer uma gradação de personalidade das três Eugénias:
Eugénia, a baronesa, correspondia à imagem mental da comunidade criadora dos seus objectos de nobreza ou de abjeção; Eugénia, a bastarda, significava a necessidade de escândalo que se projecta como agente duplo, o movimento que conserva o respeito do que a protege e ao mesmo tempo a repudia, nesse caso a aristocracia mal exemplificada na vida da baronesa da Silva. O escândalo é necessário à transformação e ao devir de todas as coisas. Mas depois torna-se indispensável o absurdo e o rigor da mitologia, quer exemplar, quer guerreira. Por isso apareceu a terceira Eugénia, criada ao nível da espécie superior, fada boa, mulher virgem e rainha coincidente com o monstro que foi, fatalmente, João Trindade (Bessa-Luís, 1990, p. 72).
Eugénia Viseu é retratada como uma mulher que assume um papel que, até então, cabia aos
homens: “ela copiava um pouco os costumes dos rapazes bem-nascidos, que invejava”, “remetia-se à
posição do dandy” (Bessa-Luís, 1990, p. 98).
Os homens tinham em sua vida um papel de proximidade afetiva, mas, ao mesmo tempo, de
distanciamento físico. O que a apavorava nas sucessivas perdas de referentes masculinos era a
consequente perda da deferência que eles lhe concediam.
Ele [Freitas Bastos] confessou que seduzira uma menina de boas famílias e que ela estava grávida dele. Eugénia olhou-o com extraordinária calma, mas estava apavorada. Não tinha idade para refazer amigos e ensinar outra mordomia. Que ia acontecer? Ficava só, rica como sempre fora, mas empobrecida pela perda dos que julgara inseparáveis em sua vida: o pai, João Mendes e agora o seu tenente de asas partidas por um vulgar caso de sedução, talvez um estupro na sala de visitas, entre apressados gestos de luxúria e de rendição (Bessa-Luís, 1990, p. 101).
Como não tinha filhos, quando o câncer a acometeu, Eugénia principiou a doar os próprios bens
em testamento, a fim de perpetuar o próprio nome. Seus bens foram distribuídos e as terras da
Malhada acabaram em poder da Santa Casa de Misericórdia. A sua busca de perfeição encontrou
resposta na natureza, na doença que fazia com que seu corpo apodrecesse e exalasse um cheiro
nauseabundo. Os que a cercavam achavam que ela morria “por ter excedido o acabamento
comandado pela alma humana” (p. 108).
Suas inclinações amorosas, insatisfeitas, acabam por minar a sua saúde e o romance lança dúvidas
aos registros históricos quando deixa entrever certa ambiguidade nas relações entre ambos os
personagens. Todo o romance se estrutura de forma plural, recontando repetidamente o mesmo
episódio, nem sempre em versão coincidente com a anterior, legando ao leitor a opção de se
decidir por uma das versões apresentadas. Assim, ora sugere que o relacionamento dos dois era
puramente platônico, ora demonstra sutilmente que houve um tempo em que realmente foram
amantes, deixando de sê-los apenas após a morte do pai de Eugénia. Segundo o narrador, a morte
de Eugénia é fruto da culpa:
No caso de Eugénia tratava-se de uma culpa emprestada. Ela pedira ao pai a culpa, e a toda linhagem da família uma série de culpas que fora acumulando nos braços com todos os bens que seu inventário declarou. Ali estavam as coralinas de Eugénia, a Malhada, e que ela usava quando mandara espiar o filho Francisco António, porque o julgava apaniguado de D. Miguel. Ela disse que o deixava perseguir e matar sem tremer “porque a vara e a palmatória é pouco para delatores” (...) os brilhantes trazia-os a bastarda quando, já casada com Henrique Nunes Viseu, fingiu que engravidara para que ele a deixasse em Lisboa, onde tinha amores absurdos, caída por um caixeirinho pálido e desconjuntado, de vinte anos... (Bessa-Luís, 1990, p. 369).
Quando Eugénia morre, deixa a imagem de mártir e benemérita, bem como alguns apaixonados,
como João Trindade, homem simples, dez anos mais moço que ela. Para aproximar-se de Eugénia,
ele havia seduzido Maria Augusta, sua serviçal, e descendente de celtas, que lhe dera uma filha,
Silvina. Como não queria casar-se, partiu para São Tomé, onde enriqueceu. Muitos anos mais tarde,
tendo a Malhada sido passada à Misericórdia e posta novamente à venda, arrematou-a. Chegava
assim ao ápice, realizando o sonho que lhe havia sido plantado pela inveja dos ricos, bem como de
seu poder, que fora a única coisa que lhe restara após a morte de Eugénia. Ao assumir a Malhada,
João Trindade reconhece a filha e leva-a para morar com ele. O romance explora a hipótese, nunca
realmente assumida por Silvina em seu julgamento, de que pai e filha foram realmente amantes.
Mesmo depois de casada, com Claudino, a situação pareceu manter-se, até a morte de Trindade. As
razões para o assassinato, que o narrador sugere terem sido fruto da ganância, são, na diegese,
mascaradas por Silvina, que, mesmo sendo condenada, consegue manipular a opinião pública,
incutindo-lhe a dúvida e fazendo-se passar por vítima.
Ao contrário do que acontece com Eugénia, Silvina não expia a própria culpa. Antes, faz dela uma
narrativa improvável, ficcionalizando-a. Ao cabo de 18 anos, sai da prisão revestida de uma boa
imagem, que a acompanhou até o fim.
A história das três Eugénias demonstra que o reconhecimento das falhas de caráter das primeiras
mulheres da linhagem impede a última de sucumbir aos apelos dos sentidos. A escolha que a última
Eugénia faz traduz-se fisiologicamente como a doença que a acomete. Simbolicamente, ela leva
consigo para o túmulo todo um histórico de podridão e imoralidade, de taras e perversões, das
quais a deterioração de seu corpo é símbolo. A corroborar a ideia de eugenia da espécie, há o seu
gesto final de transferir seus bens a outras mãos, de oferecer ajuda aos necessitados e até mesmo
a quem lhe trouxe dissabores, como é o caso de Freitas Barros, também feito herdeiro.
O romance promove um constante embate entre os sexos, permeado pelo imaginário pagão
introduzido pela relação das personagens femininas com as Mestras. As transgressões que marcam
a trajetória das personagens femininas no romance são, subliminarmente, associadas à imagem da
Deusa-Mãe, que tem três faces: a anciã, a mãe e a donzela (entendida aqui, não como virgem, mas
como a mulher apta a vivenciar plenamente o amor livre). Sob a égide da deusa, elas buscam firmar
seu espaço no meio social. Sua ação é transgressora, posto que subverte as leis de submissão ao
patriarcado.
Ao narrar a história dessas três mulheres, Augustina Bessa-Luís estabelece um diálogo intertextual
com a história de Portugal em seu aspecto religioso, político e histórico, bem como traz à baila os
mecanismos de repressão da sociedade portuguesa, oriundos da ótica patriarcal. Como pudemos
observar, a linhagem feminina de Eugénia e Silvina está intrinsecamente ligada a uma presença
masculina, cuja história se desenrola de forma paralela à sua. No entanto, o outro romance que
compõe o corpus da análise no presente artigo, Sula, de Toni Morrison, embora também esteja
centrado em uma linhagem matriarcal, encena o embate entre o masculino e o feminino de forma
diferenciada, pois a autora cria duas linhagens femininas em que a submissão de uma ao patriarcado
serve de contraste à transgressão da outra, como veremos a seguir.
3 Sula, uma História de Mulheres
Sula, de Toni Morrison, começou a ser escrito em 1969, ano de muita efervescência no que diz
respeito ao ativismo político de afro-americanos em prol da igualdade de direitos civis, e trata de
temas que têm norteado a literatura norte-americana produzida por minorias raciais: o racismo, o
sentido de pertencimento, a pobreza e a hipocrisia social. Uma boa parte da crítica literária sobre
o romance tem estado atrelada a esses temas, bem como a aspectos que os envolvem, como a
amizade entre as duas personagens principais, Nel Wright e Sula Peace.
Embora não seja narrado em primeira pessoa, Sula contém uma visão sobre a complexa rede de
relações entre mulheres de uma mesma família, uma relação controvertida de aproximação e
distanciamento que se torna responsável pela configuração identitária da personagem que dá título
ao romance.
Lélia Almeida (2003, 2004), em suas reflexões sobre a representação de genealogias femininas na
escrita de autoria feminina, afirma que a representação da relação entre mães e filhas nesse tipo de
texto é sempre complexa e particular:
Orbach e Eichenbaum chamam a atenção para a importância dos afetos femininos – desde as genealogias mais próximas, como mães, avós, bisavós, filhas e netas, como madrinhas, amigas, tias, irmãs, etc. – na existência das mulheres e apontam para a tensão natural existente nessas relações entre a necessidade de uma simbiose e a necessidade de uma ruptura, tensão permanente ao longo da biografia das mães e das filhas que constroem e estruturam dessa maneira, suas personalidades (Almeida, 2003, online).
Assim como Eugénia e Silvina, Sula também expõe os conflitos de uma linhagem matrilinear, em que
as tensões entre mães e filhas acabam por proporcionar o aprimoramento de vícios e virtudes.
O romance, que tem por protagonista a personagem título, narra a sua história desde a infância,
nos anos 1920, até os acontecimentos posteriores à sua morte, em 1941. Na infância, ela faz
amizade com Nel Wright. As duas meninas vivem em uma comunidade negra em Ohio, the Bottom,
que fica situada em uma colina acima da comunidade branca de Medallion. Nel é filha de Helene
Wright, uma mulher atormentada pela sombra de sua mãe, Rochelle, uma ex-prostituta. Tendo sido
criada pela avó, Cecile, Helene apresenta valores profundamente enraizados em rígidas convenções
sociais e mantém um casamento convencional e seguro com Wiley Wright, sobrinho-neto de
Cecile.
A subserviência de Helene ao olhar e poder dos brancos é revelada no início do romance e reflete
algo que tem sido a maior preocupação de Toni Morrison enquanto autora: o racismo
institucionalizado e ensinado. Em uma viagem de trem para o funeral da avó que a criara, Helene e
a filha, apesar de ricamente vestidas, são destratadas pelo condutor do trem, um homem branco,
que as intima a se sentarem no vagão destinado aos negros, o que prontamente cumprem. À jovem
Nel não escapa o olhar de desaprovação dos soldados negros que assistiram à cena, nem mesmo a
própria vergonha de ser filha de uma mulher que parecia ter nascido com um sorriso de
assentimento no rosto.
Diferentemente, a família de Sula foge totalmente ao convencional. A matriarca, cujo nome é Eva
Peace, após ser abandonada pelo marido, assume a responsabilidade de criar, sozinha, os três filhos:
Hanna, Ralph e Eva (apelidada de Pearl). A miséria e a incapacidade de alimentar os filhos fazem
com que Eva os deixe com uma vizinha, reaparecendo 18 meses depois, sem uma perna, porém
com condição financeira para reassumi-los.
A casa de Eva, sempre cheia de agregados, é um local onde imperam a desordem e a agitação. A
cada novo agregado, um quarto é acrescentado à casa, representação física da constante mutação
de seus moradores.
O contraste entre as duas famílias é gritante: de um lado, a visão patriarcal de família, do outro,
uma linhagem de mulheres de personalidade forte, que primam pela liberdade e pela desobediência
às convenções.
Ao contrário do que acontece em Eugénia e Silvina, em que a linhagem matrilinear é construída em
paralelo àquela patrilinear que confronta, em Sula, o embate principal se dá entre duas linhagens
femininas.
Ralph, cujo apelido é Plum, é o único membro masculino da família de Sula. A guerra deixou marcas
dolorosas em sua mente, resultando no vício das drogas. A dependência da heroína o destrói
paulatinamente, causando grande comoção em sua mãe. Ao ouvi-lo dizer que gostara de engatinhar
novamente para o seu útero, em busca de proteção, Eva passa a ter a dimensão do sofrimento que
o assola.
Eva é uma mulher de decisão, para quem a vida nunca foi fácil, e, em um ato conflitante de amor e
de egoísmo, ela decide pôr fim à vida do filho. Com a mesma comoção que a levara a cortar a
própria perna de modo a obter um meio de subsistência para si e para seus filhos em uma
sociedade que ignorava o sofrimento dos negros, ela derrama querosene sobre o filho, que está
completamente alucinado pela droga, e ateia fogo, como em um ritual africano de purificação.
A crueldade do crime de Eva é exposta como uma afirmação de que o amor nem sempre é
acompanhado da ética e da moralidade; o amor desmedido de Eva imputa ao filho uma morte que,
se por um lado, o livrará do inferno das drogas, privá-la-á de sua presença, tornando-se,
simultaneamente, libertação e castigo.
A ação de Eva no romance faz lembrar a atitude controladora da Baronesa da Silva, pois ambas
conferem a si mesmas o poder de decidir o que é o melhor para quem está ao seu redor.
A relação de Sula com a mãe, Hanna, é conturbada e piora quando a jovem ouve, por acaso, a mãe
dizer que a ama, mas que não gosta dela, criando, assim, uma ambivalência para o ato de amar. Logo,
Sula descobre que o amor não é algo que deva ser compreendido dentro do escopo de uma visão
idealista ou romântica, mas como uma emoção que se quer involuntária, que tanto pode ser
prazerosa como pode engendrar um permanente sentimento de frustração e tornar-se uma carga.
A dualidade dos sentimentos de Hanna, de certa forma, ajuda a sedimentar a personalidade de Sula.
A morte de Chicken Little acaba por criar um elo, também dual, entre Nel e Sula. A criança cai,
acidentalmente, na água, após Sula tê-la feito girar no ar, mas a passividade de Sula e Nel impede
que ela seja salva, e ela acaba por morrer afogada. O desespero de Sula ante o que fez contrasta
com o autocontrole de Nel, que, por muito tempo, vê em sua reação algo que mostra a sua
superioridade em relação à amiga.
A consciência da imprevisibilidade da morte deixa marcas profundas e as leva a um pacto mudo de
silêncio. Assim como a avó, que carregará consigo até os últimos dias o peso do assassinato do
próprio filho, Sula também expiará todos os dias o sentimento de culpa pela morte do menino. A
tragédia parece perseguir a família, pois, pouco tempo depois, é Hanna quem sofre queimaduras
mortais, ao ter o vestido queimado em uma fogueira. Nem mesmo a atitude desesperada de Eva,
que, vendo-a pela janela, atira-se para cobrir-lhe o corpo com o seu próprio, consegue salvá-la.
Ambas são levadas em uma ambulância para o hospital, aonde Hanna chega já morta. Malgrado as
queimaduras que Eva sofre na tentativa de salvar a filha, o texto deixa entrever que coube,
novamente, a ela pôr fim ao sofrimento de um filho. Enquanto as chamas tomam conta do corpo
de Hanna, Sula assiste passivamente, não com a paralisia do sofrimento, mas, como Eva relembra
depois, com um olhar de interesse, de curiosidade.
Em meio a esses acontecimentos, Nel se casa com um jovem garçom, Jude Greene, e Sula parte
para cursar a faculdade, só retornando dez anos depois. Esse retorno impõe mudanças à rotina dos
habitantes do lugar a tal ponto que o sinal de nascença de Sula passa a ser associado com o mal e a
sua personificação. O romance reforça essa ideia ao dar conta de que a chegada de Sula após dez
anos de afastamento fora acompanhada por uma praga de melros.
As restrições que Eva faz a Sula logo após a sua chegada soam inconsistentes, pois o que ela critica
em Sula (a falta de um companheiro fixo e a excessiva liberdade) é algo que sempre fizera parte de
seu próprio cotidiano e da vida de Hanna. A preocupação de Eva se traduz em um forte receio de
que a neta venha suplantá-la no controle que ela tem de sua casa. Na realidade, pode-se dizer que
a personalidade de Sula é construída a partir da personalidade de sua mãe e de sua avó. A
fundamentação do seu caráter é a desordem e Sula decide a sua vida por si mesma, sem a
interferência de terceiros, o que a torna indiferente a qualquer código de moralidade. Ela é, no
sentido mais amplo da palavra, uma mulher egoísta. Não tendo ambições, ela não pensa no futuro,
escapando-lhe o sentido normal da relação de causa e efeito.
Sula rejeita a própria mãe. Hanna, assim como Eva, é uma mulher que vive de acordo com seus
próprios princípios, mas sem rechaçar a ordem social vigente. Quando seu marido morre, retorna
à casa da mãe, com Sula nos braços. Assim como Eva, Hanna gosta de ser cortejada, mas, ao invés
de ter uma relação com um único homem, prefere ter relações sexuais com os homens casados da
localidade.
Embora exasperadas com os casos de Hanna com seus maridos, as mulheres da comunidade não a
odeiam, posto que Hanna relaciona-se com os homens sem paixão e sem ciúme, sem a menor
intenção de interferir em seus casamentos. A sua aparente independência sexual é, na realidade,
subserviente dada a sua necessidade da presença masculina para ser feliz.
Sula, em seu retorno, provoca reação inversa na comunidade. A sua sensualidade agressiva provoca
repúdio, assim como o prazer destrutivo que acompanha os seus relacionamentos. Ela assume para
si um papel que, até então, só aos homens era concedido: o direito de começar e terminar uma
relação segundo seus próprios interesses. Além disso, ela viola uma norma silenciosa da
comunidade ao relacionar-se com homens brancos. O reencontro com Nel mostra o fosso que se
abriu entre as duas e a diferença de personalidade se evidencia. Ao contrário de Nel, Sula não
pretende casar-se e não se furta a ter casos com diversos homens. Essa sua atitude provoca até
mesmo uma reação por parte de Eva, de quem ela passa a ser guardiã e a quem coloca em um
asilo.
Ao retomar o contato com Nel, Sula não hesita em relacionar-se com o marido da amiga, Jude, até
serem descobertos e haver o rompimento definitivo da amizade entre as duas. Nel, em sua dor
pela rejeição do marido, atribui unicamente à Sula a culpa pelo seu infortúnio sem atentar para o
fato de que Jude a abandona, mas Sula não parte com ele, permanecendo na cidade. A educação
que recebeu, calcada no olhar hegemônico masculino, fez com que acreditasse que a sua identidade
só se completava com a presença de Jude. Perdendo-o, sente que a referência à qual o seu sentido
do eu se ancorava se desfaz completamente.
Uma verdadeira onda de histeria acomete a cidade, que passa a atribuir todo e qualquer infortúnio
à presença de Sula. Curiosamente, a cruzada contra Sula faz com que os membros da sociedade
local, anteriormente isolados pelo próprio egoísmo, empenhem-se em uma relação mais próxima
em prol da manutenção da moral.
Em seu leito de morte, ao fim do romance, Sula recebe a visita de Nel. Embora não percebam isso
naquele momento, para o leitor fica evidente o fato de que elas constituem seres opostos que se
complementam. Ao contrário do que muitos críticos advogam, elas não existem no universo
ficcional nos termos de uma oposição binária, e, sim, nos termos de uma dualidade que é inerente
aos seres humanos, reconstruída na ficção exatamente para questionar o binarismo. As duas
personagens são as duas faces de uma antinomia que só se resolve de fato na conversa que Nel e
Eva têm ao fim do romance.
Sula passa a vida lutando contra o estereótipo da dominação masculina, tentando subverter a
ideologia do patriarcado por meio da inversão de papéis sociais. Como personagem, ela pode ser
alinhada com o produto de um tipo de literatura pós-moderna em que a inversão do maniqueísmo
do patriarcado desmascara as estratégias discursivas e sociais masculinas e é, reconhecidamente,
um processo necessário de resistência (Dollimore, 1986, p. 190).
Se o fato de ser negra e mulher faz de Nel um ser subserviente no mundo em que vive, para Sula
soa como um desafio à transgressão. Mesmo oriunda de uma linhagem de mulheres fortes, Sula é a
única de sua família a contestar os padrões sociais e morais de forma absoluta, como se viesse
acumulando traços diversos de suas antecessoras, de modo a formar uma mulher totalmente
incomum para os padrões da época:
Suas evidências contra Sula eram forjadas, mas suas conclusões não. Sula era distintivamente diferente. A arrogância de Eva e a autoindulgência de Hanna fundiam-se nela; com uma nuança que era a sua imaginação, ela vivia os seus dias explorando os próprios pensamentos e emoções, dando-lhes plena existência, não sentindo a mínima obrigação de agradar a ninguém, a menos que seu prazer a agradasse. Tão pronta a sentir dor quanto a causar dor, a sentir prazer e dar prazer, a sua era uma vida experimental – desde então as observações de sua mãe a atiravam escada acima; desde então seu maior senso de responsabilidade havia sido exorcizado na margem de um rio com um espaço fechado no meio. A primeira experiência ensinou-lhe que não havia ninguém com quem contar; a segunda, que não havia nenhum eu com que pudesse contar tampouco. Ela não tinha nenhum centro, nenhum discurso em torno do qual pudesse evoluir (...) ela era completamente livre de ambição, sem nenhuma afeição pelo dinheiro, propriedade ou coisas; nenhuma ganância; nenhum desejo de chamar a atenção ou granjear elogios – nenhum ego. Por isso ela não sentia a menor compulsão de autoexaminar-se – ser consistente consigo mesma1 (Morrison, 2004, p. 118-119).
Nel, também fruto de uma construção, é o seu oposto: cordata, submissa, aspirando apenas aos
sonhos permitidos. A última conversa entre as duas é dura, remoendo dores passadas. Mesmo à
morte, Sula é arrogante, o que faz com que Nel lhe diga que não pode ser assim; sendo mulher e
negra, ela não pode agir como um homem. Ao que Sula responde perguntando se aquilo não era o
mesmo que ser um homem. Em um rompante, ela diz a Nel que todas as mulheres negras daquele
país estavam fazendo o mesmo que ela: morrendo. No entanto, ela morria sabendo que tivera a
chance de viver do jeito que quis, enquanto que as outras morriam como um toco de árvore
ressecada. Ela morria em solidão, mas a sua solidão era apenas sua; não era causada por outra
pessoa; não era uma “solidão de segunda mão” (Morrison, 2004, p. 143).
A frieza de Sula se completa na forma rude com que ela responde às perguntas de Nel, que lhe
indaga por que ela havia interferido em seu casamento, já que nem mesmo amava Jude, por que ela
não tinha levado em consideração o fato de serem amigas:
Sula voltou a cabeça da janela. Sua voz era calma e a rosa em haste sobre o seu olho estava muito escura: “Importa, Nel, mas apenas para você. Para ninguém mais. Ser bom para alguém e como ser mesquinho com alguém. Arriscado. Você não ganha nada com isso”2 (Morrison, 2004, p. 145).
As últimas palavras de Sula soam como um desafio: como Nel poderia estar tão certa de que, das
duas, ela era a “boa” pessoa? Por que não seria o inverso? Seria a sua última tentativa de mostrar a
Nel que ser “bom” ou “mau” é uma questão de ponto de vista. O fim do romance dá, ao leitor, a
impressão da derrota de Sula, mas a sua morte, sem gerar filhos, pode ser interpretada como uma
última rebelião à lei do pai:
A genealogia é também o lugar da imortalidade, onde a morte é derrotada. Enquanto o indivíduo é mortal, à medida que a linhagem continua, ele se torna imortal. (O rei está morto, viva o rei.) Os pais vivem por causa da transmissão da linha genealógica, isto é, da linhagem da família, sociedade, nação ou cultura. Recusar-se a reconhecer a linhagem, a genealogia, ou recusar-se a dar-lhe prosseguimento, significa o seu fim. Significa a morte do pai3 (Slaughter, 2000, p. 5).
Se o espaço de Sula não pôde de todo ser conquistado em termos da inversão de valores
pretendida, fica, de resto, a noção de irmandade, de sisterhood, que Nel e Sula conseguiram partilhar
em algum momento de suas histórias pessoais. Em sua visão particular, e egoísta, do mundo, Sula
desejara que Nel pudesse compartilhá-la, de alguma forma. E essa vontade persiste no momento de
sua morte quando o romance, em um rompante cômico, mostra o momento da morte de Sula, em
que seu eu, separado do corpo, constata que morrer não é doloroso e ela diz a si mesma: “Wait’ll I
tell Nel” (Morrison, 2004, p. 149).
A equivalência entre Sula, a mulher socialmente condenada, e Nel, a que vive de acordo com os
códigos sociais, é apontada por Eva, em sua conversa com Nel, ao fim do romance, quando diz: “Just
alike. Both of you. Never was no difference between you” (Morrison, 2004, p. 169). Só, então, Nel
percebe que não era de Jude a falta que sentia, mas das meninas que ela e Sula haviam sido; da
parceria que haviam formado e que se desfizera com o tempo.
Sula é um romance que põe à prova os limites dos valores humanos, da concepção binária que tem
dirigido os posicionamentos do homem ante os fatos. Nel e Sula representam duas ordens sociais
distintas: uma regida pelo patriarcado e outra pelo matriarcado. Ao construir uma genealogia
feminina que busca impor-se, Toni Morrison aponta as fragilidades e a hipocrisia de uma sociedade
que é regida pela lei do pai. Em Sula, há um embate entre o Nome-do-pai e o Nome-da-mãe.
Curiosamente, as duas ordens sociais são representadas por atitudes desenvolvidas por
personagens femininas. O homem como ator social tem um lugar periférico no romance. Quando
não está sempre ausente, como é o caso do pai de Nel, ou morto, como o pai de Sula, tem sua
existência no universo ficcional demarcada pelas personagens femininas.
O desfecho não dá a entender que haja a supremacia de uma ordem sobre outra, mas uma
complementaridade, que está na base de toda igualdade social. No entanto, não há como ignorar
que é a partir da genealogia feminina que a personagem título constrói sua identidade e concede
voz a si mesma.
4 Considerações Finais
Nos romances abordados, há uma inter-relação entre as mulheres de uma mesma linhagem. Em
uma contínua ação de “olhar para trás”, elas se modificam e se aperfeiçoam, tanto em qualidades
quanto em vícios. A sua atuação denota a construção de uma genealogia feminina, em que as
histórias masculinas ou são periféricas ou incidem de um modo subordinado à ação feminina.
Eugénia Viseu, em Eugénia e Silvina, e Sula, no romance em que é personagem-título, são
personagens que sofrem mortes dolorosas e passam por um processo de julgamento por parte da
sociedade em que vivem. A primeira, dada a sua atitude de doar os próprios bens, passa à história
como benemérita; a segunda é vista como um mal que a morte extirpa do meio social. Ambas têm
perfis de mulheres transgressoras, inconformadas com o papel histórico que lhes foi confiado.
Em Eugénia e Silvina, pode-se perceber um tratamento dual da morte, uma vez que a segunda
Eugénia, ao morrer de tuberculose, evoca a justiça poética aplicada à mulher adúltera pela ótica
patriarcal – sedimentada em tantas obras literárias, dentre as quais a de Eça de Queirós, enquanto
que a morte da última Eugénia assume um caráter libertador.
A relação da mulher com a morte no romance do século XIX é assim explicada por João Carlos
de Carvalho (2006):
O século do romance não foi muito benevolente com as mulheres, pelo menos entre alguns dos seus principais representantes. Seja em Balzac, Flaubert, José de Alencar, Zola, Tolstoi ou mesmo em Eça ou Machado de Assis, todas, inevitavelmente, pagaram um preço doloroso por ocuparem uma posição estratégica dentro da ânsia de pureza despertada, contraditoriamente, com a ascensão dos valores burgueses. Quanto mais se conquistava um aspecto da vida social, outro se impunha como uma emergência. Cada grande autor tratou de confrontar aquilo que lhe interessava, dentro dos seus planos estéticos ou ideológicos, mas nos autores citados fica patente uma certa dose de sombrio realismo. A morte se torna sempre uma solução dolorosa, mas inevitável (p. 7).
Ao reinscrever o papel social da mulher do século XIX em seu romance, Agustina Bessa-Luís
instaura em sua ficção o que pretende, em seguida, subverter, ou seja, a aquiescência aos modelos
de dominação masculina. Em Eugénia e Silvina, Eugénia de Viseu despreza as suas antecessoras: a avó,
Baronesa da Silva, por seu rigor político, que não poupou sequer o próprio filho, e a mãe, pelo seu
caráter libidinoso, que tanto sofrimento impôs ao pai, Henrique, objeto de sua adoração. Em sua
busca de individualidade, escolhe não dar continuidade à sua descendência. Permite-se a liberdade
de violar a função social primeira de toda mulher: ser mãe.
Assim como Eugénia, Sula não consegue amar a mãe e a avó. Eva é uma mulher forte, dotada de um
senso de amor particular, capaz de imputar a morte aos próprios filhos. A seus olhos, Hanna, a mãe,
não passa de uma mulher lúbrica, sempre entregue às paixões físicas, mas ainda submissa à vontade
masculina.
Os textos de autoras negras que focalizam a genealogia feminina trazem no bojo uma forte ligação
com valores sociais africanos ancestrais, pois resgatam, de certa forma, um cenário em que a
mulher tinha um papel crucial não só pelo fato de a sociedade tribal basear-se em uma linhagem
matrilinear, mas também pela importância da procriação. Nesse aspecto, Toni Morrison distancia-se
de um possível padrão, pois, assim como acontece com Eugénia, em Eugénia e Silvina, a opção por
não deixar descendência confere à Sula uma última transgressão: a morte do Pai pela falta de
descendentes.
Como pudemos observar ao longo do texto, ambas as obras estão em consonância com uma
tendência contemporânea de escrita feminina que privilegia a história de mulheres em confronto
com as normas do patriarcado. Ao fazê-lo, instauram linhagens matrilineares, que são
representações ficcionais da derrocada de uma genealogia masculina. Agustina Bessa-Luís opta por
construir a sua genealogia feminina, entrelaçando-a a uma linhagem mítica, oriunda da herança celta
e representada pelas Mestras, cuja influência foi determinante na história das três Eugenias. Toni
Morrison, por sua vez, constrói uma narrativa em que a ancestralidade matrilinear africana,
representada pelas mulheres da família Peace, entra em confronto com as normas da sociedade
ocidental, branca e patriarcal, representada por três gerações de mulheres submissas: a família de
Nel.
Os dois romances contam histórias de mulheres que, sucedendo umas às outras, vão excedendo
os seus modelos e aperfeiçoando seus traços, sejam eles positivos ou negativos, cujas últimas
representantes, num último golpe contra o patriarcado, não transmitem a ninguém o legado de sua
própria condição. Para Eugénia e Sula, a morte coroa um trágico aspecto do conhecimento, pois a
elas foi apresentado, em todo o seu excesso, o lado sombrio da natureza humana.
Notas
1 Tradução livre da autora: “Their evidence against Sula was contrived, but their conclusions about her were
not. Sula was distinctively different. Eva’s arrogance and Hanna’s self-indulgence merged in her, with a twist
that was all her own imagination, she lived out her days exploring her own thoughts and emotions, giving
them full reign, feeling no obligation to please anybody unless their pleasure pleased her. As willing to feel
pain as to give pain, to feel pleasure and to give pleasure, her was an experimental life – ever since her
mother’s remarks sent her flying up those stairs, ever since her one major feeling of responsibility had been
exorcised on the bank of a river with a closed place in the middle. The first experience taught her there was
no other that you could count on; the second that there was no self to count on either. She had no center,
no speak around which to grow (…) she was completely free of ambition, with no affection for money,
property or things, no greed, no desire to command attention or compliments – no ego. For that reason she
felt no compulsion to verify herself – be consistent with herself (Morrison, 2004, p. 118-119).
2Tradução livre da autora: “Sula turned her head away from the boarded window. Her voice was quiet and
the stemmed rose over her eye was very dark: “It matters, Nel, but only to you. Not to anybody else. Being
good to somebody is just like being mean to somebody. Risky. You don’t get nothing for it” (Morrison, 2004,
p. 145).
3 Tradução livre da autora: “Genealogy is also the place of immortality where death is defeated. While the
individual is mortal, as long as the line continues, he is immortal. (The king is dead, long live the king.)
Fathers live in, and because of, the transmission of the genealogical line, that is, the line of the family, society,
nation or culture. Refusing to acknowledge the line, the genealogy, or refusing to carry it forward, means the
end of the line. It means death for the father” (Slaughter, 2000, p. 5).
Referências
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STRATTON, Florence. Contemporary African Literature and the Politics of Gender. London, USA and Canada:
Routledge, 1994.
Dados da autora:
Shirley de Souza Gomes Carreira
*Doutora em Literatura Comparada – UFRJ – e Professora – UNIABEU
Endereço para contato:
UNIABEU Centro Universitário
Rua Prof. Alfredo Gonçalves Filgueiras, nº 537
Centro
26.525-060 Nilópolis/RJ – Brasil
Endereço eletrônico: [email protected]
Data de recebimento: 4 maio 2010
Data de aprovação: 28 jul. 2010