Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

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Na poesia desfaço a alma. De seguida junto os cacos. Este livro pretende ser a teia que o vai prender ao meu olhar, enquanto espectadora num mundo conturbado.

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Em

Paralelo

Poesia

Direitos de autor reservados ao abrigo da legislação em vigor,

Decretos-Leis n.ºs 332/97 e 334/97

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Na poesia desfaço a alma,

E de seguida junto os cacos.

Este livro pretende ser a teia que o vai

prender ao meu olhar, enquanto

espectadora num mundo conturbado.

Obrigado à minha filha Beatriz, presença activa dos meus silêncios, a

sua presença é fonte de inspiração, outras de meditação, que

culminam no poema. Espero que um dia ela entenda e se orgulhe dos

silêncios da mãe.

Aos meus filhos, Tiago e David, que sem se darem conta depararam-

se com uma mãe poeta.

É também dedicado aos meus leitores, que passam pelas minhas

páginas na internet.

Os meus leitores são a razão de trazer ao mundo a minha poesia, sem

eles e sem a força que a minha filha me transmite diariamente, os

meus poemas certamente estariam amofinados no fundo da

imaginação. Por tudo isso escrevo até à exaustão, é o tranquilizar do

meu espírito e do meu olhar.

Évora, Setembro de 2011

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Prefácio

Tudo o que os nossos sentidos percepcionam e queremos descrever sob

a forma de palavras, ou mesmo de pensamentos, fica necessariamente

muito aquém da sua verdadeira realidade, da beleza magnífica da

inteligência superior de onde emanaram.

As palavras, esse código facilmente interpretado pela mente humana,

são pois necessariamente redutoras da realidade, e apenas descrevem

superficialmente as percepções sensoriais, as emoções.

Captar a verdadeira essência de um sentimento, de uma situação

simples ou complexa, de uma emoção ou de um sonho, passá-la a papel

sob a forma de verso, transformá-la sensação em magia pura, apenas

está ao alcance de alguns predestinados.

Antónia Ruivo consegue com a sua poesia fácil, profunda, verdadeira,

esse duplo milagre de saber contemplar e admirar a realidade, e

descrever de seguida, em rima, ao mais ínfimo detalhe, a sua essência,

oferecendo-nos não apenas o superficial, mas a alma do objecto

contemplado.

Hélio de Pereira (Bellis).

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Desconhecido

Nas ruas cheias de gente procuro um rosto.

Desconheço a sua cor, o credo até a dor.

Que por ventura carrega no peito…

Tanto faz que seja céptico, ou distante sonhador,

Se é velho, ou criança, pode ser ambas as coisas.

Vincadas no tempo as rugas, na alma a alegria.

Desconheço o seu nome, a curvatura das costas,

Se tem calos nas mãos, ou dedos de pianista…

Procuro nas ruas um rosto, será homem ou mulher.

Sei lá… Tem que ser companheiro e acreditar…

Sobretudo. Pensar… E fazer do desconhecido um irmão.

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À minha filha

No teu olhar criança

Cresço continuamente

Ergo as mãos em ovação

Constantemente.

A observação

Afaga-me a lembrança

Criança, fui…

De horizontes suspensos

Lamparinas brilhantes

Iluminaram compassos…

Hoje tal como antes

Criança, sou,

Seguindo teus passos.

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Em paralelo

Venham comigo

Transpor horizontes

Descortinar olhares

Por entre os montes.

Na imensidão

Venham comigo

Mão na mão

Dançar ao sol

Em pleno Agosto.

Sorriso no rosto

Atrair a esperança

Em paralelo

Partilhar bonança.

Venham comigo

Entrar na dança..

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Mulher alentejana

Mulher Alentejana é madrigal,

É aragem fresca, água que corre,

É sentimento que nunca morre!

Mulher Alentejana é farol,

A sua luz faz inveja ao sol.

É força agreste, terra barrenta

Fruta silvestre, amora preta.

Veste-se de negro simples discreta

Esconde o choro num riso franco.

Olha o campo é filho seu,

Morreu na guerra, luto lhe deu,

Raiva bravia, fundo barranco,

Que lhe engoliu os sentires.

Rugas na pele gasta p`lo sol

Já foi menina de frescas carnes,

Foi rainha de alguns amores.

Hoje velhinha pensa na prol.

Olha pró sol aqui estou eu,

Vivi a vida que Deus me deu.

Posso morrer vou descansada,

Perdi os passos naquela estrada…

Ganhei o chão onde vou morar.

Olha pró sol último adeus,

Á terra virgem, barro gasto.

Já não há trigo, já não há pasto.

Ai Alentejo dos olhos meus!

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Demanda

Porque pedes olhar

que não tenho.

Silêncios que

desconhecem,

Penas que me

atormentam…

Filhos que enjeitei,

terra que arredio.

Não me olhes, o teu

olhar

De um nada e tudo,

gela,

O sangue que

derramei

No soalho da

ambição…

Perdi mundos rios e

saudade

Pássaros acabados de

nascer.

Perdi a noite o dia a

tranquilidade.

Esvaziei-me em

guerras, em orgias,

Manipulei, insultei,

olvidei deuses,

Para de seguida

erguer altares…

Por tudo isso não me

peças que seja apenas

eu, enquanto te olho,

Através do mundo

que construí.

Não peças que te

veja, Alentejo.

Era atrás Era. Tolhi-te

a esperança,

O peso do teu olhar

acordou o naufragar.

Escondo o rosto, a

condição humana

É frágil no mitigar…

Tu. Não mitigas

demandas

Nesse desejar

constante…

Avivas em mim o

desaire

Da ambição reinante.

Eu, que mortal sou,

Esquivo-me do teu

olhar.

Perdida no espaço

estou!

O homem há muito te

renegou

Nas chagas que te

consomem…

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Negação

Numa conversa inacabada inquiro o sonho,

Esculpi na pedra a tua imagem.

Minuciosamente, talhei olhos cor de mel.

Na tua cabeça espalhei a granel

Fios de cabelos brancos.

Faltava esculpir o coração,

Os braços caiam de encontro às pernas,

Sentaram-se na beira da cama…

As mãos cheiravam a açucenas!

Nos meus olhos brotaram cascatas

Que me acordaram num safanão…

O coração dorme silencioso

Por entre o frio da negação.

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Em massa

Empenhei-me num processo lento,

A destruição em massa dos sonhos.

Inglórios, tão-somente fortuitos,

Nos encontros comigo ao relento.

Empenhei-me dia após dia à safra ruidosa…

As vestes rasgadas da imaginação,

Apelavam sempre à solidão.

Que me acenava ao longe airosa!

A alma humana pode ser desastrosa.

Quase sempre se perde por ladeira enganosa.

Sabe que o melhor é aquilo,

Mas desvia-se num olhar intranquilo.

Ao olhar para trás vejo a soidade,

Enfeitada de arabescos que se chegam.

Airosos e petulantes, figurantes…

No palco da vida que tracei.

Olho com mais atenção a solidão.

Afinal… não foi a ela, foi a mim que estrangulei.

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A banhos

Na minha magreza onde destreina o deleite

Sorvedouros atraem incertos pensamentos.

O dia poderia ser verde, ou os gatos cor de leite,

Mas o dia não tem a cor do azeite, e os gatos…

São de um pardo deslavado!

O deleite… agonia na minha magreza.

Para quê perder tempo que não tenho.

O mundo por ventura seria vermelho,

Os cães vadios só andariam pelo passeio,

Trinta graus no mês de Janeiro…

Aquele vagabundo além tremeria,

No mês de Janeiro de insolação…

Agora sinto… já me olham com estranheza.

Propicia a todos os convenientes.

- Olha lá, quem lhe disse que era magra…

Claro, se no mês de Agosto neva em Portugal.

Pode não estar bem nem mal

Aos olhos que me vêem gorda…

Mas neva em Portugal e fingem.

A insolação imprópria ao mês de Janeiro!

O princípio de todas as coisas

Transportou-se para o mês de Agosto…

Todos a banhos pelos algarves,

Portugal gira às avessas…

Parece que se corroem portas e travessas,

Pelas frinchas os ratos espreitam…

Eu na minha magreza conveniente,

E o vagabundo de além, falamos a

mesma língua!

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Enquanto nos algarves se morrerá de míngua.

Mas desconhecem…

Faço figas, passarão os ratos ao lado, conivente

É o meu olhar e o do pobre que morre de insolação.

No mês de Janeiro!

Tudo porque os ratos cavam minuciosamente,

A sepultura onde os que me acham gorda,

Soterrarão as ambições…

Enquanto se banham pelos algarves!

E o país se afunda por entre transacções argilosas.

Neste preciso instante o dia já não cheira a rosas…

Há um cheiro bafiento na água salgada.

Que rolará pela face, é a minha estranheza que o

dita.

- Não liguem, é desdita!

Sobressai o coro vindo de lá, dos algarves…

A morte

A morte é passagem

do outro lado repousa a aura

é uma nuvem, matinal aragem

que nos fere p`ra sempre a alma.

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No silêncio encontro mortalha

Respeita o silêncio alheado

Ao barulho do montado

Das folhas soltas ao vento

Ondulando contra o tempo.

Os sonhos vagueiam na planície…

Percorrem o estio com alento

Afastam-se do céu cinzento

A trovoada desaba no restolho quebrado

Os sonhos caminham pelo orvalhado.

No barro vermelho encontro mortalha…

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Page 19: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Fantasmas que se predizem

Percorrem a planície de lés-a-lés

Barcos sacudidos pelo convés

Na funda garganta ressoam avisos

Gritam rugidos aos vivos.

Os pobres, só esses escutarão…

O bramido rouco soa a gemidos

Tolhe as ideias e os sentidos

Apenas os pobres desabam á vez

De homens gulosos… a malvadez.

Ganâncias são fantasmas que se predizem.

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Mulheres

Falo de rosas brancas

De vermelhas, amarelas

Falo de rosas, rosa.

Lindas e singelas.

Falo de mulheres brancas

Negras e asiáticas

De mulheres, livres e francas.

Falo também das outras

Das mudas e oprimidas

Das cansadas, ressentidas.

Daquelas que já estão mortas

Mesmo estando ainda vivas!

Falo das oprimidas

Pela sorte e p`las adagas.

Falarei das que já morreram

Pela mão da hipocrisia.

Filhas sem dinastia

De um reino que sustiveram,

Com o suor do dia-a-dia

Massacradas na acalmia.

Pelo desprezo que lhes deram!

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Page 21: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Contigo falo de amor

Contigo falo de amor

Mesmo quando estou zangada

Contigo falo de dor

Outras vezes falo de nada.

Palavras repito no vento

Meu amor, és vida minha

És meu sol o meu alento

Minha chuva miudinha.

Meu amor, és guardador

Do acordar na madrugada

Das lágrimas de tudo e nada

Do rir, e do meu clamor.

Júlia Soares (pseudónimo)

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Page 22: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Esvai-se o Verão

Que serve falar de amor, em frases banais.

Porque nos montes o cume fica no alto.

Porque se finge em gestos de sobressalto.

Afinal porque pia o melro nos olivais…

Falas de amor, palavras mil, são milheirais.

Por onde o vento corre rumo ao planalto…

São orquestra sem maestro, são frio asfalto.

Por onde os meus sentidos se esfumam em ais!

Fala de amor, palavra dita em contra mão.

Por um momento, perco o tino e a razão.

Logo a seguir, deito-me à terra, num abanão…

Que me gela a alma… estou sozinha que aflição!

Lá adiante está o sol, foge apressado.

Vai deitar-se em outra cama, esvai-se o verão.

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Page 23: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Pergunta à noite

Pergunta à noite ou então pergunta-me a mim,

Ambas te responderemos que a solidão

Vagueia pelo Alentejo em combustão…

É a sina das gentes que nasceram aqui.

Pergunta à noite ela te falará assim.

O sangue que desliza no vento suão,

É o meu e o teu, é o de um milhão,

De sonhos e sorrisos que vagueiam e por fim.

Se cruzam na planície velha e cansada…

Mas mesmo assim consegue virar a página.

Em cada gota de água tresmalhada…

Pelo agreste do frio que nos gela a alma.

Pergunta-me a mim… eu te direi que a ausência,

Por vezes é a força que me trás átona…

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Page 24: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Paz

Num outro tempo qualquer

Procurei a paz num terreiro.

Agreste… o terreiro me ensinou

Que paz é um malmequer.

Que sem perceber despontou

Num sorriso de mulher.

A paz tentei alcançar

Procurei de lés-a-lés

Mas enquanto a vida mandar

Paz, terá sempre revés…

Num outro tempo qualquer

A paz fugiu… foi embora.

Agora quando penso melhora!

O sorriso me enche o rosto.

Tenho paz, tenho gosto

De no agreste sofrear…

Qualquer martírio ou desgosto

Que de revés pensa entrar.

Um sorriso gravo com gosto

Num malmequer desfolhado,

Enche o meu terreiro orvalhado

Por lágrimas de fino fio,

Que revêem de-fio-a-pavio

A paz que aparenta o meu rosto…

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Page 25: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Fixo na força do vento

Este medo de ser só

Parece que não sei que é pó

O medo que não entendo.

Outras vezes já cansada

O vento empurro de jeito

Porque só vejo defeito

Na ventania e mais nada.

O vento ligeiro corre

Parece que não entende

Que o meu medo pressente

Que por vezes, nem só ele corre.

Numa planície verdejante

Nessas horas a solidão

Aperto na minha mão

E o medo fica distante.

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Page 26: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Miseração

Habituei-me a ver o dia, através de um aquário

Na caixa translúcida pende a notícia, apática.

Não, as noticias não são apáticas

Sou eu que simplesmente fico estática.

Ao pender da dor alheia…por vezes de soslaio,

Um tremor inclina-se no meu olhar

A medo pede licença para entrar.

Não, gritam os meus neurónios.

Os trajes da menina viram demónios…

Irei… para a rua procurar

Aquela blusa eu quero comprar.

A notícia rola sob o meu desdém

Quero lá saber se aquele alguém.

Que foi agredido… se é filho ou mãe.

Habituei-me a ver o mundo através de um aquário,

Onde os peixes já não povoam o imaginário.

Da nossa miseração…

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Page 27: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Pasmo

Inquietude do pensamento

Um certo pasmar alheio

À chuva que cai no momento.

Em que olho para o passeio

Um arrepio, constrangimento

No deslizar da água gelada.

Por entre duas pedras brancas

Ficou presa na calçada.

Desassossego ao meu olhar

Um frenesim em volta molhada

Vira, revira penas ao ar…

Aquele pássaro está-se a lavar,

Naquela poça de águas paradas.

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Page 28: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Curva

Penso num caminho a seguir

Ali ao lado descansa a curva

Tantos passos a medir

Reviravoltas, copiosa chuva.

Caudaloso o meu pensar

Pende no olhar tristeza

Talvez seja o enganar

Escondido na riqueza.

Dos caminhos que olhei

Fingi tanta vez fingi

Virei costas enganei

a mim, eu sei e vi.

A curva já se espreguiça

Acabou de acordar

Dá licença senhora curva

Decidi que vou passar.

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Page 29: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Avesso

Quem sabe vejo o mundo do avesso

Ou então quem está do avesso serei eu.

Nada entendo de fim ou recomeço

Muito menos do escuro como breu.

Quem sabe tapo os olhos sem sucesso,

Viro a cara a tudo aquilo que moeu.

Em pedra enfatuada, eu confesso

Talvez me perca no que nem nasceu…

É como se fosse um poço sem fundo

Nos momentos em que estou em dia não.

Demorem horas ou menos de um segundo

Quero lá saber se viram aflição.

Olho em frente vejo latejar o mundo

E descubro que nem vale a confusão.

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Page 30: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Bola de sabão

Aprisionamos uma bola de sabão

Criamos nela a ilusão que renova

Sem nos lembrarmos que é bola de sabão

Colorida mas que a água sempre leva.

Na palma da mão desabrocha a tentação

Aos nossos olhos o colorido se enleva

Mas ao eclodir em derradeira negação

Por entre os dedos desliza feito prova.

De que a ilusão de uma bola de sabão

Nada mais é do que o sonhar acrescido

Por entre os dedos num gesto destemido…

Que nos mostra aquilo que queremos

Ao nosso olhar o arco-íris luzente

Rebenta a bola, ( plof ) simplesmente!

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Page 31: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Homem.

Quando me olhas

Adivinho a chuva

As gotas minúsculas

Que brilham ao sol

Passeio pelas bermas

Onde crescem papoilas

De uma estrada

Sem princípio ou fim.

Pressinto o ocaso

No olhar que desvias

Oiço uma valsa

Uma clave de sol

Volto a ser criança…

Olhos nos olhos de amêndoa

Que cortam silêncios

Despedaçam folhas

Que a vida consome.

Enquanto me olhas

As penas encolhem…

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Page 32: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Sossego

Oiço as crianças na rua

Alegre brincadeira que o tempo parou.

Alma alegre e nua desconhece fronteira

No agora alcançou o meu peito aberto.

Gritam, correm gaiatos pela rua deserta

Que o seu correr prediga a meta.

E os dias que desconheço sejam a porta aberta

Para o que mereço.

E os gritos atrás da bola

Num choro que se anuncia…

Caiu! Rasgou a camisola.

A mãe já grita à janela

O choro é empurrão

A brincadeira singela

Trouxe apreensão…

Uma ruga que não entendo na testa despontou

Será que o tempo mingou ou sou eu que não estou.

Para oportuno olhar…

Nem para a mãe a gritar

No grito… que o sossego arrastou.

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Page 33: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Turvo

Acho que dormi demais

Perdi a noção do tempo

Afinal as noites são iguais

As horas são banais

Eu serei lamento

Igual a tudo o mais

Que a noite transporta.

Uivam os cães

Os gatos acasalam

Roubam vilões

As ruas calam

Os passos dos dias

As caras tão frias…

Oh deus!

Infernos e céus

Cruzam paixões,

E os homens são rufiões.

Acho que dormi demais

O meu pensamento

Está turvo.

Que têm a ver os gatos

E os cães

Com o mundo corrupto.

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Page 34: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Beija-me as mãos

Beija-me as mãos

Como se fossem rosas

Transborda a emoção

Nas horas mortas.

Beija-me as mãos

Como se fossem cravos

Acabados de colher.

Mesmo brancos desmaiados

Beija-me as mãos…

Os cravos cheiram tal como as rosas

Ao despontar alegre e viçosa

De uma manhã de verão.

Júlia Soares (pseudónimo)

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Page 35: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Sede Numa sonolência amena arruma as ideias São teias que se desgrenham ao vento. Falam de um tempo que já foi de vitórias E as derrotas guardadas sem lamento. Falam da guerra da fome até de colmeias Onde as vontades zumbiam em sofrimento. Pés descalços, barriga colada às costas, As letras que nunca aprendeu, mas o vento… Trouxe-lhe a liberdade num dia de Abril. O vento trouxe-lhe cravos de esperança. Por sorte não choveram nesse dia águas mil… Hoje, muito se lhe solta da lembrança Numa conversa repetitiva e pachorrenta Que o ampara e lhe mata a sede febril.

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Page 36: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Olhem Olho o ano que passou com um olhar inquieto Tento encontrar-me em cada mês, mas… É como se procurasse um rosto quieto Que olha para nós sem emoções ou maneiras. Olhem… olhem-me, digam-me algo de concreto. Digam que o ano teve dias teve horas Teve risos alegrias, música no coreto. Teve amor, fantasias, choros, mas e teve asas… Olho o ano que passou, o sorriso que não vem Na boca a gargalhada se esvai com desdém No peito a amargura queima, inquietação. Paro pra pensar, coro envergonhada! Tanto que murmuro, e tantos nessa estrada Caem na valeta, escondendo a aflição.

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Page 37: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Por entre fios de neve Descanso embalada no silêncio Por entre fios de neve beijo o invisível Assim no embalo adormeço ou me distraio Esqueço que este tempo é grande carrossel. Onde voltei-a tão volumoso dispêndio Num pouco de silêncio, aquilo que é corcel Faz-nos recuar como se fosse abstémio Este descanso por entre horas a granel. Contamos um a um todos os segundos De um descanso que a vida nos impôs Olho ao longe e só vejo artefactos… Em cada passo aligeirado que a dita opôs Nos tempos em que a mente desequilibrara O silêncio apoiado no unir dos nossos lábios.

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Page 38: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Sei

Sei que estás aí Sei até o som dos teus passos

Não sabes, mas sei A cor dos teus sonhos.

Sei porque sei

Que o poema sem lei É o meu respirar

Que me diz sem pensar Aquilo que não sabes

Que eu sei… Inventei

Mil passos por dar.

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Page 39: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Paixão

A paixão é rebuçado cor-de-rosa É camisa de noite transparente

É andar de cabeça à roda É carrossel que gira livremente.

É bater com a cabeça na vidraça Dizer que não dói dando risadas

Fazer o pino, esquecer a dor nas costas É negar que se tem as mãos suadas. A paixão é… promessas inacabadas É aprender a orar de mãos postas

Que logo se navega em frágil barcaça.

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Page 40: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Quimeras

Inquietação que domina

Parece franzina Na noite calma

O ar que respiro Relembra o suspiro

Da tarde.

Inquietude Olvidada

Pela mansidão Do meu coração. Parece traquina Olhar de menina

Na palma da mão.

As noites sugerem anos Os anos, eras

Num olhar… cuidei Mas de ti não sei.

Semeio Quimeras…

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Page 41: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Um dia

Um dia Encontrarei a sombra Um oásis divergente.

Onde Os meus grãos de areia

Não sejam só Areia.

No meio da diferença Eclodirá

Em chuva miudinha O repartir

A igualdade O dar

E Receber

Em liberdade. Um dia.

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Page 42: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Naturalmente

Os poetas sentam-se à mesa Desfolham relíquias

Aos meus olhos São rosários, são bitolas Entram e sentam-se Naturalmente Com alguma timidez Tão própria dos poetas. Eu… Busco em cada gesto A seiva de que me alimento Sei… por vezes vejo Um beijo Solto no vento. Também vejo dores As que a alma esconde E flores Um jardim imenso Onde flutua incenso. São os outros Que também se sentam Fernando e Torga Sofia, Ramos Rosa O Aleixo Com uma quadra airosa. Pressinto os passos De Almada Negreiros

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Page 43: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Ary dos Santos Até Vitorino Nemésio. Estes são alguns Que vieram sem pedir Muitos mais virão Um dia. Quando o poema emergir…

Escrever

Por tudo e por nada se mistura

A emoção ajustada à ternura

De seguida uma pitada de paixão.

Por vezes tremenda confusão…

Atiram-se as pedras pela ladeira…

Rolam, rolam em turbilhão.

Umas são parcas, outras… admirações!

Existem as que fedem, censura,

E depois, uma pitada de sal, formosura…

A tudo isto chamo a arte de escrever.

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Page 44: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Terra batida Esta terra batida que separa o âmago, Sinto que o eixo se corrói na distância. Os olhares denotam alguma pertinência E o amor é corcel rodando no centro… Os espaços em branco revelam saudade. Manifestação constante à qual sou alheia. Que será da vida se estiver meio cheia… E o crer que será, se lhe faltar a verdade. Ó deus dá-me o leito de um rio profundo. E as pedras redondas que torneiam o fundo. Também me podes dar alguns peixes cinzentos… Quero colori-los e brincar com eles, Planeio emprestar à saudade afinco. Porque terra batida… há muito não sinto.

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Page 45: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Viúva negra

Hipnose…

A partícula que me mantém suspensa

Como o pensar me pesa.

A aresta trémula da cegueira vagueia sem rumo,

Aranhas tecem uma teia na qual me embrenho.

Desapareço silenciosamente por entre mim mesma

Para no final acordar no ribombar do trovão.

A observação deslavada

Encaminha pela seda cuspida…

A aranha encurralada sacia-se no macho que abate!

Oh ventania que me sacode a alma

Leva-me, leva-me numa calçada gasta.

Que o país está moribundo

Os mortos não querem sair à rua.

Hipnose…

É o relicário de uma vez por ano

Como é linda a fotografia endoidecida…

E eu…

Enviuvando na poesia,

Enrosco-me sobre mim mesma dando a mordida

fatal.

Portugal…

Um país tecendo teias por entre viúvas negras.

Agora podem dizer enlouqueceu…

Os pobres deixaram de existir,

A pele de curtir…

E os mortos reviram-se na sepultura.

Só eles se deram conta do ainda está para vir!

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Page 46: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Vielas

Caminhou com passos perdidos Jamais deu dois passos atrás

Os ninhos das vielas eram antros enlouquecidos E o mundo uma redoma prestes a explodir

Um dia perdeu os sentidos Olhou-se no espelho já não era rapaz.

Aquele quem é… que não reconhece O seu nome é Zé e na vida esvaece

Aquele quem é… será que tem nome As rugas na testa demarcam a fome.

Caminha com passos vencidos

A barriga ronca com fome de vida. Quem são os seus filhos, quem foi sua mãe. E o tal de deus que o carrega nas costas… Traz-lhe à lembrança a morte manhosa.

Perdido na ruela que se decompõe Solta um grito rouco.

“Agora me vou deste mundo louco” Diz adeus aos ninhos antes de partir

Roga que interpelem uma dor um sentir…

Roga que não esqueçam que um dia também (soube rir).

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Page 47: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

A mente

Serei borboleta

Restam as dúvidas

Metamorfose perfeita

Entre a mente

E disputas.

Quero tanto aquilo

Mas o tempo não passa

Amanhã irei de barcaça

Procurar o tranquilo

Do teu abraço.

Deitarei no regaço

A tua branca cabeça

Perguntarei

Se me achas borboleta…

Consoante a resposta

Talvez o dia aconteça.

43

Page 48: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Abre a janela

Traz-me beijos

E mais beijos

E uma flor amarela

Traz-me palavra singela.

De uma simplicidade audaz

Quem sabe serei capaz

De adormecer finalmente.

Traz-me…

Traz-me um sorriso

No momento conciso

Pode ser curto

Tem que ser franco

Tem que ter luz

Por entre a sombra.

Olha… agora desponta

Em mim a curiosidade

Não é leviandade

É tesão

Paixão

Por palavras belas.

Abre a janela

Deixa entoar o solfejo

De um realejo.

Abre a janela

Atreve o sonhar

Ao instante por plantar…

44

Page 49: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Eu sei Alentejo

Porque ficas aí Soltando da alma

Pedaços de ti Como se fossem teus.

Porque ficas aí

Sem corpo, sem rosto Aos olhos meus. Pressinto o calor

Que te sai com calma Assim como o frio

Que te aperta por dentro. Eu sei Alentejo.

O que te corre no sangue Eu sei, mas não vejo…

Sei que consome Pedaços de mim…

As rugas de ti Pedras na ladeira

Que levas às costas…

Porque ficas aí Porque me provocas

Num desejo subtil É a mim que invocas.

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Page 50: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Moinhos de vento

Doem as palavras que não sei dizer Os olhares que não tenho

Dói-me tudo deus meu Até me doem os deuses que invento Sou um poço de dores em apogeu!!

Caminho curvada sem corcunda

Gosto de mostrar a cara fechada. A mente trancada à ideia fecunda Caminha desfeita e mal-amada.

Assim desfaço um rosário sem fim

Com contas de giz desfeitas por mim. Assim caminho com penas a jeito

Onde me engalano… para meu proveito.

Tantos os ornamentos de que a mente se enfeita Esquecendo que é tão fácil e até enjeita

Olhar a vida sem pena de nós. Afinal…somos os moinhos e os donos das Mós.

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Page 51: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Trimmmmmm

Se o telefone tocasse Me trouxesse a tua voz. Imaginável É aos meus ouvidos o som variável

Dos pensamentos. Quem sabe chegasse Em forma de trrimmm

Um beijo por fim.

Nesse dia meu amor, lembraria Que o numero nunca te dei.

Quem sabe aconteça a magia E me telefones, assim cobicei.

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Page 52: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Sede

Tenho sede… Sede, de palavras belas

Francas janelas Olhares abertos

Ao novo. Tenho sede…

De amor sem juras Que se sabem lonjuras E na vida se perdem.

Tenho sede… De um beijo dado

Sob a estrela da manhã. Quem sabe amanhã…

Será o dia em que a fonte jorra

E a sede que tenho mate a desforra.

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Page 53: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Indício

Deixa que o sol penetre na alma Que a brisa te seque os olhos

A vida pode ser calma Mesmo que acasos Nos levem a palma.

Olha que o dia nem sempre termina Quando a noitinha se faz presente. Até uma flor no Inverno germina

E o sol volta após o poente.

Deixa que o amor te bata à porta Que um acreditar te leve à loucura.

Nem sempre uma estrada que nasce torta É indício de penosa lonjura.

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Page 54: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Insónia frustrada

Olho a lua envergonhada

Envolta na sua aura amarelada

Procuro na sombra reflectida

O significado da angústia desmedida.

É o reflexo insípido do Outono…

Sai-me a resposta sem peso ou medida

Como se tudo fosse uma aguarela colorida

E a lua lá está, parece rir de tudo e de nada

Acena-me num bocejo orvalhado pelo frio da

madrugada.

A lua não sabe, ajudou-me a vencer uma insónia

(frustrada).

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Page 55: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Tosco

Em barcos de papel

Navego

Como mastros tenho ideias.

Colmeias

Infestadas e sem espaço.

Podes dizer-me

O porquê do cansaço

Porque não desfaço

Os favos

E rumo a alto mar.

Será porque o barco de papel

É tosco

Ou porque o vento

Afasta-me sem desgosto

Da rota.

Não sei o que digo

Sequer o que penso

Às vezes mendigo

Outras…desdigo

Mas não me convenço.

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Page 56: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Cor

Os teus olhos pedem

Versos de amor

Mas dói-me a alma

Não sei escrever

Versos de amor.

E os teus olhos pedem

Palavras bonitas

Atadas com fitas

Rosas e carmim

Laços de cetim.

Dói-me a alma…

Que fizeste tu de mim

Porque me roubaste assim

Pedaços de um poema.

Que não sei…

Que vida é esta

Jamais a imaginei

Tão tosca.

A boca sabe a mata-borrão

Que ensopa a aflição, e

Na ponta do lápis

Descarrego

Desejos em abolição.

Quero tanto escrever-te

Versos de amor.

Mas distância não deixa

Dói… Não lhe encontro cor.

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Page 57: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Repasto

Era tão fácil

Ditar sobre o papel branco

Toma-me…

Mas o papel tem nome

É papel.

Serei pouco mais que nada

Ou tudo contundente

Sou eu que decido

Em tudo

Estou presente.

No tudo que me impõe

Tudo roí…

Mas não destrói

A dádiva atracada

Ao tudo que pode ser mudo.

Ou grito enraivecido

O pior é um tudo envaidecido!

Era tão claro

Mas o papel

Que não é pastel

Impõe reparo.

Em tudo…

Toma-me

Imploro ao papel

Tal farnel

Que o estômago acama.

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Page 58: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Toma-me…

Desliza comigo

Nos olhos incrédulos

De quem nos olha.

Vá lá… desfolha

Poemas singelos.

Alguns são belos

Outros canibais.

Saciam-se das mentes

Repasto em sementes

Mas tão infernais.

Ciúme

Será o ciúme

Uma praga…

Destrói por onde passa

Será o ciúme caduco…

Declínio da mente

Imaginação constante

Eu sei que presente

Teu rosto contente.

Serei eu demente

Teu andar diferente

Numa estrada rasgada

Pela rigidez da vida

Sem mim.

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Page 59: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Pedido

Pedi à lua que me desse ilusão

Ao mar pedi a saudade.

Pedi ao sol com tão grande vaidade

Que me trouxesse calor e paixão.

De seguida pedi a Deus

Por favor, dá-me um pouco de tudo…

Apareceu aos olhos meus

Um rosário de flores, mas contudo,

Achei que ainda era pouco

E pedi ao vento em rajadas

Beijos de amor quase louco.

Fontes de mel, águas brotadas.

Na minha ânsia absurda

Não pressenti o fim eminente

Em cada conversa muda.

Uma passo atrás novamente…

Agora peço à terra molhada

Pelas lágrimas que saltam da alma,

Dá-me terra nesta hora assombrada

A sabedoria de chorar com calma.

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Page 60: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Amanhã

Claro, amanhã o amor sorrirá

Uma alma penada por fim dormirá

O topo do mundo eclodirá

E os rios, os rios adormecem

Amanhã partirei, enfim…

Para terra distante

Levarei na bagagem

Um amor emergente.

Emerge das cinzas

A meio da vida

Apanha-me cansada

A meio da subida.

Amanhã adeus direi

Aos receios antigos.

Estão cheios de mofo!

Abrirei os postigos.

O amor entrará

A espera termina

Uma flor germina

E os rios secam.

O sal amontoa-se

Nascem salinas

De lágrimas finas,

Qual lago salgado

Flamingos ao sol

Abrem as asas…

Abraçam o amor

Que perdurará.

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Page 61: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Felicidade

Felicidade palavra gentil

É refrão de poetas

Cor por entre as letras

De um poema febril.

Felicidade

Está no olhar

No Outono que renasce

Após o Verão.

Está na chuva que cai

Está nos teus olhos

E nos demais.

Na criança que brinca

Na mãe que grita

Num parto com dor.

Está atrás da esquina

Na ideia germina

Felicidade é alvor.

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Page 62: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Calçada

Se eu abrisse o coração

O retalhasse sem medo

Soltaria o degredo

De olhar sem visão.

Não há nada mais cruel

Do que passar e não ver

A calçada a gemer

Na mão estendida

Profundo é o medo

Que tenho de indagar,

Porque olho… olho e não vejo…

E viro a cara ao passar.

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Page 63: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Saudades

Saudades de quê?

De uma gota de chuva

Do vento que passa.

Saudades…

Um amor, a história

De uma noite de insónia.

Saudades…

De um calor, aconchego,

O partir num beijo.

Saudades…

São o meu clamor

Num verso de amor

Afogar de saudades.

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Page 64: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Um a um

Digam-me vocês

Que me olham, e olham

Mas não me entendem.

Digam-me.

Já que chegaram aqui atrevam-se

A dizer que estou errada.

Apontem-me os defeitos

Um a um…

Digam-me que perco tempo

E no tempo estou vidrada.

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Page 65: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Andorinhas

As andorinhas partiram

No beiral da minha casa ficou o vazio.

Exposto no barro vermelho

A delicadeza da construção

Seduziu-me, num serão

Em que o luar se atrevia.

A meio do verão já tinham ido

E o ninho ali estava

Mudo…

Como mudo é o vento

Que não me traz a tua voz.

Há tanto tempo!

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Page 66: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Nada

Na quietude da tarde a certeza embala

A vontade astuta que o achar descarta.

Descuida o sentir no cair da folha

Ainda a advir remanso na cantata…

De um cão ao longe, parece chorar,

Como chora a folha no arrastar

Pela terra em brasa rogando por água.

Como choro eu, afagada em mágoa.

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Page 67: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Do passado

Consciente este entardecer

No qual me embalo, nada por fazer.

Igual ao nada de um dia a correr.

Oiço ao longe a voz das almas

Numa lamúria infernal

Gritam, choram, uma dor descomunal.

Oiço ao longe a voz das almas

Neste chão que é Portugal

Reconheço uma voz parental

Como ela não tem igual

Saiu lá do passado, infernal.

Gritando… porque cegaram afinal.

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Page 68: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Memória

É uma terra de barro encarnado

Aquela que trago no peito

Toda ela coberta de gado

O trigo esquecido no leito.

Que saudades da meninice

Do verde dos olivais

Das brincadeiras e malandrices

Que se foram sem voltar mais.

Que saudades do Alentejo

Dos homens de cantar pacato

Fecho os olhos e ainda os vejo

Cortando com a navalha um naco.

Do pão que brotou da terra

Ai gente sangue da ceifa

Quem sabe o trigo renasça

E o horizonte liberte.

Saudades em forma de neve

Na brancura das cabeças

Quem sabe um dia aconteça

O que a memória descreve.

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Page 69: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Maria

Vi agora a senhora Maria

Lá ia ela enfrentando a lida

Levava nas costas um xaile preto.

Preso na cabeça, um chapéu de feltro.

A saia cinzenta tapando os joelhos.

Os cabelos brancos confundem os olhos

Ao cair na testa sob o chapéu…

Fazem lembrar um escorrido véu

Numa das mãos levava a enxada

Na outra um cabaz de vime.

E lá ia ela de pé na estrada

Pesam-lhe os anos mas o andar é firme.

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Page 70: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

O sobreiro

Olho a rua pela frincha entreaberta, ali,

Onde os homens descansam dos fardos, está

Uma sombra que abraça, mesmo agora vi.

Os homens abeirando-se da sombra que está…

Rindo do sol que teima e quer queimar

A tez morena dos homens do campo.

Por entre a sombra brilha um pirilampo

Em cada luzerna que chega a bailar.

Por entre os ramos do velho sobreiro

Um breve zum-zum com o deslizar do vento.

Olhei pela frincha da porta um momento.

Extasiei o olhar num sobreiro altaneiro!

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Page 71: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Já poeta não sou

Já poeta não sou, morri num mês de Maio.

Deixei vincada na rocha, a dor e a alma

Ao lado de uma costela repousa a calma

Sobre elas esvoaça, um vistoso Gaio.

Já poeta não sou, soltei um papagaio

De papel, em mil cores e pouca fama

Soltei versos no mundo, leito de lama

Escrevi tudo o que sou, sendo lacaio.

De poetas doutras eras que abriram valas

Profundas, onde repousa a sabedoria

Fina e majestosa em tantas falas.

Sobre elas esvoaça fresca maresia

Onde o meu Gaio refresca as rimas

Poeta eu serei, talvez, ao longe, um dia…

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Page 72: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Poema de nada

Se eu um dia escrever um poema de nada

Não me olhem com ar pasmado ou indolente.

Tão pouco me vejam pedaço de gente

No dia em que escrever um poema de nada.

Será o nada de um vazio, estarei de abalada

Para além da vista, para lá do poente.

Simplesmente virei-me de frente

Para uma curva escura e apertada.

Sumir-me-ei numa nesga de sol em prol

Das ideias que por cá ficarão.

Aproximar-me-ei pé ante pé de um velho farol.

Escreverei na sua lanterna com sofreguidão

Antes de fechar os olhos ao virar da curva.

Redigirei, nada, lá atrás os versos, a minha paixão.

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Page 73: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

O poema irado

O poema estatelou-se no chão árido

Vociferaram as visaras em prantos

Os dedos apontaram, eram tantos

Os pontos apontados, um mísero fado.

Foi o que sobrou do poema irado

Porque o corpo tombou nos flancos

De um pedaço de papel. Nos ventos

Que uivaram logo apareceu vincado,

O riso mordaz que não entendeu

O poema irado, olhou de desdém

O riso mordaz, afinal serás camafeu…

Gravado no dedo que se perdeu além

Apontando o poema que agora moeu.

O olhar viciado que fica tão aquém.

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Page 74: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Passaporte

Se eu me aninhar por um momento

Nos braços da morte, será que ela é quente

Será que me aquece do frio invernal

Ou será apenas um seguir em frente.

Transladar de ilusões, em amor carnal

Se eu me aninhar por um momento.

Nos braços da vida, será que é gélida

Será que destoa do mundo irreal

Por onde as dúvidas circulam em queda

Livre de tudo o que é consensual.

A morte e a vida, a mesma moeda

Da alma, que nasce sabendo que morre.

Agora, digam-me, vale a pena a guerra

Que se tenta travar entre o bem e o mal.

Se eu me aninhar esquecida do norte

Que o universo traçou um dia.

Ai de mim perdi o passaporte

Para viajar pela vida sem grande agonia.

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Page 75: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Nada mais

Nada mais quero que sentimento

Nas palavras deitadas fora

Não serão elas consentimento

No reboliço da vida fora.

Nada mais quero…

Os olhares mesmo sombrios

São ventania que logo passa

Espuma na praia

Maré vazia

Tala de gesso

Amparando a alma.

Nada mais quero…

Que andar em frente

Pelo chão ficam as mágoas

Nada mais são

Que farrapos soltos.

Se desfasem em pó…

Cursor um tanto atrevido

Como no moinho as suas Mós.

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Page 76: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Penhasco

Juntos no subir compassado

O mesmo olhar por vezes se distancia

Logo ali o caminho abrevia

E o poema cai desfolhado.

Edificam-se eiras

Por onde os sonhos levitam

Os sentires exercitam

Entre formas e maneiras.

Mas são tão solitários

Às vezes doem-lhe as chagas

Não são suas as mágoas

São operários.

De sentires em construção

De penas, alegrias em muitas mãos.

Os poetas são o penhasco

De onde a vida se joga sem relutância.

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Page 77: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Ao meditar… A Poesia. Era tão fácil a poesia evoluir, era deixa-la solta pelas valetas onde os cantoneiros a pudessem podar, sachar, dilacerar, sem que o poeta ficasse susceptibilizado, o poeta só cresce com a critica construtiva, seja boa ou má, senão, o poeta apenas vegeta adoração. No final esqueceu-se que crescer é a obrigação dos poetas. De que servem poemas que não ficam, que se limitam a viver o momento e passado cinco minutos ninguém se lembra mais do que leu. Fico triste porque muitos que poderiam ser bons se perdem no efémero da idolatração. O Sonho. Porque não deixar ao homem a sua capacidade de sonhar. Deixá-lo inundar de emoções onde os sentidos voem, tão alto, que o vento corará ao seu passar. Em cada homem germina o poeta no seu espírito desregrado. Então, deixemos nós os poetas ao homem a capacidade de nos olhar. A escrita só assim conseguirá representar o seu papel, que é o de semear ilusões, transportar a alma humana para além do imaginável. Outras vezes, de forma mais dura apelar à reflexão. A vida terrena é cheia de espinhos, uma alma sem poesia morrerá de secura.

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Page 79: Em Paralelo, Poesia de Antónia Ruivo

Índice 1. Da autora 2. 3. Prefácio 4. 5. Desconhecido 6. À minha filha 7. Em paralelo 8. Mulher alentejana 9. Demanda 10. Negação 11. Em massa 12. A banhos 13. A morte 14. No silêncio encontro mortalha 15. Fantasmas que se predizem 16. Mulheres 17. Contigo falo de amor 18. Esvai-se o Verão 19. Pergunta à noite 20. Paz 21. Pó 22. Miseração 23. Pasmo 24. Curva 25. Avesso 26. Bola de sabão 27. Homem 28. Sossego 29. Turvo 30. Beija-me as mãos 31. Sede 32. Olhem

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33. Por entre fios de neve 34. Sei 35. Paixão 36. Quimeras 37. Um dia 38. Naturalmente 39. Escrever 40. Terra batida 41. Viúva negra 42. Vielas 43. A mente 44. Abre a janela 45. Eu sei Alentejo 46. Moinhos de vento 47. Trimmmmmm 48. Sede 49. Indício 50. Insónia frustrada 51. Tosco 52. Cor 53. Repasto 54. Ciúme 55. Pedido 56. Amanhã 57. Felicidade 58. Calçada 59. Saudades 60. Um a um 61. Andorinhas 62. Nada 63. Do passado 64. Memória 65. Maria

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66. O sobreiro 67. Já poeta não sou 68. Poema de nada 69. Poema irado 70. Passaporte 71. Nada mais 72. Penhasco 73. Meditando 74. Índice

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