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Revista Contemporânea de Educação N º 11 - janeiro/julho de 2011
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EM PAUTA: ALFABETIZAÇÃO, LETRAMENTO, LEITURA E
ESCRITA
Ludmila Thomé de Andrade1
Patrícia Corsino2
A ideia de organizar um dossiê sobre alfabetização, letramento e questões referentes à leitura,
à escrita e às práticas sociais correntes na cultura escrita para a Revista Contemporânea de
Educação-RCE surgiu pela recorrente atualidade da temática. Seja pela
multidimensionalidade que abarca, seja pelas questões políticas que lhes são inerentes, o tema
está na pauta das mídias, dos debates acadêmicos e das questões da escola, seus sujeitos e
práticas. Esta permanência nas diferentes pautas tem acontecido pelos matizes e nuances de
abordagem, mas também porque os contextos recriam e atualizam enunciados muitas vezes já
proferidos e novos enunciados, por sua vez, provocam alterações contextuais, deslocando,
desarrumando e dando novos contornos ao instituído. Certas de que, no fluxo ininterrupto da
comunicação e de produção de conhecimentos que se dá na arena discursiva, no qual não há a
primeira nem a última palavra (Bakhtin, 1992), como pesquisadoras do Laboratório de
Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação- LEDUC- e responsabilizadas
frequentemente por tratar do tema da linguagem, na linha de pesquisa Currículo e Linguagem
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRJ, buscamos
ampliar a interlocução e engrossar a corrente com novos olhares.
Foi nossa intenção colocar na pauta da RCE questões que envolvem leitura e escrita, suas
diferentes abordagens e novos ângulos de visão. Entretanto, um desafio configurou-se: De que
escrita tratar, em tempos de escrita falada, escrita teclada, escrita restrita à legenda de
imagens? Espalhamos nossa rede, convocamos e recebemos vários textos. Terminado o
trabalho de emoldurar estes envios, constatamos que o dossiê resultou numa visão bastante
interna às preocupações escolares. Retratou com ênfase o processo da entrada no Ensino
Fundamental, no ano que se ocupa mais especificamente da alfabetização, mas atingiu até à
saída no último ano do Ensino Médio, passando por diversas vozes participantes destes
1 Professora Associado I da Faculdade de Educação da UFRJ.
2 Professora Adjunto I da Faculdade de Educação da UFRJ.
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processos de formação de leitores, principalmente a das crianças e dos professores
alfabetizadores.
No conjunto dos textos, ressalta-se a discussão sobre alfabetização no Brasil no momento
atual, que esbarra na dicotomização entre alfabetização e letramento. Alfabetização, entendida
na perspectiva dos estudos de Soares (2003a, 2003b, 2004, 2006), como “a aprendizagem de
uma técnica, domínio do código convencional da leitura e da escrita e das relações
fonema/grafema, do uso dos instrumentos com os quais se escreve” (Soares, 2003, p.16), e
letramento, como o “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva
(dedica-se à atividade de leitura e escrita) e exerce (responde às demandas sociais de leitura e
escrita) as práticas sociais que usam a escrita” (1998, p.46). A alfabetização relacionada à
compreensão e à apropriação da natureza alfabética da língua e das regras e convenções do
sistema de escrita e o letramento, às práticas sociais da escrita. A dicotomia tem se mantido na
escola, em que pese a perspectiva de “alfabetizar letrando” postulada por Soares (1998 p.47):
“ensinar a ler e a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita”, bem como
os desdobramentos propostos no diálogo da pesquisa, tomando-se em consideração a
possibilidade mais ambiciosa de se inverter ainda a fórmula para “letrar alfabetizando”
(GOULART, 2006).
A diversidade e heterogeneidade de práticas sociais de leitura e escrita extra-escolares trazem
questões que dizem respeito às relações entre língua, escritas e poder, que afetam a escola e o
seu lugar de principal agência de letramento. Street, em sua obra Literacy in theory and
practice, de 1984, destaca dois modelos de letramento: o autônomo, que é baseado na ideia de
que o letramento por si só, com suas características intrínsecas, traria efeitos sobre práticas
sociais e cognitivas, sendo capaz de promover o pensamento racional, o desenvolvimento
intelectual e a mobilidade econômica; e o ideológico, que pressupõe práticas de letramento
plurais, variadas através dos tempos e das culturas, considerando que dentro de uma mesma
cultura esta variedade se relaciona às estruturas de poder das sociedades. Mais de vinte anos
depois desta publicação, em entrevista para a Revista Língua Escrita (2009), o autor afirma
que a confrontação dos modelos ainda é pertinente, especialmente nos círculos políticos onde
há um forte predomínio do modelo autônomo. Traz a atualização interessante, que reforça a
pertinência da divisão conceitual proposta, quando passa a conceber que o modelo autônomo
é ele também ideológico. Por esta via mais atual proposta pelo autor, os modelos não estariam
em oposição, mas o modelo autônomo seria um exemplo de modelo ideológico. Ainda nesta
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entrevista, ressalta que embora o termo em inglês literacy refira-se tanto ao aprendizado de
um código alfabético (alfabetização), quanto aos usos da leitura e da escrita na vida cotidiana
(letramento), permanecem as discussões, nos países de língua inglesa, sobre qual ênfase deve
ser colocada nas aprendizagens iniciais. Portanto, a dicotomia alfabetização e letramento de
certa forma existe e o autor alerta para a necessidade da escola refletir não sobre o letramento,
mas sobre as múltiplas práticas de letramento: a opção pelas múltiplas práticas de letramento
é importante para não se produzir uma visão ‘bancária’ da educação (...), entendemos que o
letramento não deve estar associado a apenas uma forma de acúmulo de informações, mas
deve estar vinculado a práticas que promovam o empowerment. (Street, 2009, p.89). Esta
formulação alinhada com Paulo Freire se dirige a uma educação como lugar de autonomia e
emancipação do sujeito e reitera a pergunta de base: de que práticas de letramento cada
instituição precisa disponibilizar para empoderar os sujeitos que ali ingressam? A apropriação
de novas práticas sociais amplia as possibilidades de circulação do sujeito nos grupos sociais.
Se inclui, portanto empodera.
A paradoxal aliança entre letramento e alfabetização tem dividido o campo e produzido
novos enquadramentos a respeito da temática do ensino escolar da língua escrita, que já vinha
passando por várias revoluções. Após mais de quinze anos de estudos e pesquisas, nos
movimentos e tendências provocados por esta discussão, observa-se que a introdução do
conceito de letramento, embora traga consigo uma vasta rede de conhecimentos teóricos e de
pesquisa para o campo de estudos educacionais, não parece ter dinamizado satisfatoriamente
as práticas pedagógicas no campo escolar. A maioria das escolas permanecem parecidas
consigo, no que concerne o ensino da leitura e da escrita.
Paralelamente, talvez em interrelação com os acontecimentos do campo de pesquisa, ainda se
acresce hoje à situação do ensino escolar da letra um massacre de tantos processos de
avaliação, que conduzem paulatina e silenciosamente a uma estagnação. Tem se tornado mais
importante almejar o sucesso no resultado publicado das provas que chegam do exterior das
escolas do que planejar práticas condizentes com os avanços conhecidos dos alunos, tratados
por docentes de forma microcontextualizada, no interior de suas salas de aula. Nos seus
planejamentos, os professores se veem constrangidos em seguir à risca os descritores de
avaliações externas e a visão docente autoral sobre o ensino da letra a realizar junto às
crianças vai assim sendo gradualmente embaçada. Planejar seu trabalho de ensino torna-se
sinônimo de programar-se para ser avaliado. O letramento escolar hoje está recortado em
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fatias, com currículos que têm funcionado como grades que aprisionam - já que têm sido
desenhados pelas linhas de descritores almejados - e o trabalho pedagógico tutelado por
apostilas elaboradas para grande escala, com atividades que não deixam margem a modos de
fazer inéditos, autônomos e inspirados em contextos mais particulares.
Neste dossiê, escolhemos uma ordem dos artigos, dividida em três momentos. Parte-se de dois
textos iniciais, de pesquisadores experientes, que há muito vêm acompanhando o campo da
alfabetização, leitura e escrita. A visão trazida por eles é abrangente. No primeiro texto, abre-
se a visão histórica, num primeiro momento, pela voz de escritores e teóricos da leitura, e
analítica, vinda do campo de pesquisa em alfabetização. No segundo, as autoras destacam
duas fontes fundamentais nos estudos brasileiros de letramento, Paulo Freire e Mikhail
Bakhtin. Em seguida, encontram-se três artigos que enfatizam práticas voltadas à
alfabetização, no ano inicial do Ensino Fundamental. Os dois artigos que se seguem trazem a
voz docente, um na sua relação com políticas de formação de professores, em plena
implementação no presente, com a análise de materiais curriculares utilizados junto aos
docentes, e o segundo com as determinações oficiais. Para terminar, encontramos dois textos
sobre jovens leitores, recompondo a continuidade do processo escolar relacionado à leitura e à
formação de leitores. Cada um dos artigos é melhor detalhado a seguir.
O primeiro texto, de Marlene Carvalho, apresenta, através de depoimentos pessoais de autores
muito conhecidos, de literatura, brasileiros e de outros países, uma variedade de modos de
aprender a ler. Visitamos diferentes perspectivas sobre a alfabetização, a partir de relatos
originados da memória e das experiências particulares de indivíduos que se marcaram pela
leitura e pela escrita, revelando que a entrada para o mundo da escrita pode acontecer de
maneiras tão variadas como são as propostas pela pesquisa em alfabetização, a depender dos
sujeitos e de seu encantamento por esse objeto de ensino.
O texto de Maria Fernanda Rezende Nunes e Sonia Kramer parte de uma longa experiência
histórica, que introduz este dossiê por uma visão política. As autoras propõem uma visão
teórica abrangente, que passa a ser fonte de inspiração para ações diferentes no interior da
escola. Visitam a obra de Paulo Freire e de Mikhail Bakhtin, estendendo-se sobre uma ampla
gama de conceitos que concerne a ambos, sobre os quais se detêm nas respectivas visões, para
buscar apontar novas formas de se apresentar como sujeitos inscritos em práticas cotidianas
escolares. Os dois autores formam um baluarte dos estudos educacionais no Brasil,
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incontornáveis quando se abraça as questões de linguagem neste domínio. Num dossiê sobre
alfabetização leitura e escrita, esta abertura teórica marca presença em grande estilo.
Na segunda seção desse dossiê, em que se concentraram os artigos que abarcam práticas
voltadas à alfabetização no ano inicial do Ensino Fundamental, encontramos como abertura
ao tema o artigo de Claudia Pimentel, que traz retratos da leitura acontecida na escola, entre
as crianças, em atividade de livre escolha, no espaço da sala de leitura. O retrato/relato que
desenha a autora é instigante, por situar sua perspectiva por dentro da escola, mas em práticas
pouco dirigidas e por isso mesmo pouco visíveis. Aprofunda-se na particularidade do que
acontece entre crianças, que no espaço escolar fazem uso do acervo oferecido pelas políticas
de livro na escola, em espaços organizados para se ler, porém em tempos nem sempre
compatíveis com a produção da leitura.
O texto de Eliane Peres e Gabriela Nogueira oferece um retrato cujo ponto de vista inscreve-
se internamente à sala de aula e às práticas docentes. Os eventos de pesquisa analisados
articulam a oralidade e a escrita docente e discente e se voltam para a estrutura composicional
de qualquer material de leitura, como foi um bom exemplo a exploração das datas. A
professora tinha por objetivo o esclarecimento do significado de cada parte do texto em pauta,
indagando insistentemente as crianças sobre os dados que deveriam constar naquela escrita,
por que e como eram escritos, indicando para uma cultura de alfabetização baseada em uma
relação entre oralidade, leitura e escrita. A partir do que é retratado e analisado pelas autoras
em detalhe, percebe-se que: “Práticas efetivas e sistemáticas que associassem alfabetização e
letramento não foram recorrentes na sala de aula observada. Embora tenhamos registrado
algumas atividades em que o ensino do código escrito (alfabetização) estivesse associado a
práticas diferenciadas de leitura e escrita (...), não podemos dizer que havia, efetivamente, a
associação do letramento e da alfabetização.”
Com o artigo seguinte, de Carmen Sanches, Tiago Ribeiro e Igor Helal, somos conduzidos ao
cotidiano de uma sala de aula e assistimos a algumas cenas de ensinoaprendizagem (ou vice-
versa) de alfabetização. Encontramos a apresentação de princípios teóricos que descrevem
movimentos de conhecimento das crianças diante do objeto linguagem escrita. Este lhes é
apresentado sempre inteiro, num fluxo de discurso, solicitado em forma de textos, e contando
com seus saberes, que devem ser sempre ousados, apostados, nos momentos de atos de escrita
solicitados, da maneira como já souberem realizar, sem olhar apenas para o que lhes falta e é
considerado erro. A voz da professora é incorporada na análise, desenhando uma abordagem
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do cotidiano escolar numa parceria dos autores, lado a lado a uma professora que defende o
aprender a escrever escrevendo. Os autores apresentam o processo de alfabetização imerso
nesse caldeirão com toda sua riqueza, através de muitas cenas relatadas, diálogos analisados,
exemplos que embalam uma coerência exemplar de escrita de pesquisa teórico-prática.
Na terceira seção do dossiê, incluíram-se artigos que trouxeram enfaticamente a voz docente
em sua abordagem sobre alfabetização, leitura e escrita. Coincidentemente, incorrem sobre a
problemática frequentemente apontada por pesquisas que tomam por seu principal objeto de
estudo outros temas, mas acabam mencionando esse mote: a formação de professores.
O artigo de Maria do Socorro Nunes Alencar e Bernarda Elana Madureira Lopes tem como
objetivo a apropriação docente de políticas de formação continuada. Apresenta inicialmente
uma análise de materiais curriculares utilizados junto aos docentes em uma proposta de
formação; em seguida, alguns dos pontos sintetizados são analisados mais detidamente, por
serem retomados no discurso docente, objeto principal do estudo. Efetivamente, o interesse
desse texto é trazer à baila a voz docente, na sua relação com políticas de formação de
professores em plena implementação. Os diversos movimentos discursivos de aproximação,
distanciamento e incorporação do discurso (chamado) oficial apresentado no processo de
formação continuada recebido valem a pena ser apresentados como resultados de pesquisa
sobre alfabetização.
Marcelo Macedo Correa e Castro apresenta um texto pleno de questões a respeito do que se
ensina quando se ensina linguagem na escola, durante toda a Educação Básica. Parte de dados
obtidos junto a estudantes de licenciatura em Pedagogia e de Letras, mostrando como na
aprendizagem ali acontecida decantam-se, gradualmente, através dos sucessivos anos de
escolaridade, representações, para estes jovens. No momento de suas escolhas de carreiras
profissionais docentes, concebiam-nas em princípio positivamente no que dizia respeito à
escola e à língua. Porém, essa concepção parece perder seu valor de positividade, o que é
analisado pelo autor pela tomada em consideração da ideia de autoria, que ele categoriza
como a maior ou menor distância em relação a si, em relação à expressão mais individual.
Suas conclusões encaminham-nos para concordar que autoria não rima com o que se aprendeu
a pensar que seja a língua. Além de dados objetivos e ilustrativos das respostas dos estudantes
sobre a língua na escola, são apresentados autores literários brasileiros e autores
pesquisadores sobre a língua que compõem os estudos de modo elucidativo e original.
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Ao final, o dossiê se fecha com o artigo de Gerliane Barbosa e Andrea Rodrigues que
analisam a compreensão leitora de adolescentes, cursando a 8ª série do Ensino Fundamental
de escolas da rede pública (estadual e municipal) de Fortaleza-CE, Partem do principio que a
aquisição da leitura é indispensável nas sociedades letradas, sendo considerada uma condição
de inclusão. A pesquisa, de orientação psicopedagógica, conclui que o não desenvolvimento
eficiente da compreensão leitora dos sujeitos da pesquisa não se reduz à vulnerabilidade social
e econômica a que estão expostos, mas sim, principalmente, à forma como se estruturam as
metodologias de ensino-aprendizagem da escola: “as dificuldades dos sujeitos pesquisados
estão atreladas à incapacidade da escola em estabelecer uma prática da leitura significativa
fazendo uso de estratégias estimuladoras”. Reiteram, assim, a importância da escola na
formação de leitores.
Esperamos que este conjunto de pesquisas sobre alfabetização, leitura e escrita, com sua
diversidade e abrangência, possa contribuir com a atualização das reflexões sobre letramento
e escola, tema em pauta, nas políticas educacionais e no cotidiano escolar.