EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC) Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo. Leão, Emerson. Emerson Leão (depoimento, 2011). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2012. 58pp. EMERSON LEÃO (depoimento, 2011) Rio de Janeiro 2012

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE

HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)

Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.

Leão, Emerson. Emerson Leão (depoimento, 2011). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, 2012. 58pp.

EMERSON LEÃO

(depoimento, 2011)

Rio de Janeiro

2012

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Nome do Entrevistado: Emerson Leão

Local da entrevista: Museu do Futebol, São Paulo

Data da entrevista: 7 de outubro 2011

Nome do projeto: Futebol, Memória e Patrimônio: Projeto de constituição de um

acervo de entrevistas em História Oral.

Entrevistadores: Bernardo Buarque (CPDOC/FGV) e Bruno Romano (Museu do

Futebol)

Câmera: Theo Ortega e Fernando Herculiani

Transcrição: Jonas Dias da Conceição

Data da transcrição: 6 de janeiro de 2012

Conferência de Fidelidade: Maíra Poleto Mielli

** O texto abaixo reproduz na íntegra a entrevista concedida por Emerson Leão em 07/10/2011. As partes destacadas em vermelho correspondem aos trechos excluídos da edição disponibilizada no portal CPDOC. A consulta à gravação integral da entrevista pode ser feita na sala de consulta do CPDOC.

Bernardo Buarque – Leão, primeiramente, muito obrigado por ter aceito o nosso

convite. É uma grande felicidade tê-lo aqui, no Museu. Esse depoimento vai compor

uma série de registros de lembranças sobre as Copas do Mundo, e vários visitantes do

Museu poderão conhecer um pouco mais a sua história a partir dessa entrevista. Então,

agradecendo a sua presença, eu peço que você se apresente e fale o seu nome completo,

onde nasceu, o local de nascimento e data de nascimento.

Emerson Leão – Antes de falar tudo isso, eu também fico satisfeito de, aqui, estar

porque estive como um atleta... Primeiro como torcedor no Pacaembu; depois, como

atleta do Pacaembu; depois, como treinador no Pacaembu; e, agora, como arquivo vivo,

não é? [risos] Então, eu espero batermos um bom papo. O meu nome é Emerson Leão.

Eu nasci no dia 11/07/1949, na cidade de Ribeirão Preto. Filho de pais italianos e avós,

lógico. Logo cedo, descobri que o futebol ia fazer parte da minha vida. Sem procurar, eu

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descobri. Por quê? Porque, para fazer um futebol profissional, você necessita de

algumas coisas a mais do que o normal. Jogar futebol no Brasil todo mundo joga,

principalmente de sábado e domingo. Se tornar um atleta profissional, você precisa de

algo mais, e esse algo mais parecia que já estava fadado a acontecer. Eu sou de uma

família de três irmãos, na qual os outros dois são médicos – quer dizer, não tem nada a

ver com o futebol -, o meu pai era um italiano alfaiate e eu comecei a jogar bola vendo

os meus irmãos estudarem medicina muito cedo. Na cidade de Ribeirão Preto, nós

tínhamos duas grandes equipes, o Comercial e o Botafogo. Eu torcia para o Comercial e

ia sempre ao estádio de futebol no sábado e domingo. Eu era tão novo que não podia

assistir jogo noturno porque era perigoso; não era perigoso porque existia rivalidade, era

perigoso porque eu tinha que ir a pé e aquele negócio todo, na cidade de Ribeirão Preto,

de um bairro para outro. Enfim... Mas, logo cedo, eu comecei a jogar nas esquinas; eu

comecei a jogar nos colégios, estudando e mostrando para o meu pai que podia eu jogar

futebol e estudar ao mesmo tempo - que fazia parte do mesmo sangue que os irmãos que

estudavam para serem médicos e se tornaram médicos. Até que, um dia, nós formamos

um timinho de esquina e nos reunimos, cada um com uma enxada na mão; subimos num

bairro que hoje é populoso, mas, antigamente, Ribeirão Preto não tinha nada; e fizemos

o nosso próprio campinho. Jogávamos, treinávamos e gostávamos daquilo. Interagíamos

e era maravilhoso entre crianças. Isso com doze anos de idade, ou dez anos de idade.

Até que, com quatorze anos de idade, sem esperar, os meus pais, por questões de

negócio, mudaram da cidade de Ribeirão Preto - a convite dos irmãos deles, também -

para montar uma grande empresa em São José dos Campos, aqui no Vale do Paraíba.

Eu, com quatorze anos, me transferi para essa cidade de São José dos Campos. Quando

lá cheguei, numa quinta-feira, sozinho; fui até o meu pai, e não sabia nem onde eu

morava ainda, o meu pai havia alugado uma casa; e comecei a frequentar o negócio do

meu pai numa quinta-feira. E na sexta-feira, fim de expediente... O vizinho do lugar que

o meu pai tinha o negócio, era uma padaria e nessa padaria tinha um padeiro que jogava

futebol de várzea no sábado, depois do trabalho. Ele me vendo, um garoto com quatorze

anos – eu já tinha um metro e oitenta e dois, ou oitenta e três de altura –, era mais forte e

tudo, e ele perguntou ao meu pai se eu não sabia jogar bola. O meu pai sugeriu a ele que

perguntasse para mim. Ele se apresentou – até muito simples de origem e tudo – e

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perguntou: “Você sabe jogar bola?” Eu disse: “Mais ou menos, não é?” “Você joga de

quê?” Eu falei: “Eu jogo de goleiro, quando me deixam. Senão, eu jogo no ataque ou

coisa desse jeito, em outra posição.” Ele falou: “Você não quer jogar amanhã?” Eu falei:

“Onde?” Ele falou assim: “Olha, nós vamos jogar aqui atrás, perto. No outro quarteirão

e tal... Depois do trabalho. Vai começar às duas horas da tarde. Então, às duas horas, se

você estiver aqui, você vai conosco.” “Está bom.” Eu já tinha uma chuteira, já tinha

levado uma chuteira na minha mala e fiquei esperando - almocei e fiquei esperando. Aí,

saímos uma turma andando; e, para a minha surpresa, esse campo de futebol ficava a

quinhentos metros de onde nós estávamos. Era um campo de futebol que ficava atrás do

estádio da cidade - um estádio pequeno, mas ficava - um campo de várzea. Aí nós

fomos jogar, trocamos num lugar, lá, horrível, não é? Como era normal. Fomos jogar; e

eu cheguei, era um segundo quadro que jogava às duas horas. O primeiro jogava às

quatro. Claro, já que tem que sofrer no sol, sofra o do segundo quadro, não é? [risos] Aí

eu joguei, o nosso time perdeu de 2x1 e eu consegui fazer algumas defesas, não é?

Voltei para o vestiário, agradeci a ele e falei: “Eu só gostaria que você me informasse

como é que eu chego na minha casa porque eu não sei ir para a minha casa.” Ele falou

assim: “Não. Você não vai para a sua casa agora. Você vai esperar porque você vai

jogar no primeiro quadro também.” Então, eu joguei no primeiro e no segundo quadro.

Acabou o jogo, aquele negócio todo, eles me deixaram em casa – eu também não sabia,

ficava mais perto ainda do que aqueles quinhentos metros. Aí, o meu pai perguntou:

“Como é que foi?” Eu falei: “Ah, foi tudo bem. Foi legal e tal. O campo é ruim e tal...”

Eu estava acostumado a jogar em campos melhores, em Ribeirão Preto. “Mas foi bom.”

Para a minha surpresa, logo depois, apareceu um senhor querendo conversar com o meu

pai dizendo que tinha visto eu jogar e que se eu poderia fazer um teste no profissional

desse time, o São José, que estava começando. O meu pai disse que não, que não era

isso. Eu era um garoto de quatorze anos. “Mas ele tem quatorze anos? Nós pensamos

que ele tivesse dezoito, ou vinte.” “Não. Ele tem quatorze anos, eu matriculei ele agora,

ele vai estudar e tal...” Muito bem. Dez dias depois, começou a semana do estudante; e

tinha um torneio, na semana do estudante, de futebol. Eu, mais uma vez, fui convidado

a jogar futebol de salão. Joguei no gol do time que eu estudava - que era um colégio

estadual - e, por coincidência, lá estava sentado o treinador do time profissional do São

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José dos Campos - que era um professor de educação física e que, posteriormente, veio

a ser técnico até do São Paulo – chamava-se Diede Lameiro. Me viu jogar também.

Voltou a me convidar. Eu não tinha interesse nenhum e nem sabia disso, que eu sabia

jogar futebol. Aí, num belo dia, insistiram e insistiram. Está bom. Eu falei: “Eu vou lá.”

Com quatorze anos, eu fui treinar nesse time profissional de quarta divisão. Eles

gostaram, eu fui aprovado, o meu pai teve que assinar um documento e eu me tornei

atleta profissional de futebol; com um metro e oitenta e quatro, com quatorze anos e já

ganhando dinheiro. Ali fiquei durante um tempo muito grande; e não tive mais a

oportunidade de regressar a Ribeirão Preto, que tanto gostava e deixei tantos amigos

jogando no juvenil do Comercial e no infantil do Comercial. Passaram-se quatro para

cinco anos e o time acabou por falta de dinheiro; mas, em compensação, ele ganhou a

quarta divisão, a terceira divisão, a segunda divisão e nós subimos todos juntos. Eu

passei a ser um profissional. Aí, eu falei: “Quer saber de uma coisa? Eu vou até

Ribeirão Preto conversar com os meus amigos.” Eu fui lá, conversei com eles, fiz um

teste de novo - no Comercial - fui aprovado, me transferi para o Comercial... Já estava

fazendo o tiro de guerra. Estudava à noite e fazia o tiro de guerra de manhã. Estudava à

noite, treinava à tarde e fiquei um ano lá. Nesse um ano, eu fui observado; e aí sim, o

grande time Palmeiras me contratou de experiência por três meses. Após esses três

meses, eu fui aprovado e comprado o meu passe, na época. Aí, eu fiquei definitivamente

com vínculo ao Palmeiras, fui convocado à Seleção Brasileira e aí chegou 1970, que foi

a minha primeira Copa. Então, se nós observarmos, de 1970 a 1964 são seis anos num

garoto de quatorze anos. Então, aconteceu muita coisa sem eu esperar. Depois não,

depois foi planejado.

B.B. – [riso] E a família, então, pouco a pouco, foi se rendendo e aceitando a ideia de

que...

E.L. – Lógico. Exatamente. A família foi entendendo que eu podia estar presente nas

duas coisas. Ou melhor, não é a família que foi entendendo, eu que fui entendendo que

era possível sim trabalhar jogando futebol, e como era possível estudar. Não é que nós

tínhamos uma competição dentro da minha casa... Porque os meus dois irmãos já

estudavam para serem médicos, e já, naquela época, acabaram entrando na medicina; e

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eu tinha que correr atrás dos meus irmãos - eu sou o caçula da família. Aí eu, já em São

José dos Campos, acabei – depois que estava no tiro de guerra -, terminei os estudos e

passei para a faculdade. Eu tive a oportunidade de ingressar na faculdade e mostrar à

minha família que eu, também, poderia e iria terminar - coisa que aconteceu. Então,

harmonia total. O meu pai, naquela oportunidade, como todo bom italiano, não é? Ele

não torcia para o Palmeiras, ele torcia para o Palestra Itália. Então, ele era um palestrino

e falava dos goleiros do Palmeiras com uma paixão, assim, louca; e, sem querer, ele viu

o filho dele competindo para ser o goleiro do Palmeiras. Isso foi muito bom e acalmou

muito o meu pai, também, sabe? [risos] E começou a me dar um lastro de

responsabilidade profissional - começou a me dar um lastro financeiramente – eu

comecei a ganhar dinheiro muito cedo. Não é esse monte de dinheiro que ganham agora

não, mas eu ganhei dinheiro muito cedo. O que aconteceu: eu me tornei adulto muito

precoce, eu me tornei responsável muito precoce e muito precoce, também, eu fui a uma

Copa do Mundo que, sem esperar, nós fomos campeões. E, aí, o mundo veio abaixo

para mim. Só que eu estava no andar de cima e pude contemplar de uma maneira muito

pessoal, muito legal - mas com raciocínio muito apurado também daquilo que eu tirei de

proveito da Copa do Mundo de 70 - daquilo que ela poderia me projetar para os

próximos anos, e não ficar – eu diria – tão envaidecido -, tão bobo e tão metido por ter

alcançado precocemente um reconhecimento popular. Então, o começo da minha

carreira foi muito diferente do que muita gente pensa.

B.B. – Então, quando você chega ao Palmeiras, a sua ligação – familiarmente – já era de

um torcedor palmeirense.

E.L. – É.

B.B. – Em razão de o seu pai ser palestrino.

E.L. – E, aí, me causou um problema: o meu pai era tão palestrino... Só que ele estava -

eu diria - em standy by. Ele estava adormecido e não torcia mais porque nós éramos de

Ribeirão Preto, depois passamos para São José e ele perdeu um pouquinho o vínculo

como torcedor do Palmeiras. Quando ele viu o filho dele nessas condições, aquilo

voltou tudo dentro dele. E eu me lembro das lições que ele me dava falando do grande

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goleiro, que ele viu jogar, do Palmeiras, que era - e está vivo até hoje, talvez vocês já até

entrevistaram - Oberdan Cattani. Hoje, ele está com noventa e dois anos e foi um

excelente goleiro. E ele contava que ele era magnífico, que pegava a bola com uma mão

só e tudo; e eu brincava com o meu pai dizendo que, se ele pegasse a bola com uma mão

só, ele era fraco. Ele tinha que pegar era com as duas. Aí, procurando brincar com o

meu pai e tudo. A identificação que você falou é uma verdade, e essa identificação

perdurou por quase quinze anos. Se contarmos os anos que eu trabalhei no Palmeiras

como atleta e como treinador, eu vou completar quinze anos. E fiquei vinte e quatro

anos como atleta, vinte e poucos como treinador e tenho quarenta e sete anos de futebol.

Então, eu sou filho do futebol. Eu sou um produto do meio. Então, é bom a gente estar

sempre sabedor disso e agradecer, porque é muita gente que conquista e esquece de

agradecer. Eu não reclamo de nada, eu só agradeço.

B.B. – Tanto em Ribeirão Preto quanto em São José dos Campos, como é que era essa

relação de um torcedor? Você acompanhava o futebol do Campeonato Paulista e a

própria Seleção Brasileira como? Rádio, jornal... Como é que era essa ligação com a

capital?

E.L. – Na época, quase televisão não tinha, não é? E a televisão veio um pouco depois.

Eu me lembro que era garotinho e torcia para o Comercial; e nós tínhamos uma

turminha de esquina, de bairro, em que nós íamos aos estádios – uns cinco, ou seis,

juntos pela rua, andando e pulando isso, ou pulando aquilo. Quando nós chegávamos no

estádio, nós pulávamos o muro para assistir o jogo de futebol. E, quando terminava o

jogo de futebol, nós pulávamos o alambrado para andarmos ao lado dos atletas. Não

para chateá-los, aquilo para a gente era um ídolo incontestável, não é? Então, nós

esperávamos com ansiedade para irmos ao estádio no domingo. Voltávamos

comentando o jogo. Antes, você podia andar com um torcedor do outro time

normalmente, e nós tínhamos isso dentro da nossa turminha. Íamos e voltávamos a pé.

Andávamos quilômetros, quilômetros e não sentíamos nada, de tanta que era a nossa

alegria juvenil, não é? E, nesse meio de tudo, eu posso dizer o seguinte: eu passei a fase

de adolescente muito rápido e sem notar. Então, eu passei a ser sério muito rápido. O

pessoal fala que eu sou bravo e sério até hoje. Eu não sou nada disso. Quando eu estou

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trabalhando, é que tem que ser, entendeu? Então, Ribeirão Preto, para mim, vai ser – e

sempre será – o meu porto seguro, quando eu voltei ao futebol. E o mais importante

disso tudo é que eu não sabia que isto era possível, eu me tornar um atleta profissional.

O tempo passou, eu ainda estou presente – ainda sou treinador de futebol – e o

relacionamento que eu tenho é muito grande. A Seleção Brasileira, uma grande equipe

que passou a ser motivo comum para mim; e isso é de alta responsabilidade. Na medida

em que você começa a fazer um fã-clube, você começa a penetrar nos lares, não é? A

fazer parte da conversa do almoço, do jantar e do café da manhã de uma família. E,

assim, você tem que se preocupar. Isso eu fiz e faço até hoje.

Bruno Romano - Leão, em Ribeirão e, depois, em São José, como você se descobriu

goleiro? Você jogou primeiro em outras posições? Como você acabou gostando do gol?

E.L. – Verdade. Na realidade, eu não me descobri goleiro não, sabe? Eu acho que eles

que me descobriram. Porque eu era um garoto forte e chutava muito forte... Para você

ver como são as coisas: dificilmente eu jogava no gol. Como eu chutava forte, eu já

jogava no meio dos adultos; e estava sempre jogando no ataque, driblando e correndo

porque tinha uma saúde a mais. Jogava com a turma de medicina lá, os estudantes e os

professores. Mas o gol me fascinou porque o esporte futebol é um esporte coletivo, não

adianta você ser uma estrela solitária. É um esporte coletivo. Então, você tem regras

para administrar. E, dentro daquele esporte coletivo, eu via no goleiro uma coisa

diferenciada, uma individualidade maravilha. Eu falei: “Pô, está aí uma coisa que é

legal. Dentro do esporte coletivo, onde todo mundo chuta, ele pega com a mão.”

Correto? “Onde todo mundo faz o gol, ele está ali para não deixar.” Então, eu percebi

que o goleiro podia fazer sucesso, também, e ser notado, porque ele era tudo ao

contrário do que todo mundo pensava. Você vai ao estádio para ver o êxtase do gol, eu

ia trabalhar no estádio contra o êxtase do futebol. Quer dizer, eu era o anti, não é? E,

então, eu achei aquilo legal. Todo mundo usava a mesma cor de camisa, o goleiro usava

a camisa diferente; e aquilo me fascinou. Todo mundo... Aí, eu era uma pessoa, assim,

um pouco mais elástica, sabe? Mais arrojada, mais agressiva e de maior personalidade;

e percebi que, para comandar aquilo ali, você tinha que ter brilho próprio. E, aí, eu

comecei a trabalhar esse outro meu lado sozinho. Mesmo autodidata, porque

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antigamente não tinha o treinador de goleiro. Não tinha nada disso, sabe? Antes, não

tinha uma série de coisas que tem hoje. Então, voltando à sua pergunta, acabei me

descobrindo por isso; e fui para o gol. E me senti perfeitamente à vontade no gol. Foi

isso. Achava só que era um pouquinho... Muita ingratidão, não é? Naquilo que

acontecia com os goleiros; e até hoje. É muito difícil, você tem que trabalhar muito.

Mas, como eu gostava, eu não me arrependo.

B.R. – No Comercial, e no futebol paulista em geral, você tinha referências e ídolos?

E.L. – Tinha. Tinha referências. Como toda criança tem a referência. Só que a minha

referência esbarrava, mais ou menos, na distância. Entendeu? Por exemplo, futebol

carioca, eu só via o futebol carioca quando ia ao cinema. O Niemayer fazia aquelas – eu

diria - propagandas antes de começar o filme e, então, eu via o que era o Maracanã

cheio. São Paulo, eu nem conhecia São Paulo. Então, os meus maiores ídolos eram os

ídolos locais. Significa Comercial e Botafogo. Na época, eu torcia para o Comercial e

eu não poderia gostar... Deixaria de gostar de alguns jogadores do Botafogo, também. E

eu gostei de um goleiro do Botafogo que, para mim, era um marco assim de jogador

regular, e de estilo, que chamava Machado e jogava no Botafogo; e eu era torcedor do

Comercial. Então, eu procurava vê-lo e procurava imitá-lo, entendeu? Ele nem sabe

disso. [risos] Procurava imitá-lo. E isso foi legal porque as coincidências estão, aí, para

serem faladas. Aí, eu fui estudar num colégio lá, em Ribeirão Preto, que tinha uma...

Não era governanta que falava, era uma mulher que tomava conta do...

B.R. – Inspetora.

E.L. – Inspetora. É isso aí. Para você ver que eu sou mais antigo, não é? [risos] A

inspetora, por incrível que pareça, era a mulher do Machado – do goleiro Machado. Eu

falei: “Puxa vida.” Então, eu estava sempre perto dela e ela não sabia o porquê. Não era

para olhá-la de perto não. [risos] Era por causa do marido dela, porque eu era fã do

marido dela e tudo. Então, os meus ídolos do passado foram aqueles que estavam mais

próximos, não é? E, depois, já na Copa do Mundo – aí tem um lastro muito grande, a

convivência com todos os grandes goleiros mundiais – eu me tornei amigo deles e, aí,

virou tudo igual.

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B.B. – E acompanhando esses jogos, ainda em Ribeirão e São José, havia jogos do

Palmeiras que vocês iam, ou não importa qual o jogo?

E.L. – Não. De acordo com a possibilidade, o meu pai permitia nós assistirmos aos

jogos ou não. Agora, por exemplo, no São José, era tão próximo a São Paulo, não é?

Mas o meu pai não permitia que eu assistisse jogo, em São Paulo, que eu viesse sozinho

com os amigos e tal. Então, eu não tinha muito acesso. O meu acesso era através de

rádio, o meu acesso era através de jornal e escutar falar, entendeu? Os grandes ídolos de

São Paulo era um negócio para mim, assim, indescritível - eu poder olhar um jornal com

uma fotografia deles. Aquilo me cativou muito. Aquilo me levou ao inconsciente de,

várias vezes, você sonhar com alguma coisa. Para você ver como a vida – e eu volto a

falar – vai tendo uma coincidência. Já quando eu estava adulto, jogando no Comercial

lá, em Ribeirão Preto, o meu primo falou: “Olha, você não quer ir a São Paulo? Porque

você não está trabalhando hoje, de domingo. Nós vamos assistir a um jogo da Seleção

Brasileira aqui, no Pacaembu...” Eu lembrei agora. Aqui, no Pacaembu. Ia jogar a

Seleção Brasileira contra a Rússia; e o goleiro da Rússia se chamava Yashin, que era o

Aranha Negra... O negro não sei o quê? Porque ele se vestia todo de negro. Era um

branco danado, mas se vestia todo de negro. Então, virou uma aranha negra. Eu até

pensei que ele fosse negro. [risos] Na Rússia é meio difícil, não é? [risos] Mas, então,

eu falei: “Ah, com imenso prazer. Assim eu vejo o Aranha Negra jogar.” Ele já estava

quase que se despedindo, não é? Aí, nós viemos, sentamos na arquibancada, viemos de

carro e voltávamos de carro, não é? Eu peguei carona, é lógico. Aí, eu vi o jogo. O

Brasil ganhou, eu acho que de dois, o Yashin tomou dois frangos. [risos] Já estava um

pouco mais velho e foi uma decepção para mim, não é? Mas eu já sabia que aquilo

poderia acontecer pela carreira dele. Ele foi muita coisa e eu tinha que ter reverenciado

ele mesmo. E eu, sozinho, pensando aqui comigo na arquibancada, falei: “Aquele cara

lá, goleiro do Brasil, podia machucar, não é? Aí, o cara fala assim: ‘Olha, quem sabe

jogar no gol, na arquibancada, desce aqui e vem jogar.’” Você acredita que, uma vez, eu

pensei isso? “Eu vou jogar nesse gol, aí, a qualquer hora.” Conclusão: eu cansei de

jogar no gol. [risos] Eu cansei de jogar no gol da Seleção Brasileira. Então, é por isso

que eu falo que eu fui feliz. E quando eu digo que eu não sei mais jogar futebol, os caras

brigam comigo. “Como não sabe jogar?” Eu não sei. Eu soube jogar futebol até o dia

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em que eu parei. No dia seguinte, eu não sabia mais. Porque eu fiz as coisas com tanto

carinho e com tanto empenho, que eu não sinto saudades. Porque tudo aquilo que eu fiz

me deu muita alegria. Então, eu não volto para trás para jogar futebol. Eu não sou

veterano. Eu costumo dizer a eles, quando me convidam: “Olha, eu sou ex-atleta.” Ex é

ex. Não é veterano. Veterano continua jogando no veterano e tal. Até, na semana

passada, eu encontrei o Ademir da Guia, “poxa, você precisa jogar com a gente.” Eu

falei: “Fazer o quê? Jogar futebol? Eu não sei mais, Ademir.” Ele começou a dar risadas

também. Então, é mais ou menos por aí que foi se desenrolando as coincidências na

minha vida, no início da carreira.

B.B. – Você falou de Seleção Brasileira. Lembrança sua mais remota de Copa do

Mundo. Em 1950, você tinha um ano e não pode lembrar, mas como é que você...

E.L. – Não sei. Eu comecei a entender Copa do Mundo, eu acho que em 1966. Porque

eu me lembro que o meu irmão mais velho, ele ia ao cinema para não escutar o jogo - de

medo de ver o Brasil perder. Então, ele só ficava sabendo o resultado quando saísse do

cinema. E eu via aquele movimento em casa lá, em Ribeirão Preto, isso em 66. Então,

pouco significava para mim. Gozado, em 1970, eu já estava na Copa. Para você ver

como a coisa correu, assim, o estopim foi muito pequeno, não é? Então, a gente tinha

que correr mais rápido. Em 1970, o que eu pude ser? Eu posso dizer para vocês que eu

caí do céu. Foi a primeira vez que a Seleção Brasileira levou três goleiros. Por que levou

três goleiros? Porque existia uma igualdade, e eu era o mais jovem. Era o Ado o

segundo, junto comigo, e o Félix que era o mais velho - já pedindo para parar naquela

época. Então, nós fomos convocados – eu, na classificatória... Eu e o Ado fomos

convocados. Eles convocaram todos. O treinador foi trocado. Foi um jornalista que era

o Saldanha e ele convocou dois garotos jovens. Depois, tiraram ele, colocaram o

Zagallo e o Zagallo trouxe o Félix. Nós deixamos de ser titular e começou a jogar o

Félix, porque tinha mais experiência e era mais velho. Isso não quer dizer que seja o

melhor. E acabou jogando ele, nós fomos campeões e deu tudo certo. Mas o mais

importante que eu notei é que foi um aprendizado para mim muito intenso, porque eu

observava tudo com um sabor de quero mais, entendeu? E a coisa mais bonita que um

jovem possa ter é o sabor do quero mais. Então, estava sempre buscando e sempre se...

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Se pudesse dormir com uma bola do meu lado, eu dormiria. E, aí, eu comecei a conviver

com os grandes craques, inclusive o Pelé no mesmo quarto que eu e aquele negócio

todo. Escutando aquele negrão cantar - tocar violão e cantar de noite - ruim pra

caramba. [risos] Mas estava tudo dentro do contexto, não é? E eu percebi que, quando a

Copa do Mundo terminasse, o gol do Brasil estaria vago - porque aquele que jogou não

voltaria à próxima Copa. Então, aí eu falei: “Eu tenho que me empenhar cada vez mais.”

E fizemos até, eu e o Ado, um pacto assim meio infantil, na época. Eu falei assim:

“Olha, nós dois, hein. Vamos ver quem será o próximo titular da próxima Copa.” Legal,

legal e legal. Eu voltei para o Palmeiras, batalhei, batalhei e batalhei; e acabei na Copa

de 74 de novo. Já sem o Ado ao meu lado - que era meu amigo - porque acabou ficando,

por circunstância particular, no meio do caminho. Jogava numa grande equipe que era o

Corinthians, era um grande goleiro, dez vezes mais simpático do que eu e com um

carisma, fora do campo, melhor do que eu – pelo menos naquela época, não é? Mas

ficou pelo caminho por algumas coisas que aconteceram. Se iludiu um pouco, não é? E

eu tinha, um pouco, o meu pé mais no chão; e um porto seguro, que era a minha família,

e que me dava um lastro de tranquilidade. Então, foi assim que eu ingressei no mundo

da Seleção Brasileira, no mundo da competição Copa do Mundo – que é alguma coisa

maravilhosa. Imagina, um garoto já – tão rápido – vai a uma Copa do Mundo, torna-se

campeão, volta na outra já como titular e, às vezes, como capitão. Em 1972, teve a

Mini-Copa no Brasil, eu já era titular da Seleção Brasileira e nós ganhamos. Aquilo que,

para mim, foi um diferencial maravilhoso, mas eu não posso esquecer e não vou

esquecer. Por isso que eu falo que é arquivo vivo. Como eu ainda sou treinador, eu vou

passando para as pessoas isso, entendeu? Tem gente que não sabe que existe isso, não

é? Não sabe nem que existe dificuldade no futebol.

B.R. – Você falou da sua família, só voltando um pouquinho, como foi o primeiro

contrato com o São José? Você mencionou que o seu pai teve que assinar. Já que você

falou da sua família, eu queria saber se houve muita resistência, ou você teve que fazer a

cabeça do seu pai.

E.L. – É. Na realidade, antigamente, nenhum menor de idade poderia assinar contrato

profissional de futebol sem a autorização do pai e da mãe. Na época, com quatorze anos,

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Transcrição                                                                                                      

 

  13  

eu não era nem criança, eu era baby. Só que era um bebezão grande, não é? Então,

como eu fui aprovado, me ofereceram um dinheiro por mês ainda para jogar futebol.

“Pô, tudo que eu gostava e ainda vai me pagar? [risos] Ótimo.” Aí, eu falei com o meu

pai, o meu pai entendeu a situação, acompanhava de perto, não é? Por causa que,

antigamente, o atleta profissional de futebol, no Brasil, era muito mal visto. Muito mal

visto mesmo. Então, o garotinho se metendo nesse meio, era perigoso. O meu pai

acompanhava de perto, assinou e... Era de ano em ano. Todo ano, você renovava. Eu

percebi que, todo ano, eles me davam um aumento. “Eu vou fazer de novo o que eu

gosto e vão me dar aumento de novo?” E foi isso e isso. Aí, quando chegou no quinto

ano, eles não me deram aumento, me deram o passe porque eles não tinham como pagar

– o time faliu. Então, eu fui aprendendo o que era a vida. Eu não parei de estudar. Eu

era um garoto que não andava muito nas concentrações de terceira, ou quarta divisão.

Eu falei: “Só isso que eu não faço. Eu durmo na minha casa porque a minha cama, lá, é

melhor e eu não vou para lugar nenhum. Eu vou comer bem. Então, eu fico na minha

casa.” Já tinha a namoradinha, naquela época, e tudo. Então, eu vivia uma vida do

interior, vivia uma vida saudável; e, já saudável, o exercício fazia parte. Então, eu

aprendi muito. Obrigado para quem me ensinou.

B.B. – Você falou isso do jogador ser mal visto. Mal visto porque era associado à

malandragem e as origens sociais que eram saídas das classes mais pobres...

E.L. – Jogador de futebol era sinônimo de mau elemento. De mau caráter, mau

elemento, bandido, safado. Se você passasse na frente de uma casa e uma garotinha

bonitinha te olhasse, a mãe fechava a porta. Hoje não. Eles abrem a porta, não é?

[inaudível] Ou, senão, escancaram a porta. [risos] Enfim, isso eu passei sim. Sabe? Mas,

com o tempo, vai vendo quem você é. Eu estava chegando da cidade, não é?

Conheceram os meus pais; eu sempre ia para a escola direitinho; jogava. Às vezes, nós

íamos jogar num outro interior mais forte ainda, nós íamos numa Kombi, o nosso

treinador dirigia a Kombi, e todo mundo – quase meio time inteiro dentro da Kombi

[risos] - almoçávamos rápido e entrávamos em campo. Aí, nós ganhávamos os jogos, ou

perdíamos, saía briga e eu era o único que podia tomar banho, por a roupa e sair. Porque

eles jamais poderiam imaginar que aquele molequinho que estava saindo era um atleta,

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Transcrição                                                                                                      

 

  14  

que os caras queriam discutir, nem nada. Muitas vezes, eu via uma briga, ficava de lado

olhando - do lado da torcida brava - e nem percebia que eu tinha acabado de jogar ali.

De tão jovem que eu era. Então, essas coisas de jogador de futebol no passado, o

preconceito... Demais. Individual, familiar, profissional, escolar. Então, era um

problema.. Eu só fiquei muito satisfeito um dia que eu estava... Eu não sei se era na

segunda série. Eu faltei uma prova e o professor era bravo pra caramba, o professor de

português me deu zero. Foi a primeira vez que eu questionei o professor. Eu falei: “Por

que o senhor está me dando zero?” “Porque o senhor faltou na prova.” Eu falei: “O

senhor sabe os motivos que eu faltei na prova?” “Não. Não sei. Se você me falar, eu

posso saber.” Eu falei. “Legal. Quando alguém representa alguma coisa superior a nós,

qual é a escala de perdão?” Ele falou: “Superior a nós, total.” Eu falei: “Pois é. Eu fui

representar a cidade de São José dos Campos e tive que faltar a aula.” Ele falou: “O que

você faz?” Eu falei: “Eu jogo futebol.” Ele nem sabia [riso] “Você está de brincadeira.”

Eu falei: “Não. Eu jogo futebol profissional assim, assim e assim.” Ele falou: “Sabe que

você tem razão. Você não vai levar mais zero não. Você estuda porque, na semana

quem vem, você vai fazer.” Então, foi a primeira vez que o futebol começou a

compensar, entendeu? Mas esses preconceitos tinham muito... Era muito grave.

B.R. – E como foi disputar essas séries inferiores, não é? Porque eu imagino que as

condições de treinamento e material esportivo, sobretudo o goleiro...

E.L. – Era a pior coisa do mundo e a maior maravilha que alguém pode passar. O dia-a-

dia não tinha limite. A semana e o fim de semana não tinham rotina. Era simplesmente

maravilhoso. Eu me divertia. Me divertia mesmo. Eu era CDF, caxias pra caramba para

tudo, era rabugento; mas era tão gostoso, era tão sorriso... Conheci o interior todo de

São Paulo. [riso] Conheci pessoas que eu olhava – como tinham o preconceito que eu te

falei... Eu era, às vezes, tão inocente que eu via coisas acontecerem dentro do vestiário

que eu ia saber que estava acontecendo depois que eu perguntava para o meu irmão -

que já estudava medicina - para ele me contar o que era. Então, você imagina como era

o ambiente. Eu, um garoto de quatorze anos, “pô, o que é isso? O que esse cara está

tomando? O que esse cara está fazendo? O que esse cara está massageando? O que esse

cara está introduzindo? O que é?” Entendeu? Então, isso, para mim, foi um mundo à

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Transcrição                                                                                                      

 

  15  

parte. Por isso que eu te falei que é maravilhoso. A gente dava para passar por cima

disso aí, relevar tudo isso aí, por quê? Porque eu sabia que lá, na frente, tinha algo mais.

O Shagri-lá estava lá. O duro era chegar até lá. Com bastante empenho,você chegava.

B.R. – Mas eu imagino que o goleiro sofria mais. Porque, naquela época, você usava

joelheira, cotoveleira.

E.L. – [risos] É verdade. Sofria no tempo de chuva, não é? Porque aquilo encharcava de

água pra caramba e ficava pesado. Mas tudo isso, para mim, fazia parte. Não tinha

conversa e nada me distraía, sabe? Nada me deixava raivoso. Nada, nada e nada. Eu

era... Ia cantando, voltava cantando e estava tudo bem. Se não tinha arroz, vai o pão

mesmo. Eu não sei, eu nunca fui de uma exigência maior com aquele que não podia dar.

A exigência maior sempre foi comigo porque eu acho o seguinte: espere um pouquinho.

O outro, numa quarta divisão... Aqui tem ex-atleta de time grande com trinta, ou

quarenta anos de idade. Você tem quatorze. Você tem que trabalhar para ajudá-lo. Ele

não pode mais te ajudar. Ele pode te ajudar com palavras, mas não com o espírito. Com

a personalidade, não com o físico. O físico ajudo eu. Então, para mim, eu tinha essa

compensação. Eu volto a falar: para mim, era tudo maravilha.

B.B. – Você falou bastante do seu pai. E sua mãe, como ela via isso?

E.L. – Via bem. [risos] Minha mãe era uma italiana maravilhosa, uma mulher loira, de

olhos azuis, maravilhosa, apaixonada pelo meu pai e vice-versa. Foi um exemplo de

situação, e esse exemplo perdura até hoje apesar de não serem vivos. Porque, você vê,

eu sou casado há trinta e cinco anos – namorei sete – com a mesma mulher. Hoje em

dia, é difícil acontecer. Eu via o exemplo dentro da minha casa, entendeu? Nós

esperávamos o meu pai chegar para agradecer à minha mãe. Os meus irmãos... Enfim, a

minha mãe era aquela italiana que tinha que fazer de novo porque está difícil hoje.

B.B. – Diante desse preconceito em relação ao futebol, ela também...

E.L. – Mas ela não tinha preconceito. Preconceito que todo mundo tinha em relação ao

futebol, ela não tinha em relação ao filhinho dela. O caçulinha dela, não é? Mas eu

brinco que o protegido era o do meio. O caçulinha não era protegido em casa. Mas

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Transcrição                                                                                                      

 

  16  

sempre é protegido todos, não é? A mãe tem o amor para todos igualmente; e a minha

mãe sempre tinha um colo amigo, uma palavra de esperança. O meu pai sério, mas

honestíssimo. Honestíssimo, o meu pai. Isso fez um bem para mim até hoje que até o

pessoal fala: “O Leão pode ser rabugento, raivoso, bravo, mas a honestidade dele é

incontestável à condição de trabalho.” É isso o que eu gosto de ouvir; e é isso o que eu

aprendi em casa e vi no meu lar. Eu tinha um lar feliz.

B.B. – E esse momento de início de profissionalização, de sair de Ribeirão Preto, de se

desgarrar da família e vir para a capital, quando você foi contratado pelo Palmeiras,

como é que foi esse momento inicial?

E.L. - Na realidade, o primeiro hiato criado em termos de família, foi quando eu saí de

São José e voltei a Ribeirão Preto. Mas foi por um aninho só. Logo o Palmeiras me

chamou e os meus pais já moravam em São Paulo. Então, nós nos reencontramos e, aí,

eu fiquei até “n” e “n”, quando eu voltei ao Rio para jogar no Vasco. Mas foi tudo

tranquilo, foi uma – eu diria – passagem de década, de ciclo e de momento tranquilo. Vi

a felicidade estampada nos meus pais através dos três filhos. Eles tinham os três filhos

formados, os dois filhos médicos. Eu só sinto que eu não pude ir ao casamento do meu

irmão e não pude ir à formatura do meu irmão porque eu estava trabalhando jogando. E

ali, em primeiro lugar, naquela circunstância de momento e final de ano, era sempre o

trabalho. Porque, felizmente, o Palmeiras – em que eu jogava, naquela época – sempre

estava disputando título e era sempre final do ano. Depois, viriam as férias. Férias eram

para descansar ou, se não, para casar – porque o jogador de futebol só casava nas férias

antigamente. [risos]

B.R. – E como foi que o Palmeiras te descobriu mais especificamente? Porque, salvo o

engano, o Valdir Joaquim de Moraes estava terminando a carreira e...

E.L. – Já tinha terminado.

B.R. – Já tinha terminado.

E.L. – A realidade é o seguinte: aconteceu sem querer, também. [riso] Porque eu estava

no Comercial e um ex-atleta do Palmeiras chamado Valdemar Carabina, que foi

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Transcrição                                                                                                      

 

  17  

treinador - e, agora, já falecido - jogava no Comercial. Depois que eu estava no

Comercial, há sei meses, ele parou e se tornou o treinador; e ele via em mim uma pessoa

muito dedicada. E, naquela oportunidade, o titular – que era um goleiro muito bom –

estava suspenso. Aí, eu fiz três jogos amistosos e uma partida oficial. E ele era o

treinador. Graças a Deus, eu fui bem. Aí, no começo do ano, o Palmeiras... Esse

Valdemar Carabina era um ex-atleta do Palmeiras. O Valdemar Carabina ficou sabendo

que a equipe do Palmeiras precisava de mais um goleiro para preencher um espaço

porque o campeonato ia começar. Ele falou assim: “Olha, tem um goleiro lá, em

Ribeirão Preto.” Eles falaram: “Não. Mas esse goleiro de Ribeirão Preto está suspenso.”

Ele falou: “Não. Não é esse não. É um moleque que tem, lá, assim, assim e assim. Já

está mostrando condição, e eu acho que vocês deviam fazer um teste com ele.” Eles

acreditaram no Valdemar Carabina e eu peguei... Estava dormindo... Porque eu morava

num quarto de uma família lá – eu e mais dois jogadores tranquilos. Porque perceberam

que nós éramos direitos e nos chamaram para que nós morássemos dentro da casa deles

alugando um quarto. Aí, era um domingo, eu não tinha o que fazer, dormia até um

pouco mais tarde e acordei com um barulho na minha porta. Quando eu abri, para a

surpresa minha, era o meu pai. Eu falei: “Mas o que aconteceu? O que o senhor está

fazendo aqui?” “Você não sabe não é?” Eu falei: “Não. Eu fui dormir cedo ontem e não

sei. O que aconteceu?” Ele falou: “Não. O time está atrás de você porque você foi

contratado pelo Palmeiras. Eu tenho que te levar para São Paulo e tal.” Eu falei: “Ah,

mas eu não vou. Eu acho que não estou querendo ir não.” “Não e não sei o quê...”

Enfim, acabei vindo. Então, eu devo a uma indicação do Valdemar Carabina que,

depois, nós nos tornamos grandes amigos. Mais uma vez: você está no lugar certo, na

hora certa e a dedicação certa. Porque, se eu fosse relapso, ficasse, lá, estudando, no

Comercial, enganando, comendo e dormindo, ele não ia me indicar. Poderia ter indicado

o outro. Ele passou por cima do outro e indicou a mim. Então, isso eu agradeço

também.

B.B. – Esse momento inicial, no Palmeiras, de jogar num grande clube, de morar em

São Paulo, torcida, apesar de todas as diferenças em relação à outra...

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Transcrição                                                                                                      

 

  18  

E.L. – Tudo tem história, não é? Tudo tem história. Eu cheguei, no Palmeiras, [riso]...

Eu dou risada porque eu estou lembrando. No primeiro dia, um frio danado em São

Paulo e eu falei: “ Mas que cidade fria é essa aqui? O que eu vim fazer aqui?” Aí, fui

dormir na concentração onde moravam os jogadores do juvenil. Tinha um senhor que já

morreu, lá – até boa gente... Depois eu me tornei o Leão, não é? Aí, ele estava sempre

amigo comigo, não é? [riso] Eu fui dormir, ele me deu um lençol e me deu um cobertor.

“Ah, porque está frio. Tome um cobertor.” Eu não dormi a noite toda porque o cobertor

estava cheio de pulgas. [risos] No outro dia, eu tive que treinar, não é? Eu falei assim:

“Não perca por esperar.” Ele fazia de propósito como se fosse, assim, um castigo ou

um...

B.R. – Um batismo.

E.L. – É. Um batismo de boas vindas. Boas vindas. [risos] Ou frio, ou com pulgas. Aí,

eu cheguei e comecei a treinar, não é? E tinha um goleiro titular. Esse goleiro, logo no

primeiro mês em que eu estava ali, ele se acidentou profissionalmente, não pôde jogar e

o técnico, que era um argentino na época, me colocou. Aí, eu tinha que justificar rápido

que aquilo ia ser verdade, entendeu? Aí, começamos a conversar e começamos a

entender o que era a responsabilidade. Só que eu morava muito longe do Parque

Antártica, até do outro lado da cidade, que era o Cambuci. Eu tomava dois ônibus para

treinar, e andava ainda da Praça da Sé até a Praça Patriarca para pegar os ônibus. Nesse

trajeto, a gente... Eu era muito garoto, não é? Então, a gente só fazia bobagem. Eu e um

amiguinho meu que jogava de centroavante chamado China. Era um japonesinho, mas o

apelido dele era China, não é? [risos] O japonesinho jogava bem. Ele se chamava

Ademir Ueta, mora em Catanduva; um cara excepcional. E nós íamos para a cidade,

andávamos e chegávamos numa padaria, ou confeitaria... Como nós éramos

ajeitadinhos, as meninas davam bolacha e doce para a gente. [risos] Tudo de graça. E a

gente pegava um ônibus carregado de gente com a maior satisfação. Por isso que eu te

falo que a alegria estava presente. Então, você... Esse lado fazia parte da beleza do

imaginário. Era surreal, quase, entendeu? Então, eu, todo dia, saía cedo; pegava o

ônibus; vinha até a Praça da Sé; andava a pé até a Praça Patriarca; pegava o Patriarca;

descia no Palmeiras; treinava; fazia tudo isso de volta; e chegava em casa feliz. Não

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Transcrição                                                                                                      

 

  19  

tinha tempo para mais nada. Só que, às vezes, quando... Aí, eu já comecei a estudar,

terminar aqui o colégio – aqui, em São Paulo – e ia para o colégio também. Então, eu

não tinha tempo, absolutamente, para nada.

B.R. – E, logo nesse primeiro ano, você já foi campeão do Roberto Gomes Pedrosa, não

é?

E.L. – É. Na realidade, o Palmeiras foi campeão, não é? Eu fazia parte do Palmeiras,

não é? [riso]

B.R. – Sim.

E.L. – Eu tive uma pequena participação que eles achavam o bastante. Porque um

garoto, sem querer, já está ganhando essas coisas, aí... Eu não me sentia assim, sabe? Eu

andava na rua e os caras nem me conheciam; e se eu falasse que era o Leão, eles não

iriam acreditar, também. “É um moleque, aí, e não sei o quê.” E, para mim, isso era

ótimo, sem saber quem eu era; eu passeando; demonstrando e conhecendo a cidade de

São Paulo; eu passei a respeitar o frio; a garoa que, antigamente, tinha; a neblina. Eu

fiquei impressionado com os ônibus elétricos que, na época, em Ribeirão Preto não

tinha. [risos] Enfim, eu era um caipira na cidade de Ribeirão Preto. Só que é um caipira

que deu certo muito cedo e com muitos agradecimentos a todos os que me ensinaram

rapidamente, porque eu tive que crescer muito rápido. Muito rápido.

B.B. – E esse nome, o nome Leão, você já adotou... Você era o goleiro Leão desde

Ribeirão Preto?

E.L. – Não. Na realidade, Leão é o meu sobrenome. Eu me chamo Emerson Leão. E,

como a minha família veio da Itália, na realidade, seria Leoni. Mas tinha aquele

problema, um problema de guerra, e metade da família passou a se chamar Leão e

metade passou a se chamar Leoni. Eu caí com os Leões, entendeu? Então, não é o nome

que era forte. As circunstâncias é – mais uma vez – que se tornaram fortes. Na

realidade, eu nunca fui chamado de Leão. A maneira de me chamar em casa era Mersão,

que é o diminutivo de Emerson, não é? Mersão. Eu era o caçulinha da casa. Então, Leão

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Transcrição                                                                                                      

 

  20  

não me pesou não, sabe? Só me ajudou na hora de saltar, não é? [risos] Porque um

felino ficou mais fácil. Mas deu tudo certo.

B.B. – Esse momento, entre a convocação para a Seleção e afirmação como o goleiro

titular do Palmeiras, como é que foi? Você conta que foi muito rápido esse processo.

E.L. – É. Tudo aconteceu nesse processo muito rápido, mas aí... O primeiro susto

enorme que eu tomei foi: eu estava numa final do Campeonato Paulista, dois meses no

Palmeiras, e eu quebro a minha perna num jogo contra o São Paulo. Nós estávamos

jogando, no domingo, contra o São Paulo e ganhamos de 1x0. Com cinco minutos para

acabar o jogo, eu virei e quebrei a minha perna. Aí, eu achava que já ia jogar na quarta-

feira contra o Santos, que era um supercampeonato, e eu estava com a perna quebrada.

Eu só fui descobrir que estava com a perna quebrada na terça-feira. Daí, você vê como

mudou o futebol, não é? Aí, na terça-feira, tiraram a radiografia; estava quebrada;

engessaram a minha perna e tudo; e eu assustei. Eu falei: “E agora? Daqui a um mês

vence o meu contrato, os meus três meses de contrato, e se eles não me contratarem?”

Aí, começou aquele dilema, entendeu? Mas eu já era conhecido no meio do futebol - até

o Santos tentou me contratar nessa oportunidade - e o Palmeiras me comprou com a

perna quebrada mesmo para me dar uma segurança. Então, isso é um agradecimento

também. Mas a identificação comigo, assim, não foi muito trabalhosa não, sabe? Essa

circunstância que foi trabalhosa porque eu me preocupei em me recuperar. Então, logo...

Aí, [inaudível] o campeonato, e nós perdemos o campeonato. Perdemos do Santos de

3x1. O goleiro não foi bem, sabe? [risos] Depois, ganhamos do... Substituíram o goleiro

para o próximo jogo, que era o Corinthians, e ganhamos do Corinthians; o Santos

empatou com o São Paulo; perdemos por um ponto e não fomos campeões. Aí, eu falei:

“O que eu vou fazer agora? Vai começar esse Campeonato Brasileiro; eu esperei,

esperei e esperei...” O Palmeiras, antigamente, no começo do ano, saía de excursão à

Europa; e o Palmeiras ia fazer a excursão à Europa. Dois dias antes da excursão, eu tirei

o gesso da perna e o treinador não me levou. Ah, meu Deus. Eu fiquei bravo pra

caramba. Eu falei: “Mas por que você não vai me levar.” “Mas você não pode. Você

tem que fazer a recuperação.” Eu falei: “Não. Eu já estou bom e tal.” Ignorância minha,

não é? Conclusão, eles foram embora para a Europa e eu fiquei. Três dias depois, o

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Transcrição                                                                                                      

 

  21  

misto ia jogar, em Santos, contra a Portuguesa Santista. Eu peguei a minha chuteira,

entrei no ônibus, fiquei sentado e joguei três dias depois. O que eu posso fazer? Aí, o

Palmeiras voltou, parou no Rio, jogou contra um time e perdeu. Chegou em São Paulo:

“Como é que está?” “Não. Olha, o Leão já está bom.” Então, na quarta-feira, eu já

comecei jogando, entendeu? Aquele momento de alta preocupação, de medo e de

indefinição voltou, totalmente, logo que o time titular chegou aqui, porque eu já

ingressei como titular novamente e foi uma beleza. Então, algumas coisas que passam,

justamente para eu estar contando aqui para vocês.

B.B. – E isso de jogar fora de São Paulo, os campeonatos em outras cidades, também...

E.L. – Era tudo novidade, não é? Entrar no Maracanã e entrar nos outros estados. Eu

não conhecia nenhum mesmo. Mas eu pus na cabeça, desde cedo, que tinha uma coisa

que ninguém podia mudar, a sua maneira de ser, as regras do futebol e o tamanho da

bola. A bola que eu vou ter que pegar, ela é igual no Maracanã, no Morumbi, no

Pacaembu, na várzea... Tudo igual. Então, o que eu não podia me assustar era com as

pessoas que estavam atrás dessa bola; e eu procurava fingir que não conhecia. Mas, logo

quando eu voltei da Copa do Mundo de 70, eu entrei na faculdade de educação física,

em Santos – eu e uma turma de atletas de futebol profissional – e, entre eles, estava o

Pelé. Olha o relacionamento que eu já tinha nessa oportunidade. Todos os caras bons do

Santos, do Palmeiras, estavam estudando, todos, juntos comigo. Ou eu estudava junto

com eles. Conclusão: não assustava mais. Nada me assustava. Mesmo porque, ou era –

sei lá – muito cedo ainda para tomar susto, não é? Ou o susto passou por mim muito

rapidamente. As dificuldades maiores, com toda verdade que você possa imaginar,

foram lá, embaixo, no aprendizado. Aqui não. Aqui, nessa boiada aqui, eu já era boi.

Depois eu passei a ser cavaleiro. [risos] Mais ainda e melhor ainda. Como diz o Vandré,

não é? Então, essas coisas que vocês estão me perguntando - e que eu nem lembrava

que estava existindo - acabam retornando na minha cabeça, e isso é bom.

B.R. – E no Palmeiras, como foi a sua primeira convocação? Você foi convocado direto

para a Copa, ou você chegou a ir com a Seleção para alguma classificação?

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Transcrição                                                                                                      

 

  22  

E.L. – Comigo tudo tem novidade, sabe? Tudo é diferente e tudo é... Não é

problemático, mas é conquistado mesmo. Por exemplo, eu fui convocado junto com o

Ado pelo João Saldanha, começamos a treinar na Copa do Mundo e tal. Aí, daqui a

pouco, trocam o treinador, chamam o Zagallo e ele chama mais um goleiro. Três

goleiros. Nunca, nenhuma Seleção tinha levado três goleiros. Sempre dois. Eu falei:

“Um vai cair fora, não é?” Eu falei: “Ih, meu Deus do céu.” Aí, eu e o Ado éramos mais

garotos e mais amizade, não é? O Félix mais velho. Se o treinador chamou o Félix, ele

vai. Eu falava: “Ado, eu ou você vamos cair fora. E agora?” “Não. Precisamos ir os

dois.” “Não pode ir os dois. É só um.” O que aconteceu? Quatro dias antes de a Seleção

embarcar, eu fui chamado pelo treinador. Separadamente, todos me elogiavam mais do

que os outros, mas falavam que eu era o mais novo – eu tinha mais tempo para esperar.

Eu não aceitei muito não, mas o que eu vou fazer? Aí, eles me desconvocaram, eu voltei

para São Paulo e comecei a treinar de novo. Por felicidade minha e infelicidade do meu

amigo, eles estavam já no México fazendo um período de treinamento e um jogador se

machucou.

B.R. – O Rogério?

E.L. – O Rogério. Como eu tinha me dado tão bem nos treinamentos, e o pessoal

gostava, realmente, de mim porque eu era novinho, eles resolveram, ao invés de chamar

um para o lugar do Rogério, como um atacante, e falaram: “Vamos chamar o Leão que,

assim, nós ficamos com três goleiros e garantimos tudo aqui sem problema nenhum.”

Então, eu voltei para a Seleção Brasileira num voo longo para aqui, no México.

Sozinho, sentado numa poltrona, esperando chegar esse tal de México e era longe pra

caramba [risos]. Aí, fomos conversando com alguém... Tinha um jornalista - que já

faleceu também - que veio me entrevistar para saber quem eu era, porque nem ele

mesmo conhecia. Enfim, essa foi a minha vida que me levou até a cidade do México, e

que foi a abertura da Copa, para mim, em 1970; e, depois, o fechamento da minha

carreira, em termos de Copa do Mundo, que foi em 1986, no México também. Então,

você vê que, mais uma vez, coincidência.

[FINAL DA FITA 1]

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Transcrição                                                                                                      

 

  23  

B.B. – Nós estávamos falando dessas lembranças da Copa de 70. Você foi como

terceiro goleiro, e muito jovem, nesse momento inicial de conviver com esses ídolos já

consagrados dessa era de ouro do futebol brasileiro, que culminou com o tri no México.

Como é que foi esse bastidor? Já tinha essa proporção, uma Copa do Mundo de assédio

de imprensa e de torcedor?

E.L. – Tinha assédio de imprensa, de torcedor e de tudo o que você possa imaginar, mas

eu não tinha a consciência definida ainda do que era representar um país em uma Copa

do Mundo e ganhá-la. Então, para mim, eu estava fazendo aquilo o que eu fazia o dia

todo. Para o torcedor, devia ser um negócio, assim, fora de sério, porque todo mundo

estava em êxtase. Eu fazia aquilo naturalmente, entendeu? Porque eu não percebia a

quantidade de responsabilidade que nós tínhamos, ainda. Por isso que foi bom o fruto de

1970 para mim. Aquilo foi um negócio interessante que aconteceu comigo, e eu pude

assimilar e guardar para aproveitar, no futuro, e aproveitei. Então, você vê que... Daqui

a pouco, eu me tornei campeão mundial; daqui a pouco eu estava sentado no Palácio lá,

em Brasília, com o presidente da República; o ministro da Economia me dando um

cheque, como para todos; voamos para São Paulo; andamos em cima de carro de

bombeiros para cima e para baixo; todo mundo em êxtase; parando aqui e recebendo, do

governador do Estado, uma taça - uma réplica de ouro do prefeito da cidade. O

governador era o Abreu Sodré e o prefeito era o Maluf. Eu já recebi um carro, não sabia

nem dirigir e não tinha nem carteira. Aí, me levaram para um tal de Ibirapuera, que hoje

é perto da minha casa, “olha, os carros estão aí e cada carro está com o nome escrito.”

Era um Wolksvagen verde, que eu tinha que entrar nele e sair dirigindo. [risos] Você

acredita? Acredite se quiser. Eu entrei e saí dirigindo. Porque eu tive algumas - entre

aspas - lições numa Kombi que o meu pai tinha [risos] em São José dos Campos, e saí;

parei o carro dentro da minha casa; fechei o carro; e o meu pai: “Foi tudo bem?” “Foi

tudo bem. O carro está aí.” “Quem trouxe para você?” “Eu.” “Não acredito.” Eu falei:

“Nem eu.” [risos] Aí, entreguei a chave para ele e só peguei depois que eu tirei a

carteira de motorista. Quer dizer, umas coisas completamente diferentes que a Copa do

Mundo me deu. Aí, eu era garotinho, não é? Bonitinho. Aí, muito telefone e muito

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Transcrição                                                                                                      

 

  24  

convite - convite para cá e convite para lá. Até convite demais. [risos] Mas, volto a

afirmar, eu tinha o porto seguro, que é a minha casa, os meus pais e os meus irmãos.

Então, não teve... Já estava namorando, por coincidência, a minha mulher. Porque eu

comecei a namorar antes da Copa, não é? Aquele caipira de Ribeirão Preto que usava

sapato amarelo, ainda, e aqueles negócios. [risos] Aí, caminhei a vida tranquilamente.

Recebi, financeiramente, um dinheiro que eu achei que nem existia; e, de cara, deu para

comprar a minha casa. Então, para os meus pais e essa coisa, ficou bem legal. Eu não

me iludi não, sabe? Aumentou a responsabilidade porque, aí, eu já era fulano de tal

campeão do mundo. A minha responsabilidade aumentou muito. Em 1972, foi chamada

a Seleção para a Mini-Copa, no Rio de Janeiro. Aí, eu já era o titular da equipe e nós

fomos campeões invictos. Antes, eu era uma minhoca, em 1970; em 1972, eu já era

cobra, entendeu? Já era uma... Não era uma jibóia que não tem veneno não, era uma

jararaca das grandes [risos] e já fazia parte do contexto, sabe? Do palpite da Seleção, já

fazia parte da mafiazinha e tudo. Aí, caminhou bem.

B.B. – Você falou dessa posição diferenciada que tem o goleiro em relação aos demais

jogadores. Você era um goleiro que intervinha, falava, gritava e orientava? Como é que

era a sua... No Palmeiras e na Seleção, pouco a pouco...

E.L. – Eu só entendo o goleiro quando ele é completo. Eu não entendo um goleiro... E

como eu sou treinador, eu tenho cansado de avisar aos meus goleiros e conversar com

eles, todos, de que não adianta você ser só uma coisa. Hoje, você precisa ser o goleiro

que pega a bola; ser o goleiro que comanda a sua defesa; ser o goleiro que orienta a sua

defesa; ser o goleiro que se torna um instrumento de precisão e, por isso, não pode

falhar tanto. A possibilidade de falha de um centroavante pode ser 50%, a de um goleiro

tem que ser 1%. Por quê? Porque os dois são diferenciados. Só que, atrás do

centroavante, tem um monte de coisa. Atrás do goleiro tem a rede. Então, não pode

falhar. Então, você tem que ter consciência de tudo e não se perder no meio do caminho,

não é? Eu acho que esse goleiro que eu falo é quase uma utopia porque, todo dia, ele

tem que se reciclar. E eu tinha uma consciência muito grande porque, às vezes, eu era

chamado para festas; às dez e meia, ou onze horas, no meio da festa - quando estava

começando a pegar fogo - eu me despedia e ia embora. “O que você vai fazer?” “Eu vou

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Transcrição                                                                                                      

 

  25  

dormir porque, no outro dia, eu preciso do meu reflexo. Eu trabalho com o meu

reflexo.” Eu saía das festas e ia para casa; e o pessoal não se dava conta disso. Ali

estava nascendo uma longevidade. Ali estava nascendo uma responsabilidade. Então, é

mais ou menos por aí.

B.R. – Voltando um pouco na preparação para a Copa de 70. Você, eu acho que chegou

a ser titular na última partida do João Saldanha. Se eu não me engano, consta na

Argentina ou no Maracanã.

E.L. – É. O João Saldanha falou que eu seria o titular.

B.R. – O titular?

E.L. – Sim.

B.R. – E, já no México, parece que houve um revezamento entre Ado, Félix e Leão.

E.L. – Não.

B.R. – Não?

E.L. – Não. O seguinte: o Félix era o titular porque o Saldanha saiu, o Zagallo chegou -

era o técnico – e trouxe junto; e quem trouxe fica, não é? Ele ficou de titular; o Ado –

por ser mais velho – começou o primeiro jogo no banco de reservas; e, no treinamento,

eu machuquei a minha mão. Então, eu não tinha condições de ficar no banco nos outros

jogos, entendeu? Só fui me recuperar - a dor que eu tinha no pulso - na semifinal e na

final. Como o Ado já estava, ele ficou – e acertadamente. Aí, acertadamente. Nada a

contestar e nada a reclamar. Mas a circunstância que envolveu foi isso, nós não

fazíamos revezamento. Antes do Félix chegar, nós fizemos alguns revezamentos entre

eu e o Ado. Cada um jogava um amistoso. Até que o Saldanha chegou e declarou que o

time titular dele era esse, esse e esse. Nesse esse e esse, eu estava. O Pelé não. O que

aconteceu? Ele caiu, o Pelé jogou e eu não. [risos] Foi isso o que aconteceu.

B.B. – Essa Copa de 70 é cercada dessas várias histórias relativas ao contexto político, o

fato de vivermos na ditadura militar e um eventual movimento à utilização que foi feito.

Como é que o jogador vê isso?

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Transcrição                                                                                                      

 

  26  

E.L. – Eu escuto isso, também. Que era uma ditadura, que era para esconder tudo, que o

futebol era o ópio e não sei o quê. Eu não senti nada disso. Se era ditadura, não chegou

até nós; se era político, não chegou até nós; se era pressão, não chegou até nós - atletas.

Certo? Nós tínhamos consciência de que tínhamos um grande time unido e que ia

ganhar; e se preparou para ganhar. Teve o problema da altitude, que foi a primeira vez

em que uma Copa do Mundo foi realizada na altitude. Então, os jogos eram ganhos no

segundo tempo, e não no primeiro. Por isso você tinha que se preparar. Nós tínhamos

um preparador físico chamado Capitão Coutinho – que, depois, se tornou o treinador –

inteligentíssimo, e nos levou às montanhas para, depois, ir abaixando. Quando nós

chegamos, estávamos perfeitos e com o gás necessário para o que pudesse. Agora, o

movimento político do nosso país, ele existia. Só que, com dezenove anos de idade para

vinte, eu não percebia tanto. Porque o mundo em que eu vivia, o mundo em que eu era

colocado pela minha condição de um atleta já conhecido e famoso, não tinha essas

restrições, entendeu? Mas, lógico que eu lia – eu não era um alienado –, e eu não

chegava à conclusão do porquê, entendeu? Como eu não chego à conclusão, até hoje –

em 2011 –, do porquê de muita coisa. E nós estamos vendo filhos da ditadura, netos da

ditadura, políticos da ditadura e sequestradores da ditadura no poder. Não pensa que eu

não sei ser político. Só que não me interessa. Então, na época de 70, não foi nada. Se

teve alguma coisa imposta na Seleção Brasileira, talvez tenha sido a saída do treinador

Saldanha com a entrada do Zagallo; e dizem até que o presidente - o Médici – levou a

paixão dele como centroavante, que foi o Dario. Em um dos lugares que nós ficamos -

me parece que foi em Guadalajara - eu fiz dupla de quarto com o Dario. Eu tenho

absoluta certeza de que o Dario não sabia nada de política. [risos] É isso. Então, eu não

sofri. Lógico que ela se manifestou, a política e a ditadura, os conceitos militares foram

muito fortes e acentuados, mas passou. Passou para uns com grande aprendizado, e eu

acho que, no Brasil, para a maioria, sem aprendizado. Isso que é pior. O que mais?

B.R. – Conta-se que, na Copa do Mundo de 70, a preparação física foi algo, assim,

muito diferenciado do que se fazia até então. O Cláudio Coutinho; se eu não me engano,

o Parreira; o Chirol. E, se eu não engano, foi a primeira vez em que se treinou goleiros

especificamente. Conta-se isso. Eu queria saber a sua impressão sobre isso.

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Transcrição                                                                                                      

 

  27  

E.L. – Por isso que é bom ser arquivo vivo, sabia? [risos] Eu vou moldar, para você, a

sua pergunta um pouco. Na realidade, em 1970, o militar tomou conta da preparação

física - Capitão Coutinho, Carlinhos tenente, outro, outro, outro, Chirol e tal -, só que

eles, com os jogadores de futebol, eram maravilhosos conosco - mas muito e muito para

ensinar. E a gente ávido de aprender, entendeu? O que existia é que o Capitão Coutinho

era acima da média, o QI dele era acima da média. Então, ele chegou dos Estados

Unidos – falava inglês fluentemente - em 1970, e começou a usar uma terminologia que

o jornalista não conhecia. Ele começou a falar em ponto futuro, em overlap, em teste de

Cooper – veio o mister Cooper aqui. Umas coisas que nós não fazíamos igual, mas

fazíamos coisas parecidas, em que o objetivo era o mesmo e a finalidade era a mesma,

alcançar um índice maior. E o teste de Cooper era a sensação da época. Você correr

doze minutos em... O máximo possível. Hoje, o pessoal faz trinta para aquecer. Para

você ver como evoluiu o cidadão, o atleta profissional, entendeu? Então, o Coutinho

chegou com aquilo, e era maravilhoso ouvi-lo falar – a didática dele e a conversa dele. E

eu me tornei fã do Coutinho desde 1970. Já, na Copa de 74, quem não gostava do

Coutinho eram os jornalistas porque achavam que ele era metido. A coisa mais

inteligente do Coutinho é que ele conseguiu fazer carreira no futebol sem entender de

futebol. Falando por mim, que fui capitão dele durante “n” tempos. Mas ele era tão

inteligente e tão boa gente, que ele se reunia conosco, nos chamava e tal para aprender

alguma coisa do dia-a-dia, porque o Coutinho veio do voleibol. Então, ele começou a

perguntar, conversar e aprender o demasiado futebol. Em 1974, já sabidão como ele era

e inteligente como ele era, nós íamos, depois dos jogos da Copa do Mundo, nós íamos

às entrevistas - eu digo nossa porque eu era o capitão da equipe -, um repórter alemão

perguntava para ele em alemão e ele respondia em alemão - falando alemão

fluentemente. O cara perguntava em espanhol, ele respondia em espanhol. Não aquele

espanhol de brasileiro, não é? [risos] Espanhol é espanhol, não é? Latino , mas daquele

jeito. Perguntavam em inglês, ele respondia em inglês; perguntavam em português, ele

respondia em português; em francês, ele respondia em francês. Os caras ficavam “p” da

vida. E o cara tinha quase um metro e noventa e boa pinta pra caramba. A competição

era dura, ali, viu? Então, o Coutinho teve muito mérito. Então - esses nomes de

preparação de 1970, junto com o Chirol - foi a inteligência deles de buscar, no exterior,

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Transcrição                                                                                                      

 

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alguma coisa para nós. Nós tínhamos o melhor futebol técnico, e nós precisávamos de

um pouco de tática e um pouco de preparação física para a Copa do Mundo na altitude.

Então, eles foram inteligentes; e grande parte da Copa do Mundo foi ganha no segundo

tempo. Então, isso é mérito da equipe. Eles estudaram; foram; testes; voltaram ao

Brasil; introduziram na Seleção Brasileira; e executaram no México, em 1970. Então,

isso foi muito legal. Muito legal mesmo.

B.B. – Ainda nesse momento da Copa de 70, que você fala que foi muito boa para você

no sentido de observar e de conviver com aquelas pessoas, a observação dos goleiros

em nível internacional – de outros goleiros -, teve algum que te chamou a atenção? Ou

você já conhecia? Como é que era essa...

E.L. – Naquela época, eu já conhecia alguns porque nós começamos a jogar amistosos

contra e tudo, não é? Aí, eu te disse, não é? Que a coisa mais importante é que eu

percebi que o gol do Brasil iria ficar vago. Isso é você sair na frente. Isso é você marcar

um gol muito tempo antes, entendeu? É você entrar com o handicap, sabe? Já de estrela.

Agora, eu vi grandes goleiros jogarem. Naquela época, eu acho que o melhor que tinha

era o goleiro inglês, o Banks – que, depois, sofreu um acidente e ficou cego de um olho

-, e ele era de uma envergadura muito grande. Já de luva... Nós não tínhamos luvas, no

Brasil, gente. Nós começamos a comprar luvas no exterior, ou os goleiros davam as

luvas para a gente. Com o tempo, eu me tornei amigo do Sepp Maier, goleiro da

Alemanha, e ele me deu alguns macetes. Nós fomos jogar, uma vez, contra eles, já em

1973 – em 1973 ou começo de 1974, antes da Copa... Ele não estava bem na Alemanha.

Nós ganhamos de 1x0, o jogo em Frankfurt. Eu andei do lado dele tentando conversar

com ele num inglês meio Tarzan, sabe? [risos] Aquele inglês Tarzan. E falando com ele,

eu perguntei para por que ele tinha a mão... “Deixa eu ver a sua mão. Você tem a mão

tão grande, cara.” [risos] Uma mão desse tamanho. Ele começou a dar risada. “Por que

você está dando risada?” Em inglês Tarzan, falando. Depois do jogo, não é? Aí, ele

falou que não. Ele tirou a mão... Ele era longilíneo, mas a mão não era tão grande

quanto parecia. A luva era grande. Aí, ele falou assim: “Olha, eu jogo com a luva um ou

dois números maiores para que eu possa fazer uma pegada com mais suavidade e com

mais tranquilidade. Eu estou vendo que a sua luva é rente, e a possibilidade de soltar a

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Transcrição                                                                                                      

 

  29  

bola fica bem maior; de rasgar a luva é bem maior. Quer dizer, nós estávamos trocando

informações, isso foi muito legal e ele me ensinou. Eu passei a usar, no treinamento, a

luva maior, e percebi que a defesa em dois tempos, o encaixe, era muito mais fácil. Por

quê? Porque você fazia como se fosse uma concha, entendeu? E isso foi legal. Para você

ver como são as coisas: aí, seis meses depois, o Chirol foi à Europa e comprou filmes de

treinamento de saída de goleiros. Falavam que os goleiros brasileiros não sabiam sair.

Que legal. Aí, sentamos - ele não tinha visto [risos] – na nossa concentração e fomos

assistir ao filme. O primeiro filme passou, lá, alguns jogos – eram jogos - e passou 70%

do jogo de Brasil e Alemanha. O exemplo do goleiro que sabia sair do gol foi o goleiro

brasileiro, que, por coincidência, era eu naquele jogo – justo naquele jogo que nós

ganhamos de 1x0. Pura coincidência. Então, nós vimos que os treinamentos eram, mais

ou menos, iguais. Os detalhes eram diferentes. E aí que entrou essa comissão de 1970,

maravilhosamente, para nos explicar o que era um detalhe; e é isso o que eu faço até

hoje, explico detalhes para os grandes goleiros que o Brasil tem hoje.

B.B. – Existe muito esse discurso em torno do improviso brasileiro. Como é que isso se

relaciona com a necessidade do treinamento e como é que você vê?

E.L. – Eu acho que existia muito do improviso brasileiro, não é? Porque nós estamos

falhos de improviso agora. [risos] Nós tínhamos que voltar às nossas origens. Mas a

evolução do treinamento físico matou muito disso. A evolução do treinamento tático

matou muito disso. Por isso que nós temos que continuar exercitando o que é a

habilidade, que é a fantasia do futebol e que é a alegria do futebol. Então, eu acho que o

Brasil perdeu muito, porque eles aprenderam conosco o que era improviso e nós não

aprendemos com eles o que é jogar taticamente. Porque o brasileiro, o atleta brasileiro,

detesta jogar taticamente, não sabe e faz as coisas erradas. Então, o improviso tem que

prevalecer. Não toda hora, mas próximo à área sim. É o que os treinadores brasileiros

têm que fazer.

B.R. – Voltando um pouco à Copa de 70. Você, como estava fora – mencionou que

estava com o pulso machucado...

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Transcrição                                                                                                      

 

  30  

E.L. – Fora que eu digo é da escalação, mas dentro de treinamento e dentro de tudo.

Lógico.

B.R. – Sim. Mas no que se refere a acompanhar os jogos, você ia aos estádios? Como

que é essa...

E.L. – Pô, eu estou numa Copa do Mundo e não vou ao estádio? Você esqueceu que eu

sou ganancioso e que eu era ávido para aprender? Eu tenho que estar em todo lugar. Eu

estava no vestiário e se você fosse um atleta bom, que eu tivesse alguma coisa para

aprender contigo e fosse ao banheiro, eu estava do teu lado, companheiro. [risos] Eu

quero aprender. Nós íamos todos juntos no mesmo ônibus e cada um com o seu

uniforme. Com o meu uniforme eu ia, também, porque, se na hora lá acontecesse

alguma coisa no vestiário, no aquecimento, com um dos dois goleiros, eu punha o

uniforme e ia para o banco – ou ia para o jogo. Eu não estava maravilhosamente bem.

Eu estava, assim, meia boca. Eu estava – para ser, assim, mais tranquilo – a cinquenta,

ou sessenta por cento; que jogaria do mesmo jeito. Com dor - é bem verdade -, mas dor,

ali, ia ser secundária. Eu cansei de jogar com o dedo quebrado. Isso é secundário e dá

para enganar fácil. Depois que o Maier me ensinou a usar a luva maior, fica fácil

enganar. Entendeu como foi? Então, é por isso que eu te disse. [Se você não interferir,

ele não sai de 1970.1] [risos]

B.B. – 1970, realmente é gostoso.

E.L. - Marcou, não é? Eu acho que foi a música. [risos] É. Eu acho que foi a música

mesmo que tinha. Era uma música tão legal, sabe? Que era da Copa do Mundo, e

marcou bastante.

B.B. – Você falou do Pelé cantando. Tinha o Martinho da Vila também. Ele ia, não ia?

E.L. – Quem?

B.B. – O Martinho da Vila. Na concentração...

E.L. – Não. No México, não.                                                                                                                          1  O  entrevistado  se  refere  a  um  dos  entrevistadores.      

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Transcrição                                                                                                      

 

  31  

B.B. – Mas tinha esse ambiente...

E.L. – O ambiente de 1970 – de novo voltando em 1970 – era festivo. Era festivo

porque todo mundo queria participar - a Nação queria participar. Fizeram uma música

fantástica que contagiou a todo mundo. Então, os 90 milhões em ação, todo mundo

queria ser um deles e todo mundo queria ajudar a Seleção. Os cantores queriam cantar,

lá, as artistas queriam nos conhecer - e nós também. [risos] Nós íamos ao teatro ver as

peças e nós íamos ao teatro ver os cômicos trabalharem. Enfim, foi uma Nação só.

Agora, chegando no México, isso acabou. Lá, era só trabalho e trabalho. Naquela época,

o apogeu era o Simonal. Ao invés do Pelé puxar o Simonal, o Simonal quem puxava o

Pelé. O Simonal fechava o Maracanazinho e fazia uma coisa maravilhosa. Roberto

Carlos... Todo mundo, não é? As meninas que cantavam. Pô, eu vi Elis Regina cantar –

daqui até aí, de onde eu estou – maravilhosamente bem. Então, eu não me esqueço

dessas coisas de jeito nenhum. Elas frequentavam o mesmo ambiente que os jogadores

de 1970. Porque, já em 1970, o preconceito do atleta profissional tinha diminuído

muito, como eu falei no início da entrevista – já tinha diminuído. Então, você já estava

quase chegando. Quando a Copa acabou, nós chegamos ao patamar de igualdade. Então,

aí que era interessante. Nós nos encontrávamos nos bastidores muitas vezes com os

grandes ídolos da televisão; das novelas; os cantores; os atletas; os poetas; os chatos.

[risos] Tinha de tudo.

B.B. – Outra das grandes imagens da Copa de 70 é aquela comoção da torcida mexicana

pelo Brasil.

E.L. – Primeiro, é televisão a cores, não é? Porque não tinha. Foi o primeiro ano de

televisão a cores, e você ia poder ver se você estava direitinho mesmo – se não era

cafona e nem nada. E nós fomos adotados pelo cidadão mexicano - eles amavam a

gente. Eu me lembro que nós ficávamos numa concentração lá, em Guadalajara, que

tinha um pátio em que nós ficávamos em cima e o povo embaixo. Eu nunca cheguei

naquele patamar de cima sem ter, no mínimo, cem ou duzentas pessoas embaixo

pedindo autógrafos. Então, quer dizer, eles adotaram a gente e nós retribuímos com

carinho; eu diria, com uma simpatia muito grande e, principalmente, com aquilo que

eles queriam ver, um bom futebol dentro do campo. Essa irmandade segue até hoje, não

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Transcrição                                                                                                      

 

  32  

é? Nós vamos ter o Pan agora e já se fala só disso. Então, valeu a pena nós nos

relacionarmos bem. Nós nos tornamos países irmãos. É isso aí.

B.B. – Passando agora. [risos] Virando a página da Copa de 70.

E.L. – [Elas estão sabendo tudo de futebol de 1970 já.2]

B.B. – Bom, o outro futebol continua encantando com a Segunda Academia. A equipe

do Palmeiras, que vai ganhar o Campeonato Brasileiro, o Campeonato Paulista –

protelando o Corinthians de ser campeão. Como é que foi esse momento, entre a Copa

de 70 e a Copa de 74, no Palmeiras? A torcida... Como é que era ambiente?

E.L. – Era simples. Depois dessa retomada, não é? Do esporte nacional, que foi o

futebol, nós retornamos aos clubes e, aí, a competição se tornou fantástica – fabulosa.

As grandes equipes com os seus grandes ídolos, campeões mundiais. E os jogos

começaram a ficar cada vez mais interessantes. Nós tínhamos – quando eu digo nós,

nessa época, o Palmeiras – um time já definido. Chegando a chamá-lo de Academia, a

Segunda Academia. Jogadores bons. E nós começamos a ganhar tudo. Teve um ano –

eu me lembro, assim, rapidamente -, foi em 1972 talvez, que todos os torneios e

campeonatos que nós jogamos, ganhamos. Eu acho que foram cinco, ou alguma coisa

assim. Para você ver que a Academia era tão boa que, em 1974, dos onze titulares, eu

acho que seis foram convocados para a Seleção Brasileira e estiveram no México.

Então, isso era muita coisa. Era muita coisa e muito bom. Nós ganhávamos não do

Joãozinho da esquina não, nós ganhávamos do Santos de Pelé, Coutinho, Carlos

Alberto, Edu... Todos que tinham sido campeões mundiais. Clodoaldo. Nós

ganhávamos do Botafogo de Paulo Cézar - monsieur Paulo Cézar, porque ele gostava

que falasse francês com ele [risos]. Depois, o Jairzinho; o Roberto, o centroavante;

Fluminense de Félix e outros jogadores. Quem mais tinha? Do São Paulo, que era

maravilhoso com o Pedro Rocha e Gerson, que veio para jogar em São Paulo. Então, em

cada espetáculo, nós jogávamos com cento e oitenta mil pessoas; e era normal para a

gente - os estádios cabiam. Agora cabem sessenta. Eu nunca vi isso. Eu não sei o que

está acontecendo com o Brasil. Nós tínhamos noventa milhões e lotávamos um estádio                                                                                                                          2  O  entrevistado  se  refere  a  outras  pessoas  que  se  encontram  na  sala  de  entrevista.  

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Transcrição                                                                                                      

 

  33  

de duzentos mil. Hoje, nós temos duzentos milhões e colocamos uma média de público

de vinte mil pessoas. Ridículos. Por isso que eu falo que o nosso futebol está

diminuindo. Os nossos ídolos, hoje, são os estrangeiros. Tem chileno, paraguaio,

boliviano, colombiano, argentino. Eu nunca vi isso. Então, é por isso que esse vulto de

1970... Esse tumulto. Esse crescimento de torcedores e de aceitação de ídolos, de 1970 a

1974, foi o apogeu. Eu acho que foi o apogeu mesmo.

B.B. – Igualmente, a construção dos estádios pelo Brasil todo. Do campeonato nacional,

efetivamente...

E.L. – É. Aí, construção de estádios, não passou pela euforia do futebol, mas sim pela –

talvez – inteligência política. Os campeonatos foram inchando; os políticos foram

colocando os times dos Estados que não existiam na primeira divisão; foram fazendo

grandes estádios maravilhosos; colocando times; e o Brasil foi passado a limpo. Nós

saíamos para jogar e parecia uma caravana. Chegávamos em Manaus e voltávamos pelo

Norte e Nordeste jogando futebol. Foi a época política que a CBF organizou. Então, por

isso que eu te digo que tudo cresceu. Pessoas que... Teve o lado ruim? Teve. Mas o

povo que nunca teve acesso ao futebol passou a ter acesso. Quem nunca gostou, passou

a gostar de assistir na televisão. Quem nunca viu os seus ídolos campeões do mundo,

tricampeões do mundo, pessoalmente, passaram a ver em Manaus, em Belém,

entendeu? Quer dizer, tudo acontecia. Eles jogavam em São Paulo e jogavam no Rio,

mas jogavam também em Manaus. Pô, eu cheguei a jogar em Manaus, às duas horas da

tarde, com quarenta e cinco graus, meu amigo. Antigamente, tinha... Camisa preta para

jogar era o diabo na cruz, não é? Mas valeu a pena porque nós dávamos, também, uma

alegria ao povo.

B.R. – Nessa época, em termos de Seleção, você como disse, achou que o gol estava

vago depois da Copa, e isso se confirmou... Parece que houve uma...

E.L. – Se confirmou no primeiro momento. Confirmou porque, acabou a Copa de 70 e a

primeira reunião oficial foi em 1972. Correto? Nessa oportunidade, já estávamos

diferente com os goleiros do Brasil. Não eram os mesmos. Então, confirmou aquilo que

eu pensava: que o gol estaria vago. E quem demonstrasse mérito - e não político, mérito

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Transcrição                                                                                                      

 

  34  

profissional - iria ser recompensado. Então, isso foi uma confirmação daquilo que eu,

particularmente, estava prevendo. Talvez um pouco de audácia da minha parte, ou um

pouco de outra coisa – eu não sei como eu posso classificar -, mas o que eu antevi é que

isso ia ocorrer; e ocorreu.

B.B. – O Zagallo foi o técnico na Copa de 74 - novamente se manteve -, mas a Seleção

se renovou. Quais são as suas lembranças da Copa da Alemanha?

E.L. – Por que a Seleção de 1974 se renovou? Porque, em 1970, ela já estava

minguando. Os jogadores já tinham acima de vinte e sete anos; e, na próxima Copa,

teriam acima de trinta. Significava que... Antigamente, o jogador, falava-se que com

vinte e oito, ou trinta anos, já era velho. Hoje, você vê que têm atletas jogando bem e

com idade. Então, isso ajudou na preparação física, também, não é? Então, eu acho que

os novos, entre aspas, deram conta do recado. Nós poderíamos não ser o melhor, porque

nós estávamos numa fase de transição, também, mas nós fomos surpreendidos com uma

Holanda giratória – o tal do Carrossel. Só que a Holanda enche os olhos, mas não

consegue o casamento, porque nunca ganha, sabe? É aquele negócio, você fica para titia

sempre. [risos] É bonitinha? É bonitinha, mas não é do ramo, sabe? E é o que está

acontecendo agora. Agora, de novo, ela: “Ah, Holanda, Holanda...” Pode saber que não

vai acontecer nada. Chegou em 1978, foi na final e não aconteceu nada. Então, eu acho

que, na época, teve uma geração muito boa da Holanda – governada, dirigida e

comandada pelo Cruyff, que foi um maravilhoso jogador, e outros coadjuvantes

maravilhosos também -, mas não chegou ao título. E nós só não ganhamos da Holanda e

eliminamos a Holanda no primeiro tempo por uma questão de erros individuais.

Poderíamos ter ganho. Quando a Holanda percebeu que nós não éramos tudo quilo que

ela temia, aí ela veio para cima. Tivemos a expulsão do Luiz Pereira e complicou mais

ainda.

B.R. – Mas dizem que o Zagallo... Pelo menos a imprensa falava que ajeitava o time de

uma maneira um pouco defensiva. Você que costumava orientar os seus - como você

falou – zagueiros, você acha que, realmente, o time era armado de maneira defensiva?

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Transcrição                                                                                                      

 

  35  

E.L. – Não. Como você vai armar um time defensivamente jogando? O ataque tem

Jairzinho que é altamente veloz, correto? Paulo Cézar que era um bailarino driblando,

tá? Então, você tem que por eles para correr, certo? O que existia é que nós jogávamos –

e que o Zagallo sempre falava – pressão e meia pressão. Quando o time do adversário

era muito bom, nós jogávamos meia pressão; quando era fraco, nós jogávamos total

pressão, entendeu? Marcávamos lá, em cima. Só que as oportunidades, duas ou três, que

nós tivemos, era para liquidar o jogo. O jogo era para terminar o primeiro tempo em

dois ou três a zero para o Brasil, e nós chutamos fora. Paciência. Foi um momento

inesperado, o brilho não estava tão grande naquele dia e perdemos o jogo. Mas nada de

covardia não. Do jeito que começou, terminou o esquema tático. Não era tão tático

assim. [risos]

B.B. – Em termos de ambiente de grupo, a Copa de 74 como é que foi? A vivência na

Alemanha, a preparação, o ambiente interno.

E.L. – Copa do Mundo, nós temos que entender que tem que ter o espírito de Seleção.

Tem que ter a renúncia de muitos fatores. Você não pode estar concentrado... A sua

cabeça com o foco bem definido com problemas em casa, com problemas fora de casa e

com problemas na rua. Você tem que esquecer aquilo. Alguns compreendiam e outros

não compreendiam. Naquela oportunidade, já desde 1970, nós ficávamos muito tempo

concentrados - presos, digamos assim – dois meses, ou três meses. Fazendo só seleção e

visando só a Copa do Mundo. Hoje é diferente. Então, algumas irritações, alguns

desencontros, sempre aconteciam; mas, na hora, dentro do campo, passava-se a limpo

tudo. Porque, ali, você não era a estrela, você pertencia a um espetáculo. Você não

podia se colocar como a estrela principal daquele evento, você era um pedaço daquilo; e

se nós formássemos tudo, nós poderíamos ter brilho. Então, eu entendi a Seleção assim.

Lógico que um monte de homens juntos, durante três meses, sempre alguma coisa sai de

errado; ou de certo para melhorar o que está de errado. Aí, você não sabe o limite do

certo e do errado, do ponto e do contraponto. Mas, de uma forma geral, tranquilo. Perto

de hoje, do que acontece hoje, éramos todos coroinhas. [risos] Verdade.

B.R. – E você era capitão já desse time?

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Transcrição                                                                                                      

 

  36  

E.L. – Às vezes.

B.R. – E você achou que isso aumentava a sua responsabilidade? Ou, para você, com a

faixa ou sem a faixa, o seu grau de exigência...

E.L. – Eu jogaria do mesmo jeito.

B.R. – O seu grau de exigência era o mesmo?

E.L. - O grau de exigência do mesmo jeito. Só que a minha – eu diria – ascensão era

maior. Porque, ali, eu estava como porta-voz do meu treinador e como porta voz da

minha equipe; e, portanto, aquilo que eu estivesse falando, era mais verdade do que sem

a faixa. Era mais necessário do que sem a faixa. Sem exceder, mas falando duro.

B.B. – Qual é essa sensação de voltar de uma Copa, e não mais aclamado, com o Brasil

parando, com o carro de bombeiros conduzindo? Como que é a experiência da derrota e

da volta da derrota.

B.R. – [inaudível]

E.L. – [Coutinho.3]

B.B. - A própria casa do Zagalo foi apedrejada, em 1974. Como é...

E.L. – Mas isso é uma cultura negativa que nós temos no futebol brasileiro há muito

tempo. Isso não é novidade. Agora, voltar aqui silencioso e com críticas... Mas o

Brasileiro só quer ganhar. Ele esqueceu que nós fomos a uma Copa do Mundo... Em

1974, nós terminamos em quarto; em 1978, nós terminamos em terceiro. Quer dizer,

isso é muito feio? Poxa, o Rubinho Barrichello é bi mundial... Vice. E todo mundo mete

o pau nele. Eu sou fã dele. O que aquele cara sofre, e continua sendo persistente, tem

que tirar o chapéu. Agora, o Brasil voltou sim, em 1974, silencioso e com críticas... Para

reconstruir; e foi bom. Não tem problema nenhum. Eu não me sentia nem menos e nem

mais, eu me sentia capaz. Isso, para mim, já era o suficiente para eu não ter

pensamentos negativos, ou ter uma queda de produção. Eu me lembro que cheguei – um

                                                                                                                         3  O  mais  próximo  do  que  foi  possível  ouvir.  

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Transcrição                                                                                                      

 

  37  

exemplo - numa segunda-feira. Na terça, de manhã, eu já estava treinando na minha

equipe para - o mais rápido possível - se readquirir o espírito de clube. Porque, antes, eu

estava no espírito de Seleção. Então, é uma questão muito individual.

B.R. – Mas você acha que a derrota para a Holanda por 2x0 abalou muito o ânimo da

Seleção para a disputa do terceiro?

E.L. – Não.

B.R. – Inclusive, houve uma polêmica entre você e o Marinho Chagas.

E.L. – Não tem nada de polêmica. Eu vou falar a verdade, não teve polêmica. O jogo

que nós tivemos com a Holanda... A Holanda é falada, até hoje, só porque venceu o

Brasil, entendeu? Então, era um time bom. Nós perdemos para um time bom que

poderíamos ter ganho, mas perdemos para um time bom. Então, você precisa aprender a

perder, também, e respeitar o adversário, não é? Aí, nós fomos jogar o último jogo. Não

jogou fulano... O Luiz Pereira não jogou; o Alfredo estava há quase seis meses sem

jogar, pesado; o Marinho - que era um craque, mas não era para jogar de lateral

esquerdo e sim para ter liberdade mais ofensiva – abandonou e foi lá, para frente; o

Havelange pediu para a gente ganhar aquela partida contra a Polônia, e era fácil ganhar,

daqui a pouco, se tornou difícil e nós perdemos de 1x0. Entendeu? Tivemos

desentendimento, é lógico que tivemos desentendimento tático, mas não abalou nada

não. É que terceiro lugar, quarto lugar e segundo lugar, para o Brasil, não é nada.

Infelizmente.

B.B. – É o traço específico do brasileiro não aceitar a derrota. Você vê assim?

E.L. – Não é não aceitar a derrota, é não entender a derrota. Às vezes, você é derrotado

porque o outro é superior. Quer dizer, por que vocês não criticam, um exemplo – vocês

que eu digo é o povo -, aquele que não conseguiu chegar em primeiro lugar no

revezamento, ou nos cem metros rasos? Porque o que chegou em primeiro ganhou do

relógio e o outro não ganhou; e não tem contestação. Tem que elogiar, gente. E nós

voltamos desse jeito. Eu não voltei olhando para o chão procurando moedas não. O meu

horizonte continuou o mesmo. A verdade é essa.

Page 38: EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

Transcrição                                                                                                      

 

  38  

B.B. – É. Disse que os suecos foram vice-campeões, em 1958, e que a federação sueca,

até hoje, celebra o vice-campeonato perdido, em casa, para o Brasil.

E.L. – Eu morei no Japão por quatro anos e tem um jogador, lá, que ele é celebrado, até

hoje, porque ele fez um gol, num campeonato, olímpico. [risos] Tá? Têm culturas

diferentes, não é? É que nós estamos acostumados bem, a ganhar sempre. Quando não

ganha, reclamamos muito precocemente.

B.B. – Tudo ou nada.

E.L. – Não. Só tudo. Nada nada. [risos] Aqui é tudo. Não tem conversa nenhuma.

Infelizmente é assim. Infelizmente é assim, você joga noventa minutos bem; no

nonagésimo primeiro, você comete um erro e perde o jogo; esquece tudo para trás. É

assim mesmo.

B.B. – E nessa Copa de 1974, algum goleiro te chamou a atenção?

E.L. – O Maier. O Maier que eu falei lá, do jogo de amistoso, que eu conversei com ele,

que ele estava criticado e toda a Alemanha queria tirá-lo do gol e não convocá-lo para

1974. O Schön, que era o treinador da Seleção alemã, fez braço forte, convocou, ele foi

o titular e foi um dos melhores goleiros da... Uns não. Foi o melhor goleiro da Copa. Eu

tive a minha participação, também - eles falaram um pouquinho de mim -, mas ele foi

maravilhoso porque se recuperou dentro duma Copa do Mundo, entendeu? Isso foi de

uma importância muito grande. Então, eu me lembro desse episódio.

B.B. – E você já o conhecia? Ou conheceu nessa...

E.L. – Não. Eu já o conhecia. Em 1973, nós tivemos aquele amistoso, não é? E

ganhamos, em Frankfurt, da Alemanha - 1x0. Outra vez, nós ganhamos da Alemanha,

também - 1x0. Ganhamos de 1x0 com o gol... Eu acho que do Zé Maria. Um frio

danado e o pessoal tomava conhaque. Antigamente, tomava conhaque para esquentar.

Tem cabimento isso? [risos] É a vida. Vai modernizando.

B.R. – E você achou justo, o título da Alemanha?

E.L. – Achei justo. Ela mereceu.

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Transcrição                                                                                                      

 

  39  

B.R. – Mesmo a Holanda sendo a sensação?

E.L. – A sensação passa. É sensação de frio, de calor, de bondade e de tristeza passa.

Competência não. A Alemanha foi muito mais equipe. Individualmente, também tinham

maravilhosos jogadores. Pô, tinha Overath, Beckenbauer, tinha Maier... Tinha um

monte que eu já esqueci, de tanta gente boa que tinha lá, sabe? E ganharam. Saíram

perdendo e conseguiram ganhar. Aí, você vê... Ah, tinha o Müller. Era um baixinho

chato pra caramba - nossa senhora -, artilheiro da Copa.

B.B. – Mas você, como jogador, teve esse sentimento de torcer para a Alemanha um

pouco?

E.L. – Não.

B.B. – Não. Não passava por aí.

E.L. – Não. Eu acho que você... Ganhou a Alemanha – assistindo o jogo – porque jogou

melhor. Teve mais equipe e foi mais consistente do princípio ao fim. Não jogou dez

minutos bem, ela jogou o todo bem, entendeu? E não se abalou quando tomou o

primeiro gol - saiu perdendo de 1x0. Só que eles estavam jogando na Alemanha, não é?

O contexto ajudava. Vamos ver se ajuda agora, em 2014, aqui, não é? Está na hora, não

é? Se tiver, não é?

B.R. – Imediatamente, após a Copa, o Brandão assume, não é?

E.L. – Não.

B.R. – Em 1975, não? Na Seleção.

E.L. – Imediatamente, após a Copa?

B.R. – É. Um ano após, não?

E.L. – Tá. E daí?

B.R. – Um ano após a Copa e, logo na Copa América, ele convoca Raul e Waldir Peres,

do São Paulo. Você acha que se sentiu desprestigiado, após a Copa, ou não?

Page 40: EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

Transcrição                                                                                                      

 

  40  

B.B. – Isso tem a ver com conjuntura do próprio Palmeiras, quando você volta para

jogar no Palmeiras?

E.L. – Quando ele não convocou, é lógico que eu fiquei surpreso. Eu era o titular do

Palmeiras e capitão da equipe, e ele era o treinador. Talvez alguma represaliazinha, não

é? Pelo que eu judiava um pouco dele no Palmeiras. [risos] Então, aí que ele era mais

rabugento do que eu, o Brandão. Mas, quando terminou, a primeira coisa que ele fez, foi

me reconvocar, não é? Então, eu acho que ele tinha, lá, os seus motivos errados, é bem

verdade; mas tinha, lá, os seus motivos que eu sabia aonde ia chegar. Quando você

conhece os homens, você não se preocupa muito com o meio porque você tem que se

definir no fim. Era, mais ou menos, assim com o Brandão.

B.R. – Inclusive, nessa ocasião, teve o episódio com o Dulcídio.

E.L. – Que episódio?

B.R. – Que mandou voltar...

E.L. – Isso não é episódio. O que aconteceu com o juiz Dulcídio Wanderley Boschilia

comigo não foi episódio, foi êxtase. Porque um árbitro que apita um pênalti; vai bater e

bate o primeiro, o goleiro pega; o segundo, o goleiro pega; o terceiro, o goleiro pega; e,

só no quarto – repetição... Isso é um êxtase para o goleiro. É tudo o que eu queria.

Agora, eu quero, aqui, deixar a verdade bem explicada que, em todos os momentos, ele

tinha razão. Eu mexia e não podia mexer. Agora pode. Para você ver como muda, não

é? A regra. Ele me chamava atenção, eu não obedecia, ia lá e pegava de novo. Agora,

chato é para quem batia, pô. Quatro para fazer um. Isso não aconteceu só com o

Dulcídio. Na minha carreira, em vinte e quatro anos, aconteceu três vezes isso. Contra o

Corinthians; uma vez, eu acho que contra a Portuguesa; e, uma vez, quando eu jogava

no Comercial de Ribeirão Preto, num joguinho bem sem vergonha – véspera de

carnaval -, em Minas, lá, contra o Uberaba, Uberlândia ou Araguari. Por ali. Porque eu

não me lembro bem. Aconteceu isso. Então, aquilo não era episódio não, aquilo é

êxtase. Para mim, é êxtase. Toda vez que eu lembro daquilo, ah que beleza!

B.R. – Um protagonismo.

Page 41: EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

Transcrição                                                                                                      

 

  41  

E.L. – Nossa senhora! Aquilo rendeu o que você não faz ideia. Você não faz ideia.

Porque, aquilo, não foi premeditado, aquilo é espontâneo. O goleiro, ele é agressivo por

necessidade. Ele é treinado para ser agressivo. E não tem... Ali, você fica acuado. É uma

explosão muscular. Você queimou... É como o nadador, ele queimou. Como o velocista,

ele queimou. Só que voltava, entendeu? Repetia três ou quatro vezes. Pô, o que é isso?

A torcida não aguentava mais, e eu tirava sarro. [risos] Mas foi bom. E o Dulcídio tinha

razão. Eu estou aqui falando o que é certo. Ele tinha razão, eu me mexia mesmo. [O seu

script está bom, hein?4] [risos]

B.R. – Está completo. Eu queria saber como foi... Já com o Osvaldo Brandão te

convocando.

E.L. – Normal.

B.R. – Depois de - já em 1976...

E.L. – Foi rotina. Lembra daquilo que eu te falei? Foi rotina. Ele me convocar, foi

rotina. Ele me conhecia. É o que mais me conhecia porque, todo dia – de manhã –, ele

estava comigo; todo dia, à tarde, ele estava comigo; e - às vezes - até a noite, porque eu

passava na casa dele para sair com o filho dele. O filho dele era um modelo fotográfico,

era um modelo do Dener - um costureiro antigo que tinha – e, às vezes, ele me

convidava - “Leão, vamos lá que tem um desfile hoje e tal” – e eu ia. Então, quer dizer

que eu tinha muito relacionamento com ele. Então, não teve stress nenhum não. Eu já

sabia o que ia acontecer.

B.R. – Era natural a convocação.

E.L. – Era natural. Claro. Às vezes, ele chegava invocado no treinamento e eu falava:

“Ah, eu vou sofrer hoje.” Porque ele me pegava para Cristo. Aí, o preparador físico

falava: “Leão, você já sabe, não é?” Eu falei: “Eu já sei. Deixa para lá.” Essas coisas

tinham, sabe? Isso, aí, é a característica de cada treinador e de cada pessoa; e não podia

levar a frente, sabe? Acabou aqui, até logo e vai tomar banho. Tomou, lavou e está

novo.                                                                                                                          4  O  entrevistado  se  refere  ao  entrevistador.  

Page 42: EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

Transcrição                                                                                                      

 

  42  

B.R. – Mas você acha que a relação do técnico, hoje, é muito mais profissional, e, antes,

era uma relação muito mais pessoal? Ou você acha que isso se mistura e independe.

E.L. – Depende do técnico. Depende do técnico, depende do atleta e depende da

necessidade. Tem hora que você tem que fazer as três coisas, ser treinador, ser

psicólogo, ser pai, carrasco, orientador... [risos]

B.R. – E você acha que foi mais o quê?

E.L. – Depende da necessidade. [silêncio] Vamos para onde agora? [risos]

B.B. – Bom, em 1977, o Corinthians finalmente é campeão, depois de vinte e três anos;

um dos grandes rivais, o Palmeiras... Você continua à frente... Volta a ser convocado

para a Copa de 78. Aí, já sob o comando do Coutinho - que você havia elogiado. Conta

um pouco essa lembrança da Copa de 78 e esse processo de...

E.L. – Primeiro você falou de 1977, que o Corinthians conseguiu o título, não é? Eu

acho que todo mundo torcia para o Corinthians. Até o adversário dele torcia para o

Corinthians ganhar [risos] - essa que é a verdade - e até que, enfim, ganhou. Graças a

Deus que ganhou e terminou tudo aquilo. [risos] Chegou 1978, eu já tinha um

relacionamento com esse corpo diretivo, total; voltaram praticamente os mesmos.

Então, foi rotina, também, de trabalho; foi rotina de dedicação; fomos a uma Copa do

Mundo – aí sim, pressionada pelo militar - na Argentina, porque tinham que ganhar de

qualquer jeito e ganharam mesmo de qualquer jeito - os incidentes que ocorreram. E nós

fomos e acabamos uma Copa do Mundo... Saímos duma Copa do Mundo em terceiro

lugar sem perder. Por isso que o incompreendido Coutinho – eu não diria gênio

Coutinho, mas o inteligente Coutinho – disse que nós fomos campeões morais.

Ninguém entendeu o que ele quis dizer. Ele quis dizer que: primeiro, nós não perdemos;

segundo, não nos deixaram ganhar; ofereceram aquela vergonha do Peru com a

Argentina; e mudaram o jogo que decidiu a final. Quer dizer, nós jogamos antes da

Argentina no lugar, na época, de classificação. Nunca se fez isso, é tudo no mesmo

horário. Naquele dia, não. Jogaram depois que nós terminamos de vencer a Polônia de

3x1. Ganhou de seis, a Argentina que precisava porque, senão, teria menos saldo de gol

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Transcrição                                                                                                      

 

  43  

do que o Brasil; e se precisasse ganhar de vinte, ganhava de vinte. A Argentina sabia,

infelizmente.

B.B. – E como era uma Copa num país em que, ao contrário - se compararmos com o

México – não tinha uma adesão e uma simpatia.

E.L. – Era tudo ao contrário, mas, também, era assim. Ela era vizinha aqui, é o fundo da

nossa casa. Mais uma vez a inteligência do Coutinho teve razão: quando nós fomos

jogar contra a Argentina, o Coutinho - inteligente como era - chegou meia hora antes

com a delegação, no estádio lotado. Eles até mudaram o local do jogo e puseram num

lugar menor, numa cidade menor, para pressionar cada vez mais. Aí, nós chegamos e

falamos: “Pô, vamos ficar meia hora a mais no vestiário?” O Capitão Coutinho falou:

“Não. Nós vamos subir ao gramado. Nós vamos ser ovacionados, ao contrário, de tudo

o que vocês possam imaginar e escutar. Então, nós vamos dar a volta e ficar batendo

papo, nunca próximo ao alambrado, sempre mais para o meio do campo.” Por quê? Para

as coisas que eles atiravam não nos atingir. E, aí, foi assim. Nós entramos; eles

xingaram; vaiaram; tacaram bobina de máquina; tudo o que você possa imaginar.

Chegou uma certa hora que cansaram. Pararam; não tinha mais munição; nós descemos;

nos aquecemos; e fomos jogar. Jogamos normal. Poderíamos ter ganho e empatou o

jogo, 0x0. Então, aquilo foi mais uma demonstração de inteligência, da qual eu

referencio ao mestre Capitão Coutinho, ao treinador Capitão Coutinho e ao amigo

Capitão Coutinho. Diga-se, de passagem, que veio do voleibol.

B.R. – Inclusive um recorde é que você, nessa Copa, ficou quatrocentos e cinquenta e

sete minutos sem tomar um gol sequer; e o único gol que você tomou – único não, mas

o primeiro que você tomou – nessa Copa de 74, foi do Lato. Justamente o último gol

que você havia tomado na Copa de... Não. Minto. Na Copa de 78, você tomou um gol

do mesmo jogador que havia feito o último gol contra você na Copa de 74. Houve um

recorde, que foi quatrocentos e cinquenta e sete minutos sem tomar nenhum gol.

E.L. – É. Mas têm alguns recordes que você bate que não representam muito para você,

sabe? Alguns slogans que colocam em cima de você que, também, não representam

muito para você. O que representa é um aspecto geral e o que representa é o quadro

Page 44: EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

Transcrição                                                                                                      

 

  44  

final, entendeu? Foi desagradável não tomar o gol, mas foi desagradável ver que, logo

em seguida, começou o jogo da Argentina e fizeram aquela palhaçada, entendeu? Mas

que nós tínhamos capacidade nós tínhamos; que o Coutinho estava certo estava; e,

infelizmente, a Copa do Mundo, na Argentina, em 1978 , foi feita para a Argentina e

para mais ninguém. Ganharam.

[FINAL DA FITA 2]

B.B. - Terminada a Copa de 78. Você foi um jogador muito associado ao Palmeiras –

ficou por dez anos no Palmeiras. Como é que foi esse momento de romper os laços com

o Palmeiras e atuar em outro clube?

E.L. – Tudo tem uma hora que não está marcada, mas está quase que definida. Vai se

deteriorando alguma coisa, não é? E chegou o momento de sair do Palmeiras por

circunstâncias, ali, de uma ordem de treinador. Não gostou do que eu estava realizando,

falou com o diretor e resolveram me vender. Aí, eu peguei e fui para o Rio de Janeiro.

Fui comprado pelo Vasco da Gama - no qual eu já tinha feito teste, no Vasco da Gama,

em 1969, e acabei indo para o Vasco e ficando, lá, quase três anos. Foi um aprendizado

carioca. Eu cheguei de botas e saí de chinelos de dedo; e estava na hora de sair, também.

Eu fiquei três anos, lá. Foi bom para a minha família; a minha esposa é carioca, achou

divino e maravilhoso; a minha filha pequenininha, ainda, pôde sentir o que era viver o

clima de dia-a-dia de praia; eu acostumei com o Maracanã; acostumei com o povo

carioca, que sempre foi aquela... Não uma briga, mas uma rivalidade muito grande por

ser paulista. Eu tive bons momentos e retornei à Seleção Brasileira. Na última hora,

acabei não indo para Copa de 82 – uma descoberta fantástica do Telê - e que eu não sei,

até agora, o motivo. E, depois de três anos, também, chegou a hora de dizer adeus, eu

peguei e fui jogar no Sul - no qual eu me identifiquei maravilhosamente bem com o

Grêmio, com os sulistas e foi legal. Rapidamente, também, depois de três anos, eu voltei

novamente para a minha terra - São Paulo - para o Corinthians, o rival do Palmeiras; e,

aí, tem um monte de coisas para eu falar. [risos]

Page 45: EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

Transcrição                                                                                                      

 

  45  

B.R. – Eu gostaria de saber justamente sobre isso. Como foi ter atuado por tanto tempo

no Palmeiras e, depois, como foi ser recebido no Corinthians – sobretudo, num

momento especial e diferente, que era a chamada Democracia Corintiana.

E.L. – Todos os anos em que eu trabalhei no Palmeiras, eu só tenho agradecimento. Faz

parte da minha vida; fazia parte da minha família; fazia parte do meu cotidiano; e de

tudo o que você possa imaginar, porque eu criei raízes, certo? Coisa que é difícil ver

hoje, um jogador, um atleta profissional, criar raízes dentro de um clube. Só alguns

goleiros, e o Palmeiras tem muito disso. Tem o Marcos, aí, para provar que isso

acontece, não é? Então, eu fiquei muito tempo no Palmeiras, legal; eu fui dar uma volta

no Rio de Janeiro para relaxar um pouco, para ficar moreno; depois, fui ao Sul para

retornar a ficar branco e ter aquela tradição sulista de que tudo, lá, é bom e tudo, lá, é

melhor. Certo? E ter que mostrar serviço, isso foi muito bom para mim. Aí, quando não

se esperava, eu venho para o Corinthians – o rival e arquiinimigo do Palmeiras – num

momento de uma coisa que falavam que se chamava Democracia Corintiana. Só que -

um detalhe - não fui eu que corri atrás do Corinthians, o Corinthians que foi ao Sul me

pegar. Voltei e entendi - mas muito rapidamente, mas muito rapidamente – que eu tinha

que jogar muito bem porque tinham acabado de ser campeão e queriam o bicampeonato;

e com um estranho no ninho – que era o Leão. Vamos testar? Vamos testar. E eu testei,

também, a minha exigência, a minha capacidade e o meu outro lado, que não conhecia,

de flexibilidade. Então, eu entrei num mundo partidário, que não era meu e que nunca

foi meu, mas que sabia que ia ser por pouco tempo. Então, eu tinha que deixar saudades

e não rastro. A pior coisa que tem é deixar rastro, a melhor coisa que tem é deixar

saudades. Então, eu falei: “Como que eu vou me identificar com uma torcida...” E vim

pensando no avião que me trouxe até São Paulo. Eu perguntei ao diretor: “Me diga uma

coisa, eu posso usar um uniforme diferente?” A resposta veio democrática pra caramba:

“Pode. Desde que seja da mesma cor do time.” Perfeitamente. Muito obrigado pela

resposta; e, aí, eu comecei a pensar. Foi onde eu inventei a camisa listrada, zebrada. Eu

era uma zebra dentro da Democracia. Então, eu introduzi a zebra dentro de mim. Meia

listrada, preta e branca; camisa listrada, preta e branca; e calção preto. Marcou e

evidenciou; e o goleiro do Corinthians, que era sempre um cinzento - não pelo nome e

não pela capacidade, mas como coadjuvante – ele passou a ser um destaque. Aí, eu

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Transcrição                                                                                                      

 

  46  

comecei a concorrer com os grandes destaques da Democracia. Foi um ano só. Fomos

campeões; tinha um time maravilhoso; quem comandava o outro lado da Democracia

eram grandes jogadores – sempre falando pelo lado dos jogadores, poucos atletas, mas

grandes jogadores. Fomos campeões; encerrado o ano; eu de férias; bye bye para mim.

E, aí, eu fiz apenas uma solicitação ao presidente do clube: “Tem dois times querendo

me contratar novamente, o Palmeiras e o São Paulo. Faz um favor: me vendam para o

São Paulo.” Ele falou: “Tudo bem.” “Porque, no Palmeiras, eu já joguei dez anos. No

São Paulo, eu nunca joguei.” “Está bom.” Isso foi de manhã. À tarde, me venderam para

o Palmeiras. Quer dizer, só para fechar mesmo a irritação. Aí eu pensei: legal. Eu

preciso mudar esse astral. Troquei o preto e branco pelo verde e branco da camisa

listrada. Até hoje, tem uma torcida que eu adoro ver, do Corinthians, listrado de preto e

branco; e tem gente do Palmeiras que joga... Na torcida de verde e branco. Mas o que eu

estava falando: quando eu cheguei no Palmeiras... Como eu fui presidente de sindicato,

era meio atualizado e sabia as coisas, eu percebi uma falha na lei - em relação ao

Palmeiras – que dizia que, para você ter o passe livre, você tinha que ter dez anos no seu

último empregador e o término do contrato. Então, ao invés de eu fazer um contrato de

três anos, eu fiz de um, porque, aí, eu fui... O meu último empregador, qual seria? O

Palmeiras. Quantos anos de Palmeiras eu já tinha? Mais de dez. Aí, eu fiquei com o

passe livre e fiz o que eu quis da vida. Fui bem no Palmeiras, porque, quando eu

retornei ao Palmeiras, eu retornei à Seleção Brasileira e fomos disputar a Copa de 86.

Quando voltamos da Copa de 86, eu estava no Palmeiras e já não tinha vontade mais de

jogar. Aí, o treinador estava, lá, do mesmo jeito, o que eu não gostava; e para não

brigar, eu peguei o meu passe e falei: “Faltam dois meses para acabar o ano - vocês não

precisam me pagar, ou me pagam, sei lá - nos dois anos, eu não venho mais treinar; e

fui. Estava encerrando a carreira, ali. Mas eu tinha, nessa época, uma casa no Porto de

Galinhas - uma praia maravilhosa do Estado de Pernambuco. Eu estava, lá, gordinho já

e tal, e foram uns times de São Paulo me buscar para jogar. Aí, foi um time de lá

chamado Sport de Recife me convidar para trabalhar, lá. A pedido da minha mulher, ela

falou: “Vamos ficar um ano, aqui, para nós observarmos o que é o Nordeste.” Eu falei:

“Vamos.” Emagreci; comecei a jogar, lá; seis meses depois, o treinador saiu; me

convidaram para ser treinador; eu aceitei; e nunca mais joguei. Então, foi assim o meu

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Transcrição                                                                                                      

 

  47  

término no futebol. Para você ver que tudo tem uma história esperando para acontecer.

Basta você saber adentrar aonde, às vezes, está fechado. Cria-se um sistema, um

mecanismo - sem ferir ninguém - para poder conseguir esse ingresso. Foi, assim, a

minha vida terminada como treinador. E, jogando no último domingo, no Sport; na

segunda-feira, eu me tornei o treinador. Sem querer, sem saber e sem desejar aconteceu.

Por incrível que pareça, começou o campeonato e acabamos sendo campeão brasileiro,

logo nos primeiros seis meses de treinador de futebol. Quer dizer, mais um êxtase na

minha vida e, por isso, que eu só agradeço à minha vida de futebol. Depois, começou

aquela coisa grandiosa [riso] de problemas que todos os treinadores têm. Aí, vim para o

grande centro, São Paulo; e, daí, estou até hoje correndo o Brasil e correndo o mundo.

Eu tive a oportunidade de trabalhar no Japão como treinador; no mundo árabe como

treinador; conhecer culturas diferentes; aumentar a minha família; aumentar os meus

problemas; e aumentar as minhas alegrias, também. Quando você cresce, se a sua asa

for pequena, fica difícil de você voar. Agora, se você souber treiná-la, mesmo com asa

pequena, ela te sustenta; e eu sou sustentado, até hoje, por ela.

B.R. – Na fase final, ainda, da Seleção – só para fechar. Eu gostaria de saber a sua

impressão sobre qual teria sido o motivo pelo qual você não foi convocado, em 1982, e

foi convocado, em 1986. Sendo que era o mesmo técnico. Você vê alguma deficiência

técnica? O que você...

E.L. – Gozado. Isso, aí, eu pergunto para mim até hoje, e nunca perguntei para ele. Ele,

o Telê, que – infelizmente – já morreu. Todo mundo o chama de mestre, e eu não o

chamo de mestre. Ele é o treinador Telê, que eu aprendi a respeitar – lógico. Eu tenho

educação para isso, não é? Tenho hierarquia para isso. Eu nunca fui contestá-lo porque

ele não me convocou. Eu, apenas, estava na frente da televisão, na minha casa – no Rio

de Janeiro, jogando no Vasco - quando ele convocou pela primeira vez a Seleção para

uma Copa América. Ele disse: “Olha, eu só vou falar de um. Eu não vou chamar o Leão

porque ele é o capitão da equipe, o titular da equipe e não precisa ser testado. Quando

for alguma coisa oficial, como a Copa do Mundo, ele será o goleiro.” Eu fiquei

esperando até terminar a Copa. Quer dizer, ele falou uma coisa e não cumpriu. Eu não o

conhecia e nunca tinha trabalhado com ele; mas respeitei a hierarquia dele e respeitei a

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Transcrição                                                                                                      

 

  48  

opinião dele. Eu nunca perguntei. O tempo passou e ele foi para os Emirados Árabes.

Numa outra entrevista que ele deu, ele disse o seguinte: o treinador, para ser treinador

da Seleção Brasileira, não pode ser sério; e, por isso que ele estava saindo. Uma

declaração forte. Está bom. E o tempo passou; começaram a fazer os movimentos para a

Copa do Mundo de 86; e não é que escolheram o Telê para ser o novo treinador, de

novo. Porque todos que passaram não deram certo e coisa desse gênero. Veio o Telê, no

Brasil. Quando ele chega, no Brasil, pergunta para o homem de confiança dele: “Nós

precisamos convocar a Seleção, como nós estamos de goleiro?” [riso] O cara deu risada.

Ele falou: “O que houve?” Acabou de receber o melhor goleiro do país, com trinta e

sete anos, o Leão. Foi considerado o melhor atleta e o melhor goleiro. E aí? Não teve

jeito né companheiro. Aí, ele teve que me convocar. Só que ele me convocou só por

isso, e não porque ele queria. Aí, me deixou na reserva com trinta e oito anos de idade.

Fui a uma Copa do Mundo novamente - o México na minha vida de novo. Fui, lá, rever

os amigos [risos], mas nunca fui escalado para jogar. Aí, sim, revezava no banco. Nem

por isso... Me preparei direito; emagreci, cada vez mais; treinei, cada vez mais; e me

dediquei, cada vez mais, para receber os elogios e o mérito todo de um atleta que se

dedicava. Sem contestar, também. Infelizmente, foi uma participação horrorosa nossa –

como já tinha sido, em 1982, com ele. Então, as duas vezes com ele, que é chamado de

grande treinador; e deve ter sido mesmo, nos clubes, isso – um grande treinador - não é?

Mas que, na Seleção, não aconteceu absolutamente nada. Os dois anos piores da Seleção

foram em 1982 e 1986. Por coincidência, com o Telê. Nem por isso eu deixei de falar

com ele e nem por isso eu deixei de enaltecê-lo. Só que eu nunca perguntei, e já não

estava mais me interessando. Eu tinha a minha cabeça definida naquilo que eu queria,

eu já era um veterano. Eu só sinto. E quando eu fui, em 1986, com trinta e oito anos de

idade, poderia – já que não ia me colocar, e eu poderia estar jogando, até merecia – ter

colocado um garoto de dezenove anos, como eu fui na Copa de 70, para aprender.

Paciência. Nem tudo é perfeito no futebol. Mas está tudo ok.

B.B. – Você mencionou que participou do sindicato de jogadores.

E.L. – Eu fui secretário do sindicado de jogadores; fui tesoureiro; e, depois, presidente

do sindicato.

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Transcrição                                                                                                      

 

  49  

B.B. – Quando isso?

E.L. – Quando eu era atleta. Quando existia no estatuto, ainda, que contavam na linha

tal e parágrafo tal que, para ser presidente do sindicato, tinha que ser atleta profissional

em atividade. Depois daquilo, nunca mais teve um em atividade. Hoje, o presidente do

sindicato é o Martorelli, que foi goleiro, junto comigo, no Palmeiras; já não joga há

muito tempo; hoje, é advogado; e, me parece, que está, lá, há uns quinze ou vinte anos –

eu não sei ao certo. Então, foi nessa época, em que eu ainda era goleiro do Palmeiras.

B.B. – Final de 1970? Ou um pouco antes... Meados de 1970.

E.L. – É. Por aí.

B.B. – Porque coincidiu com a questão do passe livre. O Afonsinho... Foi um momento

de...

E.L. –Não. O Afonsinho foi bem...

B.B. – Foi antes.

E.L. – Foi bem antes. O Afonsinho foi a coisa, assim, de 1969, ou 1971. Por aí, não é?

B.B. – Mas era um sindicato em nível nacional ou local?

E.L. – Não. Regional.

B.B. – Regional.

E.L. – Estadual. O Estado de São Paulo. Não tinha sindicato nacional.

B.B. – Mas você atuou e...

E.L. – Claro que sim.

B.B. – Conseguiu... Era um trabalho.

E.L. – Eu era atuante. Eu era como cidadão, como atleta e como presidente do sindicato,

um homem só. Procurava, sempre, o melhor para a classe. Deixei o sindicato numa

condição de respeito muito grande - financeira, melhor ainda - para os que vieram

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Transcrição                                                                                                      

 

  50  

depois. Infelizmente, deu muita confusão. Eu, tranquilo. Porque não tinha muito que

contestar, na época, entendeu? O que era, era. Não tinha muita conversa. Verdade era

verdade, e não tinha duas verdades. Era uma só e acabou.

B.R. – Já na sua carreira como técnico, na sua primeira experiência, houve a questão do

Campeonato Brasileiro com o Sport. Eu gostaria de saber a opinião sua sobre a questão

do Sport campeão de um módulo e o Flamengo campeão de outro.

E.L. – Eu diria que não tenho uma opinião a respeito disso, eu tenho a certeza disso.

Quando você inicia um campeonato, existe uma coisa chamada regulamento assinado

por todos. O Sport nada mais fez do que cumprir com o regulamento, e o Flamengo não

cumpriu com o regulamento. Por isso que o Flamengo perdeu e o Sport ganhou. Existia

uma cláusula dizendo... A cláusula não, o regulamento dizendo que o campeão do

módulo amarelo jogaria contra o campeão do módulo verde – talvez. O campeão do

módulo amarelo, Sport Recife; e campeão do módulo verde, Flamengo. O Flamengo se

recusou a jogar. Quem é o campeão? O do módulo amarelo que compareceu. Portanto, o

Sport foi campeão e acabou a conversa. Eu acabei de falar para vocês, não tem duas

verdades – é uma só. Não compareceu no campo, perdeu o jogo e acabou. Simples. Isso

é fácil. [risos]

B.R. – Depois, você passou pela Portuguesa, eu gostaria que você falasse um pouco

mais.

E.L. – Da Lusa?

B.R. – Na Lusa.

E.L. – Eu passei duas vezes pela Portuguesa. Adorei a Portuguesa, gosto da Portuguesa

e torço para a Portuguesa. Eu estou acompanhando o Jorginho, que foi meu atleta

durante muito tempo. Consegui ser campeão; colocar, novamente, a Portuguesa aonde

não deveria ter saído, que é na elite do futebol Brasileiro, e acho que com méritos.

Agora, quando eu passei pela Portuguesa as duas vezes, tinha bons times; bons

jogadores; boa estrutura; pagava bem e não atrasava; tinha maior número de torcedores;

e acho que vai voltar tudo isso agora. Eu estou torcendo mesmo, e não vejo a hora de

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Transcrição                                                                                                      

 

  51  

acabar o campeonato. Isso, para mim, é a Portuguesa. A Portuguesa são os apaixonados;

familiar que precisa cultivar, cada vez mais, a era Portuguesa no Brasil, e não os netos e

os filhos se envergonharem do que torcem por serem portugueses. Não, não e não.

Portuguesa é para português, italiano é para italiano e o Brasil é para todo mundo.

B.B. – Nesse momento dos anos 80, em que você teve experiência em diferentes clubes

depois do Palmeiras, chegou a vislumbrar a possibilidade de ser goleiro fora do Brasil?

E.L. – Na época em que eu atuava como profissional, o exterior comprava mais os

atacantes. Nunca os goleiros, entendeu? Então, nós tínhamos pouca possibilidade de

sair. Eu tive duas propostas, enquanto eu jogava no Palmeiras, de time do exterior, mas

o Palmeiras nunca se interessou em vender o seu goleiro. Preferia vender os seus

atacantes que custavam mais caro, e o retorno era maior, financeiramente. Então, eu

fiquei aqui, pelo Brasil mesmo. Se fosse hoje, era mais fácil, não é? Hoje, nós temos um

número de exportação de goleiros que é um absurdo, que pouca gente imagina que isso

pode estar acontecendo. Eu, outro dia, estava lendo e acho que nós temos mais de

oitenta goleiros no exterior. É muita coisa para um país só.

B.R. – Eu gostaria que você falasse sobre as suas experiências internacionais como

técnico. Me parece que você foi três vezes ao Japão como técnico - 1992, 1996 e,

agora, quando estava no São Paulo, eu acho que em 2006.

E.L. – Eu fui três vezes. A minha participação internacional como treinador de equipes

começou no Japão, na época da J-League, em 1992. Eu fui dirigir o pior time, o mais

barato e o menor; e que fez mais sucesso. Foi o Shimizu S-Pulse, que não tinha

dinheiro; entrou pela porta dos fundos; e falaram que ele ia sair no primeiro ano e nunca

mais iria aparecer. Ele está, lá, até agora – e começou em 1992. Eu fiquei três anos...

Quatro anos se somar tudo. Nos anos em que eu passei no Japão, dirigi o Shimizu, da

cidade de Shizuoka - bem próximo ao monte Fuji, ali, bem bonito. Cidade

interessantíssima, no calor e no centro da ilha japonesa. Dirigi, depois, o Verdy

Kawasaki. Com uma pompa completamente diferente do Shimizu, mas em decadência;

mas que, felizmente, houve uma recuperação monstruosa e ganhou tudo. Depois, eu

estava no São Paulo, e tinha acabado de ser campeão paulista; estava já classificado à

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Transcrição                                                                                                      

 

  52  

quarta-de-final da Libertadores; tinha um time interessantíssimo recuperado; sabia que

ia ser campeão; mas, aí, eu recebi um convite do Japão de um ex-atleta que foi meu no

Japão – chamado Miura Yasutoshi. Irmão do Kazu, que foi o maior astro de futebol do

Japão, tem quarenta e três anos de idade e ainda está jogando – na segunda divisão. Aí,

ele veio ao Brasil, um mês antes de acabar o Campeonato Paulista, me convidar;

dizendo que precisava de mim por que ele era o diretor de um time que ia cair. Lá vou

eu de novo, não é? Aí, eu pensei e falei: “Olha, você volta daqui a um mês.” Pensando

que ele não fosse voltar. Ele voltou e falou: “Vocês acabaram de ser campeões. E

agora? Eu preciso de você. Continuo precisando de você.” Eu tinha uma dívida de

gratidão, e de coração, com o pai dele e com os dois irmãos. O pai dele gostava tanto de

mim que me levou três vezes ao Japão sem me pedir um real – um iene, ou um dólar.

Porque, todas as vezes em que eu retornava ao Japão, os filhos dele cresciam e voltavam

à Seleção japonesa. E esse filho parou de jogar e foi ser diretor do Kobe. O Kobe era de

um japonês milionário de quarenta e poucos anos que não sabia o que fazia com o

dinheiro, comprou o pior time do beisebol e o pior time de futebol; e vendia tudo o que

você podia imaginar no negócio dele da internet. Bobo ele não era, não é? Então, ele

levou esse japonês para lá, dirigir, e eu acabei – por gratidão – indo para lá. Chegando

lá, esse diretor - o Miura Yasutoshi - por ter morado no Brasil e por ter convivido com

brasileiro, era de sangue quente. Brigou com o presidente, com o vice-presidente e eu

que apartei a briga; e eu conheço a filosofia japonesa, é uma perda de confiança. Perdeu

a confiança, eles mandam embora. Eu cheguei junto aos meus colaboradores -

preparador físico, técnico e treinador de goleiro – e falei: “Se prepara que, em uma

semana, nós vamos ser mandados embora. Porque vão tirar o Miura, e tudo o que ele

trouxe sai.” Porque ele era o homem de confiança e eu quem ditava as normas. Atrasei e

errei. Não foi uma semana, foram duas semanas. Me chamaram e falaram: “Nós vamos

tirar você por isso e por isso.” Eu falei: “Já sei. Vocês tiraram o Yasutoshi assim e

assim.” Aí, eles me pediram um favor, para eu ser o representante deles no Brasil. Eu

falei: “Não. Eu não trabalho à distância por dinheiro. Quando vocês forem ao Brasil e

precisarem de alguma coisa, vocês me procuram. Mas sem dinheiro.” Então, foi por isso

que eu saí do São Paulo e foi por isso que eu retornei ao Japão. Então, essa foi a terceira

vez; e, completando as três vezes, deu um ciclo, mais ou menos, de quatro anos. Eu só

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Transcrição                                                                                                      

 

  53  

sinto que, quando eu saí do Japão, eu falava japonês fluentemente não, mas falava e

dava entrevista em japonês sem intérprete. Agora, se eu voltar lá, eu tenho que trazer

um intérprete de novo porque muita coisa eu esqueci. Porque japonês se fala no Japão e

na Liberdade aqui, no Brasil – mais em lugar nenhum. [risos] Então, fica difícil lembrar.

Depois, eu tive uma experiência como treinador no mundo árabe, no Qatar. Doha, uma

cidade maravilhosa que eu gostaria de voltar - eu voltaria para Doha. Muito mais do que

o Japão. Porque é uma experiência única você ver a transformação de um país e a

construção de um país por dirigentes com muito dinheiro sem fazer bobagem – como

fizeram em Dubai. É isso aí.

B.R. – Acho que um momento importante da sua carreira como técnico foi a passagem

pela Seleção Brasileira.

E.L. – Como é? Repita.

B.R. – Imagino eu.

E.L. – Você imaginou errado. [risos] A minha passagem pela Seleção Brasileira foi a

pior coisa que você possa imaginar. Só que você acertou. Você disse “a sua passagem”.

Eu não fui treinador, eu passei treinador. Quando se entra num lugar em que você não é

a preferência do dono, você está sabendo que é por pouco tempo. Mas nada. Para mim,

aquilo, eu esqueci e não quero nem saber dele. Eu não sei nem se ele existe ainda, mas

eu não quero nem saber, entendeu? Agora, eu não sei. Não é assim como você pensa

não. Experiência legal, para mim, foi treinar os meninos do Santos. Tudo garotinho de

dezoito ou dezenove anos; tudo safado; tudo comendo no McDonald’s; e falando uma

linguagem que eu não conhecia nada. Às vezes eu escutava um som que eu falava: “Pô,

espera um pouquinho, não é brasileiro que está falando.” Eram eles sim, se

comunicando e falando umas coisas. Aí eu falei: “O que eu vou fazer com esse monte

de moleques, aqui?” Eu comecei a trabalhar e percebi que eles sabiam jogar bola -

precisava só organizar. E percebi que eu precisava entrar na deles. Aí, eu me reciclei,

em termos do dia-a-dia, não é? Então, eu ensinava; e, quando eu estava ensinando para

eles – eles prestando atenção com o olho aberto, assim, em mim -, eu estava aprendendo

com eles tudo aquilo o que eles sabiam de juventude. Então, aquilo, para mim, foi um

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Transcrição                                                                                                      

 

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êxtase muito legal, entendeu? Foi um êxtase muito legal. Eu aprendi algumas coisas, lá,

que eu não nunca achei que tinha – a malandragem. Umas coisas de criança, porque eu

sou pai de duas meninas e nunca tive um moleque, eu falei: “Mas como é que moleque

é safado mesmo, não é?” Então, eu via, ali, o que eles estavam fazendo. De acabar o

treino e esconderem uma bola; de falarem uma linguagem e falar: “Olha, hoje eu vou

passar a bola na perna daquele jogador. Se eu passar, eu quero apostar com você um

McDonald’s.” Quer dizer, olha a aposta que eles faziam. [risos] Um dia eu peguei o

Robinho falando para um outro, lá, e eu falei: “O que você está falando, aí, moleque?

Vem, aqui, falar para mim porque eu não entendi o que você falou.” “O professor, o

senhor viu o jogo de ontem?” Pô, ele matou o beque central – driblou para cá e driblou

para lá. Eu falei: “O que foi? Você matou com ele.” Ele falou assim: “Pois é, o

professor...” Ele me chamava de prof. [risos] “Pois é, prof....” Olha a folga já. Já me

chamou de prof. [risos] Por isso que eu tive que ir, não é? “O prof.” Ele falou. E eu

falei: “O que foi?” “O senhor não viu? Ele entrou vestido de calças jeans.” Eu fiquei

pensando, uns três dias, para saber o que era. [risos] Vestido de calças jeans para jogar

futebol. Aí, eu entendi que o cara era tão duro que parecia que ele estava com uma calça

jeans, entendeu? Engomada. E ele deitou e rolou. Então, esse vocabulário, eu fui

obrigado a aprender. Isso que foi legal; e não aquela outra coisa que você falou.

Acabou?

B.B. – Vamos chegando...

E.L. – E aí, como é que nós estamos? Está satisfeito, ou não?

B.B. – Nós costumamos terminar os depoimentos, já nos aproximando do

encerramento...

E.L. – Sei.

B.B. – Bom, comentar as suas... Como é que você está vendo a Seleção Brasileira, hoje,

e as perspectivas da Copa de 2014. Mas, antes, não é um programa esportivo, mas se

você pudesse falar de um jogo inesquecível, ou uma defesa inesquecível, também, seria

muito bacana para chegar ao encerramento.

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Transcrição                                                                                                      

 

  55  

E.L. – Enquanto eu falo da primeira parte, eu penso a segunda.

B.B. – Está bom. [risos]

E.L. – O que eu acho, eu estou vendo a Seleção Brasileira... Neste ano de 2011, eu não

trabalhei como treinador. Então, então eu estou vendo o futebol mais do que qualquer

pessoa que possa imaginar. Mesmo porque, no Brasil, se você não quiser, você é

obrigado a ver, não é? Porque você liga a televisão, tem todo dia, toda hora e qualquer

futebol - futebol bom, futebol ruim, de fora, de dentro e de lado. Então, eu estou muito a

par do que está havendo no futebol, e estou muito decepcionado com o que eu estou

vendo. Porque existe uma igualdade muito grande, tanto embaixo como em cima – a de

baixo, sem competência para subir e, a de cima, não sabendo se quer ou não quer. Por

isso que nós temos um campeonato achatado nas duas pontas, sem privilégio para

ninguém. Um país em que nós não éramos muito burocráticos na maneira de jogar, sem

individualidade e com aquilo que eu já falei pra vocês, nós temos alguns pseudos ídolos,

não é? Por exemplo, o Palmeiras tem um chileno; o Internacional tem dois argentinos; e

o Botafogo tem o uruguaio. Vamos tocando, aí, e nós vamos ver... O Cruzeiro tem um

outro argentino... Dois. O Atlético. E vamos por aí afora. O que eu quero dizer, é que

isso me assusta um pouco porque nunca teve uma invasão tão grande de estrangeiros, no

futebol brasileiro, como tem nesses últimos cinco anos. Isso é fruto do quê? Da

diminuição de capacidade nossa. Porque os grandes nossos, nós vendemos para exterior

e não repomos. Então, eles são ocupados por esses outros, de outros países. Não que

eles não tenham capacidade e não que não mereçam, mas que é estranho para nós

aceitar isso. Mas isso é uma verdade. Então, nós temos que nos adaptar a ela, e eu estou

tentando me adaptar a ela, tá? Em termos de campeonato brasileiro. Em termos de Copa

do Mundo, nós começamos, só, com decepção, não é? Os nossos estádios; nas escolhas

dos lugares; nos valores que nós vamos pagar; nas mentiras que nós estamos

acostumando; e na vergonha que nós estamos passando antes de começar. Oxalá, e

espero que isso que isso aconteça, com bom senso dos nossos brasileiros, que tratem

bem as pessoas que vierem ao nosso país - se a Copa sair mesmo. Porque nós

precisamos mostrar ao mundo que nós, também, temos... Pouca, mas temos educação;

pouca, mas que temos cultura; pouco, mas que temos segurança. E é um teste, mais uma

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Transcrição                                                                                                      

 

  56  

vez, para o governo – que está devendo para nós, povo, uma maneira muito grande e

muito intensa. Mas o que nós estamos vendo é que... Me parece que a mídia, a crítica, já

falaram e vão continuar falando muito do que está acontecendo, e eu não vejo ninguém

preso. Todo dia, no jornal, você pega e fala que um fez uma coisa, ou outro fez. Como

nós estamos politicamente: nós estamos profissionalmente e politicamente

desprestigiados. Ou nós achamos um caminho certo, um lugar comum para todos nós;

ou nós vamos passar vergonha. Agora, como eu não gosto de passar vergonha, eu vou

torcer mesmo como torcedor e como brasileiro para que tudo saia muito bem.

B.R. – Mas, no que se refere ao time, você tem esperança?

E.L. – Referindo-se à equipe de futebol já - não a montagem de estádios e nem nada -, o

time de futebol. O treinador nosso está sofrendo porque está tentando mudar um ciclo

de jogar futebol. Só que as derrotas começaram a pressioná-lo para ele começar a

convocar os veteranos, e já começou a convocar os veteranos. Aí, vai entrar num lugar

comum e que nós não vamos a lugar nenhum. Então, eu tenho medo que aconteça

conosco o que aconteceu em 1950. Em 1950, foi a autoconfiança - tinha time para

ganhar. Eu estava nascendo - eu tinha meio ano de idade, ou um ano de idade – porque

eu nasci em 1949, como falei, e tenho sessenta e dois agora. Agora, aquele tinha time.

Agora, nós não temos um time. Nós temos um treinador que disse que o nosso time não

chegará capenga no mundial. Eu torço para que ele tenha tranquilidade, seja verdade e

esteja presente, porque nós estamos cansados de rolo e de rolo, e de mudança de

mudança. Agora, que ele está sofrendo está, e vai continuar sofrendo muito. Nós

mudamos a filosofia, trabalhamos até agora e não chegamos a lugar nenhum. Agora,

nós mudamos, vamos começar a fazer amistoso com times de esquina. Porque jogar

contra Gabão, Egito, Antônio, Joaquim e Manoel, qualquer um joga para resultado; e

ainda com jogadores mais velhos. Então, isso não está certo. Nós não entramos no

trilho, ainda, da Copa do Mundo. Agora, o que eu não quero - pelo amor de Deus – que

aconteça o que aconteceu conosco. Dentro da nossa casa e dentro do nosso país, nós

perdermos uma Copa novamente. Não se esqueçam que a última Copa foi em 1950,

aqui, e nós estamos em 2014 – para a Copa do Mundo. Olha quanto tempo passou e será

que não aprendemos a lição? Ou, muito pelo contrário, nós nos esquecemos da

Page 57: EMERSON LEÃO (depoimento, 2011)

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honestidade que tem que fazer parte do nosso dia-a-dia. É isso que eu penso do nosso

futebol. Ok?

B.B. – Pensou na defesa? [risos]

E.L. – Ah, é! Tem o final feliz, não é? [risos] O final feliz é a defesa, que eu fiz, mais

bonita. Eu não tenho uma defesa mais bonita. Eu acho que ninguém viu uma defesa

bonita que eu fiz: foi um dia em que eu estava jogando contra o América de Natal; um

jogador chutou uma bola de longa distância; eu já tinha saltado para a bola; aí, resvalou

num defensor meu e a bola mudou de curso; retornou; e eu consegui tirá-la voltando.

Para mim, aquilo foi uma das grandes defesas. Uma vez, no Pacaembu aqui, também,

jogando contra um time - talvez, com o Atlético - chutaram uma bola; eu saltei para a

bola; pegou no meu zagueiro; ela estava entrando, do outro lado; eu estiquei a minha

perna e tirei de letra, assim. Eu me lembro que, naquela oportunidade, todo mundo que

fizesse uma jogada bonita, ganhava uma bicicleta Monark. Naquele dia, eu ganhei uma

bicicleta Monark. [risos] Tem, também, a defesa que o Cruyff escreveu no livro dele: a

defesa mais bonita que ele viu um goleiro fazer, foi nesses diabos de jogo Holanda e

Brasil, em 1978...

B.B. – 1974.

E.L. – Em 1974. Desculpe. Que nós perdemos da Alemanha. Ele fez um chute, lá, que

ele achou que ia fazer gol, eu apareci e defendi. Para mim, não foi a mais bonita defesa

porque, ali, foi uma defesa de inteligência. Não só de reflexo, mas inteligência. Porque,

da posição que ele estava, com a perna que ele estava e com o ângulo que ele tinha, ele

só tinha que ter uma preferência; e eu fui na preferência. Eu corri um risco, esse risco

deu certo. É por isso que ele fala, até hoje. Então, você vê que é difícil, para a gente,

enumerar e quantificar a beleza da defesa. Ok?

B.B. – Ok. Nós chegamos ao fim do depoimento de Emerson Leão; ex-goleiro da

Seleção Brasileira e do Palmeiras; participou de quatro Copas do Mundo; inúmeros

títulos; e, atualmente, com a carreira de técnico de futebol. Em nome do Museu do

Futebol e da Fundação Getulio Vargas, agradecemos imensamente a sua presença. Esse

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depoimento que ficará registrado e poderá ser assistido por todo e qualquer visitante do

Museu.

E.L. – Isso que é mais importante. É isso que me deu satisfação de aqui estar e de ouvi-

los na quantidade... Não só de perguntas, mas das suas perguntas curiosas, também.

Porque vocês se tornaram aquelas visitas, aquelas pessoas que vêm ao Museu do

Futebol com aquelas perguntas querendo fazer e não tendo a oportunidade. Vocês, tendo

a oportunidade, fizeram para mim; e eu tive a plena satisfação, de alegria e de vontade

de respondê-las. Agora que nós estamos encerrando, eu queria dizer que gostaria que

tivessem mais museus do futebol num país que, essencialmente, é do futebol.

[FIM DO DEPOIMENTO]