Émile Zola - Como Se Casa Como Se Morre
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mile Zola
COMO SE CASA
COMO SE MORRE
Traduo
Duda Machado
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EDITORA 34
Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (011) 816-6777
Copyright Editora 34 Ltda., 1998
AFOTOCPIADEQUALQUERFOLHADESTELIVROILEGAL,ECONFIGURAUMAAPROPRIAOINDEVIDADOSDIREITOSINTELECTUAISEPATRIMONIAISDOAUTOR.
Ttulo original:Comment on se marie; Comment on meure
Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:Bracher & Malta Produo Grfica
Imagem da capa:douard Manet, mile Zola, leo s/ tela, 1868 (detalhe)
Reviso:Alexandre Barbosa de Souza
1 Edio - 1999
Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro(Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)
Zola, mile, 1840-1902Z41c Como se casa, como se morre / mile Zola;
traduo de Duda Machado. So Paulo:Ed. 34, 1999136 p.
Traduo de: Comment on se marie; Commenton meure
ISBN 85-7326-124-2
1. Literatura francesa. I. Machado, Duda.II. Ttulo.
CDD - 840
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COMO SE CASA
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Como se casa ............................................. 7
Como se morre .......................................... 63
Vida de mile Zola .................................... 129
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No sculo XVII, o amor, na Frana, umsenhor de penacho, magnificamente vestido, que
avana pelos sales precedido por uma msica
grave. Obedece a um cerimonial muito complica-
do, no arrisca um s passo que j no esteja re-
gulamentado. Desta maneira, permanece perfeita-
mente nobre, com uma ternura refletida, com uma
alegria honesta.
No sculo XVIII, o amor um velhaco que se
desalinha. Ama como ri, pelo prazer de amar e de
rir, almoando uma loura, jantando uma morena,
tratando as mulheres como deusas boas, cujas mos
abertas distribuem o prazer a todos os seus devo-
tos. Um alento de volpia percorre a sociedade in-
teira, conduz a ronda das pastores e das ninfas, seios
decotados que fremem sob as rendas: poca ador-
vel em que a carne era rainha, grande fruio cujo
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sopro longnquo chega at ns ainda tpido, com
o odor dos cabelos soltos.
No sculo XIX, o amor um rapaz compor-
tado, correto como um notrio, recebendo rendas
do Estado. Freqenta a sociedade, ou vende algu-
ma coisa numa loja. A poltica ocupa-o, os neg-
cios tomam-lhe o dia das nove horas da manh sseis da noite. Quanto a suas noites, ele as entrega
ao vcio prtico, a uma amante que ele paga ou a
uma mulher legtima que o paga.
Assim que o amor herico do sculo XVII,
o amor sensual do sculo XVIII, tornou-se o amor
positivo que tratado como uma ao na bolsa.
Ouvi um industrial queixar-se ultimamente de
que no se tentou inventar ainda uma mquina de
fazer filhos. Constroem-se mquinas para moer o
trigo, para tecer telas, para substituir os msculos
humanos por engrenagens em todas as tarefas. No
dia em que a mquina amar por eles, os grandes tra-
balhadores do sculo, aqueles que do cada um de
seus minutos atividade moderna, iro economizar
tempo, tornar-se-o mais speros e mais viris na ba-
talha pela vida. Desde o formidvel abalo da Revo-
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luo, os homens, na Frana, no reencontraram ain-
da o lazer para sonhar com as mulheres. Sob Napo-
leo I, o canho impedia os amantes de se ouvirem.
Durante a Restaurao e durante a Monarquia de
Julho, uma necessidade furiosa de fortuna apoderou-
se da sociedade. Por fim, o reinado de Napoleo III
s fez aumentar os apetites pelo dinheiro, sem tra-zer sequer um vcio original, uma nova devassido.
E h uma outra causa, a cincia, o vapor, a eletrici-
dade, todas as descobertas desses ltimos cinqen-
ta anos. preciso ver o homem moderno com suas
mltiplas ocupaes, vivendo l fora, devorado pela
necessidade de conservar sua fortuna e aument-la,
a inteligncia tomada por problemas sempre reno-
vados, a carne adormecida pela fadiga de sua bata-
lha cotidiana, ele prprio transformado em pura en-
grenagem na gigantesca mquina social em plena ati-
vidade. Ele tem amantes como quem tem cavalos,
para exercitar-se. Se se casa, porque o casamento
tornou-se uma operao como qualquer outra, se tem
filhos porque sua mulher o quis.
H uma outra causa para os casamentos de-
plorveis de hoje, sobre a qual quero insistir, antes
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de chegar aos exemplos. Esta causa o fosso pro-
fundo que a educao e a instruo escavam entre
ns, desde a infncia, entre rapazes e moas. Veja-
mos a pequena Marie e o pequeno Pierre. At os
seis ou sete anos, deixam-nos brincar juntos. Suas
mes so amigas; eles se tratam com intimidade,
trocam palmadas fraternais entre si, rolam peloscantos, sem qualquer vergonha. Mas, aos sete anos,
a sociedade separa-os e toma conta deles. Pierre
internado num colgio onde se esforam para en-
cher-lhe o crnio com o resumo de todos os conhe-
cimentos humanos; mais tarde, ingressa em esco-
las especiais, escolhe uma carreira, torna-se um ho-
mem. Entregue a si mesmo, largado entre o bem e
o mal durante esse longo aprendizado da existn-
cia, ele bordejou as vilezas, provou dores e alegrias,
teve sua experincia das coisas e dos homens. Marie,
ao contrrio, passou todo esse tempo enclausurada
no apartamento de sua me; ensinaram-lhe o que
uma moa bem educada deve saber: a literatura e a
histria expurgadas, a geografia, a aritmtica, o ca-
tecismo; alm disso, ela sabe tocar piano, danar,
desenhar paisagens com dois lpis. Assim, Marie
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ignora o mundo, que viu somente pela janela, e mes-
mo assim fecharam-lhe a janela quando a vida pas-
sava barulhenta demais pela rua. Jamais se arriscou
sozinha pela calada. Guardaram-na cuidadosamen-
te, qual uma planta de estufa, administrando-lhe o
ar e o dia, desenvolvendo-a num meio artificial,
longe de todo contato. E agora, imagino que, unsdez ou doze anos mais tarde, Pierre e Marie voltam
a se encontrar. Tornaram-se estranhos, o reencon-
tro fatalmente cheio de constrangimentos. J no
se tratam com intimidade, no se empurram mais
nos cantos para rir. Ela, ruborizada, permanece in-
quieta, diante do desconhecido que ele traz consi-
go. Ele, entre os dois, sente a torrente da vida, as
verdades cruis, das quais no ousa falar alto. Que
poderiam dizer um ao outro? Possuem uma lngua
diferente, no so mais criaturas semelhantes. Es-
to reduzidos banalidade das conversas comuns,
cada um se mantendo na defensiva, quase inimigos,
j mentindo um ao outro.
Claro, no pretendo que nossos filhos e nos-
sas filhas devam ser criados juntos como as ervas
selvagens de nossos jardins. A questo desta dupla
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educao grande demais para um simples obser-
vador! Contento-me em dizer o que se passa: nos-
sos filhos sabem tudo, nossas filhas no sabem nada.
Um dos meus amigos me contou vrias vezes a es-
tranha sensao que experimentou em sua juven-
tude ao sentir pouco a pouco que suas irms iam
se tornando estranhas para ele. Quando voltava docolgio, a cada ano sentia o fosso mais profundo, a
frieza cada vez maior. Um dia, enfim, no tinha mais
nada para dizer a elas. E depois de abra-las com
todo afeto, s lhe restava pegar seu chapu e ir em-
bora. O que acontecer ento no caso bem mais
importante do casamento? A, os dois mundos se
encontram num choque inevitvel, e o embate amea-
a sempre vergar a mulher ou o homem. Pierre es-
posa Marie sem poder conhec-la, sem poder se
fazer conhecer por ela, pois no se permite uma
tentativa mtua. A famlia da jovem noiva em ge-
ral est feliz por cas-la finalmente. Entrega-a ao
noivo, pedindo-lhe para reparar que ela est sendo
entregue em bom estado, intacta, tal como deve ser
uma noiva. Agora, o homem ir cuidar de sua mu-
lher. E eis Marie atirada bruscamente ao amor,
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vida, a segredos escondidos h tanto tempo. De um
minuto para o outro, o desconhecido se revela. At
as melhores esposas guardam s vezes um longo
abalo. Mas o pior que o antagonismo das duas
educaes persiste. Se o marido no refaz sua mu-
lher sua imagem, ela permanecer para sempre
uma estranha para ele, com suas crenas, a inclina-o de sua natureza, a estupidez incurvel de sua
instruo. Que estranho sistema, dividir a humani-
dade em dois campos, os homens de um lado, as
mulheres do outro; assim, depois de ter armado os
dois campos um contra o outro, uni-los dizendo-
lhes: Vivam em paz!.
Em suma, o homem dos dias atuais no tem
tempo para amar e se casa com sua esposa sem co-
nhec-la, sem ser conhecido por ela. Estes so os
dois traos distintivos do casamento moderno. Evi-
to complicar o dado geral especificando-o de ante-
mo, e passo aos exerccios.
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I.
O conde Maxime de La Roche-Mablon temtrinta e dois anos. Pertence a uma das mais antigas
famlias de Anjou. Seu pai foi senador durante o
Imprio, sem ter abandonado, segundo afirma, uma
s sequer de suas convices legitimistas. Os La
Roche-Mablon, alis, no perderam um s pedao
de terra durante a emigrao, e ainda so citados
entre os grandes proprietrios da Frana. Quanto
a Maxime, teve uma bela juventude, alistou-se como
zuavo pontifical1, depois voltou para Paris onde
circulou; ele jogou, teve amantes, bateu-se em duelo,
sem poder alarde-lo. um rapago louro, bom
cavaleiro, com uma inteligncia mdia, sem paixes
1Os zuavos eram os soldados da infantaria argelina a
servio da Frana. Aqui, h referncia guarda papal. (N.
do T.)
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extremas, e que nesse momento pensa em entrar
para a diplomacia, para mudar de vida.
O crnio dos La Roche-Mablon uma tia, a
baronesa de Bussire, uma velha senhora buliosa,
metida no mundo acadmico e no mundo poltico.
Desde que seu sobrinho Maxime passou a lhe con-
fiar seus projetos, ela proclama que, como primei-ro passo, ele deve se casar, o casamento sendo a base
de todas as carreiras srias. Maxime no tem nenhu-
ma objeo grave contra o casamento. Nunca pen-
sou nele; preferia ficar solteiro, mas enfim, se abso-
lutamente necessrio que se case, para ter seu lu-
gar na sociedade, passar por essa formalidade co-
mo por todas as outras. Apenas confessa rindo que,
no tendo nenhum amor no corao, por mais que
vasculhe sua memria, todas as moas com quem
danou nos sales lhe do a impresso de ter o mes-
mo vestido branco e o mesmo sorriso. Madame de
Bussire ficou encantada. Ir encarregar-se de tudo.
Dois dias depois, a baronesa fala a Maxime da
senhorita Henriette de Salneuve. Fortuna conside-
rvel, antiga nobreza da Normandia, convenincia
perfeita de um lado e do outro. E ela sublinha o lado
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correto desta unio. No se poderia encontrar um
partido mais satisfatrio face s exigncias do mun-
do. Ser um desses casamentos que no surpreen-
dem ningum. Maxime balana a cabea com um
ar complacente. Com efeito, tudo isto lhe parece
muito razovel. Os nomes se equivalem, as fortu-
nas so quase as mesmas, as alianas se apresentamcomo muito preciosas, caso ele persista em querer
entrar para a diplomacia.
Ela loura, creio ele acaba perguntando.
No, morena responde a baronesa.
Mas no sei muito bem!
Alis, pouco importa. O que h de seguro
que Henriette tem dezenove anos. Maxime supe
ter danado com ela, a no ser que tenha sido com
sua irm mais moa. No se fala de sua educao,
intil: ela foi educada por sua me, e isto basta.
Quanto a seu carter, no h o que discutir, nin-
gum o conhece. Madame de Bussire afirma que
a ouviu tocar, um dia, uma valsa de Chopin com
muita alma. E, quanto ao resto, noite, haver um
encontro num salo neutro.
Quando, noite, Maxime percebe a senhorita
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de Salneuve, fica surpreso por ach-la bonita. Dana
com ela, cumprimenta-a por causa de seu leque,
recebe como agradecimento um sorriso. Quinze dias
mais tarde, faz-se o pedido oficial e o contrato
debatido diante dos notrios. Maxime viu Henriette
cinco vezes. Ela bonita de fato, a pele branca, a
cintura redonda, e saber vestir-se quando puderlivrar-se de seus vestidos de moa. Quanto ao resto,
parece amar a msica, detesta o odor do almscar,
teve uma amiga que se chamava Claire que mor-
reu. tudo. Maxime, alis, acha que o bastante:
ela uma Salneuve, ele a recebe das mos de uma
me rgida. Mais tarde, tero tempo para se conhe-
cer. Enquanto espera, ele pensa nela sem desprazer.
Positivamente no est apaixonado, mas no o abor-
rece que ela seja agradvel, porque, se ela fosse feia,
iria evidentemente despos-la da mesma maneira.
Oito dias antes do casamento, o jovem conde
despede-se de sua vida de solteiro. Est com a mag-
nfica Antonia, uma antiga amazona que voltou do
Brasil coberta de diamantes. Ele renova seu mobi-
lirio e rompe com ela de modo amistoso, depois
de uma ceia onde se bebe sua felicidade conjugal.
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Ele paga seu camareiro, queima cartas inteis, man-
da abrir as janelas para que sua manso seja venti-
lada. E est pronto. No entanto, bem no fundo, h
horas de sua vida que ele guarda e em relao s
quais cr suficiente ter fechado para sempre as por-
tas de seu corao.
Os notrios das duas famlias redigiram o con-trato. Toda essa baixa negociao de dinheiro foi-
lhes poupada. Em suma, nada mais simples, as co-
tas dos esposos so conhecidas, o casamento deve
ocorrer dentro do regime dotalcio. Durante a leitura
do contrato, as duas famlias permanecem mudas:
depois, assina-se, sem nenhum comentrio, enquan-
to a pena muda de mos entre sorrisos. E fala-se de
outra coisa, de uma festa de caridade da qual a ba-
ronesa teve a idia, de um sermo no qual o padre
Dulac mostrou verdadeiramente bastante talento.
O casamento civil foi celebrado numa segun-
da-feira, um dia em que geralmente no h casa-
mentos na prefeitura. A noiva usa um vestido de
seda cinza, muito simples; o noivo est de sobrecasa
e cala clara. Nenhum convite foi feito, s est pre-
sente a famlia e quatro testemunhas, personagens
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considerveis. Enquanto o prefeito l os artigos do
Cdigo, os olhares de Maxime e de Henriette se
encontram, e sorriem um para o outro. Que lngua
brbara a lngua da lei! Ser que de fato o casamento
uma coisa to terrvel assim? Um aps o outro,
eles pronunciam o sim solene, sem a menor emo-
o, o prefeito sendo um homem baixo quase cor-cunda, cuja pessoa acanhada carece de majestade.
A baronesa, com uma toalete escura, olha a sala com
um binculo, acha que a lei est pobremente aloja-
da. Ao sair da prefeitura, Maxime e Henriette dei-
xam, cada um deles, mil francos para os pobres.
Mas toda a pompa, todas as lgrimas de en-
ternecimento ficam reservadas para a cerimnia re-
ligiosa. A fim de no ser confundida com npcias
vulgares, escolheu-se uma igreja privada, a peque-
na capela das Missions. Isto d imediatamente ao
casamento um perfume de piedade superior. Mon-
senhor Flibien, um bispo do Midi, algo aparenta-
do com os Salneuve, que deve abenoar a unio.
Chega o grande dia, a capela se revela pequena de-
mais; trs ruas vizinhas ficam bloqueadas pelas car-
ruagens; no interior, na penumbra dos vitrais, um
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roar de tecidos ricos, um murmrio discreto de
vozes. Colocaram tapetes por toda parte. H cinco
fileiras de poltronas diante do altar. Toda a nobre-
za da Frana sente-se em casa, com seu Deus. No
entanto, Maxime, com uma roupa irrepreensvel,
parece um pouco plido. Henriette chega, toda bran-
ca numa nuvem de tule; ela tambm est muito emo-cionada, os olhos esto vermelhos, chorou. Quan-
do Monsenhor Flibien estende as mos sobre suas
cabeas, todos os dois permanecem inclinados por
alguns segundos, com um fervor que produz a me-
lhor das impresses. Depois, o bispo fala dos deve-
res dos esposos com uma voz cantada. E a famlia
enxuga as lgrimas, sobretudo Madame de Bussi-
re, que foi muito infeliz no casamento. A cerimnia
termina, em meio aos odores do incenso, com a mag-
nificncia dos crios acesos. No de forma alguma
um luxo burgus, mas uma distino suprema, refi-
nando a religio para o uso das pessoas bem-nasci-
das. At os ltimos apertos de mo trocados, aps
a assinatura das peas, a igreja permanece um salo.
noite, janta-se em famlia, com portas e ja-
nelas fechadas. E bruscamente, l pela meia-noite,
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quando Henriette tirita em seu leito de esposa, o
rosto voltado para a parede, sente o cheiro de Ma-
xime que lhe d um beijo nos cabelos. Ele entrou,
atrs dos pais, sem fazer barulho. Ela d um grito,
suplica-lhe que a deixe s. Quanto a ele, sorri, tra-
ta-a como uma criana que se procura tranqilizar.
um homem demasiadamente galante para no prem uso todos os expedientes possveis. Mas conhe-
ce as mulheres, sabe de que maneira deve-se proce-
der com elas. Por isso fica por ali, beijando as mos
dela, com carcias de palavras. Ela nada tem a te-
mer, ele no o marido dela, no deve zelar por
sua querida existncia? Depois, como ela se sobres-
salta cada vez mais e se pe a soluar chamando por
sua me, ele acha que deve endurecer um pouco as
coisas, para evitar que a situao caia no ridculo.
Alm do mais, continua sendo um homem de socie-
dade, afasta a lmpada, lembra-se bem a propsi-
to da maneira como comeou com a pequena Lau-
rence, do Folies2, que no o queria, depois de uma
ceia. Henriette muito mais bem educada do que
2Referncia ao Folies Bergres. (N. do T.)
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Laurence, ela no o arranha, no lhe d pontaps.
Mal se debate com um arrepio de medo; e ela lhe
pertence chorosa, febril, no ousando mais abrir os
olhos. Chora a noite toda, colando a boca no tra-
vesseiro para que ele no a oua. Este homem es-
tendido a seu lado lhe causa uma repugnncia ater-
rorizada. Ah! que coisa horrvel, por que nunca lhefalaram sobre isso? Ela no teria se casado. Essa
violao do casamento, sua longa juventude rgida
e ignorante culminando nessa iniciao brutal lhe
parece uma infelicidade irreparvel da qual jamais
se consolar.
Catorze meses depois, o senhor no entra mais
no quarto da senhora. Tiveram uma lua-de-mel de
trs semanas. A causa do rompimento foi muito
delicada. Maxime, habituado magnfica Antonia,
quis fazer de Henriette uma amante, e esta, com os
sentidos ainda adormecidos, de natureza fria, re-
cusou-se a certos caprichos. Por outro lado, eles des-
cobriram, desde o segundo dia, que jamais se en-
tenderiam. Maxime tem um temperamento sang-
neo, violento e teimoso. Henriette tem um grande
langor, uma tranqilidade de gestos enervante, ao
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mesmo tempo em que mostra, no mnimo, uma tei-
mosia semelhante. Assim, os dois acusam um ao
outro de uma crueldade sombria. Mas como pes-
soas de sua categoria devem sempre salvar as apa-
rncias, vivem em termos de grande polidez. Pedem
notcias um do outro cada manh, separam-se
noite com uma saudao cerimoniosa. So maisestranhos do que se habitassem a milhares de lguas,
quando apenas um salo separa os seus quartos.
Entretanto, Maxime reatou com Antonia. Re-
nunciou completamente idia de entrar para a
diplomacia. Era estpida, esta idia. Um La Roche-
Mablon no tem necessidade de comprometer-se
com a poltica, nesses tempos de multido demo-
crtica. O que o faz sorrir s vezes, quando encon-
tra a baronesa de Bussire, pensar que se casou
de maneira to absolutamente intil. Alis, no la-
menta nada. O ttulo, a fortuna, tudo continua. De
novo, est de volta vida mundana, passa suas noi-
tes no crculo, leva a grande vida de um fidalgo de
alta estirpe.
No incio, Henriette ficou muito entediada. De-
pois saboreou vivamente a liberdade do casamen-
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to. Faz atrelar a carruagem dez vezes por dia, per-
corre as lojas, vai ver as amigas, desfruta a vida. Tem
todas as vantagens de uma jovem viva. At aqui,
sua grande tranqilidade de temperamento salvou-
a de erros graves. No mximo deixou que beijas-
sem seus dedos. Mas h momentos em que se acha
muito tola. E pe-se a discutir consigo mesmo, cal-mamente, se no deve ter um amante, no prximo
inverno.
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II.
O senhor Jules Beaugrand filho do clebreBeaugrand, o advogado, o clebre orador de nos-
sas assemblias polticas. Antoine Beaugrand, o av,
era um pacfico burgus de Angers, de uma famlia
de notrios muito estimada em sua provncia. Mas
ele no tinha tocado no notariado, e devorava suas
rendas tranqilamente. Seu filho mais velho, o c-
lebre Beaugrand, muito ativo e muito ambicioso,
pelo contrrio, fez uma bela fortuna. Quanto a Jules
Beaugrand, tem os grandes objetivos de seu pai, a
vaidade de um homem de alta situao, a necessi-
dade de um luxo principesco. Infelizmente, acaba
de completar trinta anos, e comea a se sentir me-
docre. No incio, sonhou com a carreira de depu-
tado, os sucessos na tribuna, uma pasta de minis-
tro na primeira catstrofe governamental. Mas, na
associao dos jovens advogados onde tentou a elo-
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qncia, descobriu em si mesmo um tartamudeio
de lngua intolervel, uma preguia de idias e de
palavras que lhe interditavam absolutamente triun-
fos polticos. Em seguida, hesitou por um instante,
refletindo se deveria talvez entrar para a indstria.
Os estudos especiais lhe deram medo. E, finalmen-
te, decidiu-se simplesmente por um cartrio de ta-belio. Seu pai, que se sentia muito embaraado com
ele, comprou-lhe por um preo muito caro um dos
melhores cartrios, cujo ltimo titular ganhara al-
guns milhes.
H seis meses, Jules portanto um tabelio.
O cartrio foi instalado num apartamento escuro
da rua Sainte-Anne. Mas ele mora numa manso
da rua dAmsterdam, passa suas noites na socieda-
de, coleciona quadros, afeta ser tabelio o mnimo
possvel. No entanto, acha a fortuna lenta. Precisa,
sua volta, de uma expanso do luxo, um jantar a
cada semana, por exemplo, oferecido a pessoas de
prestgio, ou ainda ter um salo aberto na tera-feira
noite, reunindo os amigos polticos de seu pai.
Persuade-se mesmo de um passo maior, recepes,
cinco cavalos em sua cavalaria, enfim, uma am-
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pliao de toda a sua manso, seria uma coisa ex-
celente que dobraria sua clientela.
Casa-te diz-lhe seu pai, a quem pede con-
selho. Uma mulher vai te dar mpeto, brilho...
Escolhe-a rica, porque uma mulher, nestas condi-
es, custa muito caro. A est, a senhorita Des-
vignes, filha do manufatureiro... Tem um milho dedote. Mos obra.
Jules no se apressa, amadurece a idia. Sem
dvida um casamento consolidaria sua posio; mas
um negcio grave, que no deve ser concludo le-
vianamente. Avalia por conseguinte as fortunas
sua volta. Seu pai, com sua viso superior, tinha
razo: mesmo a senhorita Marguerite Desvignes
o partido mais slido. Ento, toma informaes
precisas sobre a prosperidade da usina Desvignes.
Faz habilmente com que o notrio da famlia fale.
O pai d, com efeito, um milho: talvez chegue a
um milho e duzentos mil francos. Se o pai chegar
a um milho e duzentos mil francos, Jules est de-
cidido: ir casar-se.
Durante quase trs meses, a operao con-
duzida sabiamente. O clebre Beaugrand desempe-
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nha um papel decisivo. ele que entra em contato
com Desvignes, um de seus antigos colegas na Cons-
tituinte, e que, pouco a pouco, o seduz, leva-o a
oferecer sua filha, com os um milho e duzentos mil
francos.
Agarrei-o! diz ele rindo a Jules. Ago-
ra, podes fazer a corte.Jules conhecera no passado Marguerite, quan-
do ela era ainda uma criana: as duas famlias pas-
savam o vero no campo, para os lados de Fon-
tainebleau, e eram vizinhos. Marguerite j tem vinte
e cinco anos. Mas, bom Deus! Como ele a acha
enfeiada quando a rev. Ela nunca foi bonita, sem
dvida; antes era escura como uma jovem toupeira;
s que se tornou quase corcunda e tem um olho
maior que o outro. Quanto ao resto, a moa mais
amvel do mundo, muito espirituosa, pelo que se
diz, e de uma exigncia extraordinria em relao
s qualidades que exige de um homem; recusou os
melhores partidos, o que explica porque ficou sol-
teira at to tarde, com seu milho. Quando Jules
se despede dela, depois do primeiro encontro, de-
clara-a inteiramente aceitvel: ela se veste de ma-
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Como Se Casa 31
neira admirvel, fala de tudo com uma elegncia
soberba, parece mulher capaz de manter superior-
mente um salo, como uma parisiense a quem sua
feira d, simplesmente, um toque de originalida-
de. Pois, na verdade, uma mulher de um milho e
duzentos mil francos pode se permitir ser feia.
As coisas so, a partir da, conduzidas apro-priadamente. Os noivos no so pessoas para per-
der tempo com bagatelas. Um e outro sabem per-
feitamente que tipo de negcio esto concluindo.
Compreenderam-se com um sorriso. Marguerite foi
educada num pensionato aristocrtico; tinha per-
dido sua me aos sete anos, e seu pai no pde cui-
dar de sua educao. Assim, ficou na penso at os
dezessete anos, aprendendo tudo o que uma moa
rica no pode ignorar, a msica, a dana, as boas
maneiras, at mesmo um pouco de gramtica, his-
tria e aritmtica. Mas sua educao se fez sobre-
tudo em companhia de suas camaradas, meninas
vindas de todos os bons bairros de Paris. Neste mun-
do estreito, que era a imagem em miniatura do vasto
mundo, entre as quatro paredes do jardim onde
cresceu, ela conheceu, desde os catorze anos, as del-
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mile Zola32
cias da fortuna, o esprito prtico do sculo, o po-
der da mulher, tudo aquilo que torna nossa civili-
zao avanada. Se hesita sobre uma questo de
economia domstica, distingue com um nico olhar
todos os pontos de renda imaginveis, fala das mo-
das como uma grande costureira, conhece as atri-
zes por seus apelidos, aposta nas corridas e avaliaos cavalos com palavras tcnicas. E sabe ainda ou-
tra coisa, alis com toda honestidade, pois levou
uma vida de rapaz desde que deixou o pensionato
h oito anos.
Jules, entretanto, envia-lhe todo dia um buqu
de trs luses.3Quando vai v-la, mostra-se muito
galante. Mas a conversa limitada, voltam sempre
sua prxima instalao. Fora dois ou trs cum-
primentos usuais, s falam do tapeceiro, do car-
roceiro, de todos os tipos de fornecedores. Mar-
guerite decidiu finalmente aceitar Jules, porque ele
lhe pareceu de uma mediocridade suficiente, e por-
que ela se entediou demais em casa de seu pai, no
3Luses: antiga moeda francesa de ouro, cunhada no
reinado de Lus XIII. (N. do T.)
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Como Se Casa 33
ltimo inverno. O primeiro passeio amoroso deles
foi visitar a manso da rua dAmsterdam. Ela achou-
a um pouco pequena; mas far com que derrubem
duas divisrias, e ir mudar as portas de lugar. Em
seguida, discute a cor das moblias, inquieta-se em
saber onde ser seu quarto de dormir, desce at as
cavalarias, com as quais se declara satisfeita. Vol-ta ainda duas vezes manso, para dar ela prpria
ordens ao arquiteto. Jules est encantado, encon-
trou a mulher que precisava.
Oito dias antes da cerimnia, as duas famlias
esto estafadas. O clebre Beaugrand e o velho Des-
vignes j tiveram trs conferncias com os notrios.
Vigiam as menores clusulas, na condio de ho-
mens desconfiados, sem iluses sobre a probidade
humana. Jules, de seu lado, padece at no mais
poder por causa do presente de casamento. Mar-
guerite, contra todas as convenincias, com um sor-
riso de menina mimada, lhe pediu para ela prpria
escolher as jias e as rendas. E l se foram eles,
acompanhados apenas por uma parente pobre, vi-
sitando as lojas, avaliando os diamantes e as ren-
das valencianas desde a manh at a noite. Isto di-
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mile Zola34
verte-os, alis. No andam como os apaixonados
ingnuos, de mos dadas, ao longo das sebes; sor-
riem um para o outro, sentados diante dos balces
dos joalheiros, passando anis e broches um para
o outro, os dedos esfriados pelas pedras preciosas.
Finalmente, o contrato foi assinado. Durante
a leitura, houve uma ltima discusso entre o cle-bre Beaugrand e Desvignes. Mas Jules interveio,
enquanto Marguerite escutava, com grandes olhos
atentos, pronta a defender com palavras seus inte-
resses, se os achasse comprometidos. O contrato
muito complicado: deixa a metade do dote dis-
posio do marido, e constitui, com a outra meta-
de, um bem inalienvel cuja renda entrar na co-
munho de bens, com a condio todavia de que
uma soma de doze mil francos por ano seja conce-
dida mulher para seu vesturio. O clebre Beau-
grand, que o autor desta obra-prima, est encan-
tado por ter enrolado seu velho amigo Desvignes.
Para a prefeitura, convida-se no mximo dez
pessoas. O prefeito um primo de Jules; ele reto-
ma seu ar srio para ler o Cdigo, mas, assim que
pe de lado o livro, esmera-se em voltar a ser ho-
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Como Se Casa 35
mem de sociedade, cumprimenta as damas, faz ques-
to de entregar ele prprio a pena s testemunhas,
entre as quais h dois senadores, um ministro e um
general. Marguerite disse o sim sacramental com
uma voz um pouco forte, ar srio, pois ela conhece
a lei. Todos os presentes permanecem graves, como
se ajudassem com sua presena concluso de umnegcio envolvendo grandes capitais. Cada esposo
deixa mil e quinhentos francos para os pobres. E
noite, h, na manso dos Desvignes, um jantar para
o qual foram convidadas as testemunhas; s o mi-
nistro no pde vir, o que deixou as duas famlias
vivamente contrariadas.
O casamento religioso ocorreu na Madeleine.4
Trs dias antes, Jules e seu pai foram combinar os
preos. Quiseram todo o luxo possvel e discutiram
certas cifras: tanto para a missa no altar principal,
tanto para os rgos, tanto para os tapetes. Ficou
combinado que um tapete ir estender-se por vinte
4A igreja da Madeleine em Paris, cuja construo foi
iniciada na segunda metade do sculo XVIII e s foi conclu-
da em 1840. (N. do T.)
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degraus, e vir at a calada; ficou combinado igual-
mente que os rgos saudaro com uma marcha
triunfal a entrada do cortejo; so cinqenta fran-
cos a mais, mas isto causa um grande efeito. Foram
expedidos mil convites. Quando as carruagens che-
gam em uma comprida fila correta, a igreja j est
cheia com uma multido, os homens de casaca, asmulheres com sua melhor toalete. Por um milagre
do coquetismo, Marguerite quase no est mais feia,
sob seu vu branco, e sua coroa de flores de laran-
jeira. Jules est inflado de importncia, ao ver que
incomodou tanta gente. Entretanto, os rgos soam,
os cantores tm vozes metlicas, a cerimnia dura
quase uma hora e meia, sob a majestade das abba-
das. Est tudo muito bonito. Depois, na sacristia,
comea um desfile interminvel. Os conhecidos, os
convidados, at mesmo os desconhecidos, entram
por uma porta, e saem por outra, depois de terem
apertado as mos dos esposos e das duas famlias.
Esta formalidade requer ainda mais uma hora. Aqui
esto muitos polticos, advogados, procuradores,
grandes industriais, artistas, jornalistas; e Jules d
um aperto de mo particularmente cordial num ra-
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Como Se Casa 37
pazinho plido que ele conhece pouco, e que escre-
ve numa folha dos bulevares onde colocar talvez
uma nota sobre o casamento.
Como nem os Beaugrand nem os Desvignes
tm um salo bastante amplo para dar um banquete,
come-se e dana-se noite no Hotel do Louvre. A
comida medocre. O baile, na sala de festas dohotel, est cheio de brilho. meia-noite, uma car-
ruagem leva os casados para a rua dAmsterdam; e
eles se divertem ao longo do caminho, no meio de
Paris s escuras, enquanto as sombras das mulhe-
res rondam pelos cantos das ruas. Quando Jules
entra no quarto nupcial, v que Marguerite o espe-
ra tranqilamente, com o cotovelo apoiado no tra-
vesseiro. Ela est um pouco plida, com um sorri-
so contrafeito, nada mais. E o casamento se consu-
ma bastante naturalmente, como uma coisa h mui-
to tempo esperada.
Eis que os Beaugrand esto casados h dois
anos. No romperam, mas h seis meses esquece-
ram-se um do outro. Quando Jules revisitado por
um capricho por sua mulher, deve cortej-la uma
semana inteira, antes de ser admitido no quarto dela;
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na maior parte das vezes, para economizar seu tem-
po que precioso, ele vai satisfazer seu capricho em
outra parte. Ele tem tantos negcios! Hoje em dia
um homem bem posto; no se contenta mais com
seu cartrio, pertence a vrias sociedades, chega
mesmo a jogar na Bolsa. Sua alegria que Paris se
ocupe com ele, os jornais lhe atribuem ditos espiri-tuosos. Alm disso, no explora sua mulher, e ain-
da no pde encontrar o meio, apesar dos conse-
lhos de seu pai, de tocar nos seiscentos mil francos
imobilizados pelo contrato.
Por sua vez, Marguerite uma mulher encan-
tadora. A moa manteve suas promessas. Fez da
manso da rua dAmsterdam um endereo do luxo
e de festas. Toda a prodigalidade louca de Paris, as
toaletes de mil escudos estragados numa s noite;
as notas bancrias torcidas para acender as velas,
a imprimir um brilho de riqueza extraordinria. Da
manh noite, as carruagens rolam sob sua ab-
bada; e, certas noites, o quarteiro, at a aurora,
ouve uma msica longnqua acalentando os risos
adocicados dos danarinos. Marguerite mostra-se
resplandecente em sua feira; ela se cuidou para ser
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mais desejvel do que uma mulher bonita; ela mais
do que bela, ela pior, como ela prpria diz rindo.
Os um milho e duzentos mil francos de seu dote
ardem como um fogo de palha. Ela arruinaria seu
marido antes de um ano se no possusse uma inte-
ligncia rara. Sabe-se que ela dispe de apenas mil
francos por ms para seus vestidos: mas ningumtem o mau gosto de espantar-se, vendo-a gastar em
um ms o que ela tem num ano. Jules est encanta-
do, nenhuma mulher teria mantido sua manso num
plano semelhante, e ele est sinceramente reconhe-
cido por tudo quanto ela faz com o fim de ampliar
o crculo de suas relaes. Neste momento, Mar-
guerite se mostra filial com um dos senadores que
lhes serviram de testemunhas; ela deixa-se beijar nas
espduas, atrs das portas, e deixa que lhe ofere-
am ttulos de renda nas caixas de pastilhas.
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III.
Louise Bodin j passou dos trinta anos. alta,nem bonita nem feia, com uma fisionomia comum,
cujo celibato comea a empalidecer seu rosto. fi-
lha de um pequeno dono de armarinho da rua Saint-
Jacques estabelecido h mais de vinte anos numa
loja obscura, onde s conseguiu poupar uma deze-
na de mil francos, e para isto foi necessrio comer
carne no mximo duas vezes por semana, usar as
mesmas roupas durante trs anos, contar no inver-
no as ps de carvo jogadas na lareira. H vinte
anos, Louise fica ali, atrs do balco, vendo to-
somente os fiacres salpicar os pedestres. Foi ao cam-
po duas vezes, uma vez para Vincennes, outra para
Saint-Denis. Quando fica na porta, avista, no fim
da rua, a ponte sob a qual o rio passa. Alm disso,
razovel, cresceu no respeito ao tosto das agu-
lhas e aos dois tostes por fio que vende s oper-
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rias do bairro. Sua me enviava-a para um peque-
no pensionato vizinho, mas retirou-a com a idade
de doze anos, para evitar empregar uma caixeira.
Louise sabe ler e escrever, sem ser bem instruda na
ortografia; o que ela sabe mais, so as quatro ope-
raes. Como diz com sua voz pausada, sabe o su-
ficiente para estar no comrcio.Seu pai, todavia, declarou que lhe dar dois mil
francos de dote. Esta promessa se espalhou pelo
bairro, ningum ignora que a senhorita Bodin ter
dois mil francos. Tambm, no lhe faltam partidos.
Mas Louise uma moa prudente. Diz claramente
que no se casar jamais com um rapaz que no
tenha nada. Ningum se junta para ficar de braos
cruzados e ficar olhando um para o outro. Podem
vir os filhos; depois, todos ficam contentes quando
se pode ter um pedao de po na velhice. Quer por-
tanto um marido que tenha pelo menos dois mil
francos, como ela. Podero abrir uma pequena loja,
ganhar honradamente a vida. Mas se os maridos de
dois mil francos no so raros, eles ambicionam
geralmente as mulheres que possuem o duplo ou o
triplo. por isso que Louise corre o risco de ficar
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solteirona. Ela afastou os tipos ruins, os homens que
a rondavam, na expectativa de abocanhar o seu
dote. Admite casar-se por causa de seu dinheiro, j
que o dinheiro, em suma, tudo na vida. S que
quer encontrar um marido que tenha, ele tambm,
respeito pelo dinheiro.
Por fim, falaram a Boudin sobre um bom rapaz,um relojoeiro, de excelentes costumes. Ele mora na
vizinhana com sua me que vive com uma peque-
na renda. A senhora Meunier guardou, por conta de
prodgios de economia, a soma de mil e quinhentos
francos, para facilitar o casamento de seu filho. Ale-
xandre Meunier, um ano mais moo que Louise,
muito tmido, inteiramente conveniente. Mas Louise,
diante da cifra de mil e quinhentos francos, diz logo
que intil levar as coisas adiante, ela vale dois mil
francos, j fez todos os seus clculos. No entanto, es-
tabelecem-se relaes entre as duas famlias. A senho-
ra Meunier espera um casamento desejvel para seu
filho; e, quando ela fica sabendo da soma exigida por
Louise, aprova inteiramente esta resoluo sbia da
moa, e promete, em dezoito meses, completar os dois
mil francos. Desde a, tudo est resolvido.
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Como Se Casa 43
As famlias vivem em intimidade estreita. Os
filhos, Alexandre e Louise, esperam tranqilamen-
te, trocando apertos de mo amistosos. Renem-se
toda noite, e ficam ali, nos fundos da loja, dos dois
lados da mesa, sem um rubor, sem um gesto de im-
pacincia, conversando sobre o bairro, sobre a pros-
peridade de uns tantos, o mau comportamento oua m sorte dos outros. Em dezoito meses, no tro-
cam uma s palavra de amor. Louise acha Alexan-
dre muito honesto, pois ela ouviu dizer, um dia, que
ele no ousara reclamar os dez francos empresta-
dos a um amigo h umas seis semanas. Alexandre
afirma que Louise nasceu para o comrcio; o que
, em sua boca, um grande cumprimento.
No dia aprazado, como numa data de venci-
mento, a senhora Meunier tem os dois mil francos.
H um ano e meio que ela se priva de caf e poupa
tostes na alimentao, na luz e no aquecimento.
Fixa-se ento a data do casamento para daqui a trs
meses, para dar tempo preparao. Ficou decidi-
do que Alexandre se estabelecer como relojoeiro
numa pequena loja, descoberta na prpria rua Saint-
Jacques, a loja de uma vendedora de frutas cujo
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comrcio fracassou. E trata-se, antes de tudo, de pr
a casa em ordem. Por fim, todos se contentam em
lavar o teto e lixar as pinturas, pois o pintor pedia
duzentos francos para refazer tudo. Quanto s mer-
cadorias, consistiro inicialmente em algumas jias
comuns e alguns pndulos de segunda mo. Alexan-
dre comear por fazer os consertos no bairro; e,pouco a pouco, quando se tornarem conhecidos,
com muita ordem, chegaro a ter uma das lojas mais
bonitas e mais enfeitadas da rua. Feitas as contas,
a loja pronta, os custos de instalao pagos, sobra-
ro para eles trs mil francos, com os quais podero
aproveitar as boas compras. Estes arranjos ocupam-
nos at a vspera do casamento.
Quando se falou num contrato, Louise deu de
ombros e Alexandre ficou rindo. Um contrato custa
pelo menos duzentos francos. Eles compartilharo
tudo, e tero tudo pela metade, muito mais na-
tural. Entretanto, decidiram fazer as coisas corre-
tamente. Alexandre, alm da aliana, uma aliana
de ouro de quinze francos, d a Louise uma cor-
rente de relgio. A boda deve ocorrer num res-
taurante do subrbio, em Saint-Mand, no Panier
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Fleuri.5Mas os Bodin declararam que as despesas
do banquete ficaro por conta deles.
O casamento foi marcado para um sbado,
porque, deste modo, tem-se o domingo todo para
descansar. O cortejo inclui cinco carruagens, alu-
gadas pelo dia inteiro. Alexandre mandou fazer uma
sobrecasaca e uma cala pretas. A prpria Louisefez seu vestido branco; e foi uma tia quem lhe deu
a coroa e o buqu de flores de laranjeira. Todos os
convidados, de resto, cerca de vinte pessoas, usam
traje a rigor; as mulheres usam toaletes de seda,
rosas, verdes, amarelas; os homens esto de sobre-
casaca, um antigo comerciante de mveis usa at
mesmo uma casaca. Mas as duas damas de honra,
sobretudo, fazem com que os transeuntes se virem,
duas mocetonas louras de musseline branca, a cin-
tura apertada por grandes cintos azuis. E, desde as
onze horas da manh, o cortejo se pe em movi-
mento, parte para a prefeitura, onde a boda invade
a sala de casamentos. O prefeito se faz esperar du-
rante trs quartos de hora. um sujeito grandalho
5Cesto Florido. (N. do T.)
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de ar entediado, que despacha os artigos do Cdi-
go olhando continuamente o relgio sua frente:
tem de comparecer a um encontro de negcios. A
senhora Bodin e a senhora Meunier choram mui-
to. Os noivos respondem sim, dirigindo ao pre-
feito um cumprimento polido. Enquanto isso, o an-
tigo comerciante de mveis permite-se pilhrias, quefazem os senhores dar risadas; Alexandre e Louise
separam cada um deles uma moeda de cinco fran-
cos para os pobres. Depois, o cortejo sobe de novo
nas carruagens, atravessa a praa e torna a descer
diante da igreja. Na vspera, o senhor Bodin e Ale-
xandre vieram para combinar a cerimnia; escolhe-
ram o que h de mais simples, porque no h ne-
cessidade de engordar os padres; o senhor Bodin,
que livre pensador, chegou a querer que no se
fosse igreja e, se cedeu, foi por convenincia. O
padre conduz rapidamente a missa, uma missa sim-
ples no altar da Virgem. Os presentes se levantam
e voltam a sentar-se quando o sacristo lhes faz um
sinal. S as mulheres tm missais, que no lem. Os
noivos permanecem graves, com rostos vagamente
entediados e distrados, como se no pensassem em
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Como Se Casa 47
nada. Enfim, quando o cortejo sai da igreja, todo
mundo suspira aliviado. Agora acabou, j se pode
rir um pouco.
L pelas duas horas, as carruagens chegam a
Saint-Mand. O jantar s vai sair s seis horas. To-
dos caminham at o bosque de Vincennes. E, duran-
te trs horas, um passeio endomingado em meios rvores; as damas de honra correm como garoti-
nhas, as senhoras procuram a sombra, os senhores
acendem os charutos. Como todo o cortejo est ar-
rebentado de fadiga, todos terminam por sentar-se
no meio de uma clareira e a esquecem, a escutar
os clarins de um forte vizinho, o apito agudo das
locomotivas que passam, o estrondo longnquo de
Paris no horizonte.
Entretanto, a hora do banquete se aproxima,
todos voltam para o restaurante. A mesa est posta
numa grande sala iluminada por dez bicos de gs,
como num caf, h grandes buqus artificiais cujo
uso murchou as flores. E o servio comea, em meio
ao rudo das colheres nos pratos de sopa. Depois,
todos se aquecem, brincam de uma extremidade
outra da mesa. O momento mais alegre da noite
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aquele em que um rapaz, um caixeiro de artigos no-
vos, escorrega para debaixo da mesa e vai desatar
a liga da noiva, um fluxo de fitas cujos pedaos so
divididos entre os senhores, para ornamentar suas
lapelas. Louise queria ser poupada desta brincadeira
clssica, mas seu pai lhe mostrou que isto entristece-
ria as bodas, e ela se conformou ao costume comseu bom senso comum. Alexandre ri muito alto,
transborda com uma alegria de rapaz srio que no
se diverte com freqncia. A liga, alis, suscitou pi-
lhrias bem atrevidas. Quando h uma muito forte,
as senhoras escondem o rosto nos guardanapos,
para poder rir vontade.
So nove horas. Os garons do restaurante pe-
dem ao cortejo para passar a uma sala vizinha. En-
quanto isso, tiram rapidamente a mesa, e a grande
sala de refeies se transforma num salo de dan-
a. Dois violes, um piston, uma clarineta e um
contrabaixo so instalados em cima de um estra-
do. O baile comea; os vestidos das damas de hon-
ra, fustigados pelo azul de seus cintos, flutuam de
uma ponta da sala outra, em meio a sobrecasacas
pretas. Est muito quente, as senhoras abrem uma
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Como Se Casa 49
janela, respiram o ar puro de fora. Serve-se em ban-
dejas de vidro xarope de groselha. Por volta das duas
horas, procura-se a noiva por toda a parte, mas ela
desapareceu, voltou para Paris com sua me e seu
marido. O senhor Bodin ficou para representar a
famlia e para entreter o bom humor dos convivas.
preciso danar at o dia nascer.Na rua Saint-Jacques a senhora Bodin e duas
outras damas cuidam da toalete noturna da casa-
da. Elas vo deit-la na cama e, juntas, as trs se
pem a chorar. Louise, que elas deixam impacien-
te, despede-as, depois de se ver, ela prpria, fora-
da a encoraj-las. Ela est muito tranqila, apenas
fatigada, com uma grande vontade de dormir. E com
efeito, como Alexandre, intimidado, demora demais
para aparecer, ela termina dormindo, afundada em
seu lugar no leito. Alexandre, no entanto, aproxi-
ma-se na ponta dos ps. Pra, olha-a por um ins-
tante a dormir, aliviado. Depois, com mil precau-
es, tira a roupa, escorrega para baixo do lenol
evitando os encontres. Ele nem mesmo ir beij-
la. Fica para amanh de manh. Tm o tempo todo,
j que esto casados pela vida inteira.
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E levam uma vida bem feliz. Tm a sorte de
no ter filhos; filhos iriam perturb-los. O comr-
cio deles prospera, a pequena loja cresce, as vitri-
nes se enchem de jias e pndulos. Louise que
toma conta do negcio. Ela fica, durante horas, no
balco, sorrindo para os clientes, assegurando-lhes
que jias fora de moda foram fabricadas na vspera; noite, com a pena na orelha, verifica as contas.
Muitas vezes, passa o dia inteiro correndo os qua-
tro cantos de Paris, por causa das encomendas. Toda
a sua existncia transcorre na preocupao constan-
te com o comrcio; a mulher desapareceu, resta ape-
nas uma caixeira ativa e astuciosa, sem sexo, inca-
paz de um descuido, com a idia fixa de aposentar-
se com cinco ou seis mil francos de renda, para ir
com-los, em Suresnes, numa casa construda em
forma de chal suo. Por sua vez, Alexandre de-
monstra uma serenidade absoluta, uma confiana
cega em sua mulher. Ele ocupa-se apenas com os
trabalhos de relojoaria, com o conserto de relgios
e pndulos; e parece que a prpria casa um gran-
de relgio, cujos ponteiros eles acertaram entre si
para sempre. Jamais iro saber se se amaram. Mas
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Como Se Casa 51
sabem, com toda certeza, que so scios honestos,
vidos pelo dinheiro, que continuam a dormir jun-
tos para evitar uma dupla lavagem de lenis.
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IV.
Valentin um rapago de vinte e cinco anos,marceneiro de profisso, que nasceu em pleno bairro
de Saint-Antoine. Seu pai e seu av eram marcenei-
ros. Cresceu no meio de aparas, jogou bola, at os
doze anos, na calada da praa da Bastilha, ao re-
dor da coluna de Julho. Agora, dorme na rua da
Roquette, num imvel de m fama, onde tem, por
dez francos ao ms, um buraco sob os tetos, to-
somente o lugar para um leito e uma cadeira; e ain-
da, para deitar-se no leito, obrigado a abaixar-se,
se no quiser bater com a cabea no teto. Alis, ele
prprio brinca com isso. No recebe ningum em
seu apartamento; volta para se deitar s dez horas,
e desde as cinco horas da manh, no inverno e no
vero, sacode as suas pulgas. Diz apenas que fica
vexado, pois quando conhece algum, no ousa tra-
zer a dama para seu quarto. to pequeno que, se
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Como Se Casa 53
dois se deitassem, certamente um teria que deixar
suas pernas na escada.
Um bom sujeito, este Valentin! Trabalha du-
ro, porque ainda jovem e acredita no trabalho.
Por isso, nada de bebedeiras, nem de jogo, um pou-
co mulherengo, talvez. As mulheres, eis sua gran-
de fraqueza. Quando, de manh, impulsiona suaplaina com uma mo sobre o papel mach, os ca-
maradas ficam a goz-lo, gritam que ele viu a se-
nhorita Lise. Isto acontece porque uma ex-namo-
rada de Valentin se chamava Lise, e porque, nos
dias em que a preguia o assaltava, ele tinha o h-
bito de dizer: Por tudo que sagrado, isto no
anda, vi Lise ontem noite!. Nas salas de baile
do bairro, ele conhecido como o belo marcenei-
ro. Tem uma grande fisionomia alegre, cabelos on-
dulados; e, quando dana, chega a arregaar as
mangas da camisa para sentir-se mais vontade,
o que diz, mas na realidade para mostrar seus
braos fortes, que so brancos como os de uma mu-
lher. Teve as moas mais bonitas, a grande Nana,
a pequena Augustine, e a gorda Adle que s tem
um olho, e at mesmo a Bordalesa, uma encader-
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nadora pela qual dois militares se mataram. Toda
noite, faz a ronda dos bailes, uma espiada aqui,
outra ali, unicamente para ver se h, nos cantos,
senhoritas que ele no conhece.
Uma noite, ao entrar noJardin de Flore, uma
sala de bailes da rua da Charonne, eis que avista
Clmence, uma florista de dezesseis anos, cujos beloscabelos louros lhe parecem um sol aceso na sala.
Na mesma hora, sente-se tocado. Durante toda a
noite banca o amvel, dana com a pequena, paga
uma jarra de vinho francesa. Depois, l pelas onze
horas, quando Clmence volta para casa, ele a acom-
panha e, naturalmente, quer subir. Mas ela recusa
com voz firme. Ela passa de boa vontade uma noi-
te no baile; s que no vai mais longe do que isso.
E ela bate a porta no nariz dele. No dia seguinte,
ele toma informaes. Clmence j teve um aman-
te, que a abandonou ali mesmo, deixando-a com
dois aluguis nas costas. Ento, ela jurou vingar-se
no primeiro homem que fizesse a tolice de am-la.
No entanto, nos dias seguintes, Valentin espe-
ra-a na calada, arrisca-se a subir para lhe dar bom-
dia, persegue-a por toda parte.
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Como Se Casa 55
E ento, esta noite? grita para ela, rindo.
Mas ela responde com voz alegre:
No, fica para amanh!
Todos os domingos, ele a encontra noJardin
de Flore. L est ela, sentada perto da orquestra dos
msicos. Ela aceita o vinho francesa, dana com
ele, mas, assim que ele quer beij-la, ela lhe acertaum tapa; e, se ele fala em ficarem juntos, ela lhe diz
com um ar muito razovel que ele faz mal em obs-
tinar-se, que ela no quer porque isto no a agra-
da. Durante seis semanas, ficam brincando assim,
sem parar de rir.
No fim do segundo ms, Valentin torna-se
sombrio. No consegue mais dormir noite, no seu
buraco, sob os tetos. Sente-se asfixiado. Quando
est deitado, os grandes olhos abertos, percebe no
escuro o rosto louro de Clmence, cujos cabelos
brilham, com seu esplendor de sol. Ento a febre
toma conta dele, fica a se revirar at de manh, co-
mo se estivesse de p sobre carves; e no dia seguin-
te, na oficina, no faz nada, os olhos perdidos, os
instrumentos caindo das mos. Os camaradas gri-
tam para ele: Ento voc viu a senhorita Lise?
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mile Zola56
No, infelizmente no, no viu a senhorita
Lise. Foi trs vezes at o quarto de Clmence, ajoe-
lhou-se, suplicando-a para que ela o aceitasse. Mas
ela disse no, sempre no: de modo que ele acabou
chorando como um idiota, na rua. Pensa em ir dor-
mir diante da porta dela, no patamar, porque lhe
parece que iria se sentir melhor ali, ouvindo o levesopro dela, pelas fendas. O desejo por esta moa
a quem ele torceria o pescoo com dois dedos, co-
mo a uma galinha, tira-lhe da boca a bebida e a
comida.
Por fim, uma noite, sobe at o quarto de Cl-
mence e lhe prope bruscamente casar-se com ele.
Ela fica surpresa, mas aceita rapidamente. Ela pr-
pria ama-o com todo o corao; s que ela tinha
chorado demais, quando o primeiro a abandonou.
Mas desde que se trata de ficarem juntos para sem-
pre, ela aceita de corao.
No dia seguinte, vo at a prefeitura para sa-
ber. A extenso das formalidades consterna-os.
Clmence no sabe onde encontrar o atestado de
bito de seu pai. Valentin corre de escritrio em es-
critrio antes de obter o documento atestando sua
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liberao do servio. Eles se vem todos os dias, ago-
ra, vo passear nas fortificaes e comer bolacha
nas festas de subrbio. noite, quando voltam pe-
las ruas compridas do subrbio, no dizem nada,
vo docemente de braos dados. O corao est
cheio de uma alegria da qual no sabem nem co-
mo falar. Clmence cantou, certa vez, para Valentinuma romana, em que se falava de uma dama num
balco e de um prncipe que beijava os cabelos de-
la; e Valentin gostou tanto que ficou com os olhos
midos de lgrimas.
As formalidades foram cumpridas, o casamen-
to foi fixado para um sbado. Iro casar-se com toda
a tranqilidade. Valentin foi ver a igreja, mas como
o padre lhe pedia seis francos, respondeu-lhe que
no tinha necessidade de sua missa, e Clmence de-
clarou que o casamento na prefeitura era o nico
vlido. No incio, falaram em no realizar a boda;
depois, para no parecer que se escondiam, orga-
nizaram um piquenique a cem tostes por cabea,
num comerciante de vinhos na fronteira do Trne.
Sero dezoito mesa, Clmence deve trazer trs
amigas suas que se casaram. Valentin recrutou um
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bando inteiro de marceneiros e de ebanistas, com
as damas. O encontro, no comerciante de vinhos,
ser s duas horas, porque h o projeto de se dar
um passeio antes do jantar.
Na prefeitura, Valentin e Clmence apresen-
tam-se acompanhados apenas por suas testemunhas.
Valentin mandou limpar sua sobrecasa. Clmence,h trs dias, passa as noites a consertar um velho
vestido azul que uma de suas amigas, maior que ela,
lhe vendeu por dez francos. Ela usa um bon enfei-
tado de flores vermelhas. E est to bonita, com sua
cara branca de mocinha, sob as mechas soltas de
seus cabelos louros, que o prefeito sorri paternal-
mente para ela. Quando chega sua vez de dizer
sim, sente que Valentin lhe d uma cotovelada,
e explode numa risada. Todo mundo ri na sala, at
os empregados do escritrio. como um sopro de
juventude atravs das folhas amarelecidas do C-
digo. Depois, quando se trata de assinar o registro,
as testemunhas se esforam. Valentin traa uma
cruz, porque no sabe escrever. Clmence faz um
grande borro. Na subscrio para os pobres, to-
dos do dois tostes. Apenas a casada, depois de
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ter dado uma longa busca em seus bolsos, termina
por dar dez tostes.
s duas horas, a sociedade se rene no comer-
ciante de vinhos da praa do Trne. De l saem
todos, vo para as fortificaes, caminham juntos;
depois os homens organizam um jogo de cabra-cega,
no fosso. Quando um dos marceneiros agarra umadama, ele a retm por um instante em seus braos,
belisca-a nos quadris; a dama solta gritinhos, diz que
isto proibido, que no se deve beliscar. Toda a
gente ri s gargalhadas; este canto deserto fica to
perturbado com todo esse alarido que os pardais
assustados saem voando das rvores, ao longo do
caminho em volta. No retorno h trs meninos que
os pais so obrigados a carregar nas costas, porque
no podem mais andar.
O que no impede ningum de dar garfadas
furiosas, noite, no jantar. Cada um quer comer
os seus cem tostes. Foi tudo pago, no mesmo?
Pode-se limpar tranqilamente os pratos. Seria pre-
ciso ver com que cuidados os ossos so depenados.
No se deixa nada que se possa levar de volta para
a cozinha. Valentin, que os camaradas querem em-
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bebedar, de brincadeira, vigia seu copo; mas Cl-
mence, que no bebe vinho puro habitualmente, es-
t muito vermelha e fala como um papagaio, com
gritos de pssaro. Na sobremesa, comeam as can-
es. Cada um canta a sua. Durante trs horas,
um arrulho de coplas interminveis. Um canta uma
romana, o outro uma histria onde se fala de Ve-neza e das gndolas; o outro tem como especialidade
canonetas cmicas e narra os estragos do vinho
barato, deixando o homem brio no refro; um ter-
ceiro enceta uma chocarrice, um pouco salgada, que
as damas, rindo muito alto, acompanham com os
cabos das facas nos copos. No entanto, quando se
trata de pagar, todos se aborrecem. O comerciante
do vinho reclama acrscimos. Como! Acrscimos?
Combinaram cem tostes, portanto so cem tostes,
sem mais nada! E como o comerciante de vinho
ameaa chamar os sargentos da cidade, a coisa de-
sanda, trocam-se murros, uma parte da boda vai
terminar a noite na guarda. Felizmente, os casados
tiveram a sabedoria de sair pela porta, assim que
comeou a disputa.
So quatro horas da manh, quando Valentin
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e Clmence entram no quarto dela, que decidiram
manter at o prximo aluguel. Desceram todo o
bairro de Saint-Antoine a p, em meio a um venti-
nho frio que nem sentiam, de tal modo caminha-
vam rpido. E, assim que a porta foi fechada, Va-
lentin toma Clmence em seus braos, cobre-lhe o
rosto de beijos, com uma brutalidade apaixonadaque a faz rir. Ela se pendura no pescoo dele, beija-
o com todas as suas foras, para provar-lhe que o
ama. S que o leito no est pronto, ela se apres-
sou tanto de manh que simplesmente estendeu o
cobertor. E ele a ajuda a virar o colcho. Assim o
dia j est nascendo, quando eles se deitam. O ca-
nrio de Clmence, cuja gaiola est pendurada perto
da janela, tem um trinado muito doce. No quarto
pobre, sob os cortinados gastos do leito, o amor in-
troduz como que um bater de asas.
Feitas as contas, Valentim e Clmence torna-
ram-se um casal com vinte e trs tostes. Na segun-
da-feira, voltam tranqilamente ao trabalho, cada
um de seu lado. E os dias transcorrem, e a vida pas-
sa. Com trinta anos, Clmence est feia, seus cabe-
los louros se tornaram de um amarelo sujo, os trs
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meninos que ela amamentou deformaram-na, Va-
lentin caiu no vinho, o bafo forte, seus belos bra-
os endurecidos e emagrecidos pela plaina. Nos
dias de pagamento, quando o marceneiro volta b-
bado, com os bolsos vazios, o casal troca bofeta-
das, enquanto os midos berram. Pouco a pouco,
a mulher se habitua a ir buscar seu homem no co-merciante de vinhos; e ela termina por se sentar
mesa, toma sua dose de litros, no meio da fumaa
dos cachimbos. Mas ela ama seu homem assim
mesmo, desculpa-o quando ele lhe d algum tapa.
Alm disso, ela continua honesta; no se pode acus-
la de deitar-se com o primeiro que aparece, como
certas criaturas. E, nesta vida de brigas e de mis-
ria, na sujeira do domiclio freqentemente sem la-
reira e sem po, na lenta degradao do casal, h,
at a morte, sob os cortinados em farrapos do lei-
to, noites em que o amor traz a carcia de seu bater
de asas.
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I.
O conde de Verteuil tem cinqenta e cincoanos. Pertence a uma das mais ilustres famlias da
Frana, e possui uma grande fortuna. Enfastiando-
se com o governo, ocupou-se como pde, entregou
artigos para revistas srias, que o fizeram entrar para
a Academia de Cincias Morais e Polticas, lanou-
se aos negcios, apaixonou-se sucessivamente pela
agricultura, pela criao de animais, pelas belas-
artes. Chegou mesmo a ser, por algum tempo, depu-
tado, e distinguiu-se pela violncia de sua oposio.
A condessa Mathilde de Verteuil tem quaren-
ta e seis anos. Ainda citada como a loura mais
adorvel de Paris. A idade parece embranquecer sua
pele. Era um pouco magra: agora, suas espduas,
ao amadurecer, assumiram a redondeza de um fru-
to sedoso. Nunca foi to bela assim. Quando entra
num salo, com seus cabelos dourados e o cetim de
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seu pescoo, parece um astro ao nascer; e as mu-
lheres de vinte anos a invejam.
O casamento do conde e da condessa um
desses sobre os quais no se diz nada. Casaram-se
como se casa em geral no mundo deles. Chega-se a
afirmar que viveram muito bem juntos durante seis
anos. Nesta poca, tiveram um filho, Roger, que tenente, e uma filha, Blanche, a quem casaram no
ano passado com o senhor de Bussac, regente dos
requerimentos. Eles se unem por causa de seus fi-
lhos. Depois de terem rompido h anos, continuam
bons amigos, com um grande fundo de egosmo.
Consultam-se, so perfeitos um com o outro dian-
te da sociedade, mas trancam-se em seguida em seus
apartamentos, onde recebem os ntimos de acordo
com sua vontade.
Entretanto, uma noite, Mathilde volta de um
baile l pelas duas horas da manh. Sua camareira
despe-a; depois, na hora de sair, diz:
O senhor conde ficou um pouco indispos-
to, esta noite.
A condessa, semi-adormecida, volta preguio-
samente a cabea.
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Como Se Morre 67
Ah! murmura.
Ela se deita, acrescentando:
Acorde-me amanh s dez horas, espero a
modista.
No dia seguinte, no caf da manh, como o
conde no aparece, a condessa pede em primeiro
lugar notcias sobre ele; em seguida, decide subirpara v-lo. Encontra-o muito plido em seu leito,
muito correto. Trs mdicos j vieram, conversa-
ram em voz baixa e deixaram instrues; devem
voltar noite. O doente est sendo cuidado por dois
empregados, que se agitam graves e mudos, abafan-
do o rudo de seus calados sobre o tapete. O quarto
amplo dormita, numa severidade fria; no se arrasta
sequer uma s pea de roupa, no se mexe em ne-
nhum mvel. a doena asseada e digna, a doena
cerimoniosa, que espera visitas.
Est sofrendo, meu amigo? pergunta a
condessa.
O conde faz um esforo para sorrir.
Ah!, um pouco de fadiga responde.
S preciso de repouso... Agradeo-lhe por ter se in-
comodado.
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Passam-se dois dias. O quarto permanece dig-
no; cada objeto est em seu lugar, os remdios de-
saparecem sem manchar um mvel. Os rostos bar-
beados dos empregados no se permitem sequer
exprimir um sentimento de tdio. No entanto, o
conde sabe que corre perigo de morte; exigiu a ver-
dade dos mdicos, e deixa-os agir, sem uma quei-xa. Na maior parte das vezes, fica com os olhos
fechados, ou ento olha fixamente sua frente, co-
mo se refletisse sobre sua solido.
Em sociedade, a condessa diz que seu marido
est doente. Ela no mudou nada em sua vida, come
e dorme, passeia nas horas habituais. Toda manh
e toda noite, ela prpria vem perguntar ao conde
como ele est passando.
E ento? Est melhor, meu amigo?
Sim, muito melhor, obrigado, minha que-
rida Mathilde.
Se quiser, ficarei a seu lado.
No, intil. Julien e Franois bastam...
Para que cans-la?
Os dois se compreendem, viveram separados
e querem morrer separados. O conde tem este pra-
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zer amargo do egosta, desejoso de ir embora sozi-
nho, sem ter ao redor de seu leito o tdio das co-
mdias de dor. Abrevia o mais possvel, para si e
para a condessa, o desconforto do supremo cara-
a-cara. Sua ltima vontade desaparecer adequa-
damente, na condio de homem de sociedade que
no quer incomodar nem repugnar a ningum.No entanto, uma noite, ele mal consegue respi-
rar, sabe que no passar dessa noite. Ento, quando
a condessa sobe para fazer sua visita habitual, ele
lhe diz achando um ltimo sorriso:
No saia... No me sinto bem.
Ele quer evitar para ela os comentrios mun-
danos. Ela, por sua vez, esperava este aviso. E ela
se instala no quarto. Os mdicos no abandonam
mais o agonizante. Os dois empregados terminam
seu servio, com a mesma diligncia silenciosa. Os
filhos, Roger e Blanche, foram chamados, permane-
cendo perto do leito, ao lado de sua me. Os ou-
tros parentes ocupam um aposento vizinho. A noite
se passa deste modo, numa espera grave. De ma-
nh, os ltimos sacramentos so ministrados, o con-
de comunga diante de todos, para dar um ltimo
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apoio religio. O cerimonial est cumprido, ele
pode morrer.
Mas ele no tem pressa, parece reencontrar
foras, a fim de evitar uma morte convulsiva e ba-
rulhenta. Sua respirao, no amplo quarto severo,
emite apenas o rudo interrompido de um relgio
enguiado. um homem bem educado que vai em-bora. E, depois de ter abraado sua mulher e seus
filhos, afasta-os com um gesto, cai do lado da pa-
rede, e morre s.
Ento, um dos mdicos se debrua, fecha os
olhos do morto. Depois, diz em voz baixa:
Acabou.
Suspiros e lgrimas elevam-se no silncio. A
condessa, Roger e Blanche se ajoelharam. Choram
entre suas mos juntas; no se v seus rostos. De-
pois, os dois filhos levam sua me, que, na porta,
querendo assinalar seu desespero, balana a cintu-
ra num ltimo soluo. E, a partir deste instante, o
morto pertence pompa de suas exquias.
Os mdicos se foram, curvando as costas e
assumindo uma compostura vagamente desolada.
Chamaram um padre na parquia, para velar o cor-
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po. Os dois empregados ficam com este padre, sen-
tados nas cadeiras, rgidos e dignos; o que se es-
pera de seus servios. Um deles percebe uma colher
esquecida sobre um mvel, e a faz escorregar rapi-
damente em seu bolso, para que a bela ordem do
quarto no seja perturbada.
Ouve-se embaixo, no grande salo, um rudode martelos: so os tapeceiros que dispem esta pea
na capela funerria. O dia todo tomado pelo em-
balsamamento; as portas so fechadas, o embal-
samador fica s com seus ajudantes. Quando des-
cem o conde, no dia seguinte, e ele fica exposto, est
de casaca, tem um frescor de juventude.
Desde as nove horas, na manh das exquias,
a manso se enche de um murmrio de vozes. O
filho e o genro do defunto, num salo ao rs do
cho, recebem a multido; inclinam-se, mantm a
polidez muda de pessoas afligidas. Todas as figu-
ras ilustres compareceram, a nobreza, o exrcito, a
magistratura; h at mesmo senadores e membros
do Instituto.
s dez horas, finalmente, o enterro se pe a
caminho da igreja. A carreta uma carruagem de
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primeira classe, empenachada de plumas, ornada
de tapearias com franjas de prata. As alas do cai-
xo esto seguradas por um marechal da Frana,
um duque, velho amigo do defunto, um antigo mi-
nistro e um acadmico. Roger de Verteuil e o sr. De
Bussac esto de luto. Em seguida, vem o cortejo,
uma onda de pessoas de luvas e gravatas pretas,personagens importantes que respiram na poeira
e caminham com o andar surdo de um rebanho
dispersado.
O bairro alvoroado est nas janelas; pessoas
formam alas nas caladas, tiram o chapu e vem
passar com inclinaes de cabea o enterro triun-
fal. A circulao interrompida pela fila intermi-
nvel de carruagens enlutadas, quase todas vazias;
os nibus, os fiacres se amontoam nas encruzilha-
das; ouve-se as imprecaes dos cocheiros e os es-
talidos dos chicotes. E durante esse tempo, a con-
dessa de Verteuil, que ficou em casa, trancou-se em
seu apartamento, mandando dizer que as lgrimas
haviam-na deixado prostrada. Estendida num cana-
p, brincando com as borlas de seu cinto, olha para
o teto, aliviada e sonhadora.
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Como Se Morre 73
Na igreja, a cerimnia dura cerca de duas ho-
ras. Todo o clero est ocupado desde a manh, s
se v padres atarefados correndo de sobrepeliz, dan-
do ordens, enxugando a fronte e assoando-se com
barulho retumbante. No meio da nave coberta de
preto, um catafalco resplandece. Por fim, o cortejo
assentou-se, as mulheres esquerda, os homens direita; e os rgos despejam suas lamentaes, os
cantores gemem surdamente, as crianas do coro
tm soluos agudos; enquanto, nas tocheiras, ardem
altas chamas verdes, que acrescentam sua palidez
fnebre pompa da cerimnia.
Ser que Faure no vai cantar? pergun-
ta um deputado a seu vizinho.
Sim, acho que sim responde o vizinho,
um antigo prefeito, homem soberbo que sorri de
longe para as damas.
E, quando a voz do cantor se ergue na nave
que estremece:
Que mtodo, hein? Que amplitude! ele
recomea em voz baixa, balanando a cabea com
maravilhamento.
Toda a platia est seduzida. As damas, com
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um vago sorriso nos lbios, pensam em suas noites
na pera. Este Faure tem mesmo talento! Um ami-
go do defunto chega a dizer:
Ele nunca cantou melhor!... pena que este
pobre Verteuil no possa ouvi-lo, logo ele que gos-
tava tanto dele!
Os cantores, com capas pretas, passeiam ao re-dor do catafalco. Os padres, em nmero de vinte,
complicam o cerimonial, fazem reverncias, reto-
mam as frases latinas, agitam os hissopes. Por fim,
at os que esto presentes circulam diante do caixo,
os hissopes circulam. E todos comeam a sair, de-
pois de apertos de mo na famlia. L fora, o dia
claro cega a multido.
um belo dia de junho. No ar quente, voam
fios leves. Ento, diante da igreja, h empurres. O
cortejo demora a se reorganizar. Aqueles que no
querem seguir mais adiante desaparecem. A duzen-
tos metros, no fim de uma rua, j se avista os pena-
chos da carreta que balanam e se perdem, quando
o local ainda est todo tomado pelas carruagens.
Ouve-se os estalidos das portinholas e o trote brusco
dos cavalos sobre os paraleleppedos. Enquanto isso,
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os cocheiros formam fila, o enterro se dirige para o
cemitrio.
Nas carruagens, todos ficam vontade, pode-
se acreditar que se vai ao Bois lentamente, no meio
de Paris primaveril. Como no se avista mais a car-
reta, esquece-se depressa do enterro; e as conver-
sas comeam, as damas falam do veraneio, os ho-mens conversam sobre seus negcios.
Diga-me, ento, minha cara, ainda vai a
Dieppe, este ano?
Sim, talvez. Mas s poder ser em agosto...
Partimos sbado para a nossa propriedade em Loire.
Ento, meu caro, ele deu pela letra de cm-
bio, e eles se confrontaram, oh, muito gentilmen-
te, um simples arranho... noite, jantei com ele
no crculo. Chegou a ganhar vinte e cinco luses de
mim.
Ah! mesmo? A reunio dos acionistas ser
depois de amanh... Querem nomear-me para o co-
mit. Estou to ocupado, no sei se vou poder.
O cortejo, depois de alguns instantes, segue por
uma avenida. Uma sombra fresca cai das rvores,
e as alegrias do sol cantam no verde. De repente,
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uma dama atordoada, que se pendura numa porti-
nhola, deixa escapar:
Vejam s! Como isto aqui encantador!
Neste momento o enterro entra no cemitrio
Montparnasse. As vozes se calam, s se ouve o ran-
gido das rodas na areia das alias. preciso ir at
o fim, a sepultura dos Verteuil no fundo, esquer-da: um grande tmulo de mrmore branco, uma
espcie de capela, bastante ornamentada com escul-
turas. O caixo colocado diante da porta desta
capela, e os discursos comeam.
So quatro. O antigo ministro retraa a vida po-
ltica do defunto, que ele apresenta como um gnio
modesto, que teria salvo a Frana, se no tivesse des-
prezado a intriga. Em seguida, um amigo fala das vir-
tudes privadas daquele que todo mundo chora. De-
pois, um senhor desconhecido toma a palavra como
delegado de uma sociedade industrial da qual o conde
de Verteuil era presidente honorrio. Por fim, um ho-
mem baixo com feies envelhecidas diz os senti-
mentos da Academia de Cincias Morais e Polticas.
Enquanto isso, os presentes se interessam pe-
los tmulos vizinhos, lem as inscries sobre as pla-
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cas de mrmore. Aqueles que esticam as orelhas,
captam apenas palavras. Um velho, de lbios aper-
tados, depois de ter apanhado este fim de frase: ...
as qualidades do corao, a generosidade e a bon-
dade dos grandes carteres..., balana o queixo,
murmurando:
Pois sim, eu o conheci, era um cachorroperfeito!
O ltimo adeus se dissipa no ar. Quando os
padres terminam de abenoar o corpo, as pessoas
se retiram, e s ficam, neste canto apartado, os co-
veiros que descem o caixo. As alas fazem um ro-
ar surdo, o atade de carvalho estala. O senhor
conde de Verteuil est em sua casa.
E a condessa, no canap, no se mexeu. Con-
tinua a brincar com as borlas de seu cinto, os olhos
no teto, perdida num devaneio que, pouco a pou-
co, faz enrubescer seu rosto de loura bonita.
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II.
A senhora Gurard viva. Seu marido, que
ela perdeu h oito anos, era magistrado. Ela per-tence alta burguesia e possui uma fortuna de dois
milhes. Tem trs meninos, trs filhos, que, com a
morte do pai, herdaram, cada um deles, quinhen-
tos mil francos. Mas estes filhos, nesta famlia se-
vera, fria e afetada, cresceram como rebentos sel-
vagens, com apetites e falhas vindos de no se sabe
onde. Em alguns anos, devoraram seus quinhentos
mil francos. O mais velho, Charles, apaixonou-se
pela mecnica e dissipou um dinheiro absurdo em
invenes extraordinrias. O segundo, Georges, dei-
xou-se devorar pelas mulheres. O terceiro, Maurice,
foi roubado por um amigo, com o qual empreen-
deu a construo de um teatro. Hoje, os trs filhos
so mantidos pela me, que certamente deseja ali-
ment-los e aloj-los, mas que guarda consigo, por
prudncia, as chaves dos armrios.
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Toda esta gente mora num vasto apartamen-
to da rua de Turenne, no Marais. A senhora Gu-
rard tem sessenta e oito anos. Com a idade, vieram
as manias. Ela exige, em sua casa, uma tranqili-
dade e um decoro de claustro. avara, conta os
torres de acar, ela prpria fecha as garrafas que
foram abertas, d a roupa e a baixela medida dasnecessidades do servio. Seus filhos, sem dvida,
gostam muito dela, e ela manteve sobre eles, ape-
sar dos trinta anos deles e de suas tolices, uma au-
toridade absoluta. Mas, quando se v s no meio
destes trs grandes diabos, tem inquietaes surdas,
teme sempre pedidos de dinheiro, que no saberia
como recusar. Assim tomou tambm a precauo
de investir seu dinheiro em propriedades fundirias;
possui trs casas em Paris e terrenos do lado de
Vincennes. Estas propriedades lhe do um enorme
trabalho; mas s assim fica tranqila, e acha des-
culpas para no dar grandes somas.
Charles, Georges e Maurice, alis, extorquem
a casa tanto quanto podem. Ficam acampados ali,
disputando os pedaos, reprovando-se mutuamen-
te sua grande fome. A morte da me ir enriquec-
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los de novo; sabem disso, e o pretexto lhes parece
suficiente para esperar, sem fazer nada. Ainda que
nunca conversem sobre isso, sua preocupao con-
tnua saber como a partilha ser feita; se no se
entenderem, ser preciso vender, o que sempre
uma operao ruinosa. E pensam nestas coisas sem
nenhum desejo ruim, unicamente porque precisoprever tudo. So alegres, bons meninos, de uma
honestidade mdia; como todo mundo, desejam que
sua me viva o maior tempo possvel. Ela no os
incomoda. Eles esperam, eis tudo.
Uma noite, ao sair da mesa, a senhora Gu-
rard tem um mal-estar. Seus filhos foram-na a se
deitar, e deixam-na com a camareira, quando ela
os assegura de que est melhor, que teve apenas uma
grande enxaqueca. Mas, no dia seguinte, o estado
da velha senhora piorou, o mdico da famlia, in-
quieto, pede outras consultas. A senhora Gurard
est em grave perigo. Ento, durante oito dias, um
drama se desenrola ao redor do leito da agonizante.
O primeiro cuidado dela, ao se ver trancada
em seu quarto pela doena, foi de ficar com todas
as chaves e de escond-las debaixo de seu traves-
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seiro. Ela quer, de seu leito, governar ainda, prote-
ger seus armrios contra o desperdcio. Lutas se
desencadeiam nela, as dvidas dilaceram-na. Ela s
se decide depois de longas hesitaes. Seus trs fi-
lhos esto ali, e ela estuda-os com seus olhos vagos,
espera de uma inspirao feliz.
Um dia, em Georges que ela confia. Faz si-nal para que ele se aproxime, diz-lhe meia-voz:
Veja, aqui est a chave do buf, pegue o
acar... Feche bem e me traga a chave.
Noutro dia, desconfia de Georges, segue-o com
o olhar toda vez que ele se mexe, como se temesse
que ele enfie os bibels da lareira em seus bolsos.
Chama Charles, confia-lhe uma chave por sua vez,
murmurando:
A camareira vai com voc. Observe-a pe-
gar os lenis e depois feche voc mesmo.
Em sua agonia, este seu suplcio: no poder
mais vigiar as despesas da casa. Lembra-se das lou-
curas de seus filhos, sabe-os preguiosos, grandes
comiles, cabeas ocas, mos abertas. H muito
tempo no tem mais estima por eles, que no reali-
zaram nenhum de seus sonhos, que ferem seus h-
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bitos de economia e rigidez. A afeio apenas so-
brevive e perdoa. No fundo de seus olhos suplican-
tes, l-se que ela lhes pede o favor de esperar que
ela no esteja mais ali, antes de esvaziar suas gave-
tas e de partilhar seus bens. Esta partilha, diante
dela, seria uma tortura para sua avareza expirante.
Entretanto, Charles, Georges e Maurice mos-tram-se muito bons. Combinam para que um deles
esteja sempre perto de sua me. Uma afeio since-
ra aparece