Emily Dickinson: Não sou ninguém

20
Emily Dickinson: Não sou ninguém 00 OLHO.indd 1 25/4/2008 09:32:02

description

Emily Dickinson: Não sou ninguém

Transcript of Emily Dickinson: Não sou ninguém

Page 1: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Emily Dickinson: Não sou ninguém

00 OLHO.indd 1 25/4/2008 09:32:02

Page 2: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Universidade Estadual de Campinas

Reitor

José Tadeu Jorge

Coordenador Geral da Universidade

Fernando Ferreira Costa

Conselho Editorial

Presidente

Paulo Franchetti

Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno

Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo

José Roberto Zan – Marcelo Knobel

Sedi Hirano – Yaro Burian Junior

00 OLHO.indd 2 11/6/2008 10:16:46

Page 3: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Emily Dickinson:

Não sou ninguém

AUGUSTO DE CAMPOS

00 OLHO.indd 3 27/6/2008 11:20:16

Page 4: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Editora da UnicampRua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp

Caixa Postal 6074 – Barão Geraldocep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil

Tel./Fax: (19) 3521-7718/ 7728www.editora.unicamp.br – [email protected]

Índices para catálogo sistemático:

1. Poesia americana 811.4 2. Escritores americanos – Biogra� a 928.1

Copyright © by Augusto de Campos

Copyright © 2008 by Editora da Unicamp

1a reimpressão, 2009

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos

ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

Dickinson, Emily, 1830-1886.Emily Dickinson: Não sou ninguém / Emily Dickinson; tradução: Augusto de Campos. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2008.

1. Dickinson, Emily, 1830-1886. 2. Poesia americana. 3. Escritores america-nos – Biogra� a. I. Título.

cdd 811.4928.1isbn 978-85-268-0745-7

D56e

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp

diretoria de tratamento da informação

00 OLHO.indd 4 16/1/2009 14:30:57

Page 5: Emily Dickinson: Não sou ninguém

sumário

introdução ....................................................................................................................................... 9

1 � ere is a word ............................................................................................................................20

Uma palavra se abre .............................................................................................................21

2 A sepal, petal, and a thorn ............................................................................................22

Sépala, pétala e um espinho — ...............................................................................23

3 We lose — because we win — .....................................................................................24

Um perde — o outro ganha — ...............................................................................25

4 If recollecting were forgetting .......................................................................................26

Se recordar fosse esquecer ............................................................................................27

5 Success is counted sweetest ...............................................................................................28

O Sucesso é mais doce ......................................................................................................29

6 Our share of night to bear — ......................................................................................30

Nossa porção de noite — ..............................................................................................31

7 ’Tis so much joy! ’Tis so much joy! .........................................................................32

Tanto júbilo! Tanto! ...........................................................................................................33

8 Safe in their Alabaster Chambers — ..................................................................34

A salvo nos seus Quartos de Alabastro — .................................................35

9 I held a Jewel in my � ngers — ....................................................................................36

Tive uma Jóia nos meus dedos — ........................................................................37

00 OLHO.indd 5 6/5/2008 14:34:41

Page 6: Emily Dickinson: Não sou ninguém

10 I felt a Funeral, in my Brain .......................................................................................38 Senti um Féretro em meu Cérebro ....................................................................39

11 I’m Nobody! Who are you? ..........................................................................................40 Não sou Ninguém! Quem é você? ....................................................................41

12 We play at Paste — ...............................................................................................................42 Lidamos com o Joio — ..................................................................................................43

13 Much Madness is divinest Sense — .....................................................................44 Muita Loucura faz Sentido — ...............................................................................45

14 I died for Beauty — .............................................................................................................46 Morri pela Beleza — .........................................................................................................47

15 Beauty — be not caused — It Is — .....................................................................48 Beleza — não tem causa — É — .........................................................................49

16 Some such Butter� y be seen .........................................................................................50 Algumas Borboletas há ..................................................................................................51

17 I fear a Man of � ugal Speech — .............................................................................52 Eu temo a Fala escassa — .............................................................................................53

18 Delight — becomes pictorial — ..............................................................................54 Prazer — vira pintura — ..............................................................................................55

19 Me � om Myself — to banish — ..............................................................................56 Banir a Mim — de Mim — .......................................................................................57

20 Pain — has an Element of Blank — .................................................................58 A Dor — tem Algo de Vazio — ...........................................................................59

21 I dwell in Possibility — ....................................................................................................60 Habito a Possibilidade — ............................................................................................61

22 As if the Sea should part ..................................................................................................62 Como se o Mar rompesse ............................................................................................63

00 OLHO.indd 6 25/4/2008 13:59:33

Page 7: Emily Dickinson: Não sou ninguém

23 Publication — is the Auction ....................................................................................64 Publicar — é o Leilão .......................................................................................................65

24 I could not drink it, Sweet .............................................................................................66 Não podia beber ....................................................................................................................67

25 Banish Air � om Air — ....................................................................................................68 Corta o Ar do Ar — ..........................................................................................................69

26 � ese tested Our Horizon — ......................................................................................70 Esses testaram o Horizonte — ...............................................................................71

27 Drab Habitation of Whom? .......................................................................................72 Mansão malsã de Quem? .............................................................................................73

28 I hide myself within my � ower .................................................................................74 Me oculto em minha � or .............................................................................................75

29 Pain — expands the Time — ....................................................................................76 A Dor — expande o Tempo — .............................................................................77

30 Death is a Dialogue between ......................................................................................78 A Morte é um Diálogo entre ...................................................................................79

31 � e Opening and the Close ...........................................................................................80 O Abrir e o Fechar ...............................................................................................................81

32 Too scanty ’twas to die for you ...................................................................................82 Morrer por ti era pouco .................................................................................................83

33 Best Witchcra� is Geometry ........................................................................................84 A Geometria é a maior Magia ................................................................................85

34 � e Voice that stands for Floods to me ..............................................................86 A Voz que para mim é um Mar .............................................................................87

35 Great Streets of silence led away ..............................................................................88 Ruas sem som serviam .....................................................................................................89

00 OLHO.indd 7 25/4/2008 13:59:33

Page 8: Emily Dickinson: Não sou ninguém

36 Because my Brook is � uent ............................................................................................90

Se o meu Riacho é � uente ...........................................................................................91

37 A word is dead ...........................................................................................................................92

A palavra morre ......................................................................................................................93

38 � e Riddle we can guess ...................................................................................................94

O Enigma decifrado ..........................................................................................................95

39 So proud she was to die .....................................................................................................96

Tanto orgulho em morrer ...........................................................................................97

40 In this short Life ......................................................................................................................98

Nesta Vida tão breve .........................................................................................................99

41 Yesterday is History .......................................................................................................... 100

Ontem é História ............................................................................................................. 101

42 � e Mushroom is the Elf of Plants — ........................................................... 102

O Cogumelo — à Noite — ................................................................................... 103

43 Could mortal lip divine ............................................................................................... 104

Se o lábio hábil a sílaba ............................................................................................... 105

44 A Dimple in the Tomb .................................................................................................. 106

Um Vão na Pedra Tumular .................................................................................... 107

45 Fame is a bee ............................................................................................................................ 108

A Fama é uma abelha .................................................................................................... 109

bibliografia básica das obras

de emily dickinson ........................................................................................................... 111

00 OLHO.indd 8 24/3/2009 10:08:51

Page 9: Emily Dickinson: Não sou ninguém

introdução

emily elizabeth dickinson nasceu em Amherst, Massa-chusetts, em 10 de dezembro de 1830, e morreu na mesma cidade em 15 de maio de 1886, aos 55 anos. Morou sempre na casa paterna, levando uma vida de poucos incidentes e poucas relações de amizade. Conheceu, apenas brevemente, algumas cidades próximas, como Washington, Filadél� a, Boston, Cambridge. Tendo recebido educação puritana, foi aluna da Academia de Amherst e, mais tarde, entre 1847 e 1848, do seminário feminino de Mount Holyhoke (South Hadley), que abandonou depois de recusar-se publicamente a declarar sua fé. Pode-se considerá-la uma autodidata em poesia, ainda que admitisse como preceptores dois amigos da família: um praticante do escritório de advocacia de seu pai, Benjamin Newton, com quem se correspondeu até que a morte o colhesse em 1853, e o Rev. Charles Wadsworth, com o qual se avistou algumas vezes e também trocou cartas. Por volta de 1860, em grande isolamento, iniciou a fase madura de sua poesia. Em 1862, enviou quatro poemas a ! omas Higginson, crítico literário do Atlantic Monthly, que não chegou àquela altura a compreender inteiramente a sua poe-sia, incapaz de enquadrá-la nos cânones vigentes. Embora percebesse a originalidade da autora, o andamento dos seus poemas lhe pareceu, então, “espasmódico”, e seus versos, “des-

01 INTRODUÇÃO-.indd 9 23/4/2008 14:27:18

Page 10: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Emily Dickinson: Não sou ninguém10 |

controlados”. Desencorajada a publicar pelo crítico, respon-

deu-lhe: “Sorrio quando sugere que eu protele a ‘publica-

ção’. Se eu conhecesse a fama, eu não poderia fugir a ela, se

não a conhecesse, ela me perseguiria o dia inteiro e eu perde-

ria a aprovação de meu cachorro”. Após longa correspondên-

cia, houve dois encontros pessoais que deixaram Higginson

ainda mais perplexo ante a personalidade extravagante e

enigmática de sua interlocutora.

Emily tinha 19 anos quando Poe (1809-1849) morreu.

Não acusa in� uência deste. Whitman (1819-1892), seu antí-

poda, não chegou a interessá-la, apesar de recomendado por

Higginson. Vislumbra-se em seus textos algo de Emerson

(1803-1882) — o Emerson mais contido de poemas curtos,

como “Brahma”, e do seu transcendentalismo losó co. Mas

ela é mais radical e dissonante.

Pouco se sabe de suas leituras — Shakespeare, Keats e os

seus contemporâneos Robert Browning (1812-1889) e Eliza-

beth Barreth Browning (1806-1861) estão entre os raros poe-

tas expressamente referidos em seus escritos. Sua poesia não

se parece com a deles. Emily criou um idioma poético próprio

e antecipatório em termos de densidade léxica, economia de

expressão e liberdade sintática. Parece mais próxima das ou-

sadias metafóricas dos poetas “metafísicos” ingleses, como

Donne, que ela certamente não leu. Utiliza, muitas vezes em

combinatórias novas, versos tradicionais, nos quais os seus es-

tranhos tracejamentos grá cos introduzem recortes e pausas

inusitados, dando-lhes feição singular. “Seu desprezo por fór-

mulas aceitas ou por regularidades é incorrigível. Gramática,

rima, metro — tudo o que se opunha ao seu pensamento ou

liberdade de expressão era dispensado por ela”, a rma Conrad

Aiken, um dos primeiros a reconhecerem sua relevância, num

01 INTRODUÇÃO-.indd 10 9/6/2008 16:28:32

Page 11: Emily Dickinson: Não sou ninguém

| 11Introdução

artigo de 1924. É tal a modernidade de sua linguagem que em nossos tempos podemos associá-la, sem esforço, à da também extraordinária poeta russa Marina Tzvietáieva (1892-1941), pela dicção elíptica e sincopada e até pelas idiossincrasias da sua pontuação, mesmo que as duas se apartem pela natureza de seu pathos existencial e do contexto em que viveram. Lin-guagem densa e substantiva, que transita sem transições do real ao imaginário — os substantivos freqüentemente maius-culizados para acentuar a sua dominância.

Tudo em Emily é paradoxo. “Mistura de puritana e livre-pensadora”, anota Aiken. Cruzam-se em sua poesia os traços de um panteísmo espiritualizado, de uma solidão-solitude, ora serena ora desesperada, e de uma visão abismal do uni-verso e do ser humano. Micro e macrocosmo compactados em aforismos poéticos. Da observação da natureza, em suas mais humildes manifestações, ela consegue ascender às per-guntas sem resposta da vida e da morte e do amor (ainda que recessivo e sublimado) em seus epigramas-enigmas concei-tuais. Temas que percorreram a poesia de todos os tempos, mas assimilados aqui num idioleto de rara beleza. Sua geo-gra� a imaginária não tem limites. Freqüenta os jardins do mundo. De uma borboleta do Brasil pode chegar às estrelas. Do jardim aos céus. Do som ao sonho. Do cONcRETo ao eTERNO.

A integridade poética que a caracteriza assume radi-calismos extremos em textos como “Success is counted sweetest” / O Sucesso é mais doce (no 5), “I’m Nobody. Who are you?” / Não sou Ninguém! Quem é você? (no 11), “Publication is the Auction” / Publicar é o Leilão (no 23): coerentes com o que ela afirmava em sua carta a Higginson, pleiteiam o anonimato, que sua grandeza, custosamente reco-

01 INTRODUÇÃO-.indd 11 25/4/2008 09:43:17

Page 12: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Emily Dickinson: Não sou ninguém12 |

nhecida, acabaria por tornar impossível. Não posso deixar de infundir um tom pessoano à versão de linhas como essas, que me trazem à mente, de várias maneiras, o grande poeta portu-guês, em seus versos mais concisos, e os conceitos inscritos nos textos de “Erostratus — sobre a Fama Póstuma” (Páginas

de doutrina estética), ou na sua “estética da abdicação”, in cluída nas racoltas do semi-heterônimo Bernardo Soares, onde se pode encontrar: “Toda vitória é uma grosseria” e “Vence só quem nunca consegue”. Como sucedeu com Emily Dickinson, cuja poesia ele não chegou a conhecer, a maior parte da obra de Fernando Pessoa foi publicada post-mortem, como se sabe. Vários dos textos da poeta norte-americana, que admitem múltipla interpretação, podem ser lidos também alegorica-mente como meditações sobre a própria poesia, metapoemas. Assim podemos entender a rosa que se autoconstrói em “A sepal, petal and a thorn” / Sépala, pétala e um espinho (no 2), o adereço que deixa “uma saudade de ametista” em “I held a Jewel in my � ngers” / Tive uma Jóia nos meus dedos (no 9), a pérola a que só se pode chegar com “táticas de Gema, praticando Areia”, em “We play at Paste” / Lidamos com o Joio (no 12) ou a rei-vindicação da forma em “Best Witchcra is Geometry” / A Geometria é a maior Magia (no 33). “Beauty — be not caused — It is” / Beleza — não tem causa — É (no 15), afirma a poe-ta, e me faz lembrar o poeta místico alemão do século xvii, Angelus Silesius, que escreveu a mesma coisa numa de suas máximas espirituais: “Die Ros’ ist ohn’ Warum, sie blühet weil sie blühet, / Sie acht’t nicht ihrer selbst, frag nicht, ob man sie sihet”, que eu assim traduzi: “A Rosa é porque é, e sem Porquê, / Não sabe nem de si nem quem a vê” (em Irmãos Germanos, Editora Noa Noa, San-ta Catarina, 1992).

01 INTRODUÇÃO-.indd 12 25/4/2008 09:43:18

Page 13: Emily Dickinson: Não sou ninguém

| 13Introdução

Percebe-se, nítida, mesmo no tratamento dos temas mais abstratos, a emergência material da palavra-coisa, objetual, palpável. Espiritual-espirituosa, Emily é exímia nos jogos vo-cabulares. Trouvailles, que brilham e # uem, artísticas, não ar-ti� ciais, desde os seus primeiros poemas. Alguns exemplos. Já no primeiro texto desta seleção, uma palavra se arma, quase rima a rima, com o só acréscimo de um “s”: “! ere is a word / ! at bears a sword”. Uma palavra se abre, como um sabre — ecôo. “Safe in the Alabaster Chambers” / A salvo nos seus Quartos de Alabastro (no 8), a duplicação de fonemas aos pa-res, na quinta linha da primeira estrofe (Ra� er of Satin —

and Roof of Stone!) e a inversão fonêmica nas duas últimas linhas da segunda estrofe, terminando com Soundless as

dots — on a Disc of Snow. De “Beauty — be not caused — It is” (no 15): a seqüência quase-paronomástica: cause, chase, cease, creases, replicada em minha tradução como “causa, cace-a, cessa, cresce”. De “The Mushroom is the Elf of Plants” / O Cogumelo — à noite — (no 42): stop, spot. Pro-curo responder, o mais que posso, a essas provocações sono-ras, compensando-as, aqui e ali, em outras linhas. De paste e pearl a “joio” e “jóia” (no 15). Para tanto, posso tomar a linha “I felt a Funeral in my Brain” (no 10) e substituir a aliteração por uma quase-rima isomór� ca, interecoante: “Senti um Fé-retro em meu Cérebro”, sem deslocar a acentuação básica do texto de partida, e manter o clima emocional do texto per-manecendo em sua área semântica. É um grande desafio para o tradutor.

As últimas pesquisas apontam que Emily viu publicados, esparsa e às vezes anonimamente, apenas dez poemas. Sua nu-merosa produção só veio a ser conhecida após a morte. Po-der-se-ia dizer, com ela, que “não era ninguém”, até a primeira

01 INTRODUÇÃO-.indd 13 23/4/2008 14:27:21

Page 14: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Emily Dickinson: Não sou ninguém14 |

edição de sua obra, organizada em 1890, por Mabel Loomis Todd e T. W. Higginson, que se permitiram “corrigir” algu-mas das “inortodoxias” de seus poemas (alterações de rimas, métrica e até metáforas). Seguiram-se algumas outras edi-ções, que lhe aditaram outros tantos poemas, além de cartas da autora. Em 1945, a publicação de Bolts of melody, textos reunidos por Mabel Loomis Todd e Milicent Todd Bin-gham, acrescentou 668 poemas e fragmentos aos já conhe-cidos, � cando assim praticamente mapeada toda a produção de Emily. Mas a primeira edição crítica completa (1.775 poe-mas), organizada sistemática e cronologicamente por ! o-mas H. Johnson, só veio a ocorrer em 1955, depois que o acervo de sua obra foi transferido para a Universidade de Harvard, em 1950. Johnson preservou sabiamente as excen-tricidades grá� cas da poeta — as maiúsculas atribuídas a cer-tas palavras e os traços ou travessões que interceptam os tex-tos, em lugar da pontuação convencional, e que acenam com pausas e recortes sintáticos signi� cativos e imprevistos. Or-ganizada pelo mesmo estudioso e por ! eodora Ward, a epistologra� a também mereceu extensa publicação em 1958. Coerentes com a personalidade extravagante da poeta, as cartas lançam alguma luz sobre as amizades e os supostos amores platônicos de sua vida discreta e misteriosa, que con-tinua a desa� ar a imaginação de estudiosos e pesquisadores.

Foi a partir da edição dos poemas coligidos por Johnson que se deu propriamente a “re-visão” de� nitiva e universal de Emily Dickinson e que ela passou a personi� car a “ur-Cinde-rela” da poesia moderna, segundo a expressão com que a sau-dou o poeta e crítico John Crowe Ranson, em 1956, em seu estudo “Emily Dickinson: a poet restored”. Ela parece não ter tido espaço no horizonte de referências do prose kinema que

01 INTRODUÇÃO-.indd 14 23/4/2008 14:27:21

Page 15: Emily Dickinson: Não sou ninguém

| 15Introdução

protagonistas do Alto Modernismo, como Pound ou Eliot, bus-

cavam nas primeiras décadas do século passado, embora sua con-

cisão pudesse ter sido apreciada por eles sob a perspectiva do

Imagismo. Em compensação, uma leitora da qualidade da poeta

Marianne Moore, admirada por ambos, já falava do “rigoroso

esplendor” de Emily Dickinson, numa carta de 1924. E também

Hart Crane a descobriria, dedicando-lhe um poema que saiu

publicado em 1927. Vozes dissonantes, que antecederam de

muito a “restauração” da imagem poética de Emily Dickinson.

Após a revelação e a reavaliação trazidas pela edição de

Johnson, o número de poemas foi ainda aumentado na edição

completa de R. W. Franklin, publicada em 1999, num único

volume, elevando-se a 1.789 textos. A partir das edições fac-

similares � e manuscript books e � e master letters of Emily

Dickinson anteriormente publicadas, em 1981 e 1986, pelo

mesmo Franklin, a poeta Susan Howe, entusiasta de Emily,

tem discutido os critérios utilizados pelos dois organizadores

nas edições padronizadas. Apesar de reconhecer a importân-

cia do trabalho de Johnson e de Franklin, entende ela que a

estrutura dos versos, cujas linhas aparecem quebradas irregu-

larmente nos manuscritos, deveria ser preservada, como está,

nas transcrições, assim como as variantes e correções, incluí-

das nas publicações completas universitárias, mas interpretadas

e uni cadas nas edições mais acessíveis. Embora dê margem a

curiosas digressões, sua argumentação não é de todo convin-

cente nem oferece solução prática, além de não ser respaldada

por Franklin, o scholar que divulgou os manuscritos de poe-

mas e cartas de Emily. As idiossincrasias macrográ cas de

Emily Dickinson constituem mais um complicador da sua

escritura enigmá tica, mas, em si mesmas, por mais interessan-

tes que sejam, não revelam coerência que justi que a altera-

01 INTRODUÇÃO-.indd 15 21/1/2009 10:54:30

Page 16: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Emily Dickinson: Não sou ninguém16 |

ção dos critérios prevalentes. No entanto, uma experiência

signi� cativa foi feita no livro Open me carefully (Paris Press,

Ash� eld, Massachusetts, 1998), organizado por Ellen Louise

Hart e Martha Nell Smith, contendo todas as cartas íntimas

de Emily endereçadas a Susan Huttington Dickinson. Focali-

zando, com ousadia, o relacionamento passional, mesmo se

platônico, de Emily por sua amiga e depois cunhada, as orga-

nizadoras decidiram transcrever literalmente vários dos poe-

mas e das cartas que integram essa coletânea, pela pri meira

vez publicados como um todo. Embora reconhecendo que os

manuscritos não podem ser plenamente tradu zidos em escrita

tipográ� ca, procuraram reproduzi-los com a máxima � deli-

dade, com seus cortes inusitados, determi nados às vezes pelo

formato e pelas dimensões do papel ou do material em que se

inscrevem, com ênfase nos textos que a própria Susan já iden-

ti� cava como letter-poems, poemas-cartas ou cartas-poemas.

O resultado desse verismo grá� co — que sugere poemas re-

cortados segundo técnicas ultramoder nistas — pareceu-me

estimulante, embora discutível o entendimento de que “a

fusão de poesia e prosa, fazendo poemas de cartas e cartas de

poemas, seja uma deliberada estratégia artística” que suposta-

mente envolveria o próprio projeto grá� co dos textos. De todo

modo, é uma abordagem instigante, que pode conviver com-

plementarmente com a reconstituição normatizada dos poe-

mas de Emily, tais como os conhecemos nas edições habituais.

As edições de Johnson e Franklin, que consideraram as

variantes e se basearam principalmente em valores métricos,

rítmicos e rímicos para a reconstituição e a fixação dos tex-

tos, mantendo suas peculiaridades essenciais, são ainda as

mais con� áveis e objetivas. Para as minhas traduções adotei

os textos e datas estabelecidos pelo primeiro.

01 INTRODUÇÃO-.indd 16 6/5/2008 14:38:13

Page 17: Emily Dickinson: Não sou ninguém

| 17Introdução

O tradutor de poesia tem algo de um intérprete musical, daqueles que voam livres e, imprevisíveis, fazem-nos ouvir de novo, como nunca ouvíramos, a obra do compositor. Deve ser o quanto possível � el aos signi� cados — mais ao contexto semântico do que ao texto, quando não houver troca possível sem perdas artísticas —, mas, acima de tudo, dar ao poema uma interpretação pregnante em seu idioma, corresponder aos seus achados estéticos e emocionais, surpreender-se e sur-preender-nos de novo. “A técnica” — segundo Pound — “é o teste da sinceridade. Se a técnica for dispensável para dizer alguma coisa é porque essa coisa é de valor inferior”. Mas a paixão é imprescindível. O mesmo Pound escreveu, certa vez, a propósito do Imagismo, que deve haver “intensa emoção” para que a poesia se simpli� que a esse ponto: “A austeridade ou economia do discurso representa essa emoção intensa e se a emoção, a força que funde, organiza, uni� ca, não está lá, a obra se esboroa”. É preciso, além da técnica, uma identi� -cação com o texto interpretado. Assumir-lhe, no trânsi(to), a “persona”. É a razão de querermos ouvir “Summertime” com Janis Joplin ou as “Variações Goldberg” com Glenn Gould. Ouvi-las com eles não é o mesmo que ouvi-las com outros. Não tendo a pretensão de acertar sempre, reivindico essa es-pécie de liberdade para as minhas interpretações tradutórias. A liberdade da improvisação e do rubato. Como se. Como se o poeta tivesse de expressar-se originariamente — resolver seu enigma fundoformal — na língua de chegada. Para aspi-rar à esperança de que o poema originário continue original em português. Sem presumir…

Augusto de Campos

2007

01 INTRODUÇÃO-.indd 17 23/4/2008 14:27:21

Page 18: Emily Dickinson: Não sou ninguém

01 INTRODUÇÃO-.indd 18 8/4/2008 14:54:48

Page 19: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Poemas

01 INTRODUÇÃO-.indd 19 29/4/2008 09:29:20

Page 20: Emily Dickinson: Não sou ninguém

Emily Dickinson: Não sou ninguém20 |

1

� ere is a word

Which bears a sword

Can pierce an armed man —

It hurls its barbed syllables

And is mute again —

But where it fell

� e saved will tell

On patriotic day,

Some epauletted Brother

Gave his breath away.

Wherever runs the breathless sun —

Wherever roams the day —

� ere is its noiseless onset —

� ere is its victory!

Behold the keenest marksman!

� e most accomplished shot!

Time’s sublimest target

Is a soul “forgot!”

(c. 1858)

02 POEMAS.indd 20 25/4/2008 09:54:48