Emma Jung - Anima e Animus

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Publicação do estudo de Emma Jung a respeito da psicologia do Animus e da Anima

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Ediçllo

Título do original:Animus und Anima

Copyright © 1967 by Rascher & Cie. AG, Zurique.

o primeiro número 6. esquerda indica a ediçlo, ou reediçlo, desta obra. A primeiradezena 6.direita indica o ano em que esta ediçlo. ou reediçlo foi publicada.

Ano

Sumário

hernCID 7Uma contribuição ao problema do animus 11

Introdução : 13

1. Formas de manifestação do animus 162. A representação do animus através das imagens do incons-

ciente 40

A anima como ser natural 55

4-5-6-7-8-9-10-11-12-13 05-06-07 -08-09-1 0-11

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Impresso em nossas oficinas gráficas.

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Denise G. Ramos

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Prefácio à Edição Brasileira

Olhos brilhantes, expressão sorridente, firme e decidida,assim aparece Emma Jung numa foto tirada em 1911, duranteo Congresso de Psicanálise de Weimar.1 Entre Sigmund Freud,Otto Rank, Ludwig Binswanger, Ernest Jones, Wilhelm Stekel,Lou Andreas-Salomé e o marido Carl Gustav Jung, e outrosmais, Emma destaca-se como mulher culta, inteligente ebem-humorada. Anfitriã de grandes encontros entre mestrese pesquisadores de psicanálise, é tida como responsável peloclima acolhedor e harmonioso de inúmeros seminários 'e deba­tes, compensando o temperamento mais explosivo e extro­vertido do marido.

Mãe de cinco filhos, ao mesmo tempo que estudava latim,grego, matemática e psicologia, tornou-se uma das diretorasdo c.G. Jung Institute de Zürich, onde dava palestras e exerciaseu trabalho de analista e supervisora.2 Se a questão de conciliartrabalho e família é ainda bastante problemática para a mulherde hoje, podemos imaginar quão difícil era para uma mulher doinício do século, num país conservador, numa época onde s6os homens votavam.

Em suas cartas para Freud, Emma deixa claro como sesentia diminuída frente ao poder do marido e ressentia-se deum certo isolamento. Queixava-se das paixões das mulherespor Jung, do tratamento maternal que os homens lhe dispen­savam, assim como do fato de ser vista somente como mulherou aluna do mestre-pai.3

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Nas lutas para ser conhecida por si mesma, dois temasparecem atraí-Ia mais: o mistério do Santo Graal e a questãodo feminino no homem e do masculino na mulher. Os doisassuntos transformaram-se em livro. O primeiro resultou no vo­lume Die Graals legende in Psychologischer Sicht [A lenda doGraal do ponto de vista psicológico],'" obra que, devido à suamorte em 1955, foi terminada por M.-Louise von Franz; o se­gundo, Animus e anima, só agora publicado em português, re­sultou da junção de dois trabalhos seus: Ein Beitrag zum Pro­blem des Animus [Uma contribuiçãO ao problema do animus],palestra feita em 1931, e Die Anima ais Naturwesen [Animacomo ser natural], publicado originalmente em 1955.

Parece que nunca estiveram tão confusos quanto agora ospadrões culturais masculinos e femininos, mas a clareza e obje~tividade com que a autora descreve centenas de imagens com asquais se revestem os gêneros da espécie humana são de inesti­mável valor no processo de transformação pelo qual a huma­nidade passa hoje.

Atravessamos uma crise aguda, com um questionamentocrescente sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, sobredesempenho de papéis e função social. Tabus e limites são dia­riamente rompidos por alguns segmentos da sociedade, enquan­to outros se aferram a padrões medievais. Neste crescimentoacelerado, toma-se imprescindível que nos reportemos às nos­sas raízes a fim de mantermos o eixo da consciência com anatureza.

Sem se perder na multiplicidade das formas e do conteúdo,Emma extrai a essência dos mitos, lendas e contos de fadas daAntiguidade até a era moderna. Embora pertençam predomi­nantemente à cultura européia, as histórias e símbolos por elautilizados podem com facilidade encontrar paralelo na mito­logia brasileira.

A classificação do animus em quatro estágios tomou-seum modelo adotado pela psicologia analítica, por permitir com­preender tanto as defasagens entre o desenvolvimento inte-

(*) Editora Pensamento, São Paulo, 1989.

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lectual e afetivo como prever as etapas de crescimento da per­sonalidade. Bastante atual, também, é sua ênfase em abordar aanima como um ser da natureza, atitude que vem ao encontrodos mais recentes movimentos ecológicos e naturalistas. O ho­mem consciente de sua anima mantém um vínculo de respeitoe amor para com a terra.

Finalmente, Emma demonstra que somente a conscienti­zação de nossas projeções pode liberar o outro de nosso pró­prio inconsciente e sombra, permitindo uma relação plena, har­moniosa e saudável com o mundo e conosco mesmos.

São Paulo, 7 de março de 1990.

Referências bibliográficas

1. McGuire, William (org.) - The Freud/Jung Letters. PrincetonUniversity Press, Princeton, 1974, p. 445.

2. van der Post, Laurens - Jung and story of our time. PenguinBooks. Londres, 1988.

3. McGuire, William (org.). op. cito p. 457.

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UMA CONTRIBUIÇÃO AO PROBLEMA DO ANIMUS

Conferência feita no Clube dos Psicólogos de Zurique, em novembro de 1931.Publicada em Wirklichkeit der Seele [A Realidade da Alma] de C. G. Jung. Aplicaçõese progresso da nova Psicologia [Ensaios Psicológicos IV]' Rascher, Zurique 1934. No­vas edições em 1939 e 1947.

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Introdução

Na concepção natural primitiva a alma não é bem u:unidade, e sim um complexo múltiplo indeterminado. E~fato expressa-se nas representações, encontradas entre tdos os povos, de espíritos ou almas que habitam as pessOGseja por terem se introduzido antes ou durante o nascimelto ou por terem se apoderado do indivíduo em alguftla 01.

tra ocasião posterior para nele exibir sua atividade. As V{

zes eles são considerados espíritos dos antepassados ou d;tribo, outras, como os assim chamados espíritos da mata:que embora pertençam a determinada pessoa, são pensadoscomo habitando animais. 1 Em nossas crenças populares, emmitos e contos de fadas, os gigantes e anões bons e maus,fadas e magos, e freqüentemente também os espíritos dosmortos e às vezes de animais têm um significado semelhante.

Estas representações originam-se na experiência dire­ta conhecida de cada um de que às vezes somos tomados porestados e emoções que despertam em nós impulsos, senti­mentos, pensamentos e imagens que nos parecem totalmen­te estranhos. Freqüentemente, tais emoções são diametral­mente opostas aos nossos pontos de vista ou intenções, detal forma que dão a impressão de se tratar de manifestaçõesde um ser com existência própria, diferente de nós.

Quando Paulo diz: "O bem que eu quero, este eu nãofaço, mas o mal que eu não quero, este eu faço" ,2 est:l l>V

pressando a mesma experiência. 011 "l>;~, ou seja, aquela que €s vezes

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nos faz notar em nós uma vontade estranha, que faz o con­trário daquilo que nós queremos ou aprovamos. Não é ne­cessariamente o mal o que faz essa outra vontade, pois elapode querer o melhor, sendo sentida então como um ser su­perior dirigente ou inspirador, como espírito protetor ougênio no sentido do Daimonion socrático. Freqüentementetambém não se trata de algo bom ou mau, mas simplesmen­te de um Outro diferente, que surpreendentemente faz sevaler por si mesmo, com vontade e opinião próprias, dandoa impressão de que se está tomado ou possuído por espíri­tos estranhos.

A experiência direta que também é concedida a todos,representada pela atividade do sonho e da fantasia, é umaoutra fonte dessas representações.

Depois que o racionalismo científico esqueceu o signi­ficado dessas coisas e a consciência do eu se apossou da to­talidade da psique, novamente volta-se a requerer da psico­logia médica moderna concepções que têm um parentescosurpreendente com as concepções primitivas mencionadasacima. Na verdade, teve-se que assumir que o eu conscienteé apenas um aspecto da psique; pois certas aparições, espe­cialmente na vida anímica anormal, praticamente não podemser esclarecidas de outra maneira que não seja a existênciade regiões da alma externas à consciência do eu, e que nãoapenas os sonhos, mas muitas outras aparições e sintomasdevem ser atribuídos aos conteúdos e atividades aí existen­tes. Essas áreas da alma externas à consciência são reunidassob a denominação de "Inconsciente". Pesquisadores comoJanet, Flournoy, Breuer, Freud e outros apresentaram pro­vas da existência desse inconsciente psíquico.

Mesmo a constatação de que há um inconsciente nãobasta, pois esse conceito expressa, antes de mais nada, sóalgo indeterminado e negativo. Por isso o próximo passo foipesquisar de que modo esse inconsciente foi criado e o quecontinha.

Os trabalhos de C. G. Jung tratam de forma especial­mente aprofundada da pesquisa da estrutura do inconsciente

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e de seus conteúdos. Enquanto a teoria freudiana vê o incons­ciente unicamente como um depósito para tudo aquilo queà personalidade consciente parece incômodo ou indesejável,ou ainda inútil, Jung diferencia um inconsciente pessoal deum impessoal ou coletivo. O inconsciente pessoal contém"todas as aquisições da existência pessoaL .. , tudo aquilo,portanto, que foi esquecido, reprimido, e percebido, pen­sado e sentido subliminarmente. Ao lado desses conteúdosinconscientes pessoais há, todavia, outros conteúdos que nãose originam de conteúdos pessoais, e sim totalmente das pos­sibilidades herdadas do funcionamento psíquico, ou seja,da estrutura cerebral herdada. Estes são os contextos mito­lógicos, os motivos e imagens que podem surgir novamentea qualquer momento e em toda parte sem tradição históri­ca ou migração".3

O prosseguimento da pesquisa resultou em que é sobre­tudo um certo número de imagens ou figuras típicas que emer­gem com freqüência e por toda parte, como por exemploas figuras do herói, do monstro, do mago, da bruxa, do pai,da mãe, do velho sábio, da criança etc., etc. Jung chama essasfiguras de "imagens primordiais ou arquétipos", 4 pois elasrepresentam formas que se tornaram idéias bem universaise atemporais.

Dentre esses arquétipos há sobretudo dois investidosde grande significado, pois, pertencendo por um lado à per­sonalidade, e por outro estando enraizados no inconscientecoletivo, eles constroem uma espécie de elo de ligação ouponte entre o pessoal e o impessoal, bem como entre o cons­ciente e o inconsciente. Estas duas figuras - uma é mascu­lina, a outra feminina - foram denominadas de animus eanima por Jung.s Ele entende aí um complexo funcionalque se comporta de forma compensatória em relação à per­sonalidade externa, de certo modo uma personalidade in­terna que apresenta aquelas propriedades que faltam à per­sonalidade externa, consciente e manifesta. São caracterís­ticas femininas no homem e masculinas na mulher que nor­malmente estão sempre presentes em determinada medida,

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mas que são incômodas para a adaptação externa ou para oideal existente, não encontrando espaço algum no ser voltadopara o exterior.

O caráter dessas duas figuras não é, entretanto, deter­minado apenas pela respectiva estruturação no sexo opos­to, sendo condicionado ainda pelas 'experiências que cadaum traz em si do trato com indivíduos do sexo oposto nodecurso de sua vida e através da imagem coletiva que o ho­mem tem da mulher e a mulher do homem. Estes três fato­res condensam-se numa grandeza que não é apenas imagemnem somente experiência, e sim muito mais uma espécie deessência cuja ação se dirige não às demais funções anímicas,mas que se comporta ativamente e que intervém na vida in­dividual mais ou menos como um estranho, às vezes presta­tivo, mas às vezes também incômodo e até mesmo destru­tivo. Tem-se portanto todos os motivos para se lidar comesta grandeza e esclarecer sua maneira de atuação.

Se eu a seguir represento a figura do animus e suas for­mas de manifestação como se fossem realidades, devo cha­mar a atenção do leitor para o fato de que estamos tratan­do de realidades psíquicas,6 que são incomensuráveis em relaçãoàs realidades concretas, mas nem por isso menos atuantes.

O trabalho apresentado representa a tentativa de con­siderar determinados aspectos do animus sem entretanto rei­vindicar uma abrangência total desse fenômeno imensamen­te complexo. Trata-se não apenas pura e simplesmente deuma grandeza dada imutável, mas também de um processoespiritual. Aqui eu me limito a tratar das formas de mani­festação do animus em sua relação com o indivíduo e coma consciência.

1. Formas de Manifestação do Animus

Eu, portanto, parto da hipótese de que o animus refe­re-se a um ser masculino, cujo rastro pode ser seguido e quedeve ser representado.

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Como se caracteriza então o ser masculino? Goethe fazcom que Fausto, ocupado em traduzir o evangelho segundoJoão, ~e pergunte se na passagem "no princípio era o verbo"não ficaria melhor "no princípio era a força" ou "o senti­do", para escrever finalmente "no princípio era o ato". Comestas quatro expressões, que deveriam traduzir o "logos"grego, parece estar representada de fato a quintessência doser masculino. Há nelas ao mesmo tempo uma seqüência degraus, e cada um destes graus tem seu representante na vi­da, bem como no desenvolvimento do animus. O primeirograu corresponde à força, seguindo-se o ato, o verbo e, final­mente, como último grau, o sentido. Em lugar de força, dequalquer forma, seria melhor dizer força dirigida, ou seja,vontade, pois a força pura ainda não é humana e também nãoé espiritual. Esta quadruplicidade pela qual o princípio do 10­gos é descrito tem, como podemos ver, um elemento da cons­ciência como condição prévia. Sem esta, nem vontade, ato,verbo ou sentido pode ser representado. Assim como há ho­mens que se destacam pela força física e há homens de ação,de palavras e há os homens sensuais, assim também está di­vidida a imagem do animus, que corresponde ao respectivograu ou aptidão da mulher. Esta imagem é, por um lado, pro­jetada em um homem real semelhante a ela, que através de­la corresponde ao papel do animus, e por outro ela aparececomo figura onírica ou de fantasia, e finalmente, já que re­presenta uma realidade anímica viva, ela pode, a partir de den­tro, emprestar uma determinada coloração a todo o compor­tamento. Para mulheres primitivas ou jovens, ou para o pri­mitivo que há em cada mulher, há um representante do animusque se destaca pela força física e pela agilidade; daí os típi­cos heróis das lendas ou os atuais ídolos do esporte, cowboys,toureiros, pilotos etc. Para as exigentes, ele é um tipo queexecuta atos, no sentido de que dirige sua força para algoque vale a pena; é comum que aqui as transições sejam flui­das, pois força e ato condicionam um ao outro. Os homensdo verbo ou até mesmo do sentido caracterizam então mui­to propriamente a direção espiritual, pois verbo e sentido

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correspondem principalmente às faculdades espirituais. Aquihá, portanto, o animus no sentido mais restrito, compreen­dido como líder espiritual e como aptidão espiritual da mu­lher. Neste grau, ele pode muito bem tomar-se acima de tu­do problemático, e por isso teremos que nos deter nele omais longamente possível.

Encontramos os graus da valentia e da ação projetadosna figura do herói. Entretanto, há também mulheres nas quaisessa espécie de masculinidade está registrada e atuante de ma­neira harmônica com o ser feminino. Estas são as mulheresativas, enérgicas, corajosas e atuantes. Ao lado destas encon­tramos também aquelas em que a integração não deu certoe onde a postura masculina sufocou e reprimiu a feminina;estas são as mulheres-homens superenérgicas, inescrupulosase brutais, as Xantipas, que são não apenas ativas mas até mes­mo violentas. Em muitas mulheres essa masculinidade primi­tiva encontra expressão também na vida amorosa: seu erotis­mo tem então um caráter agressivo masculino, não sendocondicionado ao sentimento nem ligado a ele, como é o ca­so normalmente com as mulheres, funcionando entretantopara si, sem estar associado à totalidade da personalidade.Isso acontece preponderantemente com os homens.

Entretanto, pode-se muito bem supor que, em grandeparte, as formas mais primitivas da masculinidade já foramassimiladas pela mulher. Falando-se de maneira geral, elas hámuito encontraram sua utilização na vida feminina, pois jáfaz tempo que existem mulheres cuja força de vontade, ob­jetividade, atividade e capacidade de atuação serviram comoforças úteis em suas vidas, vividas por outro lado de formacompletamente feminina. O problema da mulher atual meparece estar muito mais na postura em relação ao logos doanimus, em relação ao espiritual-masculino no sentido estri­to, que parece portanto ser uma absoluta expansão da cons­ciência, uma maior consciência em todos os campos, um da­do e uma exigência inevitáveis de nosso tempo. Expressãodeste fato é que, ao lado das descobertas e invenções dosúltimos cinqüenta anos, surgiu também o movimento femi-

nista, a luta pela igualdade de direitos sociais em relação aohomem. A pior excrescência desse esforço - o pedantismo _parece estar hoje superada. A mulher aprendeu a reconhe­cer que não pode ser igual ao homem, que ela antes de maisnada é mulher e deve sê-Io. Permanece entretanto o fato deque uma determinada quantidade de espírito masculino ama­dureceu na consciência das mulheres e deve encontrar emsuas personalidades seu lugar e sua atuação. Conhecer estasgrandezas, ordená-Ias para que possam agir adequadamenteé uma parte importante do problema do animus.

Ouve-se de vez em quando o ponto de vista de que nãoseria necessário à mulher ocupar-se com coisas espirituais ouintelectuais; isso seria apenas uma imitação estúpida do ho­mem ou a megalomania de um instinto de concorrência trai­dor. Ainda que isso certamente seja verdade em muitos ca­sos, especialmente quanto às manifestações no início do mo­vimento, mesmo assim não se faz justiça à causa com essa ex­plicação. Não é a soberba ou a arrogância que nos leva, comperversidade atrevida, a querer ser igual a Deus - isto é, co­mo o homem -, nem, como a Eva uma vez, nos fascina abeleza do fruto da árvore do conhecimento, ou nos encorajaa serpente a prová-Io, mas é como se tivéssemos recebidouma ordem: nós estamos diante da necessidade de morderessa maçã, quer ela nos pareça apetitosa ou não, diante dofato de que acabou o paraíso da submissão à natureza e àinconsciência onde muitas adorariam permanecer.

E assim estão as coisas em última instância, ainda quealguma superestrutura possa lançar outra luz. E como se tra­ta de um ponto de transição tão significativo, não se deveficar admirado com tentativas frustradas, exageros e carica­turas grotescas, e tampouco deixar-se desanimar por isso.Se o problema não é abordado, se a mulher não cumpre su­ficientemente a exigência do tomar-se consciente ou da ati­vidade espiritual, então o animus toma-se autônomo e ne­gativo, e age de maneira destrutiva sobre o próprio indivíduobem como sobre suas relações com outras pessoas. Isso po­de ser explicado da segui~e maneira: quando a necessidade

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de função espiritual não é assumida pela consciência, entãoa libido determinada para isso cai no inconsciente e lá ati­va o arquétipo do animus. Através desta libido que escapoupara o inconsciente aquela figura torna-se autônoma e tãopoderosa que pode subjugar o eu consciente e, finalmente,dominar toda a personalidade. Devo acrescentar aqui quediscordo da concepção de que na base do indivíduo existemdeterminadas idéias que ele teria que realizar, como por exem­plo o ovo ou a semente, que já contêm em si a idéia do serque dele deve surgir. Por isso eu falo de uma quantidade delibido que está destinada às funções espirituais, pronta parafazê-Io, e que deveria ser utilizada para isso. Para expressá-Iocom uma imagem tirada da economia: semelhante ao orça­mento de um lar ou um empreendimento, estão previstasdeterminadas quantias para determinados objetivos. Alémdisso, de tempos em tempos são liberadas quantias de desti­nações anteriores, ou porque não são mais necessárias lá ouentão porque não podem mais ser utilizadas. Este é hoje ocaso para a mulher de muitos pontos de vista diferentes: pri­meiro ela, principalmente se for protestante, freqüentemen­te não encontra mais na religião da respectiva igreja, que an­tes podia satisfazer consideravelmente suas necessidades es­pirituais e intelectuais, essa satisfação. Antes o animus deuma certa maneira podia ser relegado ao Além, junto com suaproblemática - o Deus paternal bíblico significa para mui­tas um aspecto metafísico e sobre-humano da imagem doanimus - e enquanto a espiritualidade pode se expressar nasformas gerais da religião o conflito é evitado. Agora que issonão funciona mais, surge o nosso problema propriamente dito.

Eu vejo uma outra razão na circunstância de que, coma possibilidade de controle de natalidade, uma significativaquantidade de libido fica livre. Duvido que até mesmo a pró­pria mulher possa avaliar corretamente quão grande é essaquantidade, que até então era utilizada para a constante pre­paração interior e estava consolidada.

A terceira razão está nos avanços da tecnologia, que tirada mulher tanta coisa que antes, utilizando seu engenho e

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espírito criativo, ela destinava à sua produção ou manuten­ção.

Onde ela antes acendia o fogo da lareira e, com isso,cumpria o ato prometeico, hoje ela liga o gás ou o comu­ta dor elétrico e não tem nem idéia do que perde com essasinovações práticas e que conseqüências essa perda lhe traz.Pois tudo o que não é mais feito à moda antiga será feitode um novo modo, e isso não é assim tão simples. Há mui­tas mulheres que, quando estão em uma situação em quese deparam com as exigências espirituais, pensam: "Eu pre­feriria ter mais filhos ainda!", para dessa maneira escapar a essaexigência incômoda e amedrontadora, ou pelo menos adiá-Ia.Mas, mais cedo ou mais tarde, é preciso adequar-se para cum­prir essa exigência, pois o desgaste biológico diminui natu­ral e progressivamente na segunda metade da vida, de for­ma que uma adaptação torna-se de qualquer maneira inevitável,caso não se queira adquirir uma neurose ou alguma outraenfermidade. Além disso, não é somente a libido que se tornoulivre que nos impõe a nova tarefa, mas também, e tanto quanto,a já citada lei do Kairos, do momento temporal de que hósdependemos e que não podemos evitar ainda que suas condiçõessejam obscuras para nós. E nossa época parece exigir a expansãoda consciência de forma geral. Temos, portanto, na psicologia adescoberta e a pesquisa do inconsciente; na física, comprovam­se aparições e fenômenos tais como, por exemplo, raios evibrações que até então não eram perceptíveis, sendo portantoinconscientes; são encontrados novos mundos com as leis que osregem, tais como o do átomo, o telégrafo, o telefone, o rádio eoutros instrumentos tecnicamente aperfeiçoados de todo tipo,que trazem para perto de nós o que está distante, ampliandodessa forma o âmbito de percepção dos nossos sentidos por to­do o planeta, e além dele. Em tudo isso, expressa-se a am­pliação e a iluminação da consciência. Prosseguir na buscadas causas e objetivos desse fenômeno nos levaria longe de­mais; eu o menciono apenas como fator que participa docondicionamento do problema que é tão agudo para a mulheratual, o problema do animus.

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Trata-se, portanto, de uma transferência da libido paranovos rumos; nós sabemos que toda a cultura está apoiadasobre essas transferências, e a capacidade para tal é que di­ferencia o homem do animal. Este fenômeno, entretanto,também está ligado às maiores dificuldades; na verdade, eleatua quase como uma culpa ou um crime, como demonstramos mitos do pecado original e do roubo do fogo por Prome­teu, e como se pode experimentá-Io na própria vida. Não éisso ainda mais admirável, pois trata-se aí de uma aberturaou até mesmo de um desvio do percurso natural, um empreen­dimento perigoso e apaixonante! Por isso também esse pro­cesso sempre esteve estreitamente ligado às noções e ritosreligiosos. Sim, o mistério religioso, com sua vivência da mor­te e ressurreição simbólicas, significa bastante freqüentemen­te o maravilhoso e misterioso processo da metamorfose.

Como se depreende dos mitos ,do pecado original noparaíso e do roubo do fogo por Prometeu já mencionados,é o logos, isto é, a inteligência, portanto a consciência, quedestaca o homem da natureza. Esse processo, entretanto,coloca-o numa posição trágica entre o animal e Deus. Atra­vés desse processo ele deixa de ser o filho da mãe natureza:ele é expulso do Paraíso, mas também não é nenhum deus,pois está irremediavelmente preso ao seu corpo e às suas leisnaturais, como Prometeu acorrentado à rocha. Esse estar pen­durado ou balançar de cá para lá entre o espírito e a nature­za é um sofrimento há muito conhecido do homem, enquan­to a mulher só recentemente começa a sentir esse conflito.E com esse conflito, que anda de mãos dadas com uma cons­ciência crescente, chegamos novamente ao problema do ani­mus, que no fim sempre acaba na oposição natureza e espí­rito e sua unificação.

Como vivenciamos esse problema? Como vivenciamosesse princípio espiritual?

A princípio ele vem ao nosso encontro de fora, vem aoencontro da criança quase sempre no pai ou em algum ho­mem que tenha assumido o lugar do pai, e mais tarde talveznum professor, num irmão mais velho, no marido, num ami-

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go e finalmente também nos documentos objetivos do es­pírito, na Igreja, no Estado e na sociedade e em suas insti­tuições, nas criações da ciência e da arte. Em geral, o aces­so a esta objetivação do espiritual não é possível à mulherde maneira direta, mas ela a encontra primeiro através deum homem, que é para ela guia e mediador. Este guia ou me­diador torna-se então também portador ou representanteda imagem do animus; em outras palavras, o animus é pro­jetado nele. Até onde esta projeção é bem sucedida, isto é,até onde a imagem corresponde ao seu portador, não exis­te propriamente um conflito. Ao contrário, de uma certamaneira esta situação parece até perfeita. Especialmente quan­do o homem através do qual o espiritual é transmitido é aomesmo tempo vivenciado como pessoa, ou seja, quando setem uma relação humana positiva com ele. Quando essa pro­jeção se estabelece de forma duradoura temos então aquilo quese poderia chamar de uma relação ideal; ideal porque semconflitos, onde se permanece entretanto inconsciente. Contudo,hoje em dia, não é mais possível ser tão inconsciente, e eu achoque isso pode ser provado pelo fato de que muitas, quando nãoa maioria das mulheres que crêem estar felizes e satisfeitas emuma dessas relações perfeitas com o animus são ao mesmotempo atormentadas por sintomas nervosos ou físicos. Sãomuito freqüentes os estados de medo, de insônia e de nervosis­mo geral, ou males físicos tais como dores de cabeça, perturba­ções da visão e às vezes também afecções pulmonares. Conheçodois casos em que o mal pulmonar surgiu numa época em que oproblema do animus havia se tornado agudo, sendo curado apóseste ter sido reconhecido e tratado.7 (Talvez os órgãos respirató­rios e o espírito estejam relacionados em um contexto singulartal como é expresso na palavra anima ou pneuma, equivalentes ahálito, vento ou espírito. Talvez também os órgãos respiratóriosreajam com uma sensibilidade especial quanto aos processos doespírito. É provável que qualquer outro órgão possa ser atingidoda mesma maneira. Trata-se na verdade de libido que nãoencontra nenhuma aplicação adequada e que, portanto, repri­mida em si mesma, ataca algum ponto fraco.)

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Entretanto, tal transferência total da imagem do ani­mus cria, além da aparente satisfação e perfeição, tambémuma espécie de ligação forçada com o homem em questãoe uma dependência dele que freqüentemente chega a ser in­suportável. Este estado de fascinação e de condicionamen­to absoluto ao outro é conhecido como "transferência", quenão é outra coisa que a projeção. Projeção, entretanto, nãosignifica apenas a transferência de uma imagem para umaoutra pessoa, mas com a imagem tornam-se costumeiras tam­bém as atividades que a ela correspondem, imaginadas paraa outra pessoa, como por exemplo um homem ao qual é trans­ferida a imagem do animus e que ao mesmo tempo tem deassumir todas aquelas funções que permaneceram pouco de­senvolvidas na mulher em questão, seja a função ou ativida­de do pensamento ou a responsabilidade em relação ao ex­terior. A mulher em quem o homem projeta sua anima de­ve sentir ou criar relações por ele, e esse comportamento sim­bi6tico é, na minha opinião, a verdadeira razão para a depen­dência forçada e o condicionalismo que surge nesses casos.

Muitas vezes, entretanto, um estado de projeção perfei­to e feliz não dura muito, especialmente quando se tem umarelação próxima com a pessoa em questão. Neste caso, é fre­qüente que em pouco tempo a incongruência entre a imageme seu portador se torne visível. Um arquétipo, tal como o éo animus, nunca coincide com uma pessoa individual, tantomenos quanto mais individual for a pessoa. Na verdade a in­dividualidade é o contrário do arquétipo, pois o individualé exatamente aquilo que de alguma forma não é típico, e simtalvez a mistura única e original de traços típicos.

Quando esta diferença entre a imagem e seu portadorse instaura, nós, muito confusos e decepcionados, nos damosconta de que o homem que parecia incorporar a imagem doanimus de forma alguma lhe corresponde, comportando-seconstantemente de maneira muito diferente da que julgaría­mos conveniente. Talvez a princípio haja um esforço paraenganar-se a si mesmo a esse respeito, e muitas vezes isso dácerto com relativa facilidade graças a uma habilidade de adap-

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tação que se deve a uma capacidade de diferenciação pou­co apurada. Freqüentemente também tenta-se com astúciafazer do homem aquilo que ele deveria representar. Não ape­nas através do exercício de pressão ou coação consciente,o que acontece muito mais vezes é que inconscientementelevemos nosso parceiro a um comportamento arquetípico,isto é, um comportamento de animus, através do nosso pró­prio comportamento. O mesmo vale naturalmente para ohomem. Também ele gostaria de ver na mulher a imagemque tem em si, e através deste desejo, que atua como umasugestão, pode levá-Ia a não viver a si mesma, fazendo-a tor­nar-se uma figura de anima. Isso e a circunstância de que ani­ma e animus determinam um ao outro, isto é, que uma ma­nifestação de anima evoca o animus e vice-versa, com o que.põe-se em andamento um círculo vicioso difícil de interrom­per, forma-se uma das piores complicações no relacionamen­to entre homem e mulher.

Mas quando se descobriu a incongruência entre pessoae figura já se está em meio ao conflito, e não resta outra coi­sa a fazer que efetuar a diferenciação entre a imagem inter­na e a pessoa externa. Com isso chegamos ao problema doanimus em seu sentido mais próprio, aquele dos componen­tes masculino-espirituais próprios. Parece-me que o compor­tamento em relação a estes, seu conhecimento, o conflitocom eles, sua incorporação no todo da personalidade, for­mam o cerne deste que talvez seja o problema mais impor­tante de muitas mulheres atuais. O fato de tratar-se de umcomplexo, de um órgão que pertence à individualidade e queestá destinado ao funcio.namento, explica que o animus atraiaa libido para si até atingir uma dimensão imponente, até tor­nar-se uma figura autônoma.

É de se presumir que todos os órgãos ou complexosorgânicos tenham uma tendência, uma possibilidade e umadisposição que visa seu funcionamento, e que quando umaquantidade insuficiente de libido flui para o órgão em ques­tão, isso se manifesta, resultando em perturbações, ou seja,no surgimento de sintomas. Conseqüentemente, dada uma

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figura de animus forte, uma assim chamada "mania de ani­mus", eu concluiria que a pessoa atingida dá muito poucaatenção àquilo que nela é masculino-espiritual, à estrutura­ção do seu logos, e que ela ou não o educou e aplicou ou não ofez da maneira correta. Isso talvez pareça paradoxal, pois pare­ce acontecer a partir do exterior, como se o feminino nãofosse levado suficientemente em conta, pois o comportamen­to dessas mulheres nos parece excessivamente masculino,sentindo-se falta da feminilidade. Mas a masculinidade deque aparentemente se é portador me parece mais um sinalde que algo masculino, na mulher, requer mais atenção. Atra­vés da aparição autocrática dessa masculinidade, o femininoprimário é de qualquer forma dominado e reprimido, massó pode retomar a seu lugar apropriado através de um des­vio que passa pelo conflito com o masculino, o animus.

Aparentemente, não basta agir intelectualmente, de ma­neira prática e masculina, como se pode ver em muitas mu­lheres que, por exemplo, completam um curso superior eexercem uma profissão intelectual masculina, e que aindaassim não chegaram a bom termo com seu animus. Uma tal

.educação e maneira de viver masculinas podem muito bemdar certo com base numa identificação com o animus, como que o feminino é entretanto afastado. O que se pretendepropriamente é a espiritualidade feminina, o logos da mu­lher ordenado no ser e na vida da mulher, de tal forma quese estabeleça uma ação conjunta harmônica e que uma daspartes não seja relegada a uma vida nas sombras.

Uma primeira etapa no caminho para isso significa, co­mo foi dito, a retirada da projeção, em que esta é reconhe­cida como tal e desligada de seu objeto; portanto, um pri­meiro ato da diferenciação que, parecendo tão simples, re­presenta ainda assim um encargo pesado e muitas vezes umarenúncia dolorosa. Através desta retirada da projeção, reco­nhecemos que não temos que lidar com algo que está forade nós, mas com uma grandeza interior, e nos vemos dian­te da tarefa de aprender a conhecer a natureza e a atuaçãodessa grandeza, deste "homem em nós", para depois poder-

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mos novamente diferenciá-Io de nós mesmas. Quando nãose faz isso, tornamo-nos iguais ao animus ou somos possuí­das por ele, um estado que produz os efeitos mais funestos.Pois quando o feminino é assim dominado pelo animus eforçado para o segundo rlano, surgem facilmente depres­sões, insatisfação geral, perda da sensação de vida, sintomascompreensíveis para o fato de que uma metade da persona­lidade tem sua vida quase roubada pela usurpação do animus.

Além disso, o animus coloca-se de maneira perturba­dora entre nós e as outras pessoas e a vida em geral. É mui­to difícil reconhecer em nós mesmas essa mania, e isso é maisdifícil quanto maior ela é. É portanto de grande utilidadeobservar como se age em relação às outras pessoas e, em con­seqüência, examinar suas reações, se elas possivelmente fo­ram evocadas por uma identificação de animus inconsciente.Essa orientação por outras pessoas constitui uma ajuda ines­timável no cansativo processo de diferenciação e ordenaçãodo animus, que freqüentemente é superior às energias indi­viduais; acredito mesmo que, sem a relação com uma pessoapor quem se pode sempre orientar novamente, é praticamen­te impossível livrar-se do cerco demoníaco exercido pelo ani­mus. O que acontece quando se está num estado de identi­dade com o animus é que nós pensamos, dizemos ou faze­mos algo, convencidos de que somos nós, quando na reali­dade é o animus que fala através de nós sem que tenhamosconsciência dele. Muitas vezes, é muito difícil até mesmoperceber que um pensamento ou opinião é ditado pelo ani­mus e não algo de que estejamos convictos, pois ele dispõede uma espécie de autoridade e poder de sugestão diretos,violentos. A autoridade ele retira de sua filiação ao espíri­to em geral; o poder de sugestão, no entanto, é retirado daprópria passividade de pensamento da mulher e da falta decrítica correspondente. Estas opiniões ou concepções men­cionadas, apresentadas em geral com grande aplomb, são umamanifestação especialmente característica do animus. Carac­terísticas porque, correspondentemente ao princípio do logos,são concepções ou verdades de validade geral, que na verda-

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de são corretas em si mesmas, mas que não correspondemao caso dado, já que o individual e o especial de uma situa­ção não são aí levados em conta. Esta espécie de julgamen­to pronto e válido para qualquer caso é utilizado com pro­priedade apenas na ciência (e, nela, sobretudo na matemá­tica, onde dois e dois sempre dão quatro), ao contrário doque acontece na vida; pois nesta ou o objeto do discurso ouseu tratamento é corrompido, ou ainda a própria pessoa emi­te um julgamento estabelecido sem levar em consideraçãoseus próprios sentimentos.

Esse tipo de pensamento sem sentido ocorre de qual­quer forma também nos homens, por exemplo, quando éidêntico à razão ou ao princípio do logos e não pensa ele mes­mo, mas deixa que "isso" pense. É claro que tais homenssão especialmente apropriados para incorporar o animus deuma mulher. Não posso, entretanto, aprofundar-me nesteponto já que aqui estou tratando exclusivamente dos fenô­menos do animus feminino.

Uma das expressões mais importantes do animus é, por­tanto, o julgamento. Ele se comporta com pensamentos emgeral da mesma maneira que com julgamentos, ou seja, elesimportunam a pessoa a partir de dentro como algo prontoe por assim dizer irrefutável. Ou, quando se originam no ex­terior, eles são adotados porque de alguma forma parecerriluminadores ou atraentes. Mas em geral, por outro ladc,a mulher não se sente levada a adotar ou até mesmo a rt­fletir sobre estes pensamentos para poder compreendê-Ios.A capacidade de diferenciação pouco desenvolvida levaa que se acolha com o mesmo respeito e com a mesma ad­miração pensamentos válidos e outros sem valor algum,pois tudo o que de alguma maneira lembra o espírito im­põe-se e exerce sobre ela uma fascinação sinistra. Daí o su­cesso de muitos charlatães, que com uma espécie de pseu­do-espírito obtêm resultados surpreendentes! Por outrolado, no entanto, a capacidade de diferenciação deficien­te tem também seu lado bom: ele deixa a mulher sem pre­conceitos, de forma que ela muitas vezes sabe descobrir e

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apreciar valores espirituais mais rapidamente que o homem,cuja crítica desenvolvida o torna desconfiado e preconceituo­so, precisando portanto de mais tempo até reconhecer umvalor que pessoas menos preconceituosas já tinham reconhe­cido como tal há muito tempo.

O pensamento próprio da mulher (eu me refiro aqui àmulher em geral, sabendo que há muitas mulheres que hámuito ultrapassaram esse estágio, tendo já desenvolvido ex­tensamente tanto seu pensamento quanto seu ser espiritual)é preponderantemente prático e aplicado, aquilo que se cha­ma uma compreensão humana saudável, em geral dirigida aoque está próximo e ao pessoal. Até aí ele está funcionandoadequadamente no lugar que lhe cabe, não pertencendo pro­priamente àquilo que entendemos ser o animus em seu sensoestrito. Ele se torna tal somente quando a energia espiritualnão é mais dirigida apenas ao domínio da vida cotidiana, pro­curando além disso um outro campo de ação.

Em geral pode-se dizer que o espiritual da mulher, talcomo se apresenta, é um caráter pouco desenvolvido, in­fantil ou primitivo: curiosidade em vez de desejo de conhe­cimento, preconceito em lugar de julgamento, imaginaçãoou sonho em vez de pensamento, desejo em vez de vonta-de.

Onde o homem trata de problemas, a mulher conten-ta-se com adivinhações; onde ele alcança sabedoria e· conhe­cimento, a mulher se satisfaz com crenças ou superstições,ou faz suposições. Trata-se de estágios elementares que po­dem ser comprovados no espírito infantil e também no espí­rito primitivo. É assim que a curiosidade se apresenta às crian­ças e às pessoas primitivas, bem como os papéis desempenha­dos pela crença e pela superstição. No Edda há uma compe­tição de enigmas entre o errante Odin e seu anfitrião, lem­brando' um tempo em que o espírito humano se exercitavacom enigmas, como o feminino o faz hoje de forma prepon­derante. Temos também relatos semelhantes do mundo me­

diev,al e clássico. Eu me lembro do enigma da esfinge ou dode Edipo, nas sutilezas dos sofistas e escolásticos.

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o "pensamento ilusório" (Wunschdenken, wishful think­ing) corresponde igualmente a um determinado estágio dedesenvolvimento espiritual. Ele é encontrado em temas decontos de fadas, e aí freqüentemente como algo já passadoquando a história decorre "na época em que ter desejos aindaajudava". O uso da magia, quando se deseja algo a alguém,também está na base dessa mesma representação. Em sua "Mi­tologia Alemã", Grimm aponta a relação entre desejo, repre­sentação e pensamento:

"Um antigo nome nórdico de Wotan parece ser Oskiou Desejo. (As Valquírias são também chamadas de donze­Ias do desejo.) Odin, errante e deus do vento, senhor do exér­cito dos espíritos e descobridor das runas, é um espírito-deustípico, embora uma figura primitiva, ainda rústica.8 Comotal, ele é senhor do desejo, isto é, não apenas doador de tudoo que é bom e perfeito, que está compreendido no desejo,podendo também provocar, criar através do desejo. Grimminterpreta: o desejo é a energia que mede, molda, dá, cria,forma a energia imaginativa, pensante e, portanto, tambémimaginação, idéia, in:lagem, forma.9 E em outro lugar ele diz:"Significativamente, o desejo em sânscrito chama-se manoratha,roda do sentido ... o desejo movimenta a roda do pensamen­tO."10

Um tal deus do espírito e do vento é então comparávelao animus feminino em seu aspecto sobrenatural, divino ­nós também o encontramos com forma semelhante em so­nhos e fantasias -, e este caráter de desejo é próprio do pen­samento feminino. Quando se tem presente que a energiarepresentativa não representa pouco para as pessoas, já quesempre que se quer pode-se criar uma imagem espiritual dealguma coisa, a realidade, ainda que imaterial, não deve sernegada, e então se compreende como é que imaginação, pen­samento, desejo e criação foram equiparados. Especialmen­te num estado relativamente inconsciente, onde as realida­des externa e interna não estão nitidamente separadas, trans­bordando uma na outra, é muito possível que uma realidadeespiritual, isto é, algo imaginado ou um pensamento, seja con-

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siderado de maneira direta como real e concreto. Entre osprimitivos também se encontra esta equiparação entre rea­lidade externa concreta e realidade espiritual interior. Emseus escritos, Lévy-Bruhlll dá vários exemplos disso. Falarmais a respeito aqui nos levaria entretanto longe demais. Amesma manifestação encontra-se também de maneira mui­to clara na postura espiritual feminina!

Fica-se sutpreso ao se descobrir, quando se observa maisatentamente, com que freqüência nos passa pela cabeça quealgo se comporta assim e assado, ou que alguém interessa­do em nós faz isso ou aquilo, fez ou vai fazer; e sem nemmesmo pensar a respeito, confrontando a idéia com a reali­dade, já estamos convencidas de que é assim, ou pelo menosestamos inclinadas a aceitar a pura imaginação como verda­deira e adotar a realidade correspondente. Outras criaçõesda fantasia também são facilmente consideradas verdadei­ras e podem às vezes até mesmo aparecer em forma concreta.

Uma das atividades do animus mais difíceis de identi­ficar ocorre nesse terreno, nomeadamente o estabelecimen­to de uma imagem de desejo de si mesmo. O animus sabemuito bem como desenvolver uma imagem e torná-Ia crível,de forma que mostra-se aquilo que se gostaria de ser, comopor exemplo "a amante ideal", "a comovente criança inde­fesa", "a servidora abnegada", "a extraordinariamente ori­ginal", "a que na verdade nasceu para algo melhor" etc. etc.Naturalmente, essa atividade lhe confere poder sobre a pessoaaté o ponto em que se seja forçado ou se decida espontanea­mente sacrificar a imagem representada e ver-se como real­mente se é.

A atividade espiritual feminina também se manifestacom muita freqüência em cismas orientadas em geral retros­pectivamente: que a própria pessoa, ou outras, deveria terfeito tudo de maneira diferente, e como; ou relações causaissão construídas como se fossem uma obrigação. Gostamosde chamar a isso de "pensar", mas é claro que se trata deuma forma de atividade espiritual notavelmente próxima,e improdutiva, que na verdade leva somente à automortifi-

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cação. Também aqui está novamente caracterizada a defi­ciência no que se refere à diferenciação entre a realidade eaquilo que é apenas pensado ou imaginado.

Poder-se-ia dizer também que o pensamento feminino,até onde não atua de forma prática como compreensão hu­mana saudável, não é um pensamento propriamente dito,e sim mais sonho, imaginação, desejo e receio. Através dadiferenciação espiritual primitiva entre imaginação e reali­dade pode-se então esclarecer em parte também o poder ea autoridade do fenômeno do animus: porque na verdadeo espiritual, isto é, aquilo que é representado, possui ao mes­mo tempo um caráter de realidade imediato, e por isso tam­bém o que o animus diz parece ser imediatamente verdadeiro.

Com isso chegamos à magia da palavra.Da mesma forma que algo imaginado, um pensamen­

to, a palavra também age como realidade para o espírito nãodiferenciado. Nosso mito bíblico da criação, por exemplo,onde o mundo surge quando o criador pronuncia a palavra,é um documento desse tipo. O animus, portanto, tambémtem o poder mágico da palavra, e assim os homens que atuampela palavra podem, no bom e no mau sentido, exercer gran­de poder sobre a mulher. Estaria eu falando demais quan­do dou a entender que a magia da palavra, a arte da conver­sa, é o que mais infalivelmente prende a mulher ao homem,seduzindo-a?

De qualquer forma, não é somente a mulher que estásujeita à magia da palavra, mas trata-se de um fenômeno deocorrência geral: as runas sagradas da antiguidade, os man­tras, fórmulas de oração e de magia de todos os tipos, che­gando até às expressões técnicas e tópicas de nosso tempo- todos eles atestam o poder mágico do espírito tornadopalavra.

Mas em geral é mais provável que a mulher se subme­ta a esse efeito mágico que um homem de nível correspon­dente. Este tem por natureza o impulso de compreender ascoisas com as quais lida; como exemplo disso, os meninospequenos adoram desmontar seus brinquedos para saber qual

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sua aparência por dentro ou saber como funciona. Esse im­pulso é muito menos pronunciado na mulher. Ela pode, porexemplo, manejar muito bem instrumentos ou máquinas semque lhe ocorra querer estudar ou compreender sua constru­ção. Por isso também uma palavra que lhe soe significativapode se impor sem que ela na verdade entenda exatamen­te o seu sentido, enquanto o homem busca antes o significado.

Apresentar-se não como forma, mas como palavra (lo­gos significa, afinal, palavra) é uma forma de manifestaçãoespecialmente característica do animus; isto é, como umavoz que comenta ou compartilha da repreensão ao compor­tamento seja qual for a situação em que se encontre. Mui­tas vezes, é exclusivamente sob essa forma que o animus épercebido pela primeira vez como algo diferente do eu, mui­to antes que tenha se cristalizado em uma configuração pes­soal. Até onde pude observar, essa voz manifesta-se princi­palmente em duas tonalidades; numa avaliação crítica, emgeral negativa, de qualquer emoção, numa pesquisa minu­ciosa de todos os motivos e intenções que naturalmente sem­pre provoca sentimentos de inferioridade e costuma sufocarcada iniciativa, cada desejo ainda em gérmen. Como varia­ção, até agora fizeram-se elogios exagerados, e o resultadodesse julgamento extremo é que se oscila entre a consciênciade total nulidade e um elevado sentimento de valor e de simesmo.

A segunda tonalidade movimenta-se mais ou menos ex­clusivamente no estabelecimento de mandamentos e proibi­ções ou em ditar concepções em geral válidas. Parece queaqui são expressos dois lados importantes da função do 10­gos: por um lado, a discriminação, o julgamento e o reconhe­cimento; por outro, a abstração e o estabelecimento de leisgerais. Poder-se-ia dizer, talvez, que onde o primeiro tipode funcionamento predomina a figura do animus aparececomo uma pessoa, enquanto ela, quando o segundo tipo pre­domina, surge como vários, uma espécie de "conselho". Dis­criminação e julgamento correspondem mais a um indivíduo,enquanto o estabelecimento e abstração de leis, que têm por

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pressuposto a comparação e a concordância de muitos, é con­venientemente expresso por uma maioria.

O que entretanto se refere propriamente àquilo que écriativo no espírito é reconhecidamente algo muito raro na mu­lher. Há muitas mulheres que já desenvolveram extensamen­te sua capacidade de pensamento e diferenciação, sua críti­ca, mas muito poucas são espiritualmente criativas como ohomem. Dizem as más línguas que a mulher possui tão pou­co talento para a invenção que se o homem não tivesse des­coberto a colher ela estaria mexendo a sopa até hoje com umpau.

O criativo na mulher expressa-se bastante mais na vida

que em obras, não apenas em sua função biológica como mãe,mas na configuração da vida como um todo, seja em seu pa­pel de companheira do homem, em sua atividade como edu­cadora da criança, como dona-de-casa ou sob qualquer outraforma. A configuração de relações pertence preferencialmen­te à configuração da vida, e esta é a área apropriada para aenergia criativa feminina.

Nos produtos do inconsciente, em sonhos, fantasiasou simplesmente em pensamentos que se nos apresentam,encontramos também no entanto o momento do espiri­tual-criativo, isto é, estes produtos contêm freqüentem enteidéias, verdades de natureza puramente objetiva, absoluta­mente impessoal. A transmissão de tais conhecimentos e con­teúdos é muito apropriadamente a função do animus supe­rior.

Encontra-se com freqüência em sonhos, especialmen­te de mulheres que têm um pensamento mal-desenvolvidoou uma educação pobre, símbolos científicos abstratos quepraticamente não podem mais ser entendidos como pessoais,representando diagnósticos ou idéias objetivas que são maissurpreendentes para a própria mulher que os sonha que pa­ra qualquer outra pessoa. Assim, eu sei de uma mulher paraquem o pensamento é a "função inferior", 12 mas em cujossonhos o assunto mais freqüente são questões de astrono­mia e física e instrumentos técnicos de todo tipo. Uma ou-

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tra mulher, de um tipo totalmente irracional, desenhava co­mo representação de conteúdos inconscientes apenas figu­ras estritamente geométricas, formas extremamente seme­lhantes a cristais, como se pode encontrar em livros escola­res de geometria ou de mineralogia. E ainda em outras o ani­mus transmite visões de mundo e de vida que fogem muitode seu pensamento consciente, e cuja qualidade criativa nãopode ser negada.

Entretanto, na área em que a atividade criativa da mu­lher é mais ostensiva, naquela das relações humanas, o cria­tivo é menos fruto do espírito no sentido de logos, sendomuito mais produto do sentimento, de par com a intuiçãoou a sensibilidade. Aqui, ao contrário, o animus pode serdiretamente perigoso, quando ele interfere como intelectoem lugar de sentimento nas relações e, dessa maneira, as di­ficulta ou impossibilita. Acontece muito freqüentementeque, em vez de se apreender a situação ou o outro atravésdo sentimento e encará-Ios de maneira correspondente, seimagina algo sobre eles e é a essa fantasia que se tem de reagirde forma humana; pode ser uma atitude muito correta, bemintencionada e sensata, mas que não funciona, ou funcionada maneira errada, por ser apenas objetiva e factualmentecorreta, porque o parceiro ou a relação não requer naquel~momento conhecimento ou objetividade, e sim intuição. Emuito comum acontecer de, com o sentimento de se estaragindo muito valorosamente, adotar-se uma dessas atitudespragmáticas e com isso arruinar totalmente uma situação.A incapacidade de se compreender que conhecimento, ra­zão e pragmatismo não têm sentido em determinados luga­res costuma ser surpreendente. Eu só posso explicar isso pelofato de que se está acostumado a encarar o gênero masculi­no em si mesmo como algo de maior valor, superior ao fe­minino, de tal forma que se acredita que uma postura mas­culino-pragmática seria, em qualquer caso, melhor que umafeminina-pessoal. Isso diz respeito especialmente às mulhe­res que já alcançaram uma determinada conscientização evaloração daquilo que é lógico-racional.

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Chegamos aqui a uma diferença muito importante en­tre o problema do animus da mulher e o problema da ani­ma do homem, que, segundo me parece, merece a nossa aten­ção.

Quando o homem descobre sua anima e tem de brigarcom ela, ele precisa aceitar algo que para ele até então tinhapouco valor - neste caso, não faz muita diferença que a fi­gura da anima, seja ela imagem ou pessoa, aja de maneirafascinante, atraente, e portanto valiosa. Muitas vezes o femi­nino em si teve até agora em nosso mundo, quando compa­rado ao masculino, o valor de algo inferior, e somente ago­ra começa-se a se fazer justiça a ele. Expressões como "ape­nas uma garota" ou "uma moça não faz uma coisa dessas",um comportamento que o representa como desprezível e in­ferior, são bastante característicos. Também nas nossas leis,nas quais até pouco tempo atrás e em muitos lugares até ho­je o homem declaradamente precede a mulher, tem mais di­reitos, é seu tutor etc., essa concepção era universalmentedominante. Em conseqüência, o homem, quando estabelecerelações com sua anima, tem igualmente que descer do pe­destal em que está, tem que vencer uma resistência, superarseu orgulho, quando ele reconhece "a senhora", segundoSpitteler, ou "she-that-must-be-obeyed", como a chama RyderHaggard. Com a mulher é diferente. Não se chama o animusde "he-that-must-be-obeyed", antes pelo contrário, pois ins­tintivamente é demasiado óbvio para a mulher obedecer à au­toridade do animus, ou também do homem, com subserviên­cia de escrava. A concepção de que o masculino tem em simais valor que o feminino está em seu sangue, por mais queela conscientemente pense de outra maneira, e contribui mui­to para acentuar o poder do animus. O que temos que supe­rar em relação ao animus não é o orgulho, mas sim a faltade autoconfiança e a resistência da indolência. Para nós, nãoé como se tivéssemos que subir a montanha (a não ser quan­do se é idêntica ao animus), mas como se tivéssemos que pro­var nosso valor, o que freqüentemente requer coragem ou for­ça de vontade. Para nós é como se fosse uma petulância quan-

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do opomos nossas próprias convicções incompetentes aosjulgamentos do animus e do homem, que reivindicam vali­dade universal; e muitas vezes não é pouco o que custa ani­mar-se a uma tal igualdade espiritual aparentemente atrevi­da, pois aí pode-se facilmente ser mal compreendida ou jul­gada erradamente. Mas sem esse ato de insurreição, aindaque se tenha que sofrer as conseqüências, a mulher nuncase libertará do poder do tirano. Visto de fora, ele parece mui­tas vezes ser exatamente o contrário, pois com demasiadafreqüência surge uma segurança arrogante, um aplomb quenão admite absolutamente nada, e nota-se menos a timideze a falta de convicção em si mesma. Na verdade, essa atitu­de obstinada e confiante, ou até mesmo combativa, deveriaser confrontada com o animus e às vezes é bem isso o quepretende, mas em geral ela é o sinal de uma identidade maisou menos completa.

Não somos somente nós na Europa que sofremos des­se culto aos homens que sem dúvida ainda sobrevive, ou me­lhor, dessa supervalorização do masculino. Também na Amé­rica, onde se costuma falar de um culto à mulher, a coisa nofundo não é diferente. Uma médica americana com grandeexperiência me disse que todas as suas pacientes sofrem coma inferioridade do próprio sexo, e que ela antes de mais na­da precisava insistir com todas para que concedessem ao fe­minino o valor que lhe é devido.

Em contrapartida, são pouquíssimos os homens que têmpouca consideração para com o próprio sexo; ao contrário,em geral eles se orgulham dele. Moças que gostariam de serrapazes há muitas, mas um rapaz que gostaria de ser umamenina é visto como algo quase depravado.

A partir desse estado de coisas, o posicionamento damulher em relação ao animus resulta naturalmente muito

diferente do que o posicionamento do homem em relaçãoà anima. E muitas manifestações ligadas a isso, que o homemnão pode compreender como paralelas à sua vivência da anima evice-versa, devem ser atribuídas ao ponto de vista de que, sob es­te aspecto, as tarefas do homem e da mulher são diferentes.

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Sem dúvida, há sacrifícios também para a mulher. Pa­ra ela, tornar-se consciente significa a perda de um poderespecificamente feminino. Com a sua inconsciência e graçasa ela a mulher exerce um efeito mágico sobre o homem, umamagia que lhe confere poder sobre ele. E por sentir isso ins­tintivamente e não querer perder esse poder, ela muitas ve­zes opõe-se com tenacidade à conscientização, mesmo queo espiritual como tal pareça-lhe altamente desejável. Muitasmulheres mantêm-se por assim dizer artificialmente incons­cientes somente para não ter que fazer esse sacrifício. Mas épreciso dizer, no entanto, que nisso muitas vezes a mulheré também corroborada pelo homem, pois muitos homensencontram prazer exatamente na inconsciência da mulhere colocam todos os obstáculos possíveis em seu caminho ru­mo a uma maior consciência, que parece a eles incômoda edesnecessária.

Um outro ponto que costuma passar despercebido eque eu também gostaria de mencionar agora está na funçãodo animus em relação à anima. A concepção corrente é queanimus e anima são agentes mediadores entre os conteúdosinconscientes e a consciência, e com isso quer-se dizer queambos trabalham exatamente da mesma maneira. Isso pro­cede de uma maneira geral, mas me parece importante apon­tar também a diferença de papéis do animus e da anima. Opapel de transmitir conteúdos inconscientes, no sentido detorná-Ios visíveis, recai acima de tudo sobre a anima. Ela aju­da na percepção de coisas que de outra maneira permane­cem no escuro. Há uma condição prévia para isso: trata-sede uma espécie de escurecimento da consciência, portantoda instalação de uma consciência mais feminina, que é me­nos penetrante e clara que a masculina, mas que num âm­bito mais amplo percebe coisas ainda vagas. O dom visioná­rio da mulher, sua capacidade de intuição é conhecido háeras. Seus olhos mais desfocados permitem-lhe pressentiro escuro e ver o que está oculto. Essa visão, a percepção da­quilo que não pode ser visto de outra maneira, torna-se pos­sível ao homem através da anima.

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No animus, entretanto, a tônica não se encontra na per­cepção pura e simples - como foi dito, isso já foi concedidoao espírito feminino desde sempre -, mas sim, de acordocom o ser do logos, no conhecimento e especialmente nacompreensão. O que o animus tem a transmitir é mais o sen­tido que a imagem.

Seria um erro acreditar que alguém empregou seu ani­mus quando esse alguém abandona-se à sua fantasia passiva.Não se deve esquecer que dar corda à sua atividade de fan­tasia é a norma para a mulher, não representando isto qual­quer realização; acontecimentos ou imagens irracionais cu­jo sentido não se compreende parecem para ela algo total­mente natural, enquanto, para o homem, lidar com isso éuma realização, significando uma espécie de sacrifício daratio, um salto da luz para a escuridão, do claro para oopaco. Para o homem é um esforço admitir que todos osconteúdos aparentemente incompreensíveis ou mesmo sem

sentido poderiam ter valor; além disso, a postura passiva,exigida pela contemplação, corresponde no todo menos ànatureza ativa do homem. Para a mulher isso não é difícil.Ela não tem nenhuma premeditação contra o irracional, nãotem a necessidade de imediatamente encontrar um sentidopara tudo, nem aversão pelo passivo suportar tudo isso. Pa­ra aquelas mulheres para as quais o inconsciente não se abrefacilmente, que encontram dificuldade em ter acesso a seusconteúdos, o animus pode tornar-se mais um empecilho queuma ajuda quando quer analisar e compreender de imediatocada imagem que .emerge antes mesmo que ela pudesse serpercebida. O animus deve exibir sua genuína eficácia somen­te depois que esses conteúdos tiverem penetrado na cons­ciência, tendo já talvez até mesmo tomado forma. Neste mo­mento, sua assistência é então inestimável, pois ele ajuda pa­ra que se chegue à compreensão e ao sentido.

É possível, entretanto, que alguém seja notificado deum sentido diretamente a partir do inconsciente, de formaque não são símbolos ou imagens que se apresentam, masum conhecimento pronto expresso em palavras. Esta é, na

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verdade, uma manifestação muito característica do animus;muitas vezes o difícil é apenas descobrir se no caso se tratade um dos significados conhecidos, válidos universalmente,e portanto coletivos, ou de uma inteligência real, e portan­to condicionada ao indivíduo. Para que isso fique claro, re­quer-se novamente apreciação crítica consciente e uma di­ferenciação clara entre a própria pessoa e o animus.

2. A Representação do Animus através das Imagensdo Inconsciente

Depois de ter tentado mostrar até aqui como o animusse manifesta para o exterior e na consciência, eu gostaria aseguir de discorrer sobre como as imagens do inconscienteo representam, como ele aparece em sonhos e fantasias. Apren­der a conhecer esta forma, manter com ela conversas e discus­sões ocasionais, são um importante passo adiante no cami­nho para a diferenciação. Surge aqui uma nova dificuldade,onde se trata do reconhecimento do animus como imagemou figura. Esta consiste em sua multiplicidade de formas.Nós ouvimos de homens que a anima quase sempre surge comformas bastante determinadas, acontecendo isso de formamais ou menos semelhante com todos os homens: como mãeou amada, irmã ou filha, senhora ou escrava, sacerdotisa oubruxa; com os respectivos sinais contraditórios, de um serclaro e escuro, prestimoso e pernicioso, elevado e baixo.

Na mulher, pelo contrário, emerge ou uma quantida­de de homens, um bando de pais, um conselho ou um tri­bunal ou ainda uma assembléia de homens sábios, ou entãoum artista transformista que pode assumir qualquer formae que faz uso abundante dessa capacidade.

Esclareço essa diferença para mim mesma da seguintemaneira: o homem tem a experiência da mulher na verda­de apenas nas personificações citadas acima, como mulherou amante, irmã ou filha, senhora ou servidora, etc.; na ver­dade, portanto, sempre de uma maneira que se relaciona com

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ele. Estas são as formas sob as quais sua existência se deudesde sempre. A vida do homem, ao contrário, assumiu for­mas variadas, já que sua tarefa biológica lhe deixou tempopara muitas outras coisas. No que se refere às variadas áreasde atividades masculinas, o animus pode surgir como repre­sentante ou mestre de qualquer tipo de poder ou saber. É ca­racterístico da figura da anima que todas as suas formas sejamao mesmo tempo formas de relacionamento. (Mesmo quan­do ela aparece como sacerdotisa ou bruxa, esta se encontrasempre em uma relação especial com o homem, cuja animaela incorpora, de forma que ela ou lhe confia um segredoou o enfeitiça.) Eu me lembro da She de Rider Haggard, ondeaté mesmo a relação especial é apresentada como milenar.

Na figura do animus, por outro lado, tal relação nãotem que ser necessariamente representada. De forma corres­pondente à orientação prática do homem, característica doprincípio do lagos, essa figura pode aparecer de forma pu­ramente objetiva e absolutamente não relacionada, comosábio, juiz, artista, piloto, mecânico, etc. E não é raro queela surja simplesmente como o estranho. Talvez justamen­te esta forma seja especialmente característica, pois para aalma puramente feminina o espírito significa o estranho, odesconhecido.

Parece-me que a capacidade de assumir formas diver­sas é uma propriedade do espírito que expressa algo seme­lhante à mobilidade, isto é, a propriedade de percorrer gran­des distâncias em um curto espaço de tempo, que o pensa­mento tem em comum com a luz e com o qual o ideal dopensamento de que falamos acima está relacionado. O ani­mus, portanto, aparece freqüentemente como piloto, mo­torista, esquiador ou dançarino, quando justamente essa le­'veza e velocidade devem ser acentuadas. As duas proprie­dades, a capacidade de metamorfose e a rapidez,' podem serencontradas em muitos mitos e contos de fadas como pro­priedades de um deus ou de um mago: Wotan, senhor dosventos e chefe da horda dos espíritos, que eu já mencionei,Loki, o flamejante, e Mercúrio com os sapatos alados repre-

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sentam este aspecto do logos, que se movimenta com viva­::idade, imaterial, que de uma certa maneira é apenas dinâ­mica sem propriedades fixas e que expressa possibilidade:le forma, sendo ao mesmo tempo um espírito, que "flutuapara onde quer".

O animus surge personificado em sonhos e fantasiassobretudo na forma de um homem real: como pai, amante,lrmão, professor, juiz, sábio, como mago, artista, filósofo,erudito, engenheiro, monge, especialmente jesuíta, ou co­mo comerciante, piloto, motorista etc. etc., em suma, intei­ramente como um homem caracterizado de alguma manei­ra por capacidades espirituais ou por outras qualidades mas­culinas. Isso pode ocorrer no sentido positivo, como pai pres­tativo e bem intencionado, como amante encantador, amigocompreensivo, líder superior, ou então como tirano violen­to e sem consideração, admoestador, pregador moral e juizda moral, e então novamente como sedutor e exploradore freqüentemente também, através de uma mistura de ilu­sionismo intelectual e questionamento humano, um fascinan­te pseudo-herói. Ele é também representado às vezes comoum rapaz, o filho ou um jovem amigo, neste caso quase sem­pre quando o componente masculino da mulher é entendidoespecialmente como em desenvolvimento. Em muitas mu­lheres, como já foi dito, ele aparece de preferência de formamúltipla, como um conselho que decide sobre tudo o queacontece, que transmite prescrições e proibições ou expres­sa concepções de validade universal.13 Se ele aparece maiscomo indivíduo que troca de máscaras ou como muitos aomesmo tempo, pode depender da situação em que a mulherem questão se encontra e eventualmente também da fase dedesenvolvimento do momento. Eu não posso tratar aqui detodas as variadas formas de aparição pessoais do animus, e mecontento, neste momento, com uma série de sonhos e fanta­sias, em mostrar como ele se apresenta ao olho interior, co­mo ele aparece à luz do mundo dos sonhos. São exemplosnos quais o caráter arquetípico está especialmente nítido eque contêm ao mesmo tempo indícios de um desenvolvimento.

O surgimento dessas figuras instituiu-se na mulher emquestão numa época em que a atividade espiritual indepen­dente tornou-se um problema e a figura do animus começoua desligar-se da pessoa em que fora projetada.

Surgiu então em sonho um monstro com cabeça de avecujo corpo era constituído apenas de uma bolha que podiaassumir a forma que quisesse: dele sabia-se que antes tinhase apossado do homem sobre quem o animus fora projeta­do, e que era preciso ocultar-se dele, pois ele gostava de de­vorar pessoas, mas que não as matava, precisando elas con­tinuar a viver em seu interior.

A forma de bolha indica algo que ainda se encontra numestágio inicial - somente a cabeça, como órgão característi­co do animus, está diferenciada, e logo como a cabeça de umser aéreo -, além disso qualquer forma pode surgir, e a vora­cidade aponta para uma necessidade de expansão e desenvol­vimento dessa grandeza ainda indiferenciada. A proprieda­de da voracidade é iluminada por um provérbio que está noKandogya Upanishad, que trata da natureza de Brahma: "Ovento é, na verdade, o que arrebata, pois quando o fogo seapaga, ele entra no vento, e quando o Sol se põe, ele entrano vento, e quando a Lua se põe, ela entra no vento, e quan­do as águas secam, elas entram no vento, pois o vento arre­bata a todos eles. É assim com referência à divindade.

"Agora em relação a si mesmo. A respiração é a que ar­rebata, pois quando se dorme, então a conversa entra na res­piração, na respiração o olho, na respiração o ouvido, na res­piração o manas, pois a respiração arrebata a todos eles. Es­tes dois são, portanto, os dois arrebatadores. O vento entreos deuses, a respiração entre as brisas da vida. "14

Ao lado desse ser de Ar com cabeça de pássaro surgeuma espécie de espírito do fogo', um ser elementar, consti­tuído apenas de chamas e que se encontra em constante mo­vimento, e que é chamado de filho da "mãe inferior". Estafigura materna, em vez de uma mãe celeste e luminosa, in­corpora o feminino primordial como pesado, ligado à ter­ra, versado em magia, um poder às vezes prestativo, às vezes

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sinistro como uma bruxa e muitas vezes até mesmo destru­tivo. Seu filho seria, portanto, um espírito do fogo telúrico,que lembra o Logi ou Loki da mitologia nórdica, o qual (se­gundo Grimm) é representado por um gigante dotado de po­der criativo, mas também ao mesmo tempo como um vilãoastuto e sedutor, do qual surgiu posteriormente o demôniocristão. Na mitologia grega, ele corresponde a Hefestos, odeus do fogo terrestre, mas que em sua atividade de ferrei­ro aponta para um fogo domesticado, enquanto no Logi nór­dico está incorporada mais a força da natureza elementar,·sem direção. Como filho da mãe inferior, este espírito dofogo terrestre está próximo da mulher e é seu conhecido.Ele se manifesta de maneira positiva em atividades práticas,sobretudo na manipulação da matéria e também em sua ela­boração artística, e de maneira negativa em estados de ten­são ou em explosões de afeto, e muitas vezes de uma manei­ra duvidosa e fatal como aliado do feminino primordial, co­mo instigador ou energia auxiliar daquilo que geralmente éconhecido sob a denominação de "arte diabólica" e de fei­tiço feminino. Seria possível caracterizá-Io como logos bai­xo ou inferior, em oposição a um logos superior, elevado,que está esboçado no ser de Ar com cabeça de ave e corres­ponde ao deus do vento e ao espírito Wotan ou ao guia dealmas, Hermes, da mitologia, que não descendem da mãeinferior, pertencendo sim a um pai distante e desconhecido.

O motivo da mudança de forma retoma em um sonhosubseqüente, onde é mostrada uma imagem com o título "Vr­go, o dragão mágico". Nela está representado um ser seme­lhante a uma serpente ou um dragão com uma menina quese encontra em seu poder. O dragão tem a capacidade de seexpandir em todas as direções, de forma que a menina nãotem nenhuma possibilidade de escapar do alcance do mons­tro, já que a qualquer movimento da menina ele se esticapara o lado correspondente impossibilitando assim a fuga.

A menina é uma figura que sempre se repete em todosestes sonhos e fantasias, que pode ser concebida como almamais ou menos no sentido de individualidade inconsciente.

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Na nossa imagem onírica, ela está apenas esboçada como umasombra, com traços faciais irreconhecíveis, mas ainda assimtotalmente em poder do dragão. Cada um de seus movimen­tos é observado e medido por ele. Não parece ser possívellivrar-se dessa situação.

Mostra-se no entanto um desenvolvimento do sonhona seguinte fantasia: um artista mágico exibe suas bailarinaspara um príncipe indiano. Estas, hipnotizadas pelo mago,dançam uma dança de metamorfoses, em que elas, tirandoum véu após outro em colorida alternância, simulam ora ani­mais, ora pessoas. Mas, apesar de estarem hipnotizadas pelomago, o príncipe exerce um efeito misterioso sobre elas. En­trando mais e mais em êxtase e não prestando mais atençãoàs ordens do mago para que parem de dançar, elas continuamdançando até que, finalmente, como um último véu, elas selivram de seu invólucro corpóreo e caem ao chão como es­queletos. Os restos são enterrados, do túmulo cresce umaflor e desta surge novamente uma mulher branca.

Trata-se do mesmo motivo: a menina em poder do ma­go, cujas ordens ela tem de obedecer por não ter outra op­ção. Na figura do rei, entretanto, surge um adversário do ma­go, que impõe limites ao seu poder sobre a menina e atuacomo se esta, em vez de agir sob ordens, como antes, dan­çasse a partir de então por si mesma. Agora a metamorfose,antes apenas representada, torna-se realidade, em que a bai­larina morre e torna a aparecer da terra sob uma forma mo­dificada e transfigurada.

Aqui é de especial importância a duplicação da figurado animus, que por um lado aparece como mago e por ou­tro como príncipe. No mago está representado o poder má­gico .possuído pela forma inferior do animus, que leva a me­nina a assumir formas diferentes ou mudar de forma, enquan­to o príncipe, como já diz a própria palavra, incorpora umprincípio superior, que efetua uma metamorfose verdadeirae não apenas representada. Guiar e acompanhar mudanças etransformações da alma como um verdadeiro psichopompo éuma função importante do animus superior, isto é, suprapessoal.

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o sonho seguinte dá uma outra variação do mesmo te­ma: a menina tem um amado fantástico, que mora na Luae que cada vez vem no barco da Lua Nova para receber umsacrifício de sangue, que a menina lhe leva. No entretempo,a menina vive livre como uma pessoa entre pessoas, mas quan­do a Lua Nova se aproxima o espírito a transforma num ani­mal feroz e, seguindo um impulso irresistível, ela precisa su­bir a altitudes solitárias e lá oferecer o sacrifício ao seu ama­do. Mas o espírito da Lua transforma esta oferenda, de for­ma que esse mesmo espírito se torna o animal do sacrifício,que devora a si mesmo e se renova, transformando-se o san­gue derramado numa estrutura semelhante a um vegetal, emque nascem flores e folhas multicoloridas.

Em outras palavras: através do sangue recebido, isto é,da libido que flui para ele, o princípio espiritual perde o ca­ráter perigosamente urgente e destrutivo e torna-se uma vi­da própria, uma atividade em si.

O mesmo princípio aparece ainda como o Barba Azul,uma bem conhecida forma do animus retirada da literatura,isto é, do homem que seduz mulheres e, de maneira miste­riosa e com intenções também misteriosas, as mata.

No nosso caso, ele caracteristicamente tem o nome deAmandus. Ele atrai a menina à sua casa, dá-lhe vinho parabeber e depois a leva a um aposento subterrâneo para ma­tá-Ia. Quando ele se prepara para fazê-Ia, a menina é toma­da por uma espécie de embriaguez. Num súbito caprichode amor, ela abraça o assassino, que é assim imediatamen­te destituído de todo o seu poder, e, com a promessa de nofuturo ficar ao seu lado como espírito prestativo, dissolve-seno ar.

Assim como a urgência espiritual do noivo lunar desa­parece com o sacrifício de sangue, aqui seu poder é destruí­do pelo amor, pelo abraço dado no temido monstro.

Vejo nessas fantasias indícios de uma importante for­ma de manifestação arquetípica do animus, para as quais te­mos igualmente paralelos mitológicos, e justamente no mi­to e culto de Dioniso.

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O entusiasmo extático de que eram tomadas as dança­rinas da nossa primeira fantasia, e que é superado pela me­nina na história do Barba Azul-Amandus, é uma apariçãocaracterística do culto dionisíaco. Nele são principalmentemulheres que servem ao deus e que são tomadas pelo seuespírito. Roscher 1S salienta ser característico que Dionisoseja servido por mulheres, divergindo da prática usual emque o deus é atendido por pessoas de seu próprio sexo.

Na história do espírito da Lua, é na oferenda de san­gue e na transformação da menina num animal que podemser encontrados paralelos com o culto de Dioniso. Neste,animais vivos eram sacrificados ou destroçados pelas mulhe­res enfurecidas, neste último caso um delírio selvagem infli­gido pelo deus. As festas dionisíacas diferenciam-se tambémdo culto aos deuses olímpicos pelo fato de que ocorriam ànoite em montanhas e florestas, como o sangue derramadoao espírito da Lua em nossa fantasia tem de ocorrer à noi­te em uma montanha.

Nesse contexto, deve-se mencionar ainda algumas fi­guras literárias bem conhecidas, como por exemplo a do Ho­landês Voador, o caçador de ratos de Hamelin, o aguadei­ro ou rei dos elfos das canções populares, que com suas me­lodias atraíam moças a seus reinos aquáticos ou na floresta.Também "o estranho" na "Mulher do Lago" de Ibsen é umadessas figuras em versão moderna.

A figura do caçador de ratos deve ser observada maisde perto como representante característico desta forma doanimus. A história do caçador de ratos é conhecida: com suamelodia, ele atrai ratos de todos os cantos, de tal forma queeles têm que segui-Ia; mas não somente os ratos, tambémas crianças da cidade, que não quis gratificá-Ia por seusserviços, são irresistivelmente atraídas por ele, que faz comque desapareçam em sua montanha. Pensa-se aí em Orfeu,que tocava sua lira de forma tão prodigiosa que homens eanimais tinham de segui-Ia. Este ser atraído irresistivelmen­te e ser levado a algum lugar distante desconhecido, água,floresta, uma montanha, é, segundo me parece, um fenôme-

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no de animus típico, ainda que difícil de ser esclarecido, jáque ele, ao contrário das outras naturezas do animus, nãoleva à consciência, mas ao inconsciente, como deixa entre­ver o desaparecimento na natureza ou no mundo inferior.O espinho de sono de Odin faz parte do mesmo fenômeno;quando alguém era tocado por ele, mergulhava num sonhoprofundo.

Na peça de teatro inglesa "Mary-Rose", de James M.Barrie, este motivo está representado de forma bastante im­pressionante: Mary-Rose acompanhou seu marido a uma pes­caria. Em uma pequena ilha, chamada de the island that wantsto be visited, ela deve esperá-Io. Enquanto espera, ela ouvechamarem pelo seu nome, segue a voz e desaparece para nun­ca mais voltar. Vinte anos depois ela retoma, exatamentecomo era antes, quando havia desaparecido, e acreditandoter passado apenas algumas horas na ilha, quando evidente­mente foram anos.

O que está ilustrado por esse desaparecimento na na­tureza ou no mundo inferior, ou em ser tocado pelo espinhodo sono, manifesta-se na vida quotidiana em que, como seirresistivelmente atraída de algum lugar, a libido desapareceda consciência e dos usos da vida indo para um outro mun­do, em geral totalmente desconhecido. O mundo no qualse desaparece nestes casos ou é um mundo de fantasia oude contos de fadas mais ou menos consciente, no qual as coi­sas são como se deseja, ou então está estruturado como umrefúgio para compensar as agruras do mundo exterior. Masmuitas vezes descobre-se também nestes lugares distantese profundos que nada que pertença a ele penetra na consciên­cia em vigília, e também que depois que se volta a si não sepode dizer o que aconteceu nesse entretempo.

Se se quisesse caracterizar mais precisamente o tipo deespírito que atua nessas aparições, poder-se-ia compará-Ioao espírito da música. A atração e o arrebatamento são tam­bém com muita freqüência, como no caso da história do ca­çador de ratos, efetuados através da música. A música, por­tanto, pode ser entendida como uma objetivação do espírito,

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que nem expressa conhecimento no sentido usual, lógico-in­telectual, nem se realiza materialmente, mas significa umarepresentação manifesta dos contextos mais profundos e damais inabalável regularidade. Neste sentido, a música é espí­rito, e espírito que leva a lugares escuros e remotos, não maisacessíveis à consciência, e cujos conteúdos praticamente nãopodem mais ser concebidos com palavras - mas sim atra­vés de números, por estranho que pareça - e também aomesmo tempo e sobretudo através de sentimento e sensibi­lidade. Este fato aparentemente paradoxal mostra que a mú­sica tem condições de permitir o acesso a profundezas ondeo espírito e a natureza são ainda ou novamente um, e porisso ela se constitui numa das formas principais e mais pri­mitivas na qual a mulher vive o espírito de modo absoluto.Daí também o importante papel que a dança e a música co­mo formas de expressão representam para a mulher. A dan­ça ritual está claramente baseada em conteúdos espirituais.O arrebatamento para essas regiões cósmico-musicais distan­tes da consciência, que é obra desse espírito, constitui umacontrapartida à mentalidade consciente da mulher, voltadapor outro lado para o que está mais próximo e para o maispessoal. Mas de forma alguma trata-se de uma experiênciainofensiva, ainda inequívoca pois, por um lado, ela pode sig­nificar simplesmente tornar-se inconsciente, o que não pas­sa de um mergulho numa espécie de estado de sono, crepus­cular, um retrocesso à natureza, que equivale a uma regres­são a um nível inconsciente anterior e que por isso não temvalor, podendo ser até mesmo perigoso. Por outro lado, noentanto, ele pode significar uma experiência religiosa genuí­na, tendo então naturalmente um valor inestimável.

Além das figuras mencionadas, que mostram o animusem um aspecto sinistro, perigoso, há ainda uma figura deoutro tipo: no caso que se segue é um anjo com cabeça depedra que abriga em sua mão um pássaro azul, o pássaro daalma. Essa função, a de protetor da alma, vem novamenteao encontro daquela do guia de almas, a forma do animussuperior, transpessoal. Esta forma superior do animus tam-

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bém não se deixa transformar em uma função subordinadaà consciência, permanecendo uma grandeza sobreposta quequer ser reconhecida e respeitada como tal. Na fantasia dasdançarinas acima mencionada este princípio masculino-espi­ritual superior está incorporado na figura do príncipe. Tra­ta-se, portanto, de um soberano, não no sentido de um ma­go, mas no sentido de um espírito superior, que não traz emsi nada de telúrico e noturno, e que não é filho da mãe in­ferior, mas o representante, o enviado de um pai distante edesconhecido, um poder luminoso suprapessoal.

Todas estas figuras têm o caráter de arquétipos16 (daíos paralelos mitológicos) e são conseqüentemente mais im­pessoais ou suprapessoais mesmo que, ainda que também es­tejam voltados para um lado do indivíduo e estejam em re­lação com ele. Além deles, surge também o animus pessoalou pertencente ao indivíduo, isto é, aquilo que é masculinoou espiritual que corresponde à própria aptidão da mulherque se desenvolve numa função ou atitude consciente quepode ser classificado no todo da personalidade, no sonhocomo um homem ligado à que sonha, seja por laços de sen­timento ou de sangue, seja por alguma atividade. Pode-sereconhecer aqui, novamente, as formas "superior" e "infe­rior", respectivamente com características positivas ou ne­gativas. Às vezes ele é um amigo ou irmão há muito procu­rado ou esperado, um professor que a instrui, um sacerdo­te que executa com ela uma dança ritual ou um pintor quedeve retratá-Ia. E então novamente um trabalhador chama­do "Ernst"* vem morar em sua casa, e um ascensorista cha­mado "Constantin" entra a seu serviço. Às vezes ela tem

que se ater com um rapazinho malcriado e rebelde, temque ter cuidado com um jesuíta tenebroso ou comercian­tes mefistofélicos encomendam-lhe todo tipo de coisas mag­níficas.

Um ser independente, mas que apenas raramente emer-ge, é a figura do "Estranho". Em geral, apesar de sua estra-

* ernst =sério (N.T.).

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nheza, este conhecido desconhecido traz uma mensagem ouuma ordem como enviado do distante príncipe da luz.

Com o tempo, as figuras aqui descritas tornam-se for­mas confiáveis, como é o caso com pessoas do mundo ex­terior de quem se está próximo ou a quem se encontra comfreqüência, e aprende-se a compreender por que cada vez apa­rece uma ou outra. Pode-se conversar com eles, recorrer aosseus conselhos ou à sua ajuda, tendo-se entretanto freqüen­temente de se defender de suas intervenções inoportunas ede se zangar com sua rebeldia. E deve-se estar sempre mui­to vigilante para que essas formas de aparição do animus nãotentem tomar o poder e dominar a personalidade.

A diferenciação entre si mesmo e o animus e a nítidadelimitação de seu âmbito de poder são de extraordináriaimportância; pois somente por este meio torna-se possívellivrar-se de sua identificação e possessão com suas conseqüên­cias funestas. A conscientização e realização do próprio seI!caminha de mãos dadas com esta diferenciação, que se tornadaí para diante uma instância decisiva.

Até onde o animus é uma grandeza superindividual,isto é, um espírito universal, que pode relacionar-se conos­co como guia de almas e gênio prestativo mas não pode tor­nar-se subordinado à nossa consciência. Mas a coisa é dife­rente com aquele ser que quer ser acolhido como irmão, ami­go, filho ou servidor. A ele, por seu lado, corresponde a ta­refa de conseguir um lugar em nossa vida e em nossa perso­nalidade e, com a energia que lhe é inata, iniciar algo.

Na maioria das vezes, disposições como, por exemplo,de nossos passatempos, já deram indicações da direção emque esta energia pode atuar. E então também os sonhos mui­tas vezes mostram caminhos. Segundo as características indi­viduais de cada um, serão estudos, livros, determinadas dis­ciplinas etc., ou alguma atividade artística ou de organização.Mas será sempre um tipo de atividade factual objetiva, cor­respondente ao ser masculino que o animus representa. Adisposição aqui necessária de se querer fazer alguma coisae não de querer uma pessoa é penoso na mulher e muitas

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vezes só pode ser alcançada com esforço. Mas ela é justamen­te de especial importância, pois caso contrário as exigênciasa que o animus tem direito e que correspondem à sua índo­le brotam em outros lugares e, com a falsa objetividade jámencionada, estendem-se para onde não podem ser utiliza­das, agindo, pelo contrário, da maneira errada.

Com exceção de atividades específicas desse tipo, oanimus pode e deve ajudar também no conhecimento e nummodo de ver as coisas e situações impessoal, objetivo e racio­nal, isso de uma maneira geral, o que para a mulher, comseu interesse automático e muitas vezes demasiado subjeti­vo, significa uma aquisição valiosa e que lhe é muito útil tam­bém em sua área de atuação mais própria, a das relações. As­sim, por exemplo, esse seu componente masculino a ajudaa compreender o homem e - isto é especialmente salienta­do aqui - o animus, atuando de maneira autônoma com suainapropriada "objetividade", o que tanto perturba as re­lações humanas, é muito importante também justamentepela sua prosperidade, pela capacidade de colocar-se de mo­do impessoal e objetivo.

Contudo, não é apenas nas atividades espirituais ou mas­culinas que a energia do animus pode agir; ela sobretudo pos­sibilita também a formação de uma atitude espiritual, queliberta da limitação e acanhamento naquilo que é intimamen­te pessoal. Que confiança, que ajuda ele proporciona quan­do, por necessidades pessoais, queremos elevar-nos a pensa­mentos e sentimentos suprapessoais, parecendo o própriosofrimento mesquinho e fútil quando comparado a eles!

Para se alcançar tal atitude e poder cumprir as tarefasque se apresentam é necessário sobretudo disciplina, que pa­ra a mulher, com seu ser ainda muito ligado à natureza, ébastante mais difícil que para o homem. Correspondentemen­te, o animus é também um espírito que não se deixa atrelara uma carroça como um cavalo manso; com demasiada fre­qüência ele tem o caráter de um ser elementar que ou per­manece numa letargia plúmbea ou perturba e confunde comsua exuberância flamejante ou então nos leva consigo voan-

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do com o vento. Aqui é necessana uma conduta rigorosa eimplacável, que doma o que é volúvel e sem direção e for­ça à obediência e ao trabalho conseqüente.

De qualquer forma, para a grande parte das mulheresatuais o caminho é outro, a saber, para aquelas que se acos­tumaram à disciplina e a uma atitude objetiva através de umcurso superior, de uma atividade artística, de organizaçãoou alguma outra atividade profissional antes mesmo que oproblema do animus como tal se tornasse consciente paraelas. Com a aptidão correspondente, isso é bastante possí­vel em razão de uma identificação com o animus. Mas atéonde eu pude ver, para tais mulheres ser mulher numa ati­vidade profissional bem-sucedida acaba constituindo-se umproblema. Em geral na forma de insatisfação, da necessida­de de valores pessoais e não meramente factuais, de nature­za e feminilidade em geral; muitas vezes também de formaque ela se envolve em relações difíceis sem querer, ou poracaso ou destino cai em situações tipicamente femininas nasquais ela não sabe que atitude tomar. De maneira semelhan­te ao homem em relação à anima, também a mulher se de­para com a dificuldade de sacrificar uma condição humanade certo modo superior, uma forma qualquer de superiori­dade, precisando aceitar uma que é menos valorizada, a defraca, passiva, sem objetividade e ilógica, ligada à natureza,em suma, feminina. Mas, em última instância, os diversoscaminhos almejam o mesmo alvo, e seja qual for o escolhi­do, os perigos e dificuldades são os mesmos. Também aque­la mulher para quem o desenvolvimento espiritual e a ativi­dade objetiva estão em segundo plano, depara-se com o pe­rigo de ser engolida pelo animus, o que equivale a tornar-seidêntica a ele. Por isso, é da maior importância que se te­nha um contrapeso que possa manter o poder do inconscien­te em xeque e que mantenha o eu ligado à terra e à vida. Nóso encontramos, em primeiro lugar, através de uma crescenteconscientização e de um constante e fortalecido sentimen­to da própria individualidade; em segundo lugar, através deum trabalho no qual as energias espirituais possam ser apli-

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cadas e, em terceiro - last not least - na relação com ou­tras pessoas, que constitui o apoio e o ponto de orientaçãodo humano diante do sobre-humano ou do extra-humanodo anirnus. Aqui a relação de mulher para mulher tambémassume grande significado. Pude observar como muitas mu­lheres, paralelamente ao problema do anirnus que se torna­va agudo, começavam a se interessar cada vez mais por mu­lheres e sentiam que o relacionamento com mulheres torna­va-se uma necessidade sempre crescente. Talvez este seja ocomeço da solidariedade feminina, cuja falta é tão sentida,e que somente se tornará possível através da conscientiza­ção de um perigo presente para todas. Aprender a valorizare acentuar os valores femininos é a condição prévia para quenós como nós mesmas possamos resistir ao poderoso prin­cípio masculino em seus dois aspectos, interno e externo,que quando consegue o domínio absoluto ameaça o campoprimordialmente próprio da mulher, a área em que ela po­de produzir o que tem de mais próprio e melhor, colocan­do em perigo sua própria vida.

Quando se consegue se diferenciar do anirnus e se afir­mar em relação a ele, em vez de se deixar devorar por ele,então ele deixará de representar apenas um perigÇ>, tornan­do-se ao contrário uma energia criativa; e nós precisamosdela pois, por mais estranho que isso possa parecer, somen­te incorporando esse ser masculino da alma, para que ele aíexerça a função que lhe cabe, será possível ser realmente mu­lher no seu sentido mais elevado e, já que ao mesmo temposomos autênticas, também cumprir nosso próprio destinohumano.

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A ANIMA COMO SER NATURAL

[Publicado em: Studien zur Analytischen Psychologie C. G. Jungs. Publi­cação comemorativa ao 809 aniversário de C. G. Jung. Vol. 11: Beitrãge zur Kul­turgeschichte. Publicado pelo Instituto C. G. Jung, Zurique, Rascher, Zurique1955.]

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A representação dos seres elementares que habitam aágua, o ar, a terra, o fogo, os animais e as plantas é antiquís­sima e difundida em todo o planeta, como testemunham amitologia e os contos de fadas, o folclore e a poesia. Estesnão apenas apresentam uma surpreendente semelhança en­tre si mas também com as figuras dos sonhos e fantasias dohomem moderno; conclui-se daí que essas representaçõesdevem ter por base fatores mais ou menos constantes paraque se expressem sempre e por toda parte de maneira seme­lhante.

Como demonstrou a pesquisa da psicologia profunda,as imagens e figuras que geram a capacidade da psique decriar espontaneamente mitos atuantes deve ser entendidanão apenas como cópias e transposições de aparições exter­nas, mas também como expressão de realidades psíquicasinternas, de· forma que elas possam ser vistas como uma es­pécie de auto-representação da psique. É natural, portanto,que se aplique este ponto de vista às representações mencio­nadas acima. A seguir, investigaremos se e como a figura daanima se encaixa nisso. Não me é possível expor aqui umpanorama completo do assunto; eu apenas introduzo algunsexemplos típicos, e mesmo assim só examinarei' mais porme­norizadamente aquelas características que parecerem maisimportantes para o meu questionamento. Dos incontáveisseres da natureza, tais como gigantes, anões, elfos etc., eusó levei em consideração algumas devido ao seu sexo femi­nino e que, estando relacionadas com um homem, podiamser consideradas personificações da anima. Sabe-se que estarepresenta o componente feminino da personalidade do ho­mem, mas ao mesmo tempo a imagem do ser feminino queeste de modo geral traz em si; em outras palavras, o arquéti­po do feminino.

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É preciso que seja possível reconhecer traços nitidamen­te femininos nas formas em que a figura da anima pode serconsiderada. A estas dedicaremos especial atenção na espe­rança de, através delas, atingir uma visão aprofundada da na­tureza da anima. Dentre todos os seres levados em conta pa­ra tal consideração, os mais apropriados são aqueles conhe­cidos de várias lendas e contos de fadas, tais como ninfas,virgens transformadas em cisnes, ondinas e fadas. Normal­mente, elas são de uma beleza arrebatadora, mas apenas meio­-humanas, tendo um rabo de peixe, como as sereias, ou me­tamorfoseando-se em ave, como as que se transformam emcisnes. Freqüentemente elas surgem d~ forma múltipla, es­pecialmente em número de três, assim como o animus indi­ferenciado também gosta de aparecer de forma múltipla.

Estes seres, ou por serem provocantes ou pelo seu can­to, atraem o homem a seu reino (sereias, Loreley, etc.), on­de ele desaparece para sempre; ou então,. o que é um traçomuito significativo, elas procuram prender o homem peloamor para viver com ele em seu mundo. Mas elas sempre es­tão ligadas a algo sinistro, a um tabu que não pode ser ultra­passado.

Uma figura primordial, quase mística a ser mencionadaé a da virgem que se transforma em cisne. Ela goza de gran­de antiguidade e está difundida em todo o mundo. Muitoprovavelmente, a versão literária mais antiga deste motivoé a narração do Pururavas e do Urvasi, transmitida por umdos mais antigos textos védicos, o Rg- Veda, 1 e de forma maisextensa e clara no Satapathabrâmana,2 que eu reproduzoaqui de forma algo abreviada:

A ninfa (Apsaras)3 Urvasi amava Pururavas. Ela casou-secom ele sob a condição de que ele a abraçasse três vezes pordia, mas nunca tivesse relações com ela contra sua vontadee jamais aparecesse nu diante dela. Depois de ter vivido comele muitos anos ela ficou grávida. Então os gandarvos acha­ram que Urvasi já havia permanecido por tempo suficienteentre os homens e puseram-se a pensar numa maneira de pro­vocar seu retorno. Ora, havia uma ovelha com dois filhotes

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presa ao leito de Urvasi; os gandarvos roubaram-nos durantea noite. "Eles roubaram os meus queridos", queixou-se ela,··como se não houvesse um homem ou um herói a meu la­do!" Quando Pururavas ouviu isso, pulou da cama nu comoestava para perseguir os ladrões. Nesse instante os gandar­vos produziram um raio, de forma que Urvasi viu seu mari­do como se fosse dia claro. Com isso, portanto, uma dascondições estabelecidas por ela foi desobedecida, e em con­seqüência, quando Pururavas retomou, ela havia desaparecido.

Desesperado, ele passou a percorrer o país na esperan­ça de reencontrar UrvasÍ. Um dia ele chegou a um lago de ló­tus no qual aves aquáticas nadavam. Tratava-se entretantode Apsaras, e aquela que ele procurava encontrava-se entreelas. Ao ver Pururava, ela se mostrou a ele em forma huma­na; ele então a reconheceu e implorou-lhe para que lhe falas­se: "Fique, cruel, e conversemos. Segredos não revelados nãonos trarão alegria alguma." Ela respondeu: "O que tenhoeu para conversar com você? Eu me desvaneci como a au­rora e sou tão difícil de agarrar como o vento. Volte paracasa, Pururavas; você não fez nada do que eu mandei; paravocê eu sou muito difícil de agarrar, volte para casa." Puru­ravas: "Então seu amigo irá embora, para longe e para nun­ca mais voltar; ele saltará para a morte, ou os lobos selvagenso devorarão." Urvasi, a isso: "Não tenha pressa, não morra,não deixe que os lobos selvagens o devorem. Não fique tãopreocupado! Não existe nenhum tipo de amizade com mu­lheres, seus corações são como os das hiena~. Não fique per­turbado e volte para casa. Enquanto caminhei entre os mor­tais, eu comia diariamente um pouquinho de gordura dossacrifícios, e agora eu estou cheia."

Ela entretanto teve compaixão e disse a ele que retor­nasse em um ano. Então ela seria dele por uma noite, e en­tão também nasceria o seu filho. Quando, d,ecorrido o pra­zo estabelecido, ele voltou ao mesmo lugar, havia lá um pa­lácio dourado. Ordenaram-lhe que entrasse, e sua esposa foilevada até ele. Na manhã seguinte, os gandarvos permitiram-lheconcretizar um desejo e, seguindo o conselho de Urvasi, ele

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pediu permissão para tornar-se um deles, o que lhe foi con­cedido. Para que isso pudesse acontecer, ele teria antes quetrazer uma oferenda. Para este fim os gandarvos lhe deramuma panela com fogo. Ele a tomou, e também a seu filho,que no entretempo havia nascido, levando-o à sua aldeia.Ele então saiu em busca da madeira apropriada para o fogosacrificial e, depois de tê-Io acendido segundo a maneira pres­crita pelos gandarvos, tornou-se um deles.

Esta lenda antiquíssima já denuncia alguns traços típi­cos, que se repetem também nas versões posteriores surgi­das em outros lugares. Um desses traços é que a ligação comum desses seres está atada a uma condição específica, cujonão cumprimento tem conseqüências fatais. A de nossa nar­rativa é a de que Pururava não podia ser visto nu por Urvasi.Proibição semelhante pode ser encontrada na famosa históriade Amor e Psiquê,4 só que lá é ao contrário, já que é a Psi­quê que a visão de seu marido divino está proibida, enquan­to Urvasi não quer ver o homem Pururava nu, isto é, comoele é. A desobediência à proibição, ainda que não intencio­nal, tem por conseqüência o retorno da ninfa ao seu elemen­to. Quando ela diz que está cheia da pouca gordura sacrifi­cial que ela comeu durante o tempo em que esteve com Pu­rurava, parece querer dizer com isso que a realidade huma­na não a agrada, e quando retoma a seu mundo traz tambémo marido atrás de si. Fala-se entretanto de um filho, que adesaparecida Urvasi deu à luz, e que Pururava leva para casa,de forma que aparentemente de sua ligação criou-se algo quetem seu lugar no âmbito humano, mas não se fica sabendonada mais a respeito.5

Na relação entre Pururava e a ninfa celeste chama espe­cialmente a atenção a diferença de seu comportamento: en­quanto ele se queixa da perda da· amada com sentimentoshumanos, pro,;;ura encontrá-Ia novamente, quer falar comela, pelas palavras dela fala o ser da natureza, sem alma, que jul­ga a si mesmo quando diz que as mulheres têm coração de hiena.

No que se refere ao significado da mulher-cisne, a esco­la que concebia as imagens da mitologia como personificação

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de forças e fenômenos da natureza via nela a névoa que flu­tua acima da água que, elevando-se, transforma-se em nuvensque então, como cisnes em vôo, cortam o céu. Mesmo quan­do se considera essas figuras do ponto de vista psicológico,a comparação com névoa e nuvens não deixa de ser apropria­da, pois os assim chamados conteúdos inconscientes, até on­de não são ou praticamente não são conscientes, não têmforma fixa definida, podendo mudar indefinidamente, passarde uma para outra e transformar-se. Elas somente se tornamclaras e nitidamente reconhecíveis quando emergem do in­consciente e são apreendidas pela consciência; de qualquermodo, só então pode-se dizer algo definido sobre elas. Nãose deve pensar que o inconsciente não passa de um espaçoreal com conteúdos rigidamente delimitados, quase concre­tos; isso é somente uma representação auxiliar, para tornarinteligível o que não é explícito. Em visões hipnogógicas ourepresentações de conteúdos do inconsciente, figuras seme­lhantes a nuvens ocorrem freqüentemente como estágio ini­cial de algo que mais tarde assume forma definida. Goethealude a algo semelhante quando deixa que Mefisto, em suadescrição do Reino da Mãe, diga a Fausto:

Foge do que surgiuDa riqueza de imagens desfeitas!Diverte-te com o que já não existe,Como os cortejos de nuvens que o movimento desfaz;Agita a chave, mantém-na à distância.

Do que está dito acima, pode-se muito bem concluirque o feminino representado pela ninfa Urvasi é ainda to­talmente nebuloso e incorpóreo, já que viveu por longo tem­po no âmbito humano, isto é, na consciência desperta, e po­deria ter se realizado. Em suas palavras: "Desapareci comoa aurora e sou difícil de agarrar como o vento", é sugeridaigualmente a natureza insubstancial, aérea, do seu ser; estecorresponde, na verdade, a um espírito da natureza, dandoaqui no entanto a impressão de uma irrealidade onírica.

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A lenda irlandesa "O Sonho de Oenghus", 6 atribuídaao século VIII, tem um caráter muito semelhante:

Oenghus, ele mesmo pertencente a uma raça mítica,viu em sonho uma menina de extraordinária beleza entrarem seus aposentos; mas quando ele tentou segurá-Ia pela mão,ela desapareceu. Na noite seguinte a menina voltou, dessavez com uma harpa, na qual tocou para ele da maneira maisprodigiosa. E assim se passou todo um ano, e Oenghus ficoudoente de saudade. Um médico conhecia seu mal, e por issoa menina foi procurada por todo o país, já que - segundo adeclaração do médico - estava destinada a Oenghus. Final­mente, constatou-se que ela era a filha de um rei dos Elfose que tinha o costume de se transformar num cisne a cadadois anos. Para encontrá-Ia, Oenghus tinha de estar em cer­to lago num dia determinado. Quando chegou lá, ele viu t-rêsvezes cinqüenta cisnes sobre a água, ligados em pares por cor­rentes de prata. Oenghus chamou pelo nome da amada deseus sonhos, que o reconheceu e estava disposta a chegar àmargem se ele prometesse deixá-Ia retomar à água. Ele as­sentiu, e ela foi até ele; eles se abraçaram e adormeceramsob a forma de dois cisnes. Eles nadaram trê~ vezes ao redordo lago para que assim a condição imposta por ela se cum­prisse, e então voaram (para a casa do pai de Oenghus), elá cantaram tão maravilhosamente que todos os que os es­cutaram caíram num sono demorado que durou três dias.A partir de então, a mulher-cisne ficou com Ocnghus.

Nesta narrativa, o caráter onírico está expresso de ma­neira especialmente clara. A circunstância de que a amadaainda desconhecida dele aparece pela primeira vez duranteo sono, que ela, como está dito de maneira expressiva, estádestinada a ele e que sem ela ele não pode viver indica, semdúvida alguma, a anima - como sua outra metade. Ele a con­quista ao cumprir a condição imposta por ela deixando-avoltar à água ao menos por um certo tempo, transforman­do-se ele mesmo em cisne. Em outras palavras: ele tenta en­contrá-Ia no elemento dela, no seu nível, com o que ela setorna sua permanentemente, um comportamento a ser com-

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provado também na relação com a anima. O canto encan­tador dos dois cisnes é a expressão de que os dois seres opos­tos e que, entretanto, pertencem um ao outro foram unidosnuma consonância harmônica, formando uma unidade.

Uma forma mítico-arcaica muito diferente da mulher-cis­

ne é a Valquíria nórdica. Esta tem esse nome porque, estan­do a serviço de Odin, acolhe os guerreiros caídos em batalhapara levá-Ios ao Walhalla.7 Entretanto, sua função é tambéma de conceder a vitória ou a derrota, com o que fica claroum parentesco com as Nomas, que tecem e cortam o fio dodestino. Quando no Walhalla passa o chifre onde se bebe aoherói, cumpre por outro lado sua função usual de servido­ra. Entretanto, oferecer uma bebida é ao mesmo tempo umgesto significativo, que expressa relação e solidariedade, e en­contra-se freqüentemente o motivo em que uma figura deanima oferece ao homem uma taça, seja com uma bebida deamor, de encantamento, de metamorfose ou de morte. AsValquírias são chamadas também de moças de desejo (Wunsch­mãdchen).8 Às vezes, como Brünhilde, elas são amantes ouesposas de grandes heróis, a quem protegem e ajudam du­rante a batalha.

Nestes seres semidivinos pode-se muito bem visualizaruma forma arque típica da anima, e justamente uma animaque corresponde a um homem selvagem e amante da luta.Diz-se também portanto das Valquírias que sua grande pai­xão é a luta. Elas ao mesmo tempo, como é o caso tambémcom a anima, personificam o desejo e a ambição do homem,e até onde esta está voltada para a luta, aquilo que nele é fe­minino surge sempre em uma forma guerreira. Normalmenteas Valquírias são pensadas como amazonas, mas elas tambémpodem "cortar o ar e a água" e assumir a forma de cisne.9

Uma das mais antigas canções do Edda,10 a canção deWolund (Wieland) é introduzida por um motivo de mulher­-cisne:

Do sul voavam moçasPela floresta de Myrkwid

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As mulheres-cisne

Incitando à batalha;Para descansar

Elas pousaram na praiaTecendo para os fIlhos do sulLinhos preciosos.ll

A canção na verdade não o diz, mas apenas dá a enten­der que Wõlund e seus irmãos, como acontece em outras nar­rativas semelhantes, roubaram as roupas de cisne das moças,de forma que elas tiveram que ficar com eles. Cada um dostrês irmãos tomou uma moça para si e

Assim pousadas elasPassaram sete invernosMas o oitavoViveram com saudade.

No nono, porém,A necessidade as separou.As moças desejavamVoar por Myrkwid,As mulheres-cisne

Queriam incitar à batalha.

E elas voaram para longe, seguidas por dois dos irmãos, quequeriam procurar as desaparecidas, enquanto Wõlund, fun­dindo anéis de ouro, ficou esperando pelo retorno dos seus.

A continuação da canção não diz mais nada· a respeito,decorrendo numa outra linha narrativa.

É notável aqui que as moças sintam uma irresistível sau­dade da luta e, ao voar para longe, atraiam os irmãos atrásde si. Em linguagem psicológica, diríamos que a saudade. odesejo de novos empreendimentos, torna-se perceptível pri­meiro no feminino-inconsciente. Antes de chegar claramen­te à consciência, o desejo de algo novo, de outra coisa, ma­nifesta-se em geral na forma de um movimento da alma, co­mo emoção abafada e uma disposição inexplicáve1. Quando

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estas, como na canção de Wieland e em muitas outras len­das, ganham expressão através de um ser feminino, isso querdizer que os movimentos emocionais que ocorrem no incons­ciente são transmitidos à consciência pela feminilidade dohomem, pela anima, que as percebe.

O processo provoca um impulso ou equivale a uma in­tuição, que descobre novas possibilidades e leva o homema segui-Ias e compreendê-Ias. Quando a mulher-cisne desejaincitar à batalha, ela com isso desempenha o papel caracte­rístico para a anima de femme inspiratrice - no entanto, numestágio primitivo, em que a "obra" à qual o homem é ins­pirado é principalmente a luta.

Na poesia cortesã da Idade Média, gosta-se de se repre­sentar a mulher nesse papel, mas de uma maneira mais refi­nada: o cavaleiro luta no torneio por sua dama - ele usa umsímbolo dela, por exemplo, um lenço em seu elmo -, sua pre­sença o excita e aumenta a sua corag~m, ela lhe entrega oprêmio da vitória, que muitas vezes consiste em seu amor.Mas freqüentemente ela, de maneira sinistra, exige de seucavaleiro. tarefas sem sentido ou sobrenaturais como provade sua devoção.12

Diz-se que o conde Guilherme IX de Poitiers, que temfama de ter sido o primeiro troubadour, mandou que pin­tassem o retrato de sua amada em seu escudo. É interessan­

te acompanhar exatamente nessa literatura como a inspiraçãoaos poucos vai se relacionando com outras coisas além da luta.

O nome Senhora A ventiure mostra, de qualquer for­ma, que a propriedade tão masculina do desejo de aventu­ras era personificada como um ser feminino.

Uma outra particularidade da mulher-cisne é a de seranunciadora do futuro.13 Ao decidir a sorte da batalha,14 pre­parando assim o destino vindouro, as Valquírias são iguaisàs Nornas. Estas por sua vez - seus nomes são Urd, Werdandie Skuld - aparecem como personificação do processo na­tural da vida, de ser e perecer.

Na área céltica, o mesmo caráter, bem conhecido tam­bém dos contos de fadas, é atribuído justamente a elas, as

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fadas, cujo nome relaciona-se com [atum,1S e que igualmen­te costumam aparecer em número de três. É muito freqüen­te que o bem feito pelas duas primeiras seja novamente anu­lado pela terceira, um traço que igualmente lembra as Nor-nas ou as Parcas.

A canção dos Nibelungos16 conta como os Nibelungos,que viajavam para encontrar-se com o rei Etzel, chegaramao Danúbio com suas águas agitadas, e Hagen se adiantoupara procurar um ponto em que pudessem atravessar. Lá eleouviu um burburinho na água, e ao aproximar-se viu "wisiuwip" (mulheres sábias), que se banhavam em uma bela fon­te natural. Ele rastejou até lá, apanhou suas roupas e as es­condeu. Se ele as devolvesse, disse então uma das mulheres,elas o informariam sobre o que aconteceria a eles durantea viagem.

Elas nadavam como as aves flutuando sobre a corrente.E então o que elas lhe contaram deixou-o contente:

Porque ele acreditou de fato no que elas estavam lhe dizendo.1?

Aqui também as mulheres sábias semelhantes a aves aquáti­cas surgem como anunciadoras de acontecimentos futuros.

Sabe-se que os povos germânicos atribuíam à mulhero dom da predição, graças ao que ela era tida em grande es­tima, até mesmo adorada. O próprio Odin deixou que umavidente, Vala, lhe anunciasse o futuro. Tácito 18 mencionauma adivinha, Veleda, que gozava de grande autoridade emsua tribo, os bructeros, e que sob Vespasiano foi levada aRoma como prisioneira, e Júlio César conta que entre os ger­manos era costume "ut matres [amilias eorum sortibus etvaticinationibus dec1ararent, utrum proelium committi exusu esset, nec ne". 19

En tre os gregos e romanos, a Pítia e as Sibilas desem-

penhavam essa função.Parece que tais concepções perduraram por longo tem-

po, como se depreende de uma história sobre Carlos Magno,narrada por Grimm20 segundo um manuscrito de Leyden

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do século XIII. A lenda pretende esclarecer o nome da ci­dade de Aachen.21 Ela diz que Carlos mantinha lá uma mu­lher, "quandam mulierem [atatam, sive quandam [atam, quealio nomine nimpha, vel dea, vel adriades (dryas) appelatur", 22

mantinha relações com ele, e ela vivia quando ele estava comela, e morria. quando ele dela se afastava. Um dia, quando elese deleitava com ela, um raio de sol caiu em sua boca, e Car­los viu então que sobre sua língua havia um grão dourado.Ele mandou que este fosse retirado, com o que a ninfa mor­reu e não mais retomou à vida.

Essa ninfa lembra a misteriosa Aelia Laelia Crispis, deque C. G. Jung tratou em seu ensaio intitulado "O Enigmade Bolonha".23

Quando nos perguntamos por que é que o dom da visãoe a arte da adivinhação são atribuídos especialmente à mulher,pode-se responder que esta em geral está mais aberta em rela­ção ao inconsciente que o homem. Receptividade é uma ati­tude feminina, e exige estar-se aberto e vazio, e por isso Jung24 aqualifica como o maior segredo do feminino. Além disso, amentalidade feminina é menos avessa ao irracional que a cons­ciência racionalmente orientada do homem, que tem a ten­dência de negar tudo o que não é razoável, e que por esta ra­zão freqüentemente se fecha ao inconsciente. Platão,2S noFedro, já criticava o posicionamento excessivamente racio­nal - especialmente em se tratando de amor - e valoriza oirracional, sim, a loucura, até onde esta possa ser um dom di­vino. Ele menciona várias de suas formas:

1. A sabedoria oracular transmitida pela Pítia, que porexemplo dava conselhos para o bem do Estado. Além disso,ele observa: "Pois a pitonisa em Delfos e as sacerdotisas emDodona prestaram a nossa Hélade muitos e belos serviçosem ocasiões especiais e públicas em estado de loucura, masem estado consciente, nenhum ou quase nenhum serviço."

2. O dom profético das Sibilas, que previam o futuro.3. O enthousiasmos despertado pelas Musas.Pítia, Sibilas e Musas são seres femininos que podem

ser colocados lado a lado com as videntes nórdicas mencio-

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nadas acima, e suas declarações são de um tipo irracional,razão pela qual parece loucura quando encaradas sob oponto de vista da razão ou do logos. Essas aptidões não sãopróprias apenas das mulheres; sempre existiram videntes eprofetas homens, mas eles o são em virtude de uma atitudefeminino-receptiva, que os torna receptivos a inspirações ori­ginadas além da consciência.

A anima, sendo o feminino no homem, possui justamen­te essa receptividade e falta de preconceito em relação ao ir­racional, e por essa razão ela é qualificada de mensageira en­tre o inconsciente e a consciência. Este comportamento fe­minino desempenha um papel importante especialmente emhomens criativos; não é à toa que se fala da concepção deuma obra, de seu nascimento ou da gestação de um pensa­mento.

O motivo da mulher-cisne surge ainda em incontáveiscontos de fadas?6 Introduzimos um deles aqui como exem­plo, "O caçador e a mulher-cisne". Conta-se que um guar­da-caça, ao seguir o rastro de uma corça, chegou a um lagojustamente quando três cisnes nele pousavam. Logo em se­guida eram três moças que se banhavam no lago. Algum tem­po depois elas se ergueram novamente da água e, como cis­nes, voaram para longe. As moças não lhe saíam da cabeça,e ele decidiu casar-se com uma delas. E assim três dias de­pois ele voltou ao lago e encontrou lá as banhistas. Sorratei­ramente, ele rastejou até lá, apanhou a roupa de cisne da maisjovem e a levou consigo. Ela suplicou para que a devolvesse,mas ele se fez de surdo e a levou consigo para casa, e a mo­ça teve que segui-Io até lá. Ela foi bem recebida pela gentedo guarda-caça e consentiu em casar-se com ele. Mas a rou­pa de cisne este a deu à sua mãe, que a guardou em uma ar­ca. Após terem vivido felizes um com o outro por muitosanos, um dia, arrumando a casa, a mãe encontrou a peque­na arca e a abriu. Assim que a jovem mulher viu sua roupade cisne, atirou-se rapidamente sobre ela e dizendo: "Quemquiser me ver novamente terá que ir até a montanha de vi­dro, que se encontra no campo branco",27 levantou vôo e

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foi embora. Desolado, o caçador passou a procurá-Ia, e apósvencer muitas dificuldades encontrou-a graças à ajuda de ani­mais prestativos, libertando-a, já que, como descobriu, elaera uma princesa encantada.

Reproduzi este conto mais ou menos extensivamenteporque ele contém um motivo novo e muito importante,aquele da salvação. A circunstância da necessidade de salva­ção relativa ao fato de estar encantado ou enfeitiçado indi­ca que a figura do cisne não é um estado original, tendo sur­gido secundariamente, como uma roupa que oculta uma prin­cesa. Por trás da forma animal, oculta-se portanto um ser su­perior que vale a pena salvar e que, no fim, se une ao herói.

A princesa a ser salva, que aparece em tantos contosde fadas, indica nitidamente a anima. Quando, no entanto,o conto dá a entender que a princesa estava lá antes do cis­ne, alude-se com isso a um estado original anterior de uni­dade e totalidade que foi suspenso através de um "encanta­mento" e precisa ser restabelecido. A concepção de que umestado original de perfeição foi destruído, ou pelo compor­tamento culposo da pessoa ou devido à inveja dos deuses, éuma idéia antiquíssima, que está na base de muitas religiõese sistemas filosóficos. O pecado original bíblico, o ser pri­mordial inicialmente uno e depois dividido em duas meta­des de PIa tão e, mais distante, a sophia da gnosis contida namatéria são testemunhos disso.

Expresso psicologicamente, seria o seguinte: a totalida­de original que ainda é própria da criança é destruída ou da­nificada pelas exigências da vida e pelo crescente desenvol­vimento da consciência. Assim, por exemplo, durante o de­senvolvimento da consciência do eu masculina, o lado femi­nino é deixado para trás, permanecendo assim num "estadonatural". O mesmo acontece com a diferenciação das fun­ções psicológicas; a assim chamada função inferior ficou pa­ra trás e, conseqüentemente, indiferenciada e inconsciente.Por isso ela também está usualmente ligada à sempre incons­ciente anima. A salvação consiste no reconhecimento e inte­gração destes elementos inconscientes da alma.

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o conto de fadas "O véu roubado"28 apresenta o ma­terial numa versão nova, do período romântico, e está loca­lizado no assim chamado Campo dos Cisnes, nas Montanhasde Bronze, onde haveria uma fonte que conferiria beleza aquem nela se banhasse. 29 O conto contém os traços típicosjá mencionados, só que aqui, em vez da roupa de cisne, é ovéu (e um anel) da banhista que é furtado, com o que ela éobrigada a ficar. O cavaleiro a leva consigo para casa, ondeo casamento deve ser celebrado; ele também tem uma mãea quem dá o véu para que o guarde. Quando, no dia do ca­samento, a noiva lamenta não o ter consigo, a mãe o traz,e ao colocar o véu e a coroa sobre a cabeça, a noiva imedia­tamente transforma-se em cisne e foge voando pela janela.

O conto é por demais longo para que entremos em maisdetalhes aqui - somente que nele também se dá a entenderque novamente é a mãe do homem que aparentemente, comboas intenções, devolve a roupa de cisne à noiva, provocan­do assim sua partida.

Quando a separação do casal é provocada pela maneira deagir da mãe, pode-se inferir daí uma rivalidade velada entre mãee anima, caso encontrado com muita freqüência na realidade.Por outro lado, este traço poderia também ser entendido comouma tendência da "Grande Mãe", isto é, o inconsciente, dechamar aqueles que lhe pertencem de volta para si.

A ascendência real da mulher-cisne sug~rida pela coroacaracteriza-a como um ser de um tipo superior, o que deveser relacionado com o aspecto sobre-humano, divino, da ani­ma. Em muitos contos de fadas é mais natural compreendera figura da princesa encantada a partir da psicologia femini­na; nesse caso, ela é repr'esentada pela personalidade superiorda mulher ou pelo seu próprio self 30

Também a figura da ave, como uma criatura do ar, sim­boliza não apenas aquilo que o ser natural tem de semelhan­te aos animais mas contém, além disso, uma alusão às suaspossibilidades espirituais latentes.

Um ser elementar que goza de uma popularidade e lon­gevidade muito especiais é a ninfa, de que trataram contos

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de fadas, lendas e canções populares de todas as épocas, ecuja figura conhecemos através de incontáveis reproduções.Ela ainda serve de tema 31 a poetas modernos e aparece comfreqüência em sonhos e fantasias.

Uma denominação antiga destes seres aquáticos de quegostavam muito os poetas do século XIII é Merminne32 ouMerfei. Devido aos dons que, como as mulheres-cisne, pos­suem, tais como adivinhação e seu conhecimento das coisasnaturais, elas também são chamadas de wisiu wfp. Em ge­ral, no entanto, ao lado desta espécie, outros elementos, co­mo veremos, aparecem mais em primeiro plano, principal­mente o de Eros. Este encontra-se em consonância com aque­le fenômeno de época conhecido como amor cavalheiresco.Ele foi a expressão de uma nova atitude em relação à mulhere a Eros que se iniciava na época, isto é, nos séculos XII eXIII, e constitui a contrapartida cavalheiresca ao cultivo dologos praticado nos mosteiros. Esta maior valorização da mu­lher não podia ser causada em última análise por uma evi­dência mais nítida da anima e por uma atividade mais acen­tuada da mesma, o que a poesia dessa época parece compro­var. 33

Como essencialmente feminina, a anima, como a mu­lher, é determinada preponderantemente por Eros, isto é,pelo princípio da ligação, da relação, enquanto o homemem geral deve mais ao princípio do lagos, que diferencia eordena, ou seja, à razão.

E assim as Merminne e suas companheiras sempre man­têm uma relação amorosa com um homem ou tentam criaruma, o que aliás constitui uma das ânsias femininas funda­mentais. Deste ponto de vista elas se diferenciam das mu­

lheres-cisne, que quase sempre não procuram a relação porsi mesmas, mas que caem em poder do homem através doroubo de sua roupa de plumas, ou seja, pela astúcia. Corres­pondentemente, elas depois ambicionavam fugir à primeiraoportUnidade. Relações desse tipo são preponderantemen­te de natureza impulsiva e sente-se a falta do elemento aní­mico ou de um sentido que ultrapasse o instintivo. Dada a

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circunstância de que o homem domina a mulher de formamais ou menos violenta, sobressai um estágio totalmente pri­mitivo de seu comportamento erótico. Não é, portanto, semfundamento quando o ser natural a ele ligado exige que o ho­mem não lhe faça nenhuma violência, não lhe bata ou nãorecrimine com palavras contundentes.

Lendas de fadas aquáticas e de ninfas estão largamen­te difundidas, especialmente nas regiões com populações cél­ticas. Em muitos lugares, sobretudo no País de Gales, na Es­cócia e na Irlanda, elas estão ligadas a determinadas locali­dades e famílias e em parte permaneceram vivas até os tem­pos mais recentes.

Como um exemplo dentre muitos, cito aqui uma des­sas lendas do País de Gales, que foi anotada por J ohn Rhys,34um conhecido colecionador e conhecedor do folclore celta.

Os acontecimentos descritos teriam ocorrido por vol­ta do final do século XII numa aldeia de Caermarthenshire,no País de Gales. Lá vivia uma viúva com seu filho. Quandoeste uma vez tomava conta do gado nas montanhas, chegoua um lago onde, para seu espanto, viu uma moça de incom­parável beleza sentada sobre a superfície da água. Ela esta­va ocupada em pentear o cabelo encaracolado com um pen­te, e a água lhe servia de espelho. De repente, ela viu o ra­paz, que a olhava fixamente e que, para atraí-Ia à margem,estendeu-lhe um pedaço de pão. Ela se aproximou dele mas,recusando o pão por ser muito duro, mergulhou quando eletentou agarrá-Ia. Decepcionado, ele voltou para casa, masmesmo assim voltou ao lago no dia seguinte, onde dessa vez,seguindo o conselho de sua mãe, ele lhe ofereceu pão semassar, mas ainda assim sem sucesso. Somente quando, no ter­ceiro dia, ele tentou com pão meio assado ela se mostroudisposta a aceitá-lo e até mesmo o estimulou a segurar-lhea mão. Após alguma conversa, ela consentiu em tornar-sesua mulher, acrescentando no entanto que, se ele batessenela três vezes sem motivos, ela o deixaria para sempre. Elemais que depressa aceitou essa condição, com o que ela tor­nou a desaparecer na água. Imediatamente a seguir emergi-

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ram duas moças belíssimas acompanhando um imponentehomem grisalho que se apresentou como o pai da noiva elhe disse que concordava com o enlace, desde que ele esco­lhesse entre as duas a moça correta. Isso não era assim tãofácil, pois elas pareciam ser perfeitamente iguais, mas ele afi­nal reconheceu sua amada pela maneira como esta havia ata­do as sandálias. Como dote, o pai prometeu a ela tantas va­cas, cabras e cavalos quantos ela pudesse contar de um sófôlego, e quando ela o fez, os animais surgiram da água. Ocasal então estabeleceu seu lar numa fazenda vizinha, ondeeles viveram felizes e em boa situação, e tiveram três filhos.

Um dia, eles foram convidados para um batizado. Amulher não tinha vontade alguma de ir, mas a vontade dohomem prevaleceu. Como ela hesitasse em ir buscar o cava­lo no pasto, ele golpeou-lhe levemente o ombro com as lu­vas, ao que ela replicou lembrando-lhe do acordo que ha­viam feito.

Em outra oportunidade, quando deviam participar deum casamento, ela apareceu em lágrimas em meio aos feli­zes convidados. Quando o homem, dando-lhe tapinhas nosombros, perguntou-lhe pelo motivo, ela respondeu: "Agoraé que começam as dificuldades para este casal, e para vocêtambém, pois esta já é a segunda vez que me bate." Algumtempo depois, aconteceu de eles estarem em um enterro ede ela, ao contrário do luto geral, ser acometida de um des­medido acesso de riso, o que naturalmente foi penoso parao seu marido, de forma que ele lhe bateu e a advertiu paraque não risse daquela maneira. Ela disse que tinha rido por­que as pessoas, quando morrem, naturalmente se livram desuas preocupações e, levantando-se, deixou a casa com aspalavras: "Essa foi a última pancada; nosso contrato termi­nou. Adeus!"

Após ter reunido seus animais no pátio, ela retomouao lago e, junto com todo o rebanho, desapareceu em suaságuas.

A história não diz o que aconteceu ao inconsolável ma­rido, mas quanto aos filhos, diz que eles iam com freqüência

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Na primeira tratava-se de um batizado do qual ela nãotinha vontade alguma de participar, o que quer dizer que,como ser pagão, uma cerimônia cristã lhe causa repugnân­cia. Segundo a concepção da época, os seres élficos te­miam tudo o que era cristão; isto quer dizer que eles foramexpulsos pela pregação dos missionários cristãos e retoma­ram ao interior da Terra (à assim chamada Caverna das Fa­das).

Na segunda ocasião, a mulher irrompe em lágrimas du-rante uma comemoração festiva e na terceira ela perturbao ambiente triste com gargalhadas incontidas: ela compor­ta-se, assim, d~ maneira inconveniente. Suas manifestaçõesnão estão de acordo com a situação, ainda que pareçam plau­síveis a ela mesma. Isso indica que aqui está sendo expressoalgo indiferenciado. É sabido que os componentes da per­sonalidade que foram reprimidos ou permaneceram incons­cientes persistem numa forma primitiva, não diferenciadaque, quando se manifestam tal e qual para o exterior, sãoinadequados. Aparições semelhantes podem ser observadasa qualquer momento, ou podemos encontrá-Ias pessoalmen­te. A ninfa, quando vive na água, isto é, no inconsciente, re­presenta o feminino num estado semi-humano e praticamen­te inconsciente. Até o ponto em que a mesma está casadacom um homem, pode-se presumir que ela representa suaanima inconsciente, natural, junto com o sentimento indi­ferenciado, já que as infrações cometidas por ela ocorremno âmbito deste. De qualquer forma, deve-se notar que nãose trata de um sentimento indiv!dual, mas coletivo, com o qualela ainda não se acostumou. E um fato bem conhecido quesempre se provoca escândalo com as partes inconscientesda personalidade (anima, animus, sombra) ou com suas fun­ções inferiores, o que tem por conseqüência que elas, porperturbadoras, são sempre novamente reprimidas. O desa­parecimento da ninfa em seu elemento descreve justamen­te aquele processo em que um conteúdo do inconsciente vemà superfície, mas está tão pouco coordenado com o eu cons­ciente que torna a mergulhar à menor oportunidade. Que

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à margem do lago e que muitas vezes sua mãe se mostravaa eles lá. E ela chegou até mesmo a participar a seu filho maisvelho que ele estava destinado a ser um benfeitor da huma­nidade, já que iria curar doenças. Para este fim, ela deu a eleum saco com instruções medicinais e prometeu aparecer sem­pre que ele precisasse de seus conselhos. De fato, ela apare­ceu muitas vezes e instruiu seu filho sobre as plantas medi­cinais e seus poderes, de forma que este, através de seus co­nhecimentos e da arte da cura, alcançou grande renome.

Os últimos descendentes dessa família de médicos te­riam morrido em 1719 e 1739.

Nesta história trata-se, portanto, não apenas de umarelação instintivo-erótica, mas aqui a mulher aquática trazao homem prosperidade e transmite ao filho conhecimen­tos sobre plantas medicinais, conhecimentos que ela eviden­temente deve a sua íntima ligação com a natureza.

Rhys reproduz ainda inúmeras lendas semelhantes, queem todos os casos estão ligadas a pessoas determinadas, cujaascendência sempre as remete a essas fadas aquáticas e quedisso se orgulham. Os tabus não são sempre os mesmos; àsvezes a coisa é de tal forma que o homem não pode tocarem sua mulher élfica com ferro,3s ou que ele não pode dizeruma palavra inamistosa mais que três vezes, além de outrascondições. O descumprimento das condições estipuladas ocorresempre por desatenção ou por algum acaso fatal, nunca pro­positalmente.

Por mais irracionais que essas prescrições possam pa­recer em si mesmas, sua não observação desencadeia a rea­ção com a lógica e a invariabilidade de uma lei da natureza.Estes seres meio-humanos representam a própria naturezae não possuem a liberdade de escolha que é dada ao homeme que permite que ele às vezes se comporte de maneira di­versa daquela que corresponde à lei natural. Ele pode, porexemplo, deixar-se determinar por idéias ou sentimentos queo colocam acima do comportamento puramente natural.

As três ocasiões em que a fada aquática recebe as pan­cadas em nossa história são elucidativas:

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seja preciso tão pouco para que isso ocorra mostra como taisconteúdos são voláteis e frágeis.

Faz parte do mesmo contexto o fato de os seres élfi­cos se vingarem quando desprezados ou ofendidos. Eles sãoextremamente sensíveis e gostam de guardar um ressenti­mento que não é atenuado por nenhuma espécie de compreen­são humana. Estas propriedades valem também para a anima,para o animus e para as respectivas funções não diferencia­das; por outro lado, a sensibilidade desmedida de homensbastante robustos, que se encontra com freqüência, é umsinal claro de que a anima está atuando. A irregularidade,as travessuras e muitas vezes a maldade declarada dos espí­ritos elementares, que formam o outro lado de sua belezafascinante, podem ser constatadas também na anima. Enfim,estas criaturas são irracionais, boas e más, prestativas e per­niciosas, curativas e destrutivas como a própria natureza deque são parte.36

Aqui, entretanto, deve-se dizer que não é apenas a ani­ma, como o inconsciente feminino no homem, que apresen­ta as qualidades mencionadas; as mesmas também podemser constatadas em muitas mulheres. Devido à sua tarefa bio­lógica, a mulher em geral é mais natural que o homem e porisso freqüentemente demonstra de modo mais ou menos cla­ro um comportamento correspondente. Então, de bom gra­do, a imagem da anima é projetada nessas mulheres, porqueelas correspondem tão exatamente à feminilidade inconscien­te do homem.

Por isso esses seres também aparecem em sonhos, fanta­sias e imagens de mulheres, de preferência ninfas. Estas po­dem representar ou a feminilidade não desenvolvida, aindanatural da mulher em questão, ou sua função inferior, mascom freqüência são também formas iniciais da personalida­de superior ou do se/f.

Na nossa lenda, encontramos ainda um outro traço ca­racterístico: trata-se do fato de a virgem aquática pentear oscabelos - como a Loreley - e ter sua imagem refletida nolago enquanto o faz. Pentear os cabelos poderia ser reconhe-

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cido sem dificuldade como um meio de atração erótica queé utilizado até hoje. O espelho faz parte dessa atividade, eos dois juntos são atributos da figura da anima freqüente­mente utilizados na literatura e em ilustrações. 37

O espelho como atributo da figura da anima tem aindaum outro significado. Na verdade, faz parte do seu ser queela seja equivalente a um espelho para o homem, isto é, que

como tal reflita seus pensamentos, desejos e emoções, o quejá foi mencionado no contexto das Valquírias. E justamen­te por isso que ela se torna tão importante para o homem,seja como figura interior ou como uma mulher real, exterior,na medida em que ele pode tomar conhecimento de coisasque para si mesmo ainda não são conscientes. Muitas vezes,no entanto, esta função da anima leva não a uma maior cons­ciência e autoconhecimento, não só simplesmente a um es­pelhamento de si mesmo, o qual adula a vaidade do homem,mas também a uma autocompaixão sentimental. Ambos na­turalmente aumentam o poder da anima e não deixam porisso de ser perigosos. Faz parte da natureza da mulher ser es­pelho do homem, e a surpreendente habilidade que ela fre­qüentemente exibe ao fazê-Io faz com que ela seja especial­mente apropriada para ser portadora de uma projeção deanima.

A bela Melusina38 também pertence à raça das Merfeias.Embora a lenda tecida em torno dela seja bem conhecida,eu a menciono aqui' de forma abreviada, pois ela contém al­guns pontos importantes. O conteúdo é o seguinte:39 Raymond,filho adotivo do conde de Poitiers, matou a este por umafatalidade durante uma caçada. Inconsolável, ele quer empreen­der a fuga. No caminho, ele chega a uma clareira na flores­ta e lá vê três mulheres sentadas junto a uma fonte. Uma de­las é Melusina, a quem ele lamenta seu sofrimento e que lhedá bons conselhos. Ele arde de amor por ela, que está dis­posta a tornar-se sua mulher com a condição de que ele lhepermita recolher-se todos os sábados sem que ninguém a es­preite. Raymond concorda e eles durante longos anos vivemfelizes juntos; Melusina dá à luz muitos filhos, que entretan-

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to sempre têm algo de anormal, e manda construir um mag­nífico palácio, que ela, segundo seu próprio nome, batizade "Lusinia", o que mais tarde será Lusignan. Inquieto, en­tretanto, com os rumores que correm a respeito de Melusi­na, seu marido um dia a espia; ele a encontra num quartode banho e vê com horror que ela tem uma cauda de peixeou de serpente. A princípio esta descoberta parece não terconseqüência alguma, até que algum tempo depois chega anotícia de que um filho de Melusina ateou fogo a um mos­teiro fundado por ela, ocasião em que um de seus irmãos,que era monge lá, morreu. Quando ela quis consolar o ma­rido, ele a afastou de si com as palavras: "Vá embora, suaserpente monstruosa, que degenerou minha nobre linhagem!",o que a fez cair desmaiada ao chão. Após voltar a si, ela sedespediu do marido em lágrimas, deixando as crianças a seuscuidados e, flutuando através de uma janela, desapareceu.Mais tarde ela aparecia ocasionalmente durante a noite pa­ra ver alguns de seus filhos que ainda eram pequenos, e a len­da continua ainda dizendo que ela caminha pelas proximi­dades do palácio lamentando-se cada vez que um membroda casa de Lusignan, cuja matriarca Melusina é consideradaaté hoje, vai morrer.

A condição imposta por Melusina neste caso consisteem que ela todas as semanas possa retomar por um dia a seuelemento e assumir a forma de ninfa. Este é o seu segredo,que não deve ser divulgado. O não humano, ligado à natu­reza, neste caso o rabo de peixe, não deve ser visto. Não es­tamos longe de presumir que o banho semanal com o retor­no ao estado natural a ele ligado equivale a uma renovaçãoda vida. Afinal, a água é um elemento vital por excelência.Ela é imprescindível para a manutenção da vida, e fontes ebanhos de cura que provocam seu restabelecimento e reno­vação sempre foram considerados numinosos e muitas ve­zes foram objeto de culto religioso.40 Segundo um decretodo Concílio de Avignon do ano de 442, o culto de árvores,pedras e fontes e o fazer fogueiras ou acender luzes juntoàs mesmas foi proibido como práticas pagãs.41 Em vez dis-

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so, em muitos lugares, em países católicos, imagens da Virgemadornadas com flores e velas são até hoje levadas às fontescomo expressão cristã de um sentimento primordial aindavivo. Um dos apelidos de Maria é pégé = a fonte. A quali­dade numinosa da água expressa-se também na antiquíssi­ma idéia de uma "água da vida" que possui uma energia so­brenatural, ou na aqua permanens dos alquimistas. As nin­fas ou fadas que habitam as fontes ou suas proximidades pos­suem um parentesco especial com o elemento vital, sendoa água considerada como tal e, como o surgimento da vidaé um mistério indecifrável, a ninfa também se presta a algomisterioso que deve permanecer oculto. Estes seres são, emcerta medida, protetores das fontes; ainda hoje determina­dos banhos de cura possuem uma padroeira, como em BadenSanta Verena, que substituiu a ninfa pagã e que, aliás, é paren­te de Vênus.

Cabe à anima uma função semelhante; seu ser animadojá está expresso em seu próprio nome. Por isso ela aparececom freqüência em sonhos ou fantasias sob a forma de umdesses seres feéricos. Assim, por exemplo, um homem jovemcuja mente é excessivamente racional e que por isso corre orisco de tornar-se rígido tem o seguinte sonho:

"Caminho por uma floresta densa, e então uma mulhercoberta por um véu negro vem ao meu encontro, me tomapela mão e diz que vai me levar até a fonte da vida."

O escritor inglês William Sharp42 (1855-1905) narraum acontecimento de infância em que uma vez uma belamulher branca da floresta apareceu para ele num pequenolago cercado de plátanos, e ele, criança que era, a batizoude Olhos de Estrela e mais tarde de lady of the sea e, portanto,ele diz: "A ela eu reconheci como a mulher que existe nocoração de todas as mulheres." Com isso ela está nitidamen­te caracterizada como imagem primordial da feminilidadee, portanto, como forma da anima.

A anima representa a ligação com a fonte da vida queestá no inconsciente. Quando não existe nenhuma ligaçãodesse tipo, ou quando ela é interrompida, instaura-se um es-

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tado de estagnação ou de endurecimento que muitas vezesé sentido como tão peI:turbador que a pessoa atingida se vêlevada a procurar um psicoterapeuta. Gottfried Keller des­creveu este estado de maneira muito impressionante em suapoesia:

Noite de Inverno

Nem mesmo um rumor de asas passava pelo mundo,A neve branca continuava quieta e ofuscante.Nem uma nuvenzinha no dossel de estrelas,Nem uma onda no lago congelado.

Do fundo ergueu-se a árvore do lago,Até que no gelo a copa congelou;Por seus ramos subiu a ninfa,

Olhando através do gelo verde.

Eu estava em pé sobre o gelo fino,Que me separava da negra profundeza;Bem embaixo sob meus pés eu viA beleza branca de seus membros.

Com lamentos sufocados ela apalpavaA dura coberta, aqui e ali;Jamais esqueço o rosto triste,Que ficará comigo para sempre!

A ninfa presa no gelo corresponde à princesa encanta­da na montanha de vidro que foi mencionada acima; tantoo gelo como o vidro constituem igualmente uma couraçafria e dura que aprisiona o que está vivo e que dela precisaser libertado.

Um outro traço importante de nossa lenda deve aindaser mencionado aqui: quando o filho de Melusina ateia fogoao mosteiro mantido por ela, o já mencionado antagonismoentre a raça dos elfos e a cristandade expressa-se de maneira

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evidente. Por outro lado, esses seres, segundo várias narra­tivas, parecem alimentar o desejo de ser libertados.

Paracelsus,43 que escreveu todo um tratado sobre osespíritos elementares, tais como ninfas, sílfides, pigmeus esalamandras, diz a seu respeito que eles são extremamentesemelhantes às pessoas, mas não descendem de Adão e nãotêm alma. O povo da água é o que mais se parece com as pes­soas e quase sempre se esforçam para estabelecer ligaçõescom elas. Eles são "vistos não apenas com os olhos, mas tam­bém se casam (?), e nascem como crianças" e depois: "Ora,como foi dito a respeito das ninfas, que elas vêm a nós da água,e sentam-se às margens dos riachos, onde elas então têm suamorada, e onde elas portanto são vistas e também apanha­das, agarradas, e se casam, como foi dito acima. "44 Dessamaneira, ligando-se a um homem, elas obtêm uma alma, etambém as crianças nascidas dessas ligações têm uma. "Se­gue daí que elas se relacionam com os homens, por eles seesforçam e se tornam caseiras. Da mesma maneira como umpagão que pede o batismo e o consegue, com o que ele con­quista sua alma e torna-se vivo em Cristo."

Mais tarde, F. de Ia Motte Fouqué45 retirou destes escritosde Paracelsus o material para sua Undine, que surgiu no iníciodo século XIX, portanto no período romântico, quando foirevivida a idéia da animação da natureza e quando ao mesmotempo pela primeira vez se falou do inconsciente.46

Nessa narrativa, a falta de alma da ninfa constitui o mo­tivo central.

Undine é a filha de um rei do mar que tem seus domí­nios no Mediterrâneo. Segundo o desejo do rei, e para queseja possível a ela conseguir uma alma, de maneira misterio­sa ela é levada a um casal de pescadores que acreditavam quesua própria filha tinha se afogado e que adotam a pequenaabandonada. Undine cresce e se torna uma moça adorável,mas seus pais de criação muitas vezes estranhavam sua na­tureza notavelmente infantil, sempre dada a travessuras.

Numa noite de tormenta, um cavaleiro que viajava pro­curou abrigo na cabana do pescador. A sempre tão tímida

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Undine aproxima-se dele meigamente, ele fica fascinado comseu encanto e com seu jeito infantil, e como um padre tam­bém fora levado a esse local pela tempestade, este os uneem casamento. Mas quando Undine confessa ao marido quenão tem alma, a união torna-se sinistra para este e, apesarde todo o seu amor, ele é atormentado pelo pensamento deque, no fim, havia se casado com um ser élfico. Ela lhe su­plica que não a repudie, pois os seres semelhantes a ela so­mente conseguiam uma alma através de uma ligação amo­rosa com uma pessoa, e somente estipula a condição de queele nunca lhe diga palavras ríspidas, sobretudo quando naágua ou nas suas proximidades, pois então ela seria levadade volta pelos habitantes desse elemento preocupados comseu bem-estar. "-

O cavaleiro então a leva consigo para o seu castelo, atéque a fatalidade surge na figura de uma donzela, Berthalda,que tinha esperanças de tornar-se sua mulher. Undine a aco­lhe amigavelmente, mas para seu marido Undine torna-secada vez mais sinistra. Finalmente, durante um passeio peloDanúbio, ele expressa esse sentimento e a xinga de bruxae charlatã quando ela, em vez de retirar da água o colar deBerthalda, recolhe uma corrente de coral. Após esta ofen­sa, lavada em lágrimas, ela atira-se pela amurada do barcoe desaparece na correnteza, e ao fazê-Io ainda adverte seumarido para permanecer-lhe fiel, caso contrário os espíri­tos da água se vingariam.

Apesar desse aviso, após algum tempo deve ocorrer ocasamento do cavaleiro com Berthalda. No dia do casamen­to, a noiva ordena que se busque água para o seu banho debeleza na fonte do castelo, que Undine selara para impediro acesso dos espíritos aquáticos. Quando a pedra é retirada,ergue-se da fonte a figura de Undine coberta por um véu bran­co, que se aproxima do castelo chorando e mansamente ba­te à janela de seu marido. Pelo espelho ele vê como ela vemna sua direção e com as palavras: "Eles abriram a fonte, ago­ra eu estou aqui, e você tem de morrer", entra em seus apo­sentos. Tirando o véu, ela o abraça e ele morre com esse bei-

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jo. O mesmo material foi utilizado recentemente por J. Gi­raudoux em seu drama Ondine, de onde se depreende queele ainda não envelheceu.

O que desencadeia a catástrofe nessas versões é o con­tlito entre a anima-natureza e a mulher humana, que já nalenda de Siegfried desempenha um papel importante na lu­ta entre Brünhilde, a Valquíria e Chriemhilde, e muitas ve­zes também provoca grandes dificuldades na vida. No fun­do, expressa-se aí a oposição entre dois mundos, o externoe o interno, ou entre a consciência e o inconsciente, e fazera ponte entre os dois parece ser a tarefa especial da nossaépoca.

Um outro tipo de uma tal vivência da anima é repre­sentado pela Canção de Lanval,47 que faz parte do ciclo delendas bretãs.

O cavaleiro desse nome pertence ao círculo do rei Ar­thur, mas lá sente-se preterido por ser menos abastado e nãopoder exibir nenhum tipo de luxo. Um dia ele encontra, tam­bém numa fonte, uma bela donzela que o leva à sua senho­ra, mais bonita ainda, que o recebe maravilhosamente e lhededica seu amor com a condição de que ele nunca diga umapalavra a respeito. Além disso, ela concede a ele o dom desatisfazer desejos. graças ao qual ela aparece junto a ele assimque ele a deseja. Tudo o que deseja também se realiza, de for­ma que ele passa a exibir cada vez mais opulência e assimganha cada vez mais reputação. Ele passa a interessar à rai­nha que lhe oferece seu amor. Quando ele o recusa, ela seofende e o pressiona tanto que ele finalmente admite ter umaamada que é ainda mais bela do que ela. De ódio. a rainhaexige que o rei reúna uma corte de justiça perante a qual Lan­vai tem de justificar-se por ter insultado a rainha. Para issoele leria que apresentar a prova de que sua amada realmen­te era tão bela quanto ele havia dito. Ele se vê então em apu­ros. pu1" não pode mais apelar àquela pois traiu o segredo doseu amor. Parece já não haver mais esperança quando, acompa­nhada de quatro moças encantadoras, surge sua amada comum vestido branco e um manto púrpura montada num cavalo

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branco magnificamente ajaezado: a beleza em pessoa. Faz-seentão justiça a Lanval, pois todos têm de admitir que ele nãohavia exagerado. A canção termina com a fada tomando seuamado em seu cavalo e levando-o para o seu reino.48

O desterro no reino das Fadas é um motivo significati­vo também do ponto de vista psicológico. Nas tradições cel­tas, esse reino não tem o caráter amedrontador e angustian­te que possui em outros lugares. Ele não é o reino dos mor­tos, mas se chama "Terra dos Vivos" ou "País sob as ondas",e é imaginado como "ilhas verdes" que, habitadas por belosseres femininos, também são chamadas de "ilhas das moças".49Eternamente jovens e belos, seus habitantes usufruem dasalegrias da música, da dança e do amor, de uma existênciasem sofrimentos. Lá as fadas estão em casa, lá está tambéma famosa Morgana (fata Morgana), cujo nome quer dizer al­go como "nascida no mar", e para lá elas levam seus aman­tes humanos. Esses Campos Elísios comparáveis aos Jardinsdas Hespérides é entendido psicologicamente como uma ter­ra de sonhos, e estar nela é realmente atraente e agradável,mas não é isento de perigos. Sabe-se que a anima impera nes­se reino, e leva até ele. O perigo de se mergulhar nesse mun­do, isto é, no inconsciente, parece já ter sido sentido, poisem incontáveis poemas descreve-se como um cavaleiro, cati­vado pelos laços do amor, esquece50 suas atividades mascu­lino-cavaleirescas e se alheia do mundo e da realidade numaauto-suficiente vida a dois com sua dama.

Um exemplo especialmente drástico desse tipo é ofe­recido pela lenda de Merlin, o mago, cuja amada, a fada Vi­viane, graças à magia dele que escutou às escondidas, o amar­ra com laços invisíveis e o bane para um espinheiro do qualele não consegue mais se libertar.

Esta história é especialmente elucidativa porque a figu­ra de Merlin incorpora com muita propriedade a consciênciae o pensar que faltam ao mundo humano que o cerca. Ele éum ser luciferino, semelhante a Mefistófeles, e como tal re­presentante do intelecto in statu nascendi, isto é, numa for­ma ainda primitiva. Ele deve isso ao seu poder mágico; mas

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como o sexo feminino não faz caso disso, vai buscá-l o naforma de Eros e aprisiona o que se identifica com o princí­pio do logos, à natureza.

A lenda de Tannhiiuser, revivida por Richard Wagner.pertence a um período posterior; provavelmente ela surgiuno século XV e no século XVI estava largamente difundidana Suíça, na Alemanha e nos Países Baixos como canção po­pular. 51

Mas agora eu vou começarA cantar sobre Danheuser

E as maravilhas que fezCom sua mulher Venusina.52

Danheuser era bom cavaleiro

Quando queria ver prodígiosQueria ir à montanha de VênusEstar com belas mulheres.

Assim começa a maioria das versões da canção. Numaversão suíça (St. Gallen), uma das mais antigas, é assim:

Danheuser era bom cavaleiro

Grandes prodígios ele foi verSubiu à montanha de Vênus53

Para estar com três belas donzelas.

Elas são belas toda a semana

Enfeitadas com ouro e seda,

E jóias e coroas de flores,Aos domingos st1'oogres e cobras!,

com o que as habitantes da montanha de Vênus caracteri­zam-se como parentes da Melusina.

Eu creio poder presumir que o conteúdo da lenda é co­nhecido, mas gostaria, no entanto, de lembrar que após terpermanecido por longo tempo na montanha de Vênus, Tan-

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nhãuser, atormentado pelo peso de sua consciência, vai atéo papa em Roma para conseguir a absolvição. Mas esta lheé negada. e apontam-lhe um bastão seco: assim como estenão se torna verJL', assim também ele não será absolvido deseus pecados. Ele então retoma à montanha de Vênus e lápermanece. ainda quando o papa lhe manda uma mensagemcomunicando que havia acontecido um milagre e que o bas­tão tornara-se novamente verde. A conclusão da canção emmuitas versões é a seguinte:

E assim ele voltou à montanhaE lá desfrutou seu amor

E assim o quarto Papa UrbanoTambém se perdeu para sempre.

Como se depreende da designação montanha de Vênus.dá-se a entender um lugar de alegria e prazer amoroso. ondeVênus leva o cetro. S4 Ela corresponde exatamente às ilhasdas moças ou caverna das fadas mencionadas acima, e as len­das a elas ligadas são bastante semelhantes umas às outras.em que sempre falam de um homem atraído a esses lugaresonde é mantido por uma mulher encantadora; ele ou nãopode encontrar novamente o caminho de volta ou só o fazcom grande dificuldade.

Um exemplo da Antiguidade é Calipso, que impediuque Ulisses saísse de sua Ilha L' só o libertou quando os deu­ses ordenaram que o fizesse. A feiticeira Circe também temseu lugar aqui, embora ela tenha um caráter muito mais bru­xesco, já que transforma suas vítimas, os companheiros deUlisses, em porcos.

Na lenda de Tannhãuser vem à luz o antagonismo en­tre o paganismo e a L:ristandade, a que já se fez alusão noconto de Melusina. O paganismo, tal como se apre~(3ntavana época do Rcnascímento, não era entretanto aquclL dospovos nórdicos, mas o da Antiguidade. Um exemplo dessaépoca que se encaixa no nLJSSOtema é a famosa Ipncrotomaclziade Francesco Colonna, em português O Sonho de Amor de

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Polifilo,55 onde um monge descreve como a amada de seussonhos, a ninfa Polia, mostra-lhe uma série de imagens e ce­nas simbolicamente significativas da Antiguidade clássica,deixando que ele as vivencie, e finalmente o leva para Kythera(?), onde Vênus abençoa o casal.

Um trabalho importante a ser mencionado aqui e quefoi preservado em dois manuscritos do século XV e publi­cado em 1521, é Le Paradis de Ia Reyne Sibylle de Antoinede Ia Sale.56 Segundo uma tradição italiana, este Paraíso es­taria no Monte della Sibilla, que faz parte da cadeia dos Ape­ninos. O autor informa sobre as localidades por ele visitadase sobre as tradições ligadas às mesmas. Uma caverna que seencontra na montanha era considerada a entrada do palácioda rainha Sibila, cujo reino corresponde inteiramente à monta­nha de Vênus. A lenda é igual à de Tannhãuser, com a diferençade que aqui os pecados do cavaleiro arrependido são perdoados.Seu escudeiro, no entanto, faz com que ele acredite que o papanão pretende realmente perdoá-lo, e quer colocá-lo na prisão;para escapar disso, os dois retomam ao paraíso da Sibila.

Que a rainha e suas donzelas às sextas-feiras à meia-noi­te se recolham a seus aposentos e lá assumam a forma de ser­pentes é um traço que conhecemos da lenda da Melusina. In­felizmente, o espaço de que disponho não me permite estu­dar este livro mais detalhadamente. Como algo interessanteà luz do que foi dito antes, eu gostaria apenas de destacar quenesta tradição a montanha de Vênus é idêntica à da Sibila.Segundo Desonay, ela se refere à Sibila de Cumae, a mesmaque indicou a Enéias o caminho para o mundo subterrâneo,o Tártaro, ao dizer-lhe onde poderia ser encontrado o Ra­mo Dourado que lhe abriria as portas para lá penetrar. 57 Porúltimo, pensou-se em uma caverna localizada nas proximi­dades do lago Avemo; ainda hoje mostra-se nas suas proxi­midades uma grota da Sibila. Evidentemente, esta tradiçãomisturou-se com a de uma caverna no Monte della Sibilla,também localizada nas proximidades de um lago, e que pas­sava como sendo a entrada para o paraíso da rainha Sibila. 58 Háainda mais alguma coisa além disso:

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DesonayS9 expressa a suposição de que essa grota teriasido um dia dedicada à deusa-mãe Cibele, cujo culto, origi­nado através de um versículo dos livros sibilinos, foi intro­duzido em Roma por volta do ano 204 a.C. e se difundiuaté o norte da Itália e a Gália.60 Como doadora de vida edeusa da fertilidade, Cibele reina sobre as águas; como mãeda montanha e senhora dos animais ela ama e domina a na­tureza silvestre. Ela concede o dom da profecia, mas tam­bém provoca a loucura, e seu culto orgiástico está aparen­tado ao de Dioniso.61 Ela é conhecida como mãe de Atis,mas seria demasiado entrar aqui em maiores detalhes sobreesse mito. Eu apenas gostaria ainda de lembrar a esse respei­to que fazia parte do culto dessa deusa que seus sacerdotesse emasculassem. Como vimos, as experiências por que pas­sam os que são mantidos no reino das fadas62 equivale a umacastração, já que eles perdem sua masculinidade e se tornamfemininos e efeminados. A grande diferença, entretanto, con­siste em que eles sucumbem a uma sedução e são vencidospela magia do feminino, enquanto, no caso dos sacerdotesde Cibele, trata-se de um sacrifício oferecido à deusa.

O caráter da deusa Cibele pode muito bem ser compa­rado ao da Reyne Sibylle ainda que a hipótese de Desonaymencionada acima não tenha sido provada arqueologicamente.

No paraíso da Sibila, quase todos os aspectos que fo­ram apresentados nas várias lendas das mulheres-cisne, nin­fas e fadas estão combinados. Que um tal complexo de re­presentações difundidas universalmente desde ,épocas remo­tíssimas sempre retome, ou se mantenha vivo na mesma com­binação, depõe com toda a clareza em favor de que se tratade uma realidade arquetípica básica.

A Grande Mãe, a Vidente, a Deusa do Amor são aspec­tos do feminino primordial e, portanto, também do arqué­tipo anima.

Em seu ensaio Die Gottin Natur [A Deusa Natureza],K. Kerényi63 expõe a idéia de que ao fim e ao cabo Cibelee Afrodite são uma e a mesma, e ambas podem ser equipa­radas à Deusa Natureza. Trata-se dessa grande figura divina

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que se reflete nos seres elementares e nas lendas a eles liga­das que descrevemos e de cujos traços a anima também éportadora.

Mulheres-cisne e ninfas não são entretanto as umcasformas em que o ser natural feminino se faz representar. Me­lusina é acusada de ser uma "serpente" pelo marido, e defato esta também pode personificar o feminino primordial.Ela representa uma feminilidade ainda mais primitiva e maistelúrica que, por exemplo, o peixe ou até mesmo a ave; aomesmo tempo, no entanto, atribui-se a ela esperteza e atémesmo sabedoria. Que ela é perigosa, porque sua picada évenenosa e seu abraço paralisante, é um fato há muito co­nhecido,64 como o de que, apesar do perigo que represen­ta, ela exerce um efeito fascinante.

A serpente aparece em inumeráveis mitos e contos defadas, mas nem sempre num papel deCIaradamente femini­no. Ela também aparece com freqüência em sonhos e fan­tasias modernos, tanto de homens como de mulheres, co­mo uma imagem de libido pré-humana, indiferenciada, e nãotanto como um componente anímico consciente ou capazde consciência.6s

Entretanto há· também exemplos onde ela possui umcaráter de anima declarado. Assim Jung, em seu escrito Zumpsychologischen Aspekt der Korefigur66 [Do aspecto psico­lógico da figura de Cora], menciona o sonho de um homemjovem em que uma serpente feminina comporta-se de ma­neira "terna e insinuante" e conversa com ele com voz hu­mana.

Um outro homem, em cujo jardim aparecia ocasional­mente uma cobra d'água, acha que esta olha para ele comolhos notavelmente humanos, como se quisesse estabelecerrelações com ele.

Como serpente, respectivamente como a "pequeninaserpente verde e ouro", o ser natural aparece também noconto de E. T. A. Hoffmann O Caldeirão Dourado.67 Estapequena serpente, que olha para o herói da história com "inex­primível saudade", torna-se uma verdadeira figura de anima,

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que está na posse do caldeirão dourado, um recipiente noqual se reflete "o maravilhoso país da Atlântida", que, ten­do afundado no mar, representa o inconsciente. Ao trans­mitir a Anselmus a visão dessas imagens, Serpentina cumpreuma função típica da anima. Além disso, ela o ajuda a deci­frar um escrito enigmático, que se encontra numa folha ver­de-esmeralda, que pode ser facilmente reconhecida comouma folha do livro da natureza.

A periculosidade da anima é destacada quando ela apa­rece como animal de rapina, o que ocorre com freqüênciaem sonhos e fantasias. Um homem, por exemplo, sonha queuma leoa que saiu de sua jaula vem na sua direção e cami­nha à sua volta de forma lisonjeira. Ela se transforma numamulher, torna-se ameaçadora e o quer devorar. Tigres, pan­teras, leopardos, todo tipo de animal de rapina surge comfreqüência em sonhos desse tipo. A raposa desempenha umgrande papel na China; ela aparece com freqüência comouma bela moça, mas pode ser reconhecida pela sua cauda.Muitas vezes ela tem algo de fantástico e é vista como a per­sonificação do espírito de um morto. As mulheres tambémtêm sonhos semelhantes; nesses casos, o animal, sendo fe­minino, representa a sombra daquela que sonha ou sua fe­minilidade primitiva.

Uma figura da literatura moderna que mostra o cará­ter de serpente e ao mesmo tempo de animal de rapina daforma mais impressionante é Antinéia, no romance L 'Atlan­tide68 de P. Benoit. Ela fascina através da beleza de Vênus,da esperteza da serpente e da crueldade de um animal de ra­pina, e exerce uma magia irresistível sobre todos os homensque se colocam ao seu alcance. Todos, entretanto, sucum­bem de amor por ela, e seus cadáveres mumificados enfeitamcomo estátuas um mausoléu erguido com esse propósito.Antinéia afirma descender de Netuno e da submersa Atlântida,sendo portanto uma criatura do mar como Morgana ou Afrodi­te. Ela é uma figura de anima declaradamente destrutiva; aque­les que se deixam encantar por ela perdem suas qualidades evirtudes masculinas e, finalmente, encontram a morte.

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Como se pode depreender dos exemplos citados, cairem poder da anima sempre produz o mesmo efeito fatal, quenum certo sentido é comparável à emasculação dos sacerdo­tes de,Cibele.

E psicologicamente significativo que Antinéia expliqueseu efeito nefasto como vingança em relação ao homem, quedurante séculos usou e abusou da mulher. Até onde ela per­sonifica o lado negativo do feminino-arquetípico, seria a vin­gança do princípio feminino pela desvalorização a que foisubmetido.

Quando, como ocorre em muitas lendas, um ser da na­tureza se esforça para ligar-se a uma pessoa e ser amado porela, isso quer dizer que um componente da personalidade in­consciente e não desenvolvido ambiciona agregar-se à cons­ciência e, assim, tornar-se animado. Este esforço se expres­sa de maneira semelhante também nos sonhos. Assim, porexemplo, C. G. Jung menciona um deles,69 em que um ho­mem jovem sonha que um pássaro branco entra em seu quar­to pela janela. Este se torna uma menina de cerca de seteanos de idade que se senta com ele à mesa, transformando-seentão novamente num pássaro que, entretanto, fala com vozhumana. Neste caso está representado como um ser femini­no gostaria de ser recebido na casa do que sonha; entretan­to, ele é ainda uma criança, isto é, ainda não está desenvol­vido, o que é expresso pelo fato de ele novamente se trans­formar em pássaro. Trata-se de uma primeira aparição da fi­gura da anima, que emerge no limiar da consciência e é a prin­cípio apenas meio-humana.

O inconsciente, na verdade, não tem apenas a tendên­cia de persistir num estado primitivo ou de tornar a assimi­lar ou apagar tudo o que é consciente,70 mas também mos­tra uma nítida atividade em outra direção. Há conteúdos in­conscientes que pressionam para tornar-se conscientes a fimde, como os elfos, vingar-se quando não são levados em con­sideração. Aparentemente, o impulso para tornar-se cons­ciente sai dos arquétipos, como se neles houvesse, por assimdizer, um instinto que visa a um objetivo. Não sabemos de

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onde vem o ímpeto inicial para tal e qual a natureza dos fun­damentos dinâmicos que o desencadeiam. Isso faz parte dossegredos não pesquisados da psiq ue e da vida.

No material de que tratamos aqui, a tendência de tor­nar-se consciente expressa-se no fato de que a princípio se­res meio-humanos, ainda presos à natureza, se aproximame querem ser aceitos pela pessoa, ou seja, pela consciência.Além disso, há entretanto mais um ponto a ser levado emconsideração que não foi mencionado até agora, ou seja, acircunstância de que, em muitos casos, os seres naturais dis­cutidos possuem um pai (mais ou menos oculto). As Valquí­rias são filhas de Odin, e Odin é um deus do vento e do es­pírito. No conto de fadas do caçador e da mulher-cisne queprecisa ser libertada da montanha de vidro, seu pai encon­tra-se lá mesmo e é libertado junto com ela. A ninfa galesaé entregue ao homem pelo pai, assim como Undine é envia­da ao mundo dos homens pelo pai, o rei do mar, para queela consiga uma alma.

Nos sonhos modernos e na imaginação ativa, a figurada anima também surge com freqüência acompanhada pelafigura do pai. Isso poderia ser entendido como uma indica­ção de que há um fator masculino-espiritual na base do na­tural-feminino na psique inconsciente a que talvez se devaatribuir o conhecimento do oculto que os seres da naturezacitados possuem. Jung chama a essa figura de "o velho sá­bio" ou o "arquétipo do sentido", enquanto designa a ani­ma de "arquétipo da vida".71

É o fator significante que existe no inconsciente quepermite a conscientização. Segundo determinado ponto devista, este fator pode ser comparado com a idéia do "lumennaturae", que Paracelso diz ser uma luz invisível que se "apren­de pelos sonhos". "Como a luz da natureza não pode falar,ela então dispõe do poder da palavra (de Deus) durante osono. "72

Quando olhamos uma segunda vez o que foi expostoacima, torna-se patente que os seres naturais discutidos apre­sentam propriedades semelhantes e um comportamento em

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sua maior parte coincidente. Estes podem muito bem sercomparados com o caráter da anima e seus efeitos: ambosrepresentam o princípio de Eros; o ser natural transmite co­nhecimento oculto, assim como a anima transmite o conhe­cimento dos conteúdos do inconsciente. Ambos exercemum efeito fascinante, e muitas vezes possuem um poder dedomínio que pode ser destruidor, neste caso especialmente,quando determinadas condições às quais a relação entre ohomem e o ser natural ou entre o eu consciente e a animaestão associadas não são cumpridas. Esta última é, em mui­tas lendas, a causa de estas muitas vezes terminarem de ma­neira insatisfatória, isto é, de a relação ser rompida ou im­possibilitada. Conclui-se daí que semelhante ligação é algomelindroso, e isso vale também para a relação com a anima.Como ensina a experiência, ela também faz determinadasexigências ao homem. Ela é um fator psíquico a ser levadoem consideração e que não pode ser' desprezado, o que emgeral consiste na tendência de o homem naturalmente gos­tar de se identificar com sua masculinidade.

Mas não se trata absolutamente de que ele a coloque total­mente a serviço da Senhora Anima, com o que ele a perde, masapenas que ele também conceda um determinado espaço aofeminino, que de qualquer forma faz parte do seu ser. Isso ele ofaz ao reconhecer e realizar Eros, isto é, o princípio do relacio­namento. Faz parte disso o fato de ele não só perceber seussentimentos mas o fato de também os utilizar, pois para oestabelecimento, e especialmente também para a manutenção deuma relação, um julgamento de valor, que o sentimento é, éindispensável. Por natureza, o homem está mais inclinado arelacionar-se com coisas, por exemplo, com seu trabalho ou comalguma outra área de interesse. A mulher, por sua vez, liga-semais às relações pessoais, e este é também o caso da anima. Porisso ela gosta de envolver o homem nelas, mas pode tambémprestar-lhe bons serviços na formação de relacionamentos. Noentanto, isso só acontece quando este elemento feminino éincorporado à consciência. Enquanto age de maneira autônoma,ele perturba ou impossibilita os relacionamentos.

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Os resultados de pesquisas e experiências da psicologiaprofunda têm mostrado que, para o homem moderno (oupara muitos dentre eles) é necessário ater-se aos conteúdosdo inconsciente. Para isso, a relação do homem com a ani­ma é de especial importância; para a mulher, o relacionamen­to com o animus, pois eles igualmente estabelecem a ligaçãocom o inconsciente ao construir uma espécie de ponte atéele. Usualmente, a anima a princípio é projetada numa mu­lher real; isso pode dispor o homem a entrar em relação comela, o que talvez não lhe fosse absolutamente possível de ou­tra maneira. Mas isso também pode ter por conseqüênciaque ele se tome extremamente dependente da mulher emquestão, com os resultados fatais descritos acima.

Enquanto essa projeção perdura, é naturalmente difí­cil encontrar a relação com a anima interior, isto é, com aprópria feminilidade. Freqüentemente, entretanto, surgemem sonhos figuras de mulheres que não podem ser identifi­cadas com uma pessoa real. Estas aparecem usualmente co­mo "a estranha", "a desconhecida" ou "a mulher velada",ou então - é o caso da nossa lenda - como um ser não pro­priamente humano. Sonhos desse tipo são usualmente im­pressionantes e acentuadamente emocionais, e é natural asuposição de que se trata de uma grandeza anímica internacom a qual eles estabelecem uma ligação.

T<LS figuras e as circunstâncias e efeitos que as acom­panham são tratadas com muita freqüência na literatura, esão raras as obras em que os relacionamentos entre a pessoae o ser natural chegam a uma conclusão satisfatória. A ra­zão para isso poderia ser procurada no fato oe faltar às pri­meiras a necessária consciência. Para estabelecer uma relaçãocom· o inconsciente, é imprescindível que a personalidadeesteja suficientemente determinada e firme, de forma queela não possa ser dominada e apagada pelo inconsciente, queé o perigo existente quando se lida com o mesmo.73 Umapersonalidade consciente também é necessária para mantera continuidade de tal relação, pois as figuras do inconscien­te, embora gostassem de ser recebidas pelas pessoas, isto é,

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na consciência, são de natureza volátil e tomam a desaparecercom facilidade para o lugar de onde vieram ("Eu sou fugazcomo a aurora e difícil de agarrar como o vento", diz Urvasi).

A solução desse problema parece ser hoje especialmen­te urgente, como podem comprovar psicoterapeutas e psi­cólogos; com o método da assim chamada imaginação ati­va, C. G. Jung mostrou um caminho.74 Através da confron­tação entre a personalidade do eu e as figuras do inconscien­te e da discussão com elas, estas por um lado diferenciam-sedo eu, e por outro estabelecem uma relação com ele, ocor­rendo uma reação para os dois lados.

Um exemplo muito bonito e apropriado para isso en­contra-se no conto de fadas Libussa,75 cujo original é tchecoe que ganhou uma nova adaptação de Musaus. Nós o cita­mos aqui de forma abreviada: trata-se da ninfa de uma ár­vore que, ao ver seu carvalho ameaçado, pede proteção a umjovem escudeiro chamado Krokus. Como pagamento pelosseus serviços, ele poderia expressar um desejo: fama e hon­ra, riqueza ou felicidade no amor. Mas ele não escolheu na­da disso, ambicionando "descansar à sombra do carvalhodas fadigas da campanha" e, da boca da ninfa, "ouvir os en­sinamentos da sabedoria para desvendar os segredos do fu­turo". Seu desejo foi atendido; a cada fim de tarde, ela ovisitava no lusco-fusco e passeava com ele pelas margens cheiasde juncos do tanque. "Ela instruiu seu atento aluno quan­to aos segredos da natureza, ensinou-lhe a origem e a natu­reza das coisas, deu-lhe aulas sobre as propriedades naturaise mágicas das mesmas e transfoqnou o rude guerreiro numpensador, num sábio universal. A medida que, através dospasseios com a bela sombra, as sensações e os sentimentosdo jovem se aprimoravam, a forma do elfo parecia conden­sar-se e ganhar mais consistência. Seu busto sentia calor evida, seus olhos castanhos soltavam fogo e ele parecia teraceito, junto com a figura de uma jovem meretriz, tambémos sentimentos da menina em flor."

Aqui a ação e a reação que ocorrem durante o relacio­namento com a figura da anima estão descritos de forma ex-

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tremam ente apropriada. Esta ganha mais consistência, torna-semais real e mais viva, enquanto, por outro lado, o sentimen­to do homem se torna bastante dIferente a ele, além disso,é educado para tornar-se "um pensador e sábio", conseguin­do assim renome. O conto tem uma conclusão natural,76 quan­do, após uma longa convivência a ninfa um dia se despedede seu esposo já que prevê o fim inevitável do seu carvalho.Este foi atingido por um raio e a ninfa, cuja vida, apesar dahumanidade, estava ligada à da árvore, desaparece para sempre.

O escritor inglês William Sharp,77 já mencionado, encon­trou uma forma de relacionamento com a anima notável e,creio eu, única. Seu pai, um comerciante, queria que ele es­tudasse direito, para o que ele não tinha aptidão. E muitomenos o satisfazia passar três anos trabalhando num bancolondrino. Depois de abandonar este último, ele passou a sededicar à literatura e à crítica de arte, tendo publicado tam­bém alguma poesia. Isso o levou a ligar-se ao círculo de es­critores e artistas londrinos. Ele era especialmente amigo deDante Gabriel Rossetti. Por problemas de saúde, ele teve derenunciar a lecionar em universidades, o que lhe foi ofereci­do muitas vezes. Sua esposa, a autora da biografia de ondetirei estes dados, era sua prima. Além da sua mentalidadecrítico-intelectual ele tinha uma vida de fantasias e sonhosmuito intensa, que ele chamava de "vida verde", pois ela es­tava intimamente ligada à natureza, pela qual ele nutria umgrande amor. Ele satisfazia essa face do seu ser com estadasanuais no litoral, principalmente na Escócia. Uma babá es­cocesa já havia familiarizado o menino com lendas galesas,de forma que, para ele, a Escócia era uma espécie de pátriaanímica. Durante uma dessas temporadas, ele começou lámesmo a escrever um "romance celta" intitulado "Pharai's".Nessa ocasião, ficou claro para ele "quanto o elemento fe­minino era dominante nele, e que o livro devia sua criaçãoao lado feminino, subjetivo da sua natureza". Ele, portan­to, decidiu publicá-Io com o pseudônimo de Fiona McLeod,que lhe veio à mente ready made. Ele escreveu vários livroscom esse pseudônimo, nos quais a natureza peculiar da Es-

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cócia e de seus habitantes está representada em impressio­nantes descrições.78 Estas obras foram muito apreciadas, es­pecialmente porque nessa época havia surgido um novo in­teresse pela cultura celta. W. B. Yeats, por exemplo, escre­veu a respeito: "Do grupo de novas vozes, nenhuma é maissignificativa que a voz notavelmente misteriosa que se ma­nifesta nas narrativas de Fiona MacLeod. Ela se tornou a vozdessas pessoas primitivas e das coisas elementares, não ape­nas através da observação das mesmas, mas a partir de umaidentidade com a natureza. Sua arte é daquele grande tipoque está baseada na revelação e que tem a ver com coisasinvisíveis e inapreensíveis." Perguntado sobre como tinhapassado a escrever com um nome de mulher, Sharp respondeu:"Como mulher, posso usar da sinceridade que é impossível usarcomo \\illiam Sharp ... Esse sentimento embriagante de ser umcom a natureza, este êxtase e elevação cósmicos, este peram­bular pelas fronteiras mais externas do mundo usual, tudoisso está tão entrelaçado com o romantismo da vida que eunão poderia me expressar com meu Eu superior externo usual."Ele mantinha sua identificação com Fiona MacLeod rigoro­samente em segredo, e mesmo seus amigos só vieram a to­mar conhecimento dela depois de muito tempo. Ao lado dacorrespondência do próprio William Sharp, Fiona mantinhaa sua com seus leitores. Ele escreveu uma vez numa carta asua mulher: "W. S. e F. M. tornam-se cada vez mais decla­radamente duas pessoas, às vezes unidas em espírito e, jun­tas, uma personalidade, às vezes nitidamente diferentes umada outra." Ele assina esta carta com "Wilfion" (contraçãode William e Fiona). Em seu aniversário, ele costumava sem­pre trocar cartas com Fiona, em que expressava sua gratidãoenquanto ela lhe fazia advertências.

Temos aqui um caso em que a anima interna atingiuum grau raro de realidade. Talvez isso esteja baseado numadisposição especial de W. Sharp; em princípio, no entanto,corresponde ao que se quer dizer com o relacionamento coma anima ou com a integração da mesma, o que é possível acada um em determinada medida.

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A integração da anima, isto é, a incorporação do ele­mento feminino na personalidade consciente do homem,faz parte do processo de individuação. Aí há um ponto deespecial importância a ser levado em consideração: o elemen­to feminino que deve ser integrado como um componenteda personalidade é apenas uma parte da anima, a saber, seuaspecto pessoal. Mas ela ao mesmo tempo representa o ar­quétipo do feminino, e este é de natureza suprapessoal, epor isso não pode ser integrado.

Nossa observação mostrou que, por trás dos seres ele­mentares descritos, encontram-se as figuras divinas de Cibe­le, de Afrodite e, por fim, da deusa Natureza. A partir des­se pano de fundo arquetípico, esclarece-se a violência irre­sistível que pode emanar de uma dessas figuras de anima.Quando é a própria natureza que se opõe a alguém, é com­preensível que se seja dominado e vencido por ela. Isso ocor­re então especialmente quando o aspecto arquetípico da ani­ma não se diferencia do pessoal. A anima consegue exercersua prepotência quando os dois aspectos se misturam; porisso, acima de tudo, é importante diferenciar o que perten­ce ao pessoal do que é suprapessoal. Em sonhos e fantasias,esta divisão às vezes é representada de tal forma que a figu­ra da anima suprapessoal morre. Conheço uma história fan­tástica em que esta vai para o céu restando uma mulher co­mum. No Sonho de Amor de PoUfilo já citado, o sonho ter­mina com a ninfa Polia desaparecendo no ar, "como umaimagem celeste, divinizada".79

C. G. Jung menciona o sonho de um homem no quala anima, uma figura feminina de tamanho maior que o na­tural, encontra-se, com o rosto velado, em pé no lugar do al­tar. Como arquétipo, a anima é de natureza sobre-humanae vive num lugar celeste, como as idéias platônicas. Diferen­te dos componentes anímicos feminino-pessoais, ela aindaassim está por trás deles como imagem primordial e os for­ma de acordo com a sua figura. Devemos ir ao encontro de­la, a Grande Mãe e Deusa do Amor, a Senhora, ou como querque se chame, com veneração. O homem deve discutir com

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sua anima pessoal, com a feminilidade que lhe pertence, quepode acompanhá-Io e completá-Io, mas que não deve domi­ná-Io.

Neste trabalho, tentei representar a anima como ser na­tural, e não levei em consideração suas formas de apariçãomais elevadas, como por exemplo a da Sophia. Parece-meimportante evidenciar o lado natural da mesma, já que estefaz parte da natureza do feminino de forma tão pronunciada.

Com o reconhecimento e a integração da anima, cria-seum posicionamento totalmente modificado em relação aofeminino. A nova avaliação do princípio feminino exige quea natureza também receba a veneração que lhe é devida apóso ponto de vista do intelecto dominante na era da ciência eda tecnologia ter levado mais à sua utilização, e até mesmoexploração, que à sua veneração. Mas hoje, felizmente, po­de-se observar sinais que apontam para a direção da última.O mais importante e o mais significativo é o novo dogma daAssumptio Mariae e a interpretação da mesma como senho­ra da criação. Na nossa época, em que poderes dissociativosestão ativos de forma tão ameaçadora, dividindo povos, pes­soas e átomos, é duplamente necessário que os poderes deligação e união também possam entrar em ação; pois a vidaestá baseada na combinação harmônica das energias mascu­linas e femininas também no interior do indivíduo. Produzira união desses contrários é uma das tarefas mais importantesda psicoterapia atual.

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Notas

UMA CONTRIBUIÇÃO AO PROBLEMA DO ANIMUS

1. Ver Frazer, Taboo and the Perils o[ the Soul; Crawley, The Idea o[ theSoul; Lévy-Bruhl, Die Geistige Welt der Primitiven e Die Seele der Primitiven.

2. Romanos 7,19.3. Psychologische Typen, p. 689s (Obras Completas VI, 527); comparar tam­

bém com Die Beziehungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten, p. l1ss (Ob.Comp. VII, p. 139s).

4. Ver Psychologische Typen, p. 597s (Ob. Comp. VI, p. 453) e Die Bezie­hungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten, p. 30 (Ob. Comp. VII, p. 151).

5. Ver Psychologische Typen, p. 661s e 670ss (Ob. Comp. VI, p. 503ss e51Oss) e Die Beziehungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten, p. 117ss (Ob.Comp. VII, p. 207ss).

6. No que se refere ao conceito de realidade psíquica, eu me remeto aos es­critos de C. G. Jung, especialmente Psychologische Typen, p. 17ss (Ob. Comp. VI,p.7ss).

7. Eu me refuo aqui ao valioso livro de E. Harding, The Way o[ ali Women.8. J. Grimm, Deutsche Mythologie I, p. 115ss.9. Idem I, p. 110.10. Idem 11,p. 725.11. Lévy-Bruhl, Die geistige Welt der Primitiven e Die Seele der Primitiven.12. Comparar com C. G. Jung, Psychologischen Typen, p. 646s (Ob. Comp.

VI, p. 491s).13. Exemplos notáveis de figuras de animus podem ser encontrados na lite­

ratura, por exemplo em: Fraser, The Flying Draper e Rose Anstey; Hay, The EvüVineyard; e da mesma forma em: Flournoy, Des Indes à Ia plan~te Mars. Etude surun cas de somnambulisme avec glossolalie.

14. Die Geheimlehre des Veda. Ausgewiihlte Texte der Upanishad's, organi­zado por Deussen.

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15. Ausführliches Lexikon der griechischen und romischen Mythologie, or­ganizado por Roscher, I,verbete "Dioniso".

16. Ver C. G. Jung, Psychologische Typen, p. 596 (Ob. Comp. VI, p. 4515)e Die Beziehungen zwischen dem Ich und dem Unbewussten, p. 30 (Ob. Comp.

VlI, p. 151).

A ANIMA COMO SER NATURAL

1. Canções do Rg- Veda, X, 95, p. 142ss.2. The Satapabrâhmana, according to the text of the Mâhyandina school.3. As Apsaras (= que se movem na água) são ninfas aquáticas celestes de

grande beleza que se dedicam ao canto e à dança. Seus companheiros masculinossão os gandarvos, ig.ualmente amantes da música. (Encyclopedia of Religion andEthics, organizada por Hastings, I, verbete "Apsaras".)

4. Apuleius, Die Metamorphosen oder Der goldene Esel. Ver também Neu­mann, Ein Beitrag zur seelischen Entwicklung des Weiblichen (Comentário sobre:Apuleius, Amor und Psyche). [Cr. Amor e Psiquê, Editora Cultrix, São Paulo, 1990.]

5. Ver além disso Kuhn, Mythologische Studien I: Die Herabkunjt des Feuersund des Gottertranks, onde este filho é interpretado como sendo o fogo.

6. Segundo A Celtic Miscellany. Translations from the Celtic Literature. Com­parar também com D'Arbois de Jubainville, Le Cycle mythologique irÚlndais et Úlmythologie celtique.

7.1. Grimm, Deutsche Mythologie I,p. 346.8. J. Grimm, idem p. 347.9. J. Grimm, idem p. 354.10. Edda, I: Heldendichtung, Wólundlied, p. 17s.11. Isto é, como Valquírias, elas tecem o fio da vitória e da fama.12. Para isso ver também M.-L. von Franz, Archetypal patterns in Fairy

Tales, 59 capo [Padrões arquetÍpicos nos contos de fadas.]13. Segundo 1. Grimm, op. cit., p. 354, o cisne era uma ave que previa o fu­

turo: a palavra cisne em alemão, schwanen, estaria relllcionada com ahnen, prever.A "gralha da vitória" (Badb) da mitologia irlandesa, uma antiga deusa da guer­

ra, está aparentada com a Valquíria, mas tem mais o caráter sinistro de uma anun­ciadora de desgraças. (Macculloch, The Religion of the ancient Celts, p. 71s e dis­perso pelo texto.)

14. Sobre a anima como tecelã, ver Jung, Aion, p. 27s. (Ob. Comp. IX, 2~parte).

15. fatum = dito, vaticínio (ver Walde, Lateinisches etymologisches Warter­buch).

16. A Canção dos Nibelungos, lI, 259 Aventura, p. 122s.17. Em alemão moderno:

"Sie schwammen wie die Vogel schwebend auf der Flut.Da daucht' ihn ihr Wissen von den Dingen gut:

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So gÚlubt' er um so lieber' was sie ihm wollten sagen."No original:

"Sie swebten sam die vogele' vor im üf der vluot.des dühten in ir sinne' starc unde guot:swaz si im sagen wolden' er geloubte in dester baz .••

18. Germania, 8, citado por J. Grimm, op. cito I,p. 78.19. "que suas mães de família, através de adivinhações e previsões informam

se é aconselhável dar ou não uma batalha ... ", citado em op. cito I, p. 78.20. op. cito I, p. 361.21. Aquisgranum.22. "uma maga ou fada que com outros nomes é chamada também de ninfa

ou deusa ou drÍade."

23. Escrito comemorativo Albert Oeri para o 21 de setembro de 1945.24. Ver Jung, Psychologische Aspekte des Mutterarchetypus (Ob. Comp. IX,

1~ Parte).25. Obras Completas lI.26. Ver por exemplo Der Jiiger und die Schwannenjungfrau, em: Deutsche

Miirchen seit Grimm I, p. 133ss.: Die weisse und die schwarze Braut, em: BrüderGrimm, Kinder-und Hausmiirchen, I, N9 48, e Die Rabe, op. cito lI, N9 87; DieEntenjungfrau, em: Russische Marchen, N9 32. Die Geschichte von Hasan, demBassoriten, em: Die Erziihlungen aus 1001 Nacht, IX.

27. Segundo fontes germânicas e nórdicas, pensava-se que sob a Montanhade Vidro havia um lugar do Além, onde ficavam os mortos ou os bem-aventurados;segundo outra concepção, lá vivem mulheres-cisne, fadas, bruxas, anões e seres se­melhantes. Em muitos contos de fadas, pessoas são levadas para lá por um espíritoou demônio e precisam ser libertadas. (Compare com Handworterbuch des deutschenAbergÚlubens m, verbete "Glasberg".) Este lugar do Além pode muito bem ser com­parado com o inconsciente.

28. Musaus, Volksmiirchen der Deutschen lI.29. O editor introduz aqui um comentário engraçado, que a localidade deriva

seu nome de uma certa Schwanhildis e seu pai Cygnus, "pertencendo os dois à raçadas fadas, descendendo provavelmente dos ovos de Leda"!

30. Ver a respeito Jung, Zum psychologischen Aspekt der Korefigur (Ob.Comp. IX, H parte).

31. Ver o poema de Goethe Der Fischer [O Pescador], (Obras, I, p. 171),Winternacht [Noite de Inverno], (Obras, IX/I, p. 74) e Nixe im Grundquell [Ninfana Fonte], (IX/I, p. 87), de Gottfried Keller, e também Die versunkene Glocke[O relógio submerso] de Gerhardt Hauptmann e Ondine de Jean Giraudoux.

32. J. Grimm, op. cito I, p. 360. Segundo Kluge, Etymologisches Worterbuchder deutschen Sprache, o significado original da palavra Minne (amor) equivaliaa recordação, mem6ria, lembrança. Ela está aparentada à palavra inglesa mind (men­te) e deriva da raiz indogermânica men ou man = pensar, julgar. J. Grimm usa, paraman = homem (op. cit.).

33. Ver, por exemplo, o interessante estudo de Bezzola sobre Guillaume IX

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e les origines de I'amour courtois.34. Rhys, Celtic Folklore. Welsh and Mame35. Atribuía-se ao ferro o poder de repelir seres élficos.36. Isto é descrito de maneira bastante drástica num conto de fadas nórdi­

co, Die Waldfrau [A Mulher da Floresta) (lVordische Volksmiirchen, Nl? 34), queconta como um lenhador foi encantado por uma bela donzela que ele encontrouna floresta. Todas as noites ela o levava consigo para sua montanha, onde tudoera tão suntuoso como ele nunca havia visto antes. Um dia, quando ele estava cor­tando lenha, a mulher lhe trouxe a comida numa bela bandeja de prata. Quandoela se sentou sobre o tronco, ele viu, decepcionado, que ela tinha um rabo de vacaque caíra na fenda da árvore. Rapidamente ele retirou a cunha, de forma que orabo ficou preso e foi cortado. Ele então escreveu o nome de Jesus na bandeja.Imediatamente a mulher desapareceu e a bandeja de comida não passava de umpedaço de casca de árvore com esterco.

37. Na superstição popular, o espelho é conhecido como um instrumentode magia; ele tem um efeito numinoso, em que se vê nele a sombra ou duplo desi mesmo. Um espelho mágico mostra tudo o que acontece no mundo, ou anunciao futuro e revela absolutamente tudo o que há de secreto ou oculto. (Ver Band­w6rterbuch des deutschen A berglaubens, IX, verbete "Spiegel".)

38. Ver Jung, Paracelsica, p. 157ss. e disperso no texto, onde a lenda é con­tada por extenso e a figura de Melusina é interpretada como anima no contextodo simbolismo alquírnico e da concepção paracélsica das Melusinas como almasque habitam o sangue.

39. Segundo Baring-Gould, Curious Myths of the Middle Ages, lI, p. 206ss.40. Como, por exemplo, Lourdes.41. Segundo Maury, Croyances et légendes du Moyen-Age.42. Sharp, William Sharp (Fiona MacLeod). A Memoir, compüed by his wife

Elizabeth A. Sharp.43. Liber de Nymphis, Sylphis, Pygmaeis et Salamandris, et de caeteris spi-

ritibus, p. 60.44. op. cit., pp. 63 e 62.45. de la Motte-Fouqué, Undine.46. Carus, Psyche.47. Marie de France, Les Lais. Na Alemanha pela Hertz, Spielmannsbuch.48. Uma lenda alemã semelhante é relatada por Paracelsus no ensaio men­

cionado acima, p. 60s., bem como pelos irmãos Grimm em: Deutschen Sagen lI,p. 202ss. Eles contam a história de um cavaleiro de Staufenberg que um dia, aocavalgar a caminho da igreja, encontrou uma belíssima jovem que estava sentadacompletamente só à entrada de uma floresta. Como se constatou, ela o estava es­perando ali. Ela lhe confessou também que o amava desde sempre e que estiveraa seu lado protegendo-o e ajudando-o, após o que eles se tornaram noivos. Ela tam­bém é uma fada que se apresenta sempre que desejada e que o abastece de dinhei­ro e bens desde que ele nunca se ligue a outra mulher. Quando, forçado pela famí­lia, ele se dispõe a fazê-lo apesar de tudo, ela, após avisá-lo, de maneira misteriosa

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leva-o à morte no espaço de três dias. Nesta donzela, que sempre amou o cavalei­ro, não é difícil reconhecer o feminino que lhe pertence; sua exigência de exclusi­vidade é um traço característico da anima, que freqüentemente leva a difíceis com­plicações e conflitos.

49. Macculloch, op. cit., p. 362ss.50. Este motivo desempenha um papel importante, por exemplo, em Chrétien

de Troyes, nos poemas Ywain e Erec e Enide, tendo sido esta última obra trata­da por R. Bezzola num estudo muito sutil (Le sens de ['aventure et de ['amour[Chrétien de Troyes ). O feito mais difícil do herói perdidamente apaixonado con­siste em que ele tem de lutar com um adversário desse tipo, em certa medida, por­tanto, o seu duplo. A superação do mesmo significa que ele consegue livrar-se dolaço de amor que o isolava e, com a mulher, novamente dedicar-se à sociedade eao mundo.

51. Ver Barto, Tannhiiuser and the Mountain of Venus. A study in the legend

of the Germanic Paradise, de onde também foram retiradas as citações.52. Em algumas versões está: "Vênus da DUvelinne (?)".53. Aqui a Senhora Vênus tornou-se a Verena suíça.54. Ver também J. Grimm, Deutsche Mythologie lI, p. 780. Na baixa Idade

Média, a Montanha de Vênus foi identificada com o Graal na Alemanha, já que essenome possuía na época um significado de festa, de festividade. Hertz (Die Sage vonParsifal und dem Gral, p. 36) cita um cronista que escreve: "Os historiadores que­rem dizer que este jovem, o cavaleiro do cisne, veio da montanha onde Vênus estáno Graa!."

55. Ver a detalhada pesquisa psicológica desta obra por L. Fierz-David, DerLiebestraum des Poliphilo.

56. Antoine de Ia Sale, Le Paradis de Ia reine Sibylle; organizado por Desonay.57. Ausfiihrliches Lexikon der griechischen und romischen Mythologie, or-

ganizado por Roscher, IV, verbete "Sibylla".58. Op. cito59. Antoine de la Sale, Le Paradis.

60. A imagem da deusa, uma pedra sagrada, foi apanhada na época por Pessi­nus e levada para Roma.

61. Em um hino órfico, ela é invocada como "Mantenedora da vida e amigada paixão furiosa". (Orpheus. Altgriechische Mysteriengesõ'nge)

62. Poder-se-ia também caracterizá-Io como "Reino das Mães", mas eu esco­

lhi a outra expressão porque, na narrativa mencionada, não está destacado o aspectomatemo, mas sim aquele de Eros.

63. Eranos Jahrbuch XIV (1946).64. C. G. Jung, Symbole der Wandlung: ver por exemplo pp. 513 e 610 (Ob.

Comp. V).65. C. G. Jung, Symbole der Wandlung (Ob. Comp. V), e Neumann, Ur­

sprunggeschichte des Bewusstseisns.66. Em Jung e Kerényi, Einführung in das Wesen der Mythologie (Ob. Comp.

IX, H Parte).

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Page 53: Emma Jung - Anima e Animus

67. Eu me refIro ao notável estudo Bi/der und Symbole aus E. T. A. Hof.fmanns Miirchen "Der Goldne Topf" de A. Jaffé. Em C. G. Jung, Gestaltungen desUnbewussten.

68. Benoit, L 'Atlantide. Romance.

69. Ver a respeito Jung, Zum psychologischen Aspekt der Korefigur (Ob.Comp. IX, 1~ Parte).

70. Ver C. G. Jung, Symbole der Wandlung (Ob. Comp. V) e Neumann,Ursprungsgeschichte des Bewusstseins.

71. Ver C. G. Jung, Von den Wurzeln des Bewusstseins: "úberdie Archetypendes kollektiven Unbewussten, pp. 44 e 51 (Ob. Comp. IX, 1~ Parte), bem comoC. G. Jung, Symbolik des Geistes: Zur Phiinomenologie des Geistes im Miirchen,p. 17ss. (Ob. Comp. IX, H Parte).

72. Ver, além disso, C. G. Jung, Psychologie-und Alchemie (Ob. Comp. XII)eParacelsica (Ob. Comp. XV).

73. Ver C. G. Jung, Die Beziehungen zwischen dem lch und dem Unbewussten(Ob. Comp. VII), e Neumann, Ursprungsgeschischte des Bewusstseins.

74. Ver a respeito Jung, Zum psychologischen Aspekt der Korejigur (Ob.Comp. IX, H Parte).

75. Volksmiirchen der Deutschen lI.76. O conto descreve também os destinos das três filhas do casal, que eu não

abordo aqui.77. E. A. Sharp, op. cit., p. 26.78. O primeiro livro publicado com este nome foi Pharai"s.Em alemão, apa­

receram Das Reich der Triiume [O Reino dos Sonhos] e Wind und Woge [Ventose Vagas].

79. Ver L. Fierz-David, op. cit., p. 226s.

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* Neste volume, as páginas das notas das obras citadas estão em ordem crono­lógica e se referem à primeira edição. Na medida em que forem publicadas, tambémas reedições das Obras Completas serão apresentadas em ordem cronológica.

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Page 55: Emma Jung - Anima e Animus

Die psychologischen Aspekte des Mutter-Archetypus. In: EranosJahrbuch VI (1938). Rhein V., Zurique, 1939. Reedição em: Vonden Wurzeln des Bewusstseins. Veja acima.Zum psychologischen Aspekt der Kore-Figur. In: JUNG UNDKÉRENYI, Einführung in das Wesen der Mythologie, Albae Vigiliae

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Das obras mais modernas (de 1920 em diante) também é mencionada a edi­tora, sempre que possível.

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AS PROPRIEDADES CURATIVAS DOSCRISTAIS E DAS PEDRAS PRECIOSAS

K (/ t rina RnjJhneLL

Manual de fácil compreensão sobre o uso de cristais e pedras

preciosas para o crescimento interior, a cura e o equilibrio na

vida cotidiana, este livro de Katrina RapbaelI ensina como

ampliar a percepção pessoal e como centralizá-Ia, harmonizan­

do-a com as energias das pedras preciosas. A magnitude e o

potencial dos aistais e das pedras preciosas, e o impacto positivo

que podem causar em nossa vida pessoal e na evolução do

planeta em que vivemos são significativos.

Eis alguns dos tópicos analisados neste li\To:

• O que são os cristais do ponto de vista físico e esotérico• O uso dos cristais na autocura

• A proteção psíquica proporcÍonada pelos cristais

• A antiga arte de dispor as pedras preciosas

• As mais importantes pedras curativas e seus usos

• Meditações inspiradas pelos cristais

• As pedras da Nova Era

As propriedades curativas dos cristais e das pedras preciosas

é um livro destinado a todos os que se interessam pelo conheci­

mento básico necessário para usar as propriedades curativasinerentes ao reino mineral, no intuito de melhorar a qualidadede nossa vida interior e exterior.

EDITORA PENSAMENTO