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    AVE CRISTOFRANCISCO CNDIDO XAVIER

    ROMANCE DITADO PELO ESPRITO EMMANUEL

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    NDICEAve, Cristo!

    PRIMEIRA PARTECAPTULO 1 = Preparando caminhosCAPTULO 2 = Coraes em lutaCAPTULO 3 = Compromisso do coraoCAPTULO 4 = Aventura de mulherCAPTULO 5 = ReencontroCAPTULO 6 = No caminho redentorCAPTULO 7 = Martrio e amor

    SEGUNDA PARTECAPTULO 1 = Provas e lutas

    CAPTULO 2 = Sonhos e afliesCAPTULO 3 = Almas em sombraCAPTULO 4 = SacrifcioCAPTULO 5 = ExpiaoCAPTULO 6 = Solido e reajusteCAPTULO 7 = Fim de luta

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    Ave, Cristo!Hoje, como outrora, na organizao social em decadncia, Jesus avana

    no mundo, restaurando a esperana e a fraternidade, para que o santurio doamor seja reconstitudo em seus legtimos fundamentos.

    Por mais se desenfreie a tormenta, Cristo pacifica.Por mais negreje a sombra, Cristo ilumina.Por mais se desmande a fora, Cristo reina.A obra do Senhor, porm, roga recursos na concretizao da paz, pede

    combustvel para a luz e reclama boa vontade na orientao para o bem.A idia divina requisita braos humanos.A bno do Cu exige recipientes na Terra.O Espiritismo, que atualmente revive o apostolado redentor do Evangelho,

    em suas tarefas de reconstruo, clama por almas valorosas no sacrifcio de simesmas para estender-se, vitorioso.

    H chamamentos do Senhor em toda a parte.Enquanto a perturbao se alastra, envolvente, e enquanto a ignorncia e

    o egosmo conluiados erguem trincheiras de incompreenso e discrdia entreos homens, quebram-se as fronteiras do Alm, para que as vozes inolvidveisdos vivos da eternidade se expressem, consoladoras e convincentes,proclamando a imortalidade soberana e a necessidade do Divino Escultor emnossos coraes, a fim de que possamos atingir a nossa fulgurante destinaona vida imperecvel.

    Alinhando pois, as reminiscncias deste livro, no -nos pro pomosromancear, fazer literatura de fico, mas sim trazer aos nossos companheirosdo Cristianismo redivivo, na seara esprita, breve pgina da histria sublime

    dos pioneiros de nossa f.Que o exemplo dos filhos do Evangelho, nos tempos ps-apostlicos, nosinspire hoje a simplicidade e o trabalho, a confiana e o amor, com que sabiamabdicar de si prprios, em servio do Divino Mestre! que saibamos, quantoeles, transformar espinhos em flores e pedras em pes, nas tarefas que o Altodepositou em nossas mos!...

    Hoje, como ontem, Jesus prescinde das nossas guerrilhas de palavras, dasnossas tempestades de opinio, do nosso fanatismo sectrio e do nossoexibicionism-o nas obras de casca sedutora e miolo enfermio.

    O Excelso Benfeitor, acima de tudo, espera de nossa vida o corao, ocarter, a conduta, a atitude, o exemplo e o servio pessoal incessante, nicos

    recursos com que poderemos garantir a eficincia de nossa cooperao, emcompanhia dele, na edificao do Reino de Deus.Suplicando-lhe, assim, nos ampare o ideal renovador, nos caminhos de

    rdua ascenso que nos cabe trilhar, repetimos com os nossos venerveisinstrutores dos primeiros sculos da Boa Nova:

    Ave, Cristo! os que aspiram glria de servir em teu nome te glorificame sadam!

    EMMANUEL

    Pedro Leopoldo, 18 de abril de 1953.

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    PRIMEIRA PARTE

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    1Preparando caminhos

    Quase duzentos anos de Cristianismo comeavam a modificar a paisagem

    do mundo.De Nero aos Antoninos, todavia, as perseguies aos cristos haviamrecrudescido. Triunfantemente assentada sobre as sete colinas, Romaprosseguia ditando o destino dos povos, fora das armas, alimentando aguerra contra os princpios do Nazareno, mas o Evangelho caminhava sempre,por todo o Imprio, construindo o esprito da Era Nova.

    Se na organizao terrestre a Humanidade se desdobrava emmovimentao intensa, no trabalho da transformao ideolgica, o servio nosplanos superiores atingia culminncias.

    Presididas pelos apstolos do Divino Mestre, todos ento na vida espiritual,as obras de soerguimento humano multiplicavam-se, em vrios setores.

    Tornara Jesus ao slio resplendente de sabedoria e de amor, de ondelegisla para todas as criaturas terrenas, mas os continuadores do seuministrio, entre os homens encarnados, qual enxame crescente de abelhas darenovao, prosseguiam ativos, preparando o solo dos coraes para o Reinode Deus.

    Enquanto exrcitos compactos de cristos desapareciam nas fogueiras enas cruzes, nos suplcios interminveis ou nas mandbulas das feras, templosde esperana se levantavam felizes, alm das fronteiras de sombra, dentro dosquais falanges enormes de Espritos convertidos ao Bem se ofereciam para abatalha de suor e sangue, em que, usando a vestimenta fsica, dariam testemu-nhos de f e boa vontade, colaborando na expanso da Boa Nova, para aredeno da Terra.Assim que, em formosa cidade espiritual, nas adjacncias da CrostaPlanetria, vamos encontrar grande assemblia de almas atraidas ao RoteiroDivino, escutando a exortao de iluminado orientador, que lhes falava, decorao posto nos lbios:

    Irmos dizia ele, envolvido em suaves irradiaes de luz , oEvangelho cdigo de paz e felicidade que precisamos substancializar dentroda prpria vida!

    O Sol que jorra bnos sobre o mundo incorpora-se natureza,sustentando-a e renovando-lhe as criaes. A folha da rvore, o fruto nutriente,o cntico do ninho e a riqueza da colmia so ddivas do astro sublime,materializadas pelos princpios da Eterna Inteligncia.

    Cristo o Sol Espiritual dos nossos destinos.Urge, pois, associarmo-nos voluntriamente aos ensinamentos dele,

    concretizando-lhes a essncia em nossas atividades de cada dia.No podemos esquecer, entretanto, que a mente do homem jaz petrificada

    na Terra, dormindo nas falsas concepes da vida celeste.A poltica de dominao militar asfixiou as velhas tradies dos primitivos

    santurios. As cortes romanas abafaram as vozes da filosofia grega, como ospovos brbaros enforcaram a revelao egpcia.

    Adensou-se o nevoeiro da estagnao e da morte entre as criaturas.As guias imperiais assentaram na cega idolatria de Jpiter a mentirosa

    religio da vaidade e do poder...E enquanto os deuses de pedra absorvem os favores da fortuna, alonga-se

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    a misria e a ignorncia do povo, reclamando o pronunciamento do Cu.Como se expressar, porm, a interveno divina, sem a cooperao

    humana?Sem a herica renunciao dos que se consagram ao progresso e ao

    aprimoramento das almas, a educao no passar de letra morta.

    Imprescindvel, portanto, que saibamos escrever com o nosso prprioexemplo as pginas vivas do Cristianismo remissor.O Mestre Crucificado divino desafio.At agora, os conquistadores do mundo conseguiram avanar no carro

    purpreo da vitria, matando ou destruindo, valendo-se das legies deguerreiros e lidadores cruis.

    Jesus, no entanto, triunfou pelo sacrifcio.Csar, atado s vicissitudes humanas, governa os assuntos referentes

    carne em trnsito para a renovao.Cristo reina sobre a alma que nunca morre, aos poucos sublimando-a para

    a glria imperecvel...O tribuno venervel fizera uma pausa, como que intencional, porque oclangor distante de muitos ltuos reunidos se fazia ouvir, em pleno cu, dando a

    idia de uma convocao para alguma batalha prxima.As centenas de entidades que se conchegavam umas s outras, no

    admirvel recinto cuja abbada deixava perceber a luz tremeluzente dasestrelas remotas, entreolharam-se, ofegantes...

    Todos os Espritos, ali congregados, pareciam ansiosos pela oportunidadede servir.

    Alguns traziam no semblante expresses de saudade e dor, qual seestivessem ligados batalha da Terra por feridas de aflio, somente curveiscom o retorno s angstias do passado.

    Mas, a expectao no durou muito.Superando as clarinadas, que ecoavam pela noite, a voz do pregador

    ressurgiu: Muitos de vs, amados irmos, deixastes retaguarda velhos

    compromissos de amor e desejais voltar ao spero trilho da carne, como quemafronta as labaredas de um incndio para salvar afeies inesquecveis.Entretanto, devotados agora verdade divina, aprendestes a colocar os desg-nios do Senhor acima dos prprios desejos. Entediados da iluso, consultais arealidade, buscando engrandec-la, e a realidade aceita o vosso concursodecisivo para impor-se no mundo.

    No olvideis, todavia, que somente colaborareis na obra do Cristo,ajudando sem exigir e trabalhando sem apego aos resultados. Como o pavioda vela, que deve submeter-se e consumir-se a fim de que as trevas sedesfaam, sereis constrangidos ao sofrimento e humilhao para que novoshorizontes se abram ao entendimento das criaturas.

    Por muito tempo, ainda, o programa dos cristos no se afastar daslegendas do Apstolo Paulo:

    Em tudo (1) sereis atribulados, mas no aniquilados; perplexos, mas nodesalentados; perseguidos, mas no desamparados; abatidos, mas nodestruidos, trazendo sempre, por toda a parte, a exemplificao do SenhorJesus, no prprio corpo, para que a vida divina se manifeste no mundo. E,

    assim, quantos renascerem nas sombras da matria mais densa, estaroincessantemente entregues ao sacrifcio, por amor verdade, a fim de que a

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    lio do Divino Mestre brilhe mais intensamente nos domnios da carne mortal.O mentor explanou ainda, por vrios minutos, quanto aos deveres que

    aguardavam os legionrios do Evangelho, entre os obstculos do mundo,descendo,

    (1) 2 epstola aos Corntios, captulo 4, versculos 8 a 11. (Nota do Autorespiritual.)

    por fim, da tribuna dourada para o cultivo da conversao fraterna.Vrios amigos oscularam-lhe as mos, comentando, com entusiasmo, os

    mapas de trabalho a que se prenderiam, de futuro.Diminuam os entendimentos e as rogativas de proteo, quando o

    pregador foi procurado por algum com intimidade afetuosa. Varro! exclamou ele, abraando o recm-chegado e contendo a

    emoo.Tratava-se de velho romano, de olhar percuciente e triste, cuja tnica muito

    alva, confundida com a roupagem brilhante do companheiro, assemelhava-se auma nesga de neblina apagada, de encontro a repentino claro de aurora.No amplexo de ternura que permutavam, era bem de ver-se a

    reaproximao de dois amigos que, por momentos, olvidavam a autoridade e aaflio de que eram portadores, para se transfundirem um no outro, depois delonga separao.

    Trocadas as primeiras impresses em que antigos eventos do pretritoforam recordados, Quinto Varro, o romano de fisionomia simptica e amar-gurada, explicou ao companheiro, ento guindado a esfera superior, quepretendia voltar ao plano fsico, em breve tempo.

    O representante da Esfera Mais Alta ouviu-o com ateno e obtemperou,admirado:

    Mas, porqu? Conheo-te o acervo de servios, no somente causada ordem, mas igualmente causa do amor. No mundo patrcio, as tuasderradeiras romagens foram as do homem correto at ao extremo sacrifcio eos teus primeiros ensaios na edificao crist foram dos mais dignos. No seriaaconselhvel o prosseguimento de tua marcha, acima das inquietantespaisagens da carne?

    O interlocutor fixou um gesto silencioso de splica e aduziu: Cldio, abenoado amigo! peo-te!... Sei que conservas o poder de

    autorizar minha volta. Sim, sem dvida, os apelos de cima comovem-me a

    alma!. .. Anseio por reunir-me, em definitivo, aos nossos da vanguarda... Noentanto e a voz dele se fz quase sumida pela emotividade , de todos osque ficaram para trs, tenho um filho do corao, perdido nas trevas, que eudesejaria Socorrer...

    Taciano? indagou o mentor, intrigado. Ele mesmo...E Varro prosseguiu, com encantadora humildade: Sonho conduzi-lo ao Cristo, com os meus prprios braos. Tenho

    implorado ao Senhor semelhante graa, com todo o fervor de meu paternalcarinho. Taciano para mim o que a rosa significa para o arbusto espinhosoem que nasceu. Em minha indigncia, ele o meu tesouro e, em minha

    fealdade, a beleza de que desejava orgulhar-me. Daria tudo por dedicar-me aele, de novo... Acarici-lo, junto do corao, para orientar-lhe os passos na

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    direo de Jesus, o Cu a que aspiro...E, como se quisesse sondar a impresso que causava no amigo,

    acrescentava: Porventura estarei errado em minha aspirao?O velho orientador afagou-o, com visveis demonstraes de piedade,

    passou a destra pela fronte banhada de luz e falou: No discuto os teus sentimentos, que sou constrangido a respeitar,mas... valeria tamanha renunciao?

    Como se articulasse as prprias reminiscncias para exprimir-se comsegurana, fz longa pausa, que ele prprio interrompeu, acentuando:

    No acredito que Taciano esteja preparado. Vi-o, h alguns dias, noTemplo de Vesta, chefiando larga legio de inimigos da luz. No me pareceuinclinado a qualquer servio do Evangelho. Vagueia nos santurios dasdivindades olmpicas, promovendo arruaas contra o Cristianismo nascente eainda se compraz nos festins dos circos, encontrando incentivo e alegria nasefuses de sangue.

    Tenho acompanhado meu filho, nesse lamentvel estado concordouQuinto Varro, melanclico , contudo, nos ltimos dias, noto-o amargurado eaflito. Quem sabe estar Taciano beira da grande renovao? Compreendoque ele tem sido recalcitrante no mal, consagrando-se, indefinidamente, ssensaes inferiores que lhe impedem a percepo de mais altos horizontes davida. Mas concluo, de mim para comigo, que algo deve ser feito quando temosnecessidade do reajustamento daqueles a quem amamos...

    E talvez porque Cldio silenciasse, pensativo, o afetuoso pai voltou a dizer: Abnegado amigo, permite-me voltar... Estars, todavia, consciente dos riscos da empresa? Ningum salvar

    um nufrago sem expor-se ao chicote das ondas. Para ajudar Taciano,mergulhar-te-s nos perigos em que ele se encontra.

    Sei disso atalhou Varro, decidido, prosseguindo em tom de splica ;auxilia-me a pretenso, em nome de nossa velha amizade. Procurarei servir aoEvangelho com todas as minhas foras, aceitarei todos os sacrifcios, comereio po de fel embebido em suor e pranto; contudo, rogo permisso paraconvocar meu filho ao trabalho do Cristo, por todos os recursos que estiveremao meu alcance... Certo, o caminho estar juncado de obstculos, entretanto,com o amparo do Senhor e com o auxlio dos amigos, conto vencer.

    O respeitvel mentor, francamente compadecido, como quem nodesejava delongar-se na conversao de ordem pessoal, indagou:

    Quanto tempo consideras imprescindvel ao cometimento? Ouso colocar a resposta em teu prprio critrio. Pois bem concluiu o companheiro generoso , endosso-te a deciso,

    confiantemente. Concedo-te vinte lustros para o trabalho a realizar. Creio queum sculo bastar. Determinaremos medidas para que sejas sustentado nanova roupagem de carne. Teus servios causa do Evangelho serocreditados em Esfera Superior e, quanto ao mrito ou demrito de Taciano, frente de tua renunciao, admito que o assunto ser privativo de tua prpriaresponsabilidade.

    Instado por amigos, na liquidao de outros problemas, Cldio lanou-lhecompassivo olhar e finalizou:

    No te esqueas de que, pela orao, continuaremos juntos. Aindamesmo sob o pesado vu do esquecimento na luta fsica, ouviremos teus

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    apelos, amparando-te com o nosso esforo assistencial. Vai em paz, quandoquiseres, e que Jesus te abenoe.

    Varro dirigiu-lhe comovedoras palavras de reconhecimento, reafirmou aspromessas que formulara e ausentou-se, cismarento, sem saber ao certo queestranhas emoes lhe povoavam a alma, entre raios de alegria e dardos de

    amargura.Em esplndido crepsculo, enquanto o Sol, como um braseiro, tombava

    para os lados de stia, o Esprito de Quinto Varro, solitrio e pensativo, chegou Ponte Cstio, demorando-se na contemplao da corrente do Tibre, comoque detido por obcecantes recordaes.

    Brisas suaves deslizavam cantando, qual se fssem ecos isolados demelodias ocultas no cu escampo.

    Roma engalanara-se para celebrar as vitrias de Sptimo Severo sobre osseus temveis competidores. Pescnio Nger, depois de trplice derrota, fracolhido pelas foras imperiais e decapitado, s margens do Eufrates, e Albino,o escolhido das legies da Bretanha, seria vencido nas Glias, matando-se emdesespero.

    Diversos dias de festa comemoravam a glria brilhante do imperadorafricano, mas, por solicitao dos augustais, o trmino das solenidades estavamarcado para a noite prxima, no grande anfiteatro, com todas as pompas dotriunfo.

    Mostrando fisionomia expectante e entristecida, Varro atravessou opequeno territrio da ilha do Tibre e, ganhando o Templo da Fortuna, observoua multido dos grupos esparsos de povo, a se adensarem na praa, em direoao soberbo edifcio.

    As liteiras de altos dignitrios da Corte, cercadas de escravos, dispersavampequenas assemblias de cantores e danarinos. Bigas faustosas e carrosadornados varavam por entre a turba, conduzindo tribunos jovens e damaspatrcias de famlias tradicionais. Marinheiros e soldados querelavam comvendedores de refrigerantes e frutas, enquanto a onda popular crescia sempre.

    Gladiadores de corpo descomunal chegavam sorridentes, cortejados por jogadores inveterados da arena.

    E, enquanto os sons de alades e atabales se misturavam ao distanterugido das feras enjauladas para o soberbo espetculo, a glria de Severo e osuplcio dos cristos eram os temas preferidos de todas, as palestras.

    O viandante espiritual fitava no s a multido vida de prazeres, mas

    tambm as falanges bulhentas de entidades ignorantes ou perversas quedominavam nas sombrias comemoraes.Varro tentou adiantar-se, revelando estar procura de algum, mas a

    pesada atmosfera reinante obrigou-o a recuar. Contornou o famoso anfiteatro,palmilhou as vielas que se estreitavam entre o Clio e o Palatino, atravessou aPorta Capena e atingiu o campo, dirigindo-se para os sepulcros da Via Apia.

    A noite clara descera sobre o casario romano.Milhares de vozes entoavam cnticos de jbilo, prateada claridade do luar

    em plenilnio. Eram cristos desencarnados, preparando-se para receber oscompanheiros de sacrifcio. Os mrtires supostamente mortos iam saudar osmrtires que, nessa noite, iam morrer.

    Quinto Varro uniu-se ao extenso grupo e orou, fervorosamente, suplicandoao Alto foras para a difcil empresa a que pretendia consagrar-se.

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    Preces e comentrios santificantes foram ouvidos.Depois de algumas horas, a enorme assemblia espiritual deslocou-se no

    rumo do anfiteatro.Hinos de alegria elevaram-se s alturas.No somente os mensageiros da Via pia alcanavam o anfiteatro em

    harmoniosas oraes.Enviados do Monte Vaticano e trabalhadores espirituais dos grupos depregao evanglica do Esquilino, da Via Nomentana e da Via Salria, in-cluindo representantes de outras regies romanas, penetravam o tumulturiorecinto como exrcitos de luz.

    Introduzidos na arena para os derradeiros sacrifcios, os seguidores deJesus igualmente cantavam.

    Aqui e ali, vsceras de feras mortas, de mistura com os corposhorrivelmente mutilados de gladiadores e bestirios vencidos, eram retirados pressa por guardas de servio.

    Alguns discpulos do Evangelho, notadamente os mais idosos, atados empostes de martrio recebiam setas envenenadas, incendiando-se-lhes depois oscorpos, a fim de servirem como tochas na festiva exibio, enquanto outros, demos postas, se entregavam, inermes, aos golpes de panteras e de lees daNumdia.

    Quase todos os supliciados desprendiam-se da carne, no sublimado xtaseda f, recolhidos carinhosamente pelos irmos que os esperavam em cnticosde vitria.

    Quinto Varro, no entanto, em meio da claridade intensa com que as legiesespirituais haviam desintegrado as trevas, no se mostrava interessado naexaltao dos heris.

    Relanceava o olhar pelas arquibancadas repletas, at que, por fim, sedeteve, com evidentes sinais de angstia, em lacre conjunto de Espritosturbulentos, em arrojadas libaes.

    Ansiosamente, Varro abeirou-se de um jovem que desferia estrepitosasgargalhadas e, abraando-o, com extremada ternura, sussurrava:

    Taciano, meu filho! meu filho!...O rapaz que se mergulhava na mais profunda corrente de sensaes

    inferiores no viu o benfeitor que o conchegava de encontro ao peito, mas, to-mado de repentina inquietao, silenciou de imediato, abandonando o recinto,dominado por invencvel amargura.

    O jovem no identificava a presena do venervel amigo ao seu lado,

    contudo, abraado por ele, experimentou imensa averso pela odiosa so-lenidade.Alheou-se dos companheiros e, sentindo fome de solido, afastou-se,

    rpido, devorando ruas e praas.Desejava pensar e reconsiderar, a ss, a senda por ele mesmo percorrida.Depois de longo trajeto, alcanou a Porta Pinciana, em busca de

    insulamento. Nos jardins onde se venerava a memria de Esculpio, haviasoberba esttua de Apolo, junto da qual, por vezes, gostava de meditar.

    O corpo marmreo da divindade olmpica levantava-se, magnfico,ostentando primorosa taa numa das mos, de bordos voltados para o solo,como se procurasse fecundar a terra-me.

    Num recipiente, aos ps do dolo, fumegava o incenso ali colocado pormos devotas e annimas, embalsamando o stio em aroma delicioso.

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    Atormentado por insopitvel angstia, Taciano chorava sem querer,rememorando as prprias experincias.

    Sabia-se fora do corpo fsico, mas longe de encontrar as paisagens dasnarraes de Verglio, cuja leitura lhe merecera especial ateno, vira-seincompreensivelmente atra do para as bacanais da sociedade em decadncia,

    sendo surpreendido, depois do tmulo, to somente por si prprio, com a suavelha sede de sensaes. Delirara em banquetes e jogos, sorvera o prazer emtodas as taas ao seu alcance, mas rendia-se ao tdio e ao arrependimento.Em que se resumia a vida? perguntava a si mesmo, em solilquio doloroso onde se domiciliavam os deuses de sua antiga f? Valeria a procura dafelicidade, na temporria satisfao dos sentidos humanos, depois da qual ha-via sempre larga dose de fel? Como localizar as antigas afeies no misteriosopas da morte? por que razes vagueava preso ao reino domstico, semequilbrio e sem rumo? No seria mais justo, se possvel, adquirir novo corpo erespirar entre os homens comuns? Suspirava por mais ntimo contacto com oplano da carne, em cuja penetrao poderia esquecer a si mesmo... Oh! sepudesse olvidar os enigmas torturantes da existncia, conchegando-se matria para dormir e refazer-se! meditava.

    Conhecia amigos que, depois de longas splicas ao Cu, haviamdesaparecido na direo do renascimento. No ignorava que o esprito imortalpode usar vrios corpos, entre os homens; entretanto, no se sentia com afora precisa para dominar-se e oferecer s Divindades uma prece fun-damentada no verdadeiro equilbrio moral.

    Naquele instante, porm, sentia-se mais angustiado que de outras vezes.Saudade imensa e indefinvel pungia-lhe o corao.Depois de chorar em silncio, fixou o semblante impassvel da esttua e

    suplicou: Grande Hlios! Deus de meus avs!... Compadece-te de mim! Renova-

    me o sentimento na pureza e na energia que encarnas para a nossa raa! Sepossvel, faze-me esquecer o que fui. Ampara-me e concede-me a graa deviver, de conformidade com o exemplo dos meus antepassados!...

    Com as inexprimveis reminiscncias do seu antigo lar, Taciano, inclinadopara o solo, lamentava-se, amarguradamente; mas, quando enxugou aslgrimas que lhe obscureciam a viso e tornou a fitar a imagem do deus, nomais viu o dolo primoroso e sim o Esprito de Quinto Varro, nimbado deintensa luz, a olh-lo com enternecimento e tristeza.

    O jovem quis recuar, transido de assombro, mas indefinveis emoes

    subjugavam-lhe agora todo o ser.Como que dobrado por foras misteriosas, ajoelhou-se ante a visitainesperada.

    Desejou falar, mas no conseguiu, assinalando estranha constrio nascordas vocais.

    Pranto mais intenso jorrava-lhe dos olhos.Identificou a personalidade do genitor e, esmagado por inexprimvel

    emoo, notou que Varro caminhava para ele, de afetuoso olhar encimandotriste sorriso.

    A entidade amorosa afagou-lhe a cabea atormentada e falou: Taciano, meu filho!... Que o Supremo Senhor nos abenoe a senda de

    redeno. Deixa que as lgrimas te lavem todos os escaninhos da alma!Milagrosa lixvia, o pranto purifica nossas chagas de vaidade e iluso.

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    No te julgues relegado ao abandono!...Ainda mesmo quando as nossas preces se expandam ardentes, perante os

    dolos sem alma, o corao augusto do Senhor as recolhe na misteriosaconcha do seu amor infinito, apressando o socorro s nossas necessidades.

    Tem calma e confiana, filho meu! Voltaremos experincia da carne para

    resgatar e reaprender.Nesse instante, Taciano, magnetizado pelo olhar paterno, tentou erguer-separa abra-lo ou rojar-se at o cho, a fim de Oscular-lhe os ps; no entanto,como se estivesse imobilizado por laos invisveis, no conseguiu articularqualquer movimento.

    Ouve-me! prosseguiu Varro, compadecidamente - pedes o retorno lia terrestre, entediado de ti mesmo, e recebers semelhante concesso.Estaremos novamente reunidos, na cela corprea do mundo fsico abenoada escola de nossa regenerao para a vida eterna, todavia, no maisna exaltao do orgulho e do poder.

    Nossos deuses de pedra esto mortos.Jpiter, com o seu carro de triunfo, passou para sempre. Em lugar dele,surge o Mestre da Cruz, o escultor divino da perfeio espiritual imperecvel,

    que nos toma por tutelados felizes do seu Corao.Outrora, acreditvamos que a prpura romana sobre o sangue dos

    vencidos era o smbolo de nossa felicidade racial e admitamos que os gnioscelestes deviam permanecer submetidos aos nossos caprichosos impulsos.Hoje, porm, o Crsto nos orienta o passo por estradas diversas. A Humani-dade a nossa famlia e o mundo o nosso Lar Maior, onde todos somosirmos. Diante do Cu, no h escravos nem senhores e sim criaturas ligadasentre si pela mesma origem divina.

    Os cristos que no compreendes agora so os alicerces da glria futura.Humilhados e escarnecidos, vilipendiados e mortos no sacrifcio, representam apromessa de paz e sublimao para o mundo.

    Um dia, ningum se lembrar do fausto de nossas mentirosas celebraes.A ventania que sopra dos montes gelados espalhar sobre o cho escuro acinza de nossa miservel grandeza, ento convertida em lamentao e p. Masa renncia dos homens e das mulheres que hoje se deixam imolar por umavida melhor estar cada vez mais santificada e mais viva, na fraternidade quereinar soberana!...

    Talvez reparando a profunda surpresa do jovem que o escutava, trmulo eabatido, Quinto Varro acentuou:

    Prepara-te como valoroso soldado do bem. Em breve tempo,regressaremos escola da carne. Sers para mim a estrela da manh,indicando-me a chegada do Sol de cada dia. Certo, sofrimentos cruis abater-se-o sobre ns, qual ocorre aos servidores da verdade nesta noite detormentosa flagelao. Indubitvelmente, a dor espreitar-nos- a existncia,porque a dor o selo do aperfeioamento moral no mundo... Conheceremos aseparao e a desventura, o fel e o martrio, mas o po da graa celeste entreos homens por muitos sculos ainda ser amassado no suor e nas aflies dosservidores da luz! Seguirei teus passos, maneira do co fiel, e espero que,unido ao meu corao, poders repetir, mais tarde:

    Ave, Cristo! os que vo viver para sempre te glorificam e sadam!...

    O mensageiro fz longa pausa, enquanto aves noturnas piavam,doloridamente, no arvoredo mergulhado nas sombras.

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    Roma dormia, agora, em pesada quietao.Quinto Varro inclinou-se, carinhosamente apertou o filho de encontro ao

    peito e beijou-lhe a fronte.Nesse instante, porm, talvez porque sensaes contraditrias lhe

    turvassem o campo ntimo, Taciano cerrou os olhos para interromper a corrente

    das lgrimas copiosas, mas, ao descerr-los, de novo, observou que seu paihavia desaparecido.A paisagem fizera-se inalterada.A esttua de Apolo brilhava, refletindo o luar esmaecido da madrugada.Premido de angstia, Taciano alongou os braos para a noite que lhe

    pareceu, ento, desolada e vazia, bradando, desesperado: Meu pai! meu pai!...E porque seus gritos se perdessem sem eco, no espao imenso, cansado

    e abatido estendeu-se na terra, soluando...Anos e anos se dobaram sobre estes acontecimentos...

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    2Coraes em luta

    Em sua vila adornada de rosas, no sop do Aventino, para o lado do Tibre,

    Quinto Varro, jovem patrcio romano, meditava...Regressara ao templo domstico, depois de longo trabalho na galera dafrota comercial de Oplio Vetrio, na qual desfrutava a distino do comando,para ligeiro descanso no lar, e, depois do beijo carinhoso esposa e aofilhinho, que se deliciavam brincando no triclnio, repousava agora, lendo al-gumas sentenas de Emilio Papiniano, em florido caramancho do jardim.

    Roma atravessava, no ano 217, sob pesada atmosfera de crimes einquietaes, os ltimos dias do imperador Marco Aurlio Antonino Bassiano,cognominado de Caracala (2).

    Desde a morte de Papiniano, cruelmente assassinado por ordem do Csar,desiludira-se o Imprio quanto ao novo dominador.

    Bassiano, longe de respeitar as tradies paternas, na esferagovernamental, desmandara-se em vasta conspirao de tirania contra odireito, no s alimentando a perseguio contra os grupos nazarenos, maishumildes, mas tambm contra todos

    (2) O governo de Caracala, conquanto fsse um tanto benigno para oscristos situados em posio favorvel na vida pblica, permitiu aperseguio metdica aos escravos e plebeus dedicados ao Evangelho,ento considerados inimigos da ordem poltica e social. (Nota do Autorespiritual.)

    os cidados honrados que ousassem desaprovar-lhe a conduta.Encantado com os conceitos sbios do clebre jurisconsulto, Varroconfrontava-os com os ensinamentos de Jesus, que detinha de memria, refle-tindo sobre as facilidades da converso da cultura romana aos princpios doCristianismo, desde que a boa vontade pudesse penetrar o esprito dos seuscompatriotas.

    Descendente de importante famlia, cujas razes remontavam Repblica,no obstante a grande pobreza de bens materiais em que se debatia, eraapaixonado cultor dos ideais de liberdade que invadiam o mundo.

    Doam-lhe na alma a ignorncia e a misria com que as classesprivilegiadas mantinham a multido e perdia-se em vastas cogitaes paraencontrar um ponto final aos milenrios desequilbrios da sociedade de suaptria.

    Reconhecia-se incapaz de qualquer mensagem salvadora e eficiente aopoder administrativo. No possua ouro ou soldados com que pudesse impor asopinies que lhe fervilhavam na cabea, entretanto, no ignorava que ummundo novo se formava sobre as runas do velho.

    Milhares de homens e mulheres modificavam-se mentalmente sob ainspirao do esprito renovador. A autocracia do patriciado lutava, desespera-damente, contra a reforma religiosa, mas o pensamento do Cristo, como quepairava acima da Terra, conclamando as almas a descerrarem novo caminhoao progresso espiritual, ainda mesmo custa de suor e sangue no sacrifcio.

    Abismado em reflexes, foi trazido realidade pela esposa, Cntia Jlia,que veio ter com ele, guardando nos braos o filhinho Taciano, com apenas um

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    ano de idade, a sorrir, doce e terno, como se fra um anjo arrebatado ao beroceleste.Cntia revelava nos olhos escuros a chama da vivacidade feminil, deixandoentrever, de imediato, a trama das paixes que lhe desbordavam da almainquieta. Largo peplo de nevado linho realava-lhe as formas de madona e

    menina, evocando o perfil brejeiro e lindo de alguma ninfa que se houverarepentinamente transformado em mulher, contrastando com a severaexpresso do marido, que parecia infinitamente distanciado da companheirapelas afinidades psquicas.

    Quinto Varro, no obstante muito moo, trazia a mscara fisionmica dofilsofo, habituado a permanente mergulho no oceano das idias.

    No contentamento de uma cotovia palradora, Cntia reportou-se festa delpia Sabina, a que comparecera na vspera, junto de Vetrio, que lhe fradesvelado parceiro.

    Deteve-se, entusistica, na descrio dos bailados de inveno da prpriadona da casa, que aproveitara a vocao de escravas jovens, tentando repetirpara o esposo, com harmoniosa voz, alguns trechos da msica simblica.Varro sorria, condescendente, qual se fra um pai austero e bondosoescutando as infantilidades de uma filha, e pronunciava, de quando emquando, uma ou outra frase curta de compreenso e encorajamento.

    A certa altura da conversao, fixando a esposa, como quem pretendiatocar em assunto mais srio, observou:

    Sabes, querida, que hoje noite ser possvel ouvir uma das vozesmais autorizadas do nosso movimento nas Glias?

    E talvez porque a mulher silenciasse, pensativa, continuou: Refiro-me a pio Corvino, o velho pregador de Lio (3) que se despede

    dos cristos de

    (3) No tempo da dominao de Roma, nas Glias, o nome da cidade deLio era Lugdunum. (Nota do Autor espiritual.)

    Roma. Na mocidade, foi contemporneo de talo de Prgamo, admirvel herientre os mrtires gauleses. Corvino conta mais de setenta anos, mas, segundoas impresses gerais, portador de um esprito juvenil.

    A jovem senhora esboou largo gesto de enfado e murmurou: Porque nos preocuparmos tanto com esses homens? Francamente, da

    nica vez que te acompanhei s catacumbas, voltei aflita e desanimada.

    Haver qualquer senso prtico nas divagaes que ouvimos? Porque arrostarcom os perigos de um culto ilegal para somente insistir em desvarios daimaginao?

    Com ironia e agressividade, prosseguia para o esposo triste: Acreditas possa eu conformar-me com a louca renunciao de

    mulheres, quais Sofrnia e Cornlia, que desceram do fausto patrcio para aimundcie dos crceres, ombreando com escravas e lavadeiras?

    Desferiu rumorosa gargalhada e acrescentou: Faz alguns dias, quando ainda te encontravas em viagem na Aquitnia,

    Oplio e eu conversvamos na intimidade, quando Popia Cilene veio terconosco, pedindo esmolas para as famlias vitimadas nas ltimas

    perseguies, e, vendo os meus jarros, instou comigo para abandonar o uso decosmticos. Rimo-nos fartamente da sugesto. Para atendermos aos princpios

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    de um homem que morreu na cruz dos malfeitores, vai para duzentos anos,precisaremos adotar a indigncia e vaguear no mundo, como se fssemosfantasmas? Nossos deuses no nos reservam um paraso de mendigosdiscutidores. Nossos sacerdotes guardam dignidade e compostura.

    Aps leve pausa, em que fitou o esposo sarcasticamente, aduziu:

    Alis, devo dizer-te que tenho sacrificado a Esculpio, em teu favor.Temo por tua sade. Vetrio de parecer que os cristos so dementes. Noobservas quanta modificao transparece do teu procedimento para comigo,desde o incio de tuas novas prticas? Depois de longas ausncias da famlia,no regressas na posio do marido afetuoso de antes. Em vez de tereportares nossa intimidade carinhosa, guardas o pensamento e a palavraem sucessos do culto abominvel. H tempos, afirmava Sabina que a perigosamstica de Jerusalm enfraquece os laos do amor que os numes domsticosnos legaram e dir-se-ia que esse Cristo te domina por dentro, afastando-te demim...

    Cntia, agora, de semblante conturbado, enxugava o pranto nervoso,enquanto o filhinho sorria, ingnuo, em seu regao. Grande tola! obtemperou o marido, preocupado poders admitirque te possa esquecer? onde reside o amor seno no santurio do corao?Quero-te como sempre. s tudo em minha vida...

    Mas... e a dependncia em que vivemos? clamou Cntia,descorooada a pobreza um espantalho. s empregado de Oplio eresidimos numa casa que ele nos cede por favor... Porque no te arrojares,tanto quanto meu primo, no campo dos negcios, para que tenhamos tambmnavios e escravos, palcios e chcaras? Acaso no te sentes humilhado, antea nossa posio de inferioridade?

    Quinto Varro estampou indisfarvel amargura no semblante calmo.Afagou a linda cabeleira da esposa e objetou, contrafeito:

    Porque motivo te agastares assim? no apreciars a nossa riqueza decarter? conviria o favor da riqueza sobre a desgraa de tantos? como reterescravos, quando tentamos libert-los? estimarias ver-me em transaesinconfessveis, com a perda de nossa conscincia reta?

    A esposa chorava, desagradvelmente, mas, evidenciando o propsito dealterar o rumo da conversao, Varro acentuou:

    Esqueamos as futilidades. Vamos! Ouviremos juntos a palavra deCorvino? Um carro nos conduzir noitinha...

    Para voltarmos ao lar, morrendo de fadiga? respondeu a mulher,

    derramando copiosas lgrimas. No! no irei! Estou farta. Que nos podemensinar os gauleses brbaros, cujas pitonisas lem os augrios nas vsceras,ainda quentes, de soldados mortos?

    O jovem esposo deixou transparecer nos olhos invencvel tristeza econsiderou:

    Crueldade nos gauleses? e ns? Com tantos sculos de cultura,afogamos mulheres indefesas, na corrente viciada do Tibre, assassinamoscrianas, crucificamos a mocidade e desrespeitamos a velhice, sentenciandoancies venerveis ao repasto das feras, simplesmente porque se consagrama ideais de fraternidade e trabalho com a dignificao da vida para todos.Jesus...

    Varro ia fazer uma citao evanglica, recorrendo s palavras do DivinoMestre; Cntia, porm, elevando o tom da voz, que se fz mais spera, gritou:

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    Sempre o Cristo!... sempre o Cristo!... Lembra-te de que a nossacondio social miservel... Foge punio dos deuses, rendendo culto aCsar, para que a Fortuna nos favorea. Estou doente, alquebrada... Notenho a vocao da cruz! detesto os nazarenos, que esperam o Cu entrediscusses e piolhos!...

    O moo patrcio contemplou a companheira, compadecidamente, como sedeplorasse, no ntimo, a insensatez das palavras que pronunciava, e notandoque o pequenino chorava a estender-lhe os braos, tentou acariciar a criana,observando:

    Porque tanta referncia pobreza? Nosso filhinhO no ser, por simesmo, um tesouro?

    Cntia, contudo, arrebatou-o ternura paterna e, recuando num saltoprecipitado, exclamou:

    Taciano jamais ser cristo. meu filho! Consagrei-o a Dindimene. Ame dos deuses defend-lo- contra a bruxaria e a superstio.

    Em seguida, buscou o interior apressadamente, tangida porincomPreenSivel tortura moral.Quinto Varro no tornou leitura.

    Perdido em profundas reflexes, debruou-se no muro que separava o jardim da via pblica e demorou-se na contemplao de extenso bando demeninos, que se ocupavam num jogo infantil, lanando pedrinhas sobre asguas e, de pensamento centralizado em seu pequeno Taciano, sem saberdefinir os escuros pressentimentos que lhe envolviam o peito, reparou queestranha amargura lhe tomava o corao.

    No crepsculo adiantado, sem conseguir reaviStar-se com a esposa, quese ocultara com o filhinho na cmara do casal, tomou o carro de um amigo queo conduziu at casa humilde do venervel Lisipo de Alexandria, um gregoilustre, profundamente devotado ao Evangelho, que residia em desconfortvelchoupana, a desmantelar-se na estrada de stia.

    Pequena assemblia de adeptos havia-se formado na sala simples.Com surpresa, foi informado de que as despedidas do grande cristo

    gauls no se realizariam naquela noite e, sim, na seguinte.Corvino achava-se, desse modo, disposio dos amigos para um

    entendimento familiar.No havia, porm, outro assunto mais fascinante para o grupo que as

    reminiscncias das perseguies de 177.Os tormentos dos cristoS lioneses eram narrados minuciosamente pelo

    nobre visitante.Enquanto o crculo ouvia, exttico, o ancio das Glias recordava, comprodigiosa memria, os mnimos acontecimentos. Repetia os interrogatriosefetuados, incluindo as respostas inspiradas dos mrtires. Reportava-se spreces ardentes dos companheiros da sia e da Frgia que, piedosamente,haviam socorrido as comunidades de Lio e Viena (4). Falava, entusiasmado,da imensa caridade de Vtio Epgato, o abnegado senhor que renunciara nobre posio que desfrutava, a fim de converter-se em advogado dos cristoshumildes. Inflamava-se-lhe o olhar, comentando a estranha coragem de Santo,o dicono de Viena, e o heroismo da dbil escrava Blandina, cuja f confundirao nimo dos carrascos. Pintou a alegria de Potino, o chefe da Igreja de Lio,

    cruelmente ultrajado e espancado na rua, sem uma palavra de revolta, aosnoventa anos de idade.

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    Por fim, deteve-se com misteriosa alegria, aljofrada de lgrimas, nasaventuras e tormentos de talo de Prgamo, que lhe fra o iniciador na f.

    Relacionava todos os pormenores dos suplcios a que se submetera ovenervel amigo. Lembrava-se da dilao havida no processo, em razo daconsulta do Propretor a Marco Aurlio, e demorava-se na descrio dos ltimos

    sofrimentos do grande cristo, esmurrado, chicoteado, atado cadeira de ferroincandescido, e finalmente degolado, em companhia de Alexandre, o devotadomdico frigio que, em Lio, oferecera ao Senhor admirvel testemunho de f.

    A assemblia escutava, embevecida com as referncias. Mas, porque opregador teria trabalho intensivo na noite prxima, Lisipo mandou serviralgumas tigelas de leite e fatias de po fresco e a conversao foi encerrada.

    (4) Cidade da Frana, prxima de Lio. (Nota do Autor espiritual.

    De esprito edificado pelas narrativas do velho gauls, Varro tornou a casa.Regressava mais cedo e um s pensamento lhe absorvia agora a mente:

    apaziguar a alma inquieta da companheira, propiciando-lhe calma e alegria,com a reafirmao da sua ternura e devotamento.Aproximou-se, devagarinho, no intuito de surpreend-la, afetuoso.Atravessou o pequeno trio, varou a porta semicerrada, mas, diante da sua

    cmara de repouso, estacou, intrigado.Ouviu vozes em dilogo aceso.Achava-se Oplio Vetrio em seu quarto de dormir.Tentou compreender a tempestade moral que lhe amarfanhava o destino.No supunha o homem para quem trabalhava capaz de atrair-lhe a esposa

    a semelhante procedimento.Oplio era primo de Cntia e sempre fra recebido ali como irmo. Era dez

    anos mais velho que ele, Varro, e enviuvara, desde algum tempo. Heliodora, aesposa morta, fra para Cntia uma segunda me. Deixara dois filhinhos,Helena e Caiba, gmeos infelizes, cujo nascimento ocasionara o falecimentoda genitora, e que residiam com o pai, cercados de escravos devotadssimos,em palacete magnfico, a ilustrar os brases da famlia.

    Trabalhava para Vetrio nas embarcaes e morava numa vila que lhepertencia.

    Achava-se lamentavelmente empenhado a ele, desde o casamento, pordvidas pesadas, que se propunha resgatar honestamente, com serviopessoal, respeitvel.

    Sentindo que a cabea se lhe transformara num vulco de perguntas,Varro pensava...Por que razo se entregava assim a esposa aventura menos digna? No

    era ele um companheiro leal, extremamente dedicado felicidade dela e dofilhinho? Ausentava-se comumente de Roma, guardando-nos no corao. Seas tentaes de ordem inferior lhe assediavam o esprito, durante as viagenshabituais, Cntia e Taciano lhe eram a invarivel defesa... Como ceder ssugestes da maldade, quando se acreditava o arrimo nico da mulher e doanjinho que lhe povoavam a alma de santificadas aspiraes? e porque Vetriolhe conspurcava, assim, o lar? no se sentia na condio dum amigoconvertido em devotado servidor? Quantas vezes, em portos distantes, era

    convidado ao ganho fcil e renunciava a qualquer vantagem econmica deprocedncia duvidosa, atento s responsabilidades que o ligavam ao primo de

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    sua mulher! Em quantas ocasies, constrangido pela gratido, era obrigado aesquecer possibilidades seguras de melhoria da sorte, simplesmente por notarem Opilio, no somente o patrono do seu po material, mas tambm ocompanheiro, credor do seu mais amplo reconhecimento!...

    Angustiado e abatido, considerava consigo mesmo, dentro do aflitivo

    minuto: Se Cntia amava o primo, porque desposara a ele? Se ambos haviamrecebido uma bno do Cu, com a chegada do filhinho, como repudiar oslaos conjugais, se Taciano era a sua melhor esperana de homem de bem?

    Semi-alucinado, passou a refletir contra a prpria argumentao. E seestivesse prejulgando? e se Oplio Vetrio ali estivesse em misso de auxlio,atendendo a solicitao da prpria Cntia? Era necessrio, pois, acalmar amente inquieta e ouvir com iseno de nimo.

    Colocou a destra sobre o corao opresso e escutou: Nunca te habituars aos devaneios de Varro dizia Vetrio, senhor de si

    , intil qualquer tentativa. Quem sabe? aventurou a prima, preocupada espero deixar ele,

    algum dia, a odiosa convivncia dos cristos. Nunca! exclamou o interlocutor, rindo-se, francamente no hnotcia de pessoas que voltassem inteiramente razo depois de ambientadasnessa praga. Ainda mesmo quando parecem trair os votos, com temor dasautoridades, frente de nossos deuses, voltam mais tarde ao encantamento.Tenho acompanhado vrios processos de recuperao desses loucos. Dir-se-iasofrerem temvel obsesso pelo sofrimento. Pancadas, cordas, feras, cruzes,fogueiras, degolamentos, tudo pouco para diminuir a volpia com que seentregam dor.

    Realmente, estou farta... suspirou a jovem senhora, baixando o tomde voz.

    Evidenciando a segurana dos laos afetivos que j lhe prendiam o esprito dona da casa, Oplio acentuou, decidido:

    Ainda mesmo que Varro alterasse as prprias opinies, noconseguirias modificar a nossa posio. Pertencemo-nos mtuamente. H seismeses s minha e que diferena faz?

    Sarcstico, observou: Acaso, teu marido disputa a mulher? acha-se demasiadamente

    interessado no reino dos anjos... No admito, sinceramente, esteja altura detua expectativa. Por Jpiter! Todos os meus conhecidos que se renderam mistificao nazarena, afastaram-se da vida. Varro falar-te- do paraso dos

    judeus, repleto de patriarcas imundos, em vez de conversar contigo sobre osnossos jogos, e garanto que se desejares uma excurso alegre, mais quenatural em teu gosto feminino, conduzir-te- sem dvida a algum cemitrioisolado, exigindo que te regozijes ao lado de ossos podres..

    Uma gargalhada irnica fechou-lhe a frase, mas notando, provavelmente,algum gesto inesperado na prima, prosseguiu:

    Alm disso, precisas considerar que teu marido no passa demeu cliente (5). Tem tudo e nada tem. Mas, por Serpis, no lhe vejo qualida-des para cerc-lo de favores. Sabes que te amo, Cntia! No ignoras que tequeria, em silncio, desde o primeiro instante em que te reconheci, jovem eformosa. Nunca teria preferido Heliodora, se os servios de Csar no me

    tivessem mantido na Acaia por tanto tempo! Quando te encontrei, enamoradade Varro, senti uma tormenta no corao. Fiz tudo por tua felicidade. Inclinei as

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    simpatias de minha mulher, em teu favor, cerquei-te de mimos, ofereci-te umaresidncia digna de teus dotes, para que jamais te confundisses com asmulheres miserveis, que a privao compele velhice precoce e, por ti,suportei at mesmo o esposo que te acompanha, incapaz de compreender-te ocorao! Que fars de mim, agora, vivo e triste quanto estou? Nunca

    proporcionei a Heliodora, depois de reencontrar-te, seno a estima respeitosade que se fazia credora pela virtude irrepreensvel. Nossos escravos sabemque te perteno. Mecnio, meu velho pajem, veio trazer-me a notcia de que osservos acreditavam Heliodora envenenada por mim, para que lhe tomasses olugar! E, realmente, que me mais honrada e carinhosa poderia encontrar parameus filhos? Resolve, pois. Uma palavra tua bastar.

    E meu esposo? indagou Cntia, com inexprimivel temor na voz.Houve um silncio expressivo, dentro do qual Vetrio parecia meditar,

    intencionalmente, expressando-se, logo aps: Pretendo oferecer ao teu esposo a quitao de todos os dbitos. Alm

    disso, posso ampar-lo noutros setores da vida imperial. A distncia de ns,conseguiria dar expanso aos prprios ideais.(5) Pessoa pobre, entre os antigos romanos, que se valia dos favores deum amigo rico. (Nota do autor espiritual.)

    Temo por ele. As autoridades no perdoam. Daqueles cuja intimidadedesfrutamos, vrios tm sido presos, castigados ou mortos. Aulo Macrino edois filhos foram encarcerados. Cludia Sextina, por todos os ttulos venervel,apareceu assassinada em sua chcara. Sofrnio Calvo teve os bens confis-cados e foi apedrejado no frum. Teu marido poderia dar vazo aossentimentos dele onde quisesse, menos aqui.

    Mas que seria feito de Taciano, se atingssemos uma soluo favorvel? Ora, ora aventou o interlocutor, como um homem no habituado a

    ponderar obstculos , meus filhinhos esto na idade do teu. Cresceria aolado de Helena e de Galba na melhor ambientao. No podemos esquecer,igualmente, que a minha herdade, em Lio, necessita de algum. Alsio ePontimiana, meus administradores, sempre reclamam a presena de pelomenos um dos nossos familiares. Dentro de alguns anos, o pequenino Tacianopoderia transferir-se para a Glia e assumir, em nossa propriedade, a posioque lhe compete. Viria a Roma, tanto quanto desejasse, e desenvolveria apersonalidade em ambiente diverso, sem qualquer ligao com a influncia

    paterna...Nesse ponto da conversao, Varro no mais suportou.Sentindo que um vulco de angstia lhe rebentava no peito, arrastou-se

    pelo corredor prximo, em busca do aposento onde o filhinho repousava, juntode Cirila, jovem escrava de que Cntia se fazia acompanhar.

    Ajoelhou-se, ante o bero adornado, e, ouvindo a abafada respirao domenino, deu campo largo s prprias emoes.

    Como um homem que se visse arremessado a fundo abismo, dummomento para outro, sem encontrar, de pronto, qualquer base firme para sus-ter-se, no conseguiu, por alguns minutos, conciliar os prprios pensamentos.

    Recorreu prece, a fim de apaziguar-se e, ento, passou a refletir.

    Contemplou a fisionomia calma da criana, atravs do espesso vu daslgrimas, e indagou a si mesmo para onde iria? como resolver o delicado

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    problema criado pela mulher?No desconhecia, agora, a crueldade de Oplio. Sabia-o detentor das

    atenes de Csar que, segundo a verso popular, lhe utilizara a cooperaono assassnio de Geta, pelo que recebera enorme patrimnio de terras na Gliadistante e, naquele momento, no duvidava de que ele houvesse facilitado a

    morte da abnegada Heliodora, movido de paixo por Cntia.Considerou a situao vexatria a que fra projetado e asilou o propsitode revide.

    A inolvidvel figura do Cristo, porm, assomou-lhe imaginaosuperexcitada...

    Como harmonizar a vingana com os ensinamentos da Boa Nova, que elemesmo difundia em suas viagens? como destacar o impositivo do perdo paraos outros, sem desculpar as falhas do prximo? O Mestre, cuja tutela buscara,havia esquecido os golpes de todos os ofensores, aceitando a prpria cruz...Vira muitos amigos presos e perseguidos, em nome do Celeste Benfeitor.Todos demonstravam coragem, serenidade, confiana... Conhecia o devotadopregador do Evangelho, na Via Salria, Hostlio Flvio, cujos dois filhinhoshaviam sido trucidados sob as patas de dois cavalos, conduzidosintencionalmente sobre eles por um tribuno embriagado. Ele mesmo, Varro,ajudara a recolher os despojos dos inocentes e vira que o pai, de joelhos,orara, chorando, agradecendo ao Senhor os sofrimentos com que ele e afamlia eram rudemente experimentados.

    A aflio daquela hora no seria a mo de Deus que lhe exigia umtestemunho de f?

    Mas no seria melhor perecer no anfiteatro ou ver Taciano devorado poranimais ferozes que se confiarem ambos vergonha da morte moral?

    E, perguntava em pranto mudo: como se portaria Jesus, se tivesse sidopai? Entregaria uma criana inerme a um lobo terrvel da floresta social, sem amnima reao?

    Por si, no se notava com direito a qualquer exigncia. Reconhecia-se naposio do homem comum e, por isso mesmo, pecador, com a necessidadeindisfarvel de adaptar-se virtude.

    No poderia reclamar devotamento esposa, embora perd-la lhecustasse imensa dor.

    No entanto, e o pequenino? Seria justo abandon-lo merc do crime? Deus! soluava, intimamente como lutar com um homem poderoso,

    quanto Oplio Vetrio, capaz de alterar as determinaes do prprio Csar?

    Que a mulher amada o seguisse era uma ferida que a esponja do tempo, decerto, lhe absorveria no mago da alma, contudo, como separar-se do filhinho,que era a sua razo de viver?

    Ergueu-se, maquinalmente, retirou o menino adormecido, dentre os panosde l em que descansava, e asilou a tentao de fugir.

    No seria, porm, indesculpvel temeridade expor a criana intemprie?E como situaria a companheira, no dia seguinte, frente da vida social?

    Cntia no havia pensado nele, pai carinhoso e amigo, mas poderia ele,discpulo dos ensinamentos de Jesus, vot-la ao desprezo de si mesma ou desconsiderao pblica?

    Qual se estivesse amparado por estranha fora invisvel, reps o

    pequenino no leito, e, depois de beij-lo enternecidamente, inclinou-se demora-damente sobre ele e chorou, humilde, derramando copiosas lgrimas, como se

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    vertesse o clido rodo do prprio corao na preciosa flor de sua vida.Logo aps, certificando-se de que o dilogo continuava na cmara ntima,

    regressou via pblica, buscando ar renovado para o corpo enlanguescido...Parou nas margens do Tibre, invocando memria os padecimentos de

    todas as vtimas daquelas guas misteriosas e tranquilas, que deviam ocultar

    os gemidos de inmeros injustiados da Terra. A mudez do velho rio norepresentava uma inspirao para o campo agitado de sua alma?Os raros transeuntes e os carros retardatrios no lhe notavam a presena.Dividindo o olhar entre o firmamento cintilante e as guas tranquilas,

    abismou-se em profundas indagaes que ningum poderia sondar...Ao alvorecer, tornou a casa, aptico e desorientado, e, cerrando-se num

    cubculo, entregou-se a sono pesado e sem sonhos, do qual despertou ao solavanado, pelos gritos dos escravos que transportavam material paraconstrues prximas.

    Quinto Varro procedeu higiene da manh e, procurado por Cirila e acriana, afagou o filho, entre grave e afetuoso, recebendo um recado damulher, anunciando-lhe que se ausentara, em companhia de amigas, para umafestividade religiosa no Palatino.

    Acabrunhado, afastou-se da residncia na direo da via de stia.Desejava entender-se com algum que lhe pudesse lenir a chaga ntima e,recordando a nobre figura de Corvino, propunha-se faz-lo confidente de todasas mgoas que lhe fustigavam o corao.

    Recebido por Lisipo, este informou bondoso que o ancio se ausentara,atendendo a vrios enfermos, acentuando, porm, que estaria ele noite, naVia Ardeatina.

    O anfitrio, todavia, observou tamanha palidez no visitante inesperado queo convidou a sentar-se e a servir-se de um caldo reconfortante.

    Varro aceitou, experimentando grande melhora espiritual. A paz do recintosingelo como que lhe acalmava o esprito desarvorado.

    Adivinhando-lhe os tormentos morais, o velhinho desenrolou diversaspginas consoladoras, que continham informaes sobre o heroismo dos mr-tires, como que pretendendo cicatrizar-lhe as lceras invisveis.

    O jovem ouviu, atento; leu compridos trechos das descries e, alegandoabatimento fsico, deixou-se ficar, junto de Lisipo, at mais tarde, quandoambos se dirigiram para os sepulcros num carro de velho amigo.

    Alcanaram os tmulos dentro da noite.Transpuseram a porta que um dos companheiros vigiava, atento, e

    desfilaram nas galerias, junto de numerosos irmos que seguiam, conduzindotochas, em conversaes coroadas de esperana.Os cemitrios cristos, em Roma, eram lugares de grande alegria.

    Inquietos e desalentados na vida de relao, com infinitas dificuldades para secomunicarem uns com os outros, dir-se-ia que ali, no lar dos mortos que astradies patrcias habitualmente respeitavam, os seguidores do Cristo en-contravam o clima nico, favorvel comunho de que viviam sedentos.Abraavam-se a, com indizvel ternura fraterna, cantavam jubilosos, oravamcom fervor...

    O Cristianismo de ento no se limitava aos ritos sacerdotais. Era um riode luz e f, banhando as almas, arrebanhando coraes para a jornada divina

    do ideal superior. As lgrimas no surgiam na condio de gotas de felincendiado, mas como prolas de amor e reconhecimento, nas referncias aos

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    suplcios dos companheiros sacrificados.Aqui e ali, sepulturas rseas e brancas ostentavam dsticos afetuosos, que

    no lembravam qualquer idia escura de morte. S a bondade de Deus e avida eterna mereciam exaltao.

    Varro relia com avidez as palavras que lhe eram familiares, buscando

    apoio moral para a resistncia ntima de que se reconhecia necessitado.No longe, a carinhosa amizade de algum escrevera a saudao: Festo, Jesus te abenoe. Adiante, grafara um pai devotado: Glucia,querida filha, estamos juntos. Acol, brilhava a inscrio Crescncio vive,mais alm, fulgurava outra, Popia glorificada.

    Nunca sentira Varro tamanha paz nos tmulos. Reconhecendo-se naposio de um homem expulso do prprio lar, sentia agora na multidoannima dos companheiros a sua prpria famlia. Detinha-se nos semblantesdesconhecidos, com mais simpatia e interesse, e pensava consigo mesmo quenaquela fileira de criaturas, que ansiosamente buscavam os ensinamentos doSenhor, talvez existissem mais dolorosos dramas que o dele e chagas maisprofundas a lhes sangrarem nos coraes. Sustentava Lisipo no brao robusto,como se houvera reencontrado a alegria de ser til a algum e, pelos olharesfelizes que permutavam entre si, pareciam ambos agradecer a influncia deJesus, que concedia ao velho afetuoso a graa de amparar-se num filho e aomoo infortunado a ventura de encontrar um pai a quem poderia servir.

    Em grande recinto iluminado, hinos de alegria precederam a palavra dopregador que, assomando tribuna, falou com indescritvel beleza, acerca doReino de Deus, encarecendo a necessidade de pacincia e de esperana.

    Quando terminou a enternecedora alocuo, Lisipo e Varro aproximaram-se para reconduzi-lo a casa.

    Um carro, alm dos sepulcros, aguardava-os, solcito.E na intimidade domstica, ante os dois velhinhos que o escutavam,

    surpresos, o moo patrcio, pontilhando a narrativa de lgrimas, exps o quesofria, nos recessos da vida particular, rogando a Corvino um blsamo para asferidas que lhe oprimiam o corao.

    O velho gauls f-lo sentar-se e, acariciando-lhe a cabea, como se ofizesse a um menino atormentado, indagou:

    Varro, aceitaste o Evangelho para que Jesus se transforme em teuservidor ou para que te convertas em servidor de Jesus?

    Oh! sem dvida suspirou o rapaz , se a alguma coisa aspiro nomundo ao ingresso nas fileiras dos escravos do Senhor.

    Ento, meu filho, cogitemos dos desgnios do Cristo e olvidemos nossosdesejos.E, fitando o cu pela janela humilde, deixando perceber que solicitava a

    inspirao do Alto, acrescentou: Antes de tudo, no condenes tua mulher. Quem somos ns para sondar

    o corao do prximo? poderamos, acaso, torcer o sentimento de outra alma,usando a maldade e a violncia? quem de ns estar irrepreensvel paracastigar?

    Todavia, como extinguir o mal, se no nos dispomos a combat-lo? ajuizou Varro, gravemente.

    O ancio sorriu e considerou:

    Acreditas, porm, que possamos venc-lo fora de palavras bemfeitas? Admites, porventura, que o Mestre haja descido das Alturas,

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    simplesmente para falar? Jesus viveu as prprias lies, guerreando a sombracom a luz que irradiava de si mesmo, at ao derradeiro sacrifcio. Achamo-nosnum mundo envolvido em trevas e no possuimos outras tochas para clare-lo,seno a nossa alma, que precisamos inflamar no verdadeiro amor. OEvangelho no somente uma propaganda de idias libertadoras. Acima de

    tudo, a construo dum mundo novo pela edificao moral do novo homem.At agora, a civilizao tem mantido a mulher, nossa me e nossa irm, nonivel de mercadoria vulgar. Durante milnios, dela fizemos nossa escrava,vendendo-a, explorando-a, apedrejando-a ou matando-a, sem que as leis nosconsiderem passveis de julgamento. Mas, no ser ela igualmente um serhumano? viver indene de fraquezas iguais s nossas? porque conferir-lhetratamento inferior quele que dispensamos aos cavalos, se dela recebemos abno da vida? Em todas as fases do apostolado divino, Jesus dignificou-a,santificando-lhe a misso sublime. Recordando-lhe o ensinamento, ser lcitorepetir quem de ns, em s conscincia, pode atirar a primeira pedra.

    E, fixando significativamente os dois ouvintes, acentuou: O Cristianismo, para redimir as criaturas, exige uma vanguarda deespritos decididos a executar-lhe o plano de ao. No entanto ponderou o jovem romano, algo tmido , poderemos

    negar que Cntia esteja em erro? Meu filho, quem ateia fogo ao campo da prpria vida, de certo seguir

    sob as chamas do incndio. Compadece-te dos transviados! No serosuficientemente infelizes por si mesmos?

    E meu filho? perguntou Varro com a voz embargada de pranto. Compreendo-te a aflio.E, vagueando o olhar lcido pela sala estreita, Corvino pareceu mostrar um

    fragmento do prprio corao, acrescentando: Noutro tempo, bebi no mesmo clice. Afastar-me dos filhinhos foi para

    mim a visitao de terrvel angstia. Peregrinei, dilacerado, como folharelegada ao remoinho do vento, mas acabei percebendo que os filhos so deDeus, antes de pousarem docemente em nossas mos. Entendo-te oinfortnio. Morrer mil vezes, sob qualquer gnero de tortura, padecimentomenor que esse da separao de uma flor viva que desejaramos reter aotronco do nosso destino..

    Entretanto comentou o patrcio, amargurado , no seria justodefender um inocente, reclamando para ns o direito de proteg-lo e educ-lo?

    Quem te ouviria, contudo, a voz, quando uma insignificante ordem

    imperial poder sufocar-te os gritos? E alm do mais aduziu o ancio,afetuosamente , se estamos interessados em servir ao Cristo, como impor aoutrem o fel que a luta nos constrange a sorver? A esposa poder no ter sidogenerosa para com o teu corao, mas provavelmente ser abnegada me dopequenino. No ser, pois, mais aconselhvel aguardar as determinaes doAltssimo, na graa do tempo?

    Detendo-se na dolorosa expresso fisionmica do pai desventurado,Corvino observou, depois de longa pausa:

    No te submetas ao frio do desengano, anulando os prprios recursos.A dor pode ser comparada a volumosa corrente de um rio, suscetvel deconduzir-nos felicidade na terra firme, ou de afogar-nos, quando no

    sabemos sobrenadar. Ouve-nos, O Evangelho no apenas um trilho deacesso ao jbilo celestial, depois da morte. uma luz para a nossa existncia

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    neste mundo mesmo, que devemos transformar em Reino de Deus. No terecordas da visita de Nicodemos ao Divino Mestre, quando o Senhor asseverouconvincente: importa renascer de novo?

    Ante o sinal afirmativo de Quinto Varro, o ancio continuou: Tambm sofri muito, quando, ainda jovem, me decidi ao trabalho da f.

    Repudiado por todos, fui compelido a distanciar-me das Glias, onde nasci,demorando-me por dez anos consecutivos em Alexandria, onde renovei osmeus conhecimentos. A igreja de l permanece aberta s mais amplasconsideraes, em torno do destino e do ser. As idias de Pitgoras so alimantidas num grande centro de estudos, com real proveito, e, depois de ouviratenciosamente padres ilustres e adeptos mais esclarecidos, convenci-me deque renascemos muitas vezes, na Terra, O corpo passageira vestidura denossa alma que nunca morre. O tmulo ressurreio. Tornaremos carne,tantas vezes quantas se fizerem necessrias, at que tenhamos alijado todasas impurezas do ntimo, como o metal nobre que tolera o cadinho purificador,at que arroje para longe dele a escria que o desfigura.

    Corvino fz ligeiro intervalo, como a dar oportunidade reflexo dosouvintes, e prosseguiu: Jesus no falava simplesmente ao homem que passa, mas, acima de

    tudo, ao esprito imperecvel. Em certo passo dos seus sublimes ensinamentos,adverte: melhor ser entrares na vida aleijado que, tendo duas mos, teaproveitares delas para a descida s regies inferiores. (6) Refere-se o Cristoao mundo, como escola em que procuramos o nosso prprio burilamento. Cadaqual de ns vem Terra, com os problemas de que necessita. A provao remdio salutar. A dificuldade degrau na grande subida. Nossos ante-passados, os druidas, ensinavam que nos achamos num mundo de viagens ounum campo de reiteradas experincias, a fim de que possamos alcanar, maistarde, os astros da luz divina para sermos um com Deus, nosso Pai. Criamos osofrimento, desacatando as Leis Universais e suportamo-lo para regressar harmoniosa comunho com elas. A justia perfeita. Ningum chora semnecessidade. A pedra suporta a presso do instrumento que a desgasta, a fimde brilhar, soberana. A fera conduzida priso para domesticar-se, O homemluta e padece para aprender a reaprender, aperfeioando-se cada vez mais. ATerra no o nico teatro da vida. No disse o prprio Senhor a quempretendemos servir que existem muitas moradas na Casa de Nosso Pai? Otrabalho a escada

    (6) Evangelho de Marcos, captulo 9 versculo 43. (Nota do Autorespiritual.)

    luminosa para outras esferas, onde nos reencontraremos, como pssaros que,depois de se perderem uns dos outros, sob as rajadas do inverno, sereagrupam de novo ao sol abenoado da primavera...

    Passando a mo pelos cabelos brancos, o velho acentuou: Tenho a cabea tocada pela neve do desencanto... Muitas vezes, a

    agonia me visitou a alma cheia de sonhos... Em torno de meus ps, a terra friame solicita o corpo alquebrado, mas dentro do meu corao a esperana umsol que me abrasa, revelando em suas projees resplendentes o glorioso

    caminho do futuro... Somos eternos, Varro! Amanh, reunir-nos-emos, felizes,no lar da eternidade, sem o pranto da separao ou da morte...

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    Ouvindo aquelas palavras, repletas de convico e de ternura, o moopatrcio aquietou o esprito atormentado.

    Mais alguns minutos de animadora conversao correram cleres e, algorefeito, disps-se a partir.

    Uma biga ligeira, por ele solicitada, esperava-o a reduzida distncia.

    Quando o galope dos cavalos se fundiu no grande silncio, porta dotemplo domstico, o jovem, mais tranquilo, notou que poucas estrelas aindafulguravam plidamente, enquanto o firmamento se tingia de rubro.

    Alvorejava a manh...Varro, contemplando o formoso cu romano e pedindo a Jesus lhe

    conservasse a f haurida no entendimento com o velho cristo gauls, na es-trada de stia, julgou encontrar naquela madrugada de surpreendente beleza osmbolo do novo dia que lhe marcava agora o destino.

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    3Compromisso do corao

    Dois dias sucederam-se uniformes para Quinto Varro que, aptico e

    melanclico, ouvia no lar as queixas infindveis da esposa, azorragando-lhe osprincpios com o ltego da crtica insidiosa e contundente.Embora as mgoas lhe oprimissem a alma, no deixou perceber qualquer

    sinal de desaprovao conduta de Cntia, que prosseguia ao lado de Vetrio,entre excurses e. entendimentos.

    Recebendo, porm, a recomendao de partir na direo de um porto daAcaia, no conseguiu sopitar o anseio de renovao do qual se via possudo.

    Procurou Oplio, pessoalmente, e recebido por ele, com largasdemonstraes de cavalheirismo, exps o que desejava. Sentia-se necessitadode vida nova. Pretendia abandonar o trfego martimo e consagrar-se a tarefasdiferentes, em Roma.

    Contudo, confessava, com desapontamento, os dbitos que o retinham aoservio na frota.Devia to vasta soma ao chefe da organizao que ignorava como encetar

    a mudana de caminho.Vetrio, revelando grande surpresa, buscou disfarar os verdadeiros

    pensamentos que lhe brotavam no raciocnio. Risonho e acolhedor, abeirou-sedo visitante, afirmando, peremptrio, que jamais o considerara empregado esim companheiro de trabalho, que nada lhe ficava a dever. Declaroucompreender-lhe a fadiga e justificou-lhe o propsito de reajustar-se na vidaromana.

    Corado de vergonha, Varro recebeu dele a plena quitao de todas asdvidas. Oplio no s lhe fazia semelhante concesso, como tambm secolocava disposio dele para qualquer novo empreendimento.

    Indagou delicadamente dos planos que j houvesse delineado para ofuturo, mas o esposo de Cntia, atnito com o fingimento do interlocutor, malsabia responder, alinhando monosslabos que lhe denunciavam a insegurana.

    Despediram-se, cordialmente, prometendo Oplio acompanhar-lhe atrajetria, com carinho fraternal.

    Sentindo-se profundamente desajustado, Quinto Varro dirigiu-se ao Frum,na perspectiva de encontrar algum que lhe pudesse conseguir trabalhohonrado; entretanto, a sociedade da poca parecia dividir-se entre senhorespoderosos e escravos misrrimos. No havia lugar para quem quisesse viverde servio enobrecedor. Os prprios libertos da cidade ausentavam-se pararegies distantes do Lcio, buscando renovao e independncia.

    Efetuou variadas tentativas em vo.Ningum desejava ocupar braos honestos com remunerao condigna.

    Alegava-se que os tempos corriam difceis, salientava-se a retrao dos neg-cios com a provvel queda de Bassiano dum momento para outro. Asinsanidades governamentais tocavam a termo e os partidrios de Macrino, oprefeito dos pretorianos, prometiam revolta. Vivia Roma sob regime de terror.Milhares de pessoas haviam sido mortas, em pouco mais de cinco anos, porassassinos livres que desfrutavam polpudas recompensas.

    O jovem patrcio, algo desalentado, fixava a multido que ia e vinha, napraa pblica, indiferente aos problemas que lhe torturavam a alma, quando lheapareceu Flvio Sbrio, velho soldado de duvidosa reputao, abrindo-lhe

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    braos acolhedores.Homem maduro, mas gil e manhoso, Sbrio fra ferido em servio do

    Estado, ao manter a ordem nas Glias, razo por que, agora coxo, era utilizadopor vrios nobres em expedientes secretos.

    Longe de suspeitar estivesse ele atado aos interesses do perseguidor de

    sua famlia, Varro correspondeu, afetuoso, ao gesto de fraternidade que lhe eraoferecido.Alis, aquela expresso prazenteira constitua-lhe valioso incentivo na

    posio de incerteza em que se achava, O sbito aparecimento do antigosoldado poderia ser o incio de alguma empresa feliz.

    A conversao foi encetada com xito.Depois de cumpriment-lo, o ex-legionrio atacou o assunto que o trazia,

    acentuando: Filho de Jpiter, como agradecer aos deuses o favor de encontrar-te?

    Serpis compadeceu-se de minha perna doente e guiou-me os passos.Comprometi-me a buscar-te, mas os tempos andam secos e um carro privilgio de senadores. Felizmente, porm, no foi necessrio moer os ossosna caminhada difcil.

    O moo patrcio sorria, intrigado, e antes que pudesse ensaiar qualquerpergunta, Sbrio relanceou o olhar astuto em torno, como se quisesseperscrutar o ambiente, e falou, baixando a voz:

    Meu caro Varro, sei que te desvelas por nossos compatriotasperseguidos, os cristos. Francamente, por mim, no sei como separar-me dosnumes domsticos e preferirei sempre uma festa de Apolo a qualquer reunionos cemitrios, no entanto, estou convencido de que h muita gente boa nolabirinto das catacumbas. Ignoro se frequentas o culto detestado, mas nodesconheo a tua simpatia por ele. Com sinceridade, no posso atinar com aepidemia de sofrimento voluntrio que presenciamos h tantos anos.

    Nesse ponto das consideraes, ajeitou mentirosa expresso de tristezana mscara facial e prosseguiu:

    - Apesar de minha indiferena para com O Cristianismo, aprendi com osnossos antepassados que devemos fazer o bem. Acredito haver soado oinstante de prestares assinalado servio causa desprezada. No compreendoa f nazarena, responsvel por tanta flagelao e tanta morte, contudo, apiado-me das vtimas. Por isso, filho dileto de Jpiter, no menoscabes a misso queas circunstncias te oferecem.

    Ante a muda ansiedade do interlocutor, acrescentou:

    O pretor Galo, advertido por Macrino, necessita do concurso de algumpara certo servio em Cartago. Admito que, se efetuado por ti, podertransformar-se em precioso aviso aos cristos da frica.

    Varro, mais com o propsito de colocar-se em trabalho digno que com aidia de erigir-se em salvador da comunidade, perguntou sobre a tarefa aexecutar.

    Mostrando entusiasmo bem estudado, Sbrio esclareceu que o altodignitrio chamava-o a palcio para confiar-lhe delicado negcio.

    O rapaz no vacilou.Acompanhando o experiente lidador, procurou Galo, na prpria residncia,

    em vista do carter confidencial que Sbrio imprimira conversao.

    O velho pretor, emoldurado nos mais arraigados costumes patrcios,recebeu-o, amenizando o rigor da etiqueta, e foi, sem rodeios, ao assunto,

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    depois das saudaes usuais. Varro iniciou ele, solene , conheo-te a lealdade aos

    compromissos assumidos e espero aceites importante incumbncia. Nossaslegies proclamaro o novo imperador, em breves dias, e no podemosprescindir dos patriotas irrepreensveis para auxiliar-nos a obra de reajuste

    social.O hbil poltico mordeu os lbios murchos, revelando ocultar asverdadeiras intenes que o moviam, e continuou:

    No sei se dispes de tempo adequado, de vez que no desconheoas obrigaes que te prendem frota de Vetrio...

    O jovem apressou-se em notificar-lhe o desligamento dos servioshabituais.

    Achava-se realmente na expectativa de encargos novos.O pretor sorriu, triunfante, e prosseguiu: Se me fsse possvel a ausncia de Roma, iria eu mesmo, entretanto...Diante da frase reticenciosa, Quinto Varro indagou em que lhe poderia ser

    til, ao que o magistrado ajuntou: Cartago deveria estar reduzida a cinzas, conforme o sbio conselho dovelho Cato, mas, depois do feito brilhante de Emiliano, arrasando-a, Graco fza loucura de reconstruir aquele ninho de serpentes. Duvido haja outra provnciacapaz de trazer-nos maiores aborrecimentos. Se possvel combater aqui apraga dos galileus, por l o problema cada vez mais complicado. Altos funcio-nrios, damas patrcias, autoridades e homens de inteligncia devotam-se aoCristianismo, com tamanho desleixo por nossos princpios, que chegam apromover reunies pblicas para fortalecimento do proselitismo desenfreado.No podemos, contudo, viver s cegas. Nossas providncias no podem falhar.

    Mergulhando os olhos indagadores no rapaz, como a sondar-lhe os maisntimos sentimentos, interrogou:

    Ests habilitado a conduzir determinada mensagem ao Procnsul? Perfeitamente informou Varro, decidido. Tenho uma relao de quinhentas pessoas que precisamos alijar da

    cidade. No obstante o edito de Bassiano, declarando cidados romanos todosos habitantes do mundo provincial, que passaram a desfrutar, indebitamente,direitos iguais aos nossOS, concordamos na eliminao sumria de todos osportadores da mistificao nazarena. Os principais devem responder aprocessos antes de sentenciados morte ou ao crcere, as mulheres seropoupadas, segundo a classe a que pertenam, depois de advertncia justa, e

    os plebeus sero circunscritos em servio nas galeras imperiais.O moo patrcio, esforou-se por disfarar as penOsaS impresses de quese via possudo, fazia sinaiS afirmativOs com a cabea, entendendo, por fim, oque significava a insinuao de Flvio Sbrio.

    Aceitando o convite, conseguiria salvar muitos companheiros. Poderiapenetrar Cartago, com tempo bastante para informar os perseguidOs. No lheseria difcil. Teria consigo o nome de todos os implicados. Antes de falar aoProcnsul, comunicar-se-ia com a Igreja africana.

    Um mundo de possibilidades construtivas aflorava-lhe na imaginao.O prprio Corvino talvez pudesse orient-lo na exeCUO do encargo em

    perspectiva.

    Podes viajar de hoje a dois dias? trovejou a voz de Galo, irritado coma pausa que o moo imprimira conversao.

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    Ilustre pretor respondeu Varro, polida-mente , estou pronto.Demonstrando despedi-lo com os gestos de enfado que lhe eram

    caractersticos, o magistrado concluiu: Seguirs na galera comerCial de Mximo Pratense, sob o comando de

    Hlcio Lcio. Amanh noite, entregar-te-ei a mensagem aqui mesmo e

    poders combinar qualquer medida, referente excurso, com Flvio Sbrio,que seguir na mesma embarcao, como assessor do capito, em tarefas deordem poltica junto a amigos do Prefeito, domiciliados na Numdia.

    O entendimento terminara.Em plena via pblica, Varro, reconhecido, abraou o ex-legionrio,

    marcando um encontro no Frum para o dia seguinte.Embora amargosos pressentimentos lhe ocupassem o corao, com

    respeito ao filhinho, o jovem estava satisfeito. Alcanara, conforme supunha, otrabalho desejado. No se sentia intil. Ao regressar de Cartago, certo no lhefaltariam oportunidades outras. A viagem conferir-lhe-ia meios de auxiliar osirmos na f, representando igualmente o primeiro degrau de acesso aresponsabilidades maiores.Depois de rpida permanncia no lar, dirigiu-se via de stia, ansioso porentrar em comunho com os velhos amigos.

    Anunciou a Corvino e Lisipo a deciso de partir.O ancio gauls comentou os obstculos que vinha encontrando, para

    sair de Roma e, interpelado por Varro, quanto ao porto a que se destinaria,esclareceu que lhe cabia visitar a comunidade crist de Cartago, antes detornar a Lio, em definitivo.

    O semblante do rapaz iluminou-se.Porque no seguirem juntos?

    Tinha roteiro idntico.Corvino vibrou de satisfao.O moo patrcio exps em ligeiras palavras o seu plano de comunicar-se

    com Flvio Sbrio, quanto ao novo companheiro de viagem, guardando, porm,os reais objetivos da misso que o levava frica para entendimentosposteriores com pio Corvino, quando estivessem a ss, no mar.

    No dia seguinte, quando apresentou o assunto ao velho soldado coxo,Sbrio acolheu a idia com indefinvel sorriso, acrescentando, bem humorado:

    Como no? O viajante pode ser tomado conta de um parente. Tensesse direito.

    Varro aprestou-se para a excurso de acordo com o programa previsto.

    Comunicou esposa a resoluo de alterar os rumos do prprio destino,sendo ouvido por Cntia com especial ateno. E, depois de particular en-trevista com o pretor, despediu-se dela e de Taciano, com o esprito afogadoem dolorosa emotividade.

    Levando expressiva documentao, embarcou em stia, com a almaabsorvida em angustiosas expectativas.

    Corvino reuniu-se a ele, agradecido. Com o amparo do jovem patrcio e deFlvio Sbrio, que estranhamente se desvelava na instalao dele, dispunha-se a partilhar a cmara estreita, reservada a Quinto Varro, junto ao alojamentodo capito, na popa, mas estacou no estrado, que separava o aposento dosbancos dos remadores, parecendo admirar a soberba trirreme em que

    viajariam. Contemplava os mastros magnficos, contudo, alertado por Varro,satisfeito com a possibilidade de proporcionar-lhe o formoso espetculo, o

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    velhinho respondeu: Sim, observo a largueza do cu e do mar, batidos de sol; sinto as

    baforadas do vento livre que parece cantar a glria divina da Natureza, maspenso nos escravos calejados nos remos.

    O pregador ia continuar, no entanto, Subrio, que exercia inexplicvel

    vigilncia sobre ele, percebeu o sentido evanglico do apontamento, mostroumaior preocupao no semblante carrancudo e dirigiu-se a Quinto Varro,exclamando:

    Agasalhemos teu hspede.O moo patrcio, contrariado com a interferncia, expressou o desejo de

    apresent-lo a Hlcio Lcio, mas o assessor do comandante objetou, clere: No, agora no. Hlcio est ocupado. Aguardemos um momento

    propcio.Corvino foi internado no beliche, com a sua reduzida bagagem, que se

    constitua de uma tnica surrada, uma pele de cabra e uma bolsa com do-cumentos.

    Para disfarar a desagradvel impresso deixada por Sbrio, em lhecortando abruptamente a palavra, o rapaz deixou-se ficar demoradamente juntodo ancio, escolhendo aquele minuto para estudar, em companhia dele, overdadeiro sentido de sua viagem.

    Corvino escutou-o, com visvel espanto.Conhecia os patriarcas cartagineses e os adeptos mais destacados da

    importante Igreja africana.Varro deu-lhe a conhecer o nome das pessoas indicadas na relao do

    pretor, que o valoroso missionrio identificou, em grande parte.Trocaram impresses quanto poca perigosa que vinham atravessando

    e assentaram providncias, como velhos amigos, para os dias mais escuros doporvir, caso as tempestades polticas no fossem amainadas.

    O ancio das Glias falou detidamente sobre a igreja de Lio.Propunha-se, ali, consolidar o vasto movimento de assistncia social, em

    nome do Cristo.Os proslitos no admitiam a f inoperante. A igreja, no parecer deles,

    devia enriquecer-se de obras prticas, maneira de fonte incessante deservios redentores.

    Recebiam, frequentemente, a visita de confrades da sia e da Frgia, dosquais obtinham instrues diretas para a materializao dos ideais evanglicos,e aceitavam a Boa Nova, no somente como senda de esperana para o Cu,

    mas tambm como plano de trabalho ativo no aperfeioamento do mundo.E assim, de considerao a considerao e de apontamento aapontamento, permaneceram, ambos, absortos e felizes, estruturando projetose avivando a chama rsea dos sonhos.

    Quando o navio se ps em movimento, pio Corvino sorriu para ocompanheiro, como se fra uma criana viajando para uma festa.

    A princpio, ouviram as pancadas rtmicas dos martelos que controlavam aginstica dos remadores, mas, em seguida, o vento comeou a sibilarfortemente.

    Varro ausentou-se, prometendo buscar o amigo a fim de apresent-lo aocapito; mais tarde, entretanto, Corvino pediu-lhe fsse adiada a visita para o

    dia seguinte, asseverando que pretendia orar e descansar.O jovem afastou-se na direo da proa, onde passou a entender-se com

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    alguns marinheiros. Tentou avistar-se com o comandante, mas Hlcio Lcio,em companhia de Flvio Sbrio e de mais dois patrcios destacados, trocavaidias com eles, em mesa distante, conversando animadamente.

    Anoitecera de todo.Temendo a obrigao de sorver bebidas fortes, Varro refugiara-se em si

    mesmo.Procurou a cmara em que se alojara, de modo a oferecer algum alimentoao velho companheiro, mas Corvino parecia dormir tranqilamente.

    Vendo que Hlcio Lcio e os amigos prosseguiam bebendo e jogandoruidosamente, a distncia, o jovem patrcio subiu proa e buscou solitriorecanto para dar largos vos ao pensamento.

    Sentia sede de meditao e prece e suspirava por alguns minutos desilncio, nos quais, a ss consigo, pudesse rememorar os sucessos dos lti-mos dias.

    Contemplou as guas que a ventania cantante encrespava e deixou que asrajadas refrescantes lhe acariciassem os cabelos soltos, com a idia de que osbalsmicos fludos da Natureza lhe adoariam as inquietaes da cabeaatormentada.

    Fascinado pela calma noturna, fitou a Lua crescente que se elevava nocu e vagueou o olhar pelas constelaes faiscantes.

    Que misterioso poder comanda a existncia dos homens! pensava emsolilquio triste.

    Alguns dias antes, estava longe de supor-se na aventura de uma viagemcomo aquela.

    Acreditava-se num roteiro seguro de felicidade domstica, amparado pelomais amplo respeito social. Entretanto, notava o destino em francatransformao. Onde estariam Cntia e Taciano naquela hora? por que motivoa conduta da mulher lhe alterara daquele modo a vida?

    Sem a idia do Cristo no corao, no contaria com maiores dificuldadespara resolver os problemas que lhe atormentavam o ntimo, contudo,conhecera o Evangelho e no ignorava os testemunhos que lhe cabiamobilizar. Se pudesse sobrepor-se influncia de Oplio... No entanto, noseria lcito nutrir qualquer iluso. Possua parentes abastados em Roma que seincumbiriam da manuteno do filhinho, at que pudesse enfrentar assurpresas da sorte, com finanas mais firmes; todavia, na condio de adeptodo Cristianismo, no seria justo impor Cntia o suplcio moral de que se viaobjeto.

    Detendo-se na viso da noite magnfica, orou fervorosamente, implorandoa Jesus lhe aliviasse o esprito dilacerado.Lembrava amigos presos e perseguidos por amor f sublime a que se

    dedicavam, arrimando-se nos exemplos de humildade da qual se faziampadro vivo, e rogava ao Benfeitor Celeste no lhe permitisse a queda emdesesperos inteis.

    Quanto tempo passou assim, consigo mesmo, na solido?Varro no pensava nisso, at que algum lhe bateu nos ombros,

    arrancando-lhe os ouvidos da assoviada melopeia do vento.Era Sbrio, que parecia conter a respirao. falando-lhe, desajeitado: Escolhido dos deuses, creio haver chegado o instante de nos

    entendermos francamente.Havia naquelas palavras algo estranho, cuja significao Varro buscou

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    debalde.O corao bateu-lhe descompassado, no peito. Aquela fisionomia plida

    do companheiro habitualmente to cnico denunciava algum doloroso acon-tecimento, contudo, no se sentiu suficientemente corajoso para indagar.

    H muitos anos prosseguiu o soldado , recebi de teu pai um favor

    que jamais conseguirei esquecer. Salvou-me a vida na Ilria e nunca pudeajud-lo em parte alguma.Prometi, porm, minha denegrida conscincia o resgate dessa dvida e

    admito que hoje posso atender ao compromisso que o tempo no conseguiuapagar...

    Mergulhando os olhos felinos no semblante torturado do rapaz, continuou: Acreditas que o pretor tenha solicitado a tua cooperao por julgar-te

    bastante maduro? admites que Hlcio Lcio ceder-te-ia um lugar ao lado dosseus prprios alojamentos, por achar-te simptico? Filho de Jpiter, s maisavisado. Oplio Vetrio tramou com eles a tua morte. O teu destaque social nolhe ensejava uma arbitrariedade em Roma, onde, alis, espera conquistar-te amulher. Lastimo-te a mocidade cercada de to poderosos inimigos. Hlcioguarda instrues para atirar o teu cadver, ainda hoje, ao seio das guas.

    Algum foi indicado para roubar-te a vida. Para a sociedade romana,deves desaparecer, nesta noite, para sempre..

    Escutando semelhantes palavras, Quinto Varro fz-se lvido.Imaginou-se frente dos derradeiros instantes no mundo.Quis falar, mas no conseguiu. Intensa emoo constringia-lhe a garganta.Observando a expresso indefinvel do olhar de Sbrio, presumiu que o

    assessor do comando vinha exigir-lhe a vida.Porque a pausa se anunciasse mais longa, reuniu todas as foras que lhe

    restavam e perguntou:- Que queres de mim? Quero salvar-te informou o soldado com ironia.E, depois de certificar-se da ausncia de outros ouvidos na sombra,

    ajuntou: Mas preciso salvar a mim tambm. Devo ajudar-te, sem esquecer-me...Segredando quase, acentuou: Uma vida, por vezes, pede outra. Esse velho que te acompanha meu

    conhecido. um macrbio gauls, fatigado de viver. Sei que arengou nascatacumbas, pedindo esmolas aos parvos... Certo, dominou-te com mgicas,no intuito de ganhar um prmio de viagem a Cartago. A peregrinao dele,

    porm, ser mais longa. Deixei que embarcasse, em nossa companhia,propositadamente. Era a nica soluo para o meu enigma. Como defender atua cabea sem comprometer a minha? pio Corvino...

    O moo patrcio ouvia a confidncia, trmulo de pavor, mas, no instanteem que o nome do amigo era pronunciado, fz um esforo supremo e inquiriu:

    Que ousas insinuar?Flvio Sbrio, entretanto, era demasiado frio para empolgar-se de

    compaixo. Embora desapontado com o sofrimento moral que impunha ao in-terlocutor, sorriu mordaz e aclarou:

    pio Corvino morrer em teu lugar. No! isso no! clamou Varro, sem foras para enxugar o suor da

    fronte.Fz meno de seguir at popa, apressadamente, mas Sbrio deteve-o,

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    murmurando: tarde. Algum j manejou um punhal.Varro, qual se fra ferido de morte, sentiu-se baquear.Reuniu, contudo, todas as energias que lhe restavam e ensaiou o impulso

    de arrojar-se para a cmara em que se instalara; todavia, o assessor conteve-

    o, de um salto, advertindo: Cuidado! Hlcio pode observar-te. possvel que o ancio esteja morto,mas, se pretendes ouvir-lhe qualquer adeus, segue, cautelosamente...Entreterei o comandante e os amigos, por mais algum tempo, e procurar-te-eino aposento, antes de conduzir Lcio at l.

    Nesse p