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Emmanuel Kant Razão, liberdade, lógica e ética 1

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Emmanuel Kant

Razão, liberdade, lógica e ética

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

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Cadernos IHU em formaçãoAno 1 – Nº 2 – 2005

ISSN 1807-7862

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Revisão – Língua PortuguesaMardilê Friedrich Fabre

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Sumário

ApresentaçãoPor Adriano Naves de Brito................................................................................................... 4

Emmanuel KantBiografia ............................................................................................................................... 8

A Herança de Kant: A vinculação radical entre razão, liberdade e éticaEntrevista com Manfredo Araújo de Oliveira ......................................................................... 10

Kant: um investigador aberto a todas as possibilidadesEntrevista com Guido Antônio de Almeida............................................................................ 13

A pergunta de Kant ao PT: “Estamos construindo instituições em que soberanias popula-

res estão articuladas com os direitos humanos?”Entrevista com Ricardo Terra ................................................................................................ 17

Uma ética motivada pelo desejo de realização da humanidadeEntrevista com Valério Rohden ............................................................................................. 21

Lógica e Metafísica em Kant e NietzscheEntrevista com Rogério Vaz Trapp ........................................................................................ 23

Kant entre os sentimentos, a razão e a barbáriePor Adriano Naves de Brito.................................................................................................. 25

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Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reú-

ne, num caderno, entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados no Boletim IHU On-Line.

Deste modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, em torno de temas considerados

de fronteira, relacionados com a ética, trabalho, teologia pública, filosofia, política, economia, literatura,

movimentos sociais, etc. que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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Apresentação

O que há de contemporâneo em Kant?

Em 2004, o mundo acadêmico comemorouo bicentenário da morte de Emmanuel Kant. Aforça do pensamento kantiano, atestada por suaduradoura e vasta influência em diversas áreasdas ciências humanas, teria sido justificativa sufi-ciente para se ter adornado a data com honrariase celebrações. As cerimônias que a data ensejouforam muitas, em diversos países e de modo al-gum circunscritas ao ano que passou. Seguimos,na filosofia, sob a égide das homenagens a Kant.Uma das mais significativas ocorrerá no Brasil emsetembro deste ano, como nos dá conta ValérioRohden, presidente da Sociedade Kant Brasileira,em entrevista neste número dos Cadernos IHUem formação. No período, o país receberá, nocampus da USP, o X Congresso Kant Internacional,reunião de schollars de todo o mundo que debate-rão as entranhas da filosofia kantiana, mas terãotambém a tarefa de mostrar que ela pode fornecera nós, homens do mundo contemporâneo, respostaspara os complexos problemas que nos desafiam.

Pode Kant, filósofo cuja produção data doséculo XVIII, falar com pertinência aos homens doséculo XXI? Há algo de tão contemporâneo emKant que possa vivificar o seu pensamento para ohomem letrado deste século e não apenas para osacadêmicos de nosso tempo? Creio que a tônicadeste caderno, dedicado a Emmanuel Kant, édada por estas perguntas. A se medir a atualidadede Kant pela vastíssima e crescente bibliografiaque a sua filosofia tem merecido nas últimas déca-das, a resposta deveria ser inequivocamente posi-tiva. Contudo, essa resposta não satisfaz ao leitorque não está entre os estudiosos da filosofia, masque, em virtude de sua humana condição, se con-ta entre os que esperam dela algum esclarecimen-

to e direção. A boa filosofia deve ser capaz de, adespeito de sua profundidade, falar aos homens,responder a suas inquietações, inaugurar-lhes ho-rizontes de pensamento.

A filosofia de Kant é notadamente complexa,mas inequivocamente dirigida aos homens, à hu-manidade, e não apenas aos filósofos. Ao longodo conjunto de entrevistas que compõem este vo-lume, o leitor terá a oportunidade de conferir comque destreza e humildade o pensamento kantianopode nos falar hoje. O balanço é positivo, segun-do me parece, mas não deve impressionar nempela legítima autoridade dos que falam, nem pelagrandeza daquele sobre quem comentam. O queKant edificou com seu pensamento seria inteira-mente posto ao chão se, sobre a verdade de tudo,inclusive do próprio pensamento de Kant, cadaum não tomasse para si a máxima de pensar por simesmo; o que significa “procurar em si próprio(isto é, na sua própria razão) a suprema pedra detoque da verdade; e a máxima de pensar semprepor si mesmo é a Ilustração (Aufklärung)… Ser-vir-se de sua própria razão, quer apenas dizer que,em tudo o que se deve aceitar, se faz a si mesmoesta pergunta: será possível transformar um prin-cípio universal do uso da razão, aquele pelo qualse admite algo, ou também a regra que se seguedo que se admite?” (Kant, “O que significa orien-tar-se no pensamento”. 1786, A 330).

Assim é que o pior que se pode fazer à filoso-fia kantiana é não submetê-la ao escrutínio do juí-zo de cada um, transformando-a num dogma. Noque toca a esta devoção ao pensamento autôno-mo, sua filosofia, aliás, não é original (o que nãodiminui a relevância do ponto), mas filha de seutempo. Um tempo em que o homem tomou possede sua razão e depositou nela todas as esperançasde tornar o mundo melhor; o tempo do esclareci-

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mento. Kant é um pensador da Aufklärung – comobem aponta Rogério Trapp – e o Esclarecimento,em cujo âmbito seu pensamento está inserido,conclama os homens a usar de sua própria razão,conclama-os a pensar com liberdade e a agir auto-nomamente. Tome então, o leitor, já de partida,como adágio para a leitura deste Caderno, pensarpor si próprio, mesmo lá onde isso o leve a duvi-dar das próprias capacidades da razão, seja de co-nhecer o mundo, seja de redimir a humanidade.

A questão da contemporaneidade de Kanttem na possibilidade e alcance da razão o seuponto de inflexão. Pensador crítico, construiu suafilosofia mediante a demarcação dos limites da ra-zão, mas munido dos instrumentos que ela pró-pria para isso podia oferecer. O combate ao dog-matismo, ponto ressaltado por Guido Almeidacomo um dos mais importantes legados do filóso-fo, tem em Kant o caráter de um movimento da ra-zão sobre si mesma para limitar-se. Ora, cabe per-guntar, no uso de nossa liberdade de discernimen-to, se pode o olho que tudo vê, discernir os limitesentre isto – o que é visto – e o que lhe está fora dealcance. Ricardo Terra, em sua entrevista, aomencionar a questão da coisa em si, toca numadas pontas dessa questão, qual seja, a ponta teóri-ca. A distinção kantiana entre fenômeno e coisaem si, fundamental para a sua crítica à metafísica,esteve entre os aspectos mais disputados pelos fi-lósofos que imediatamente o sucederam e que, apartir dele, compuseram o idealismo alemão.

A filosofia kantiana é devedora da ciência deseu tempo e assim como essa ciência – a física deNewton – foi severamente abalada pelas teorias fí-sicas contemporâneas, as concepções teóricas deKant também têm de ser filtradas pelas conquistascientíficas hodiernas. De fato, as concepções kan-tianas de cunho teórico influenciam hoje muitomais pelo procedimento de investigação que eleadotou em sua monumental obra, a Crítica daRazão Pura, do que pelas conclusões a que che-gou. Em especial, a investigação filosófica media-da pela análise do juízo, seja ele teórico, práticoou estético, conta entre os elementos que, emmeio à filosofia contemporânea que, como desta-ca Manfredo de Oliveira, deu uma virada lingüísti-ca, garantem a Kant uma atualidade inegável. A

idéia de usar a linguagem como meio de investi-gação das faculdades mentais do homem, e, por-tanto, como meio para a razão avaliar-se a si mes-ma, embora devedora em sua gênese do empiris-mo inglês, foi conduzida por Kant com tal geniali-dade, no cruzamento que faz com o racionalismo,que praticamente não há contemporaneamenteposição filosófica alguma que não tope, em algu-ma altura, com posições kantianas. Nesse aspec-to, ele se situa num cruzamento de posições fun-damentais e por isso estudar seu pensamento teó-rico é decisivo para qualquer pensador de hoje,sob pena de ele navegar sem saber de que portopartiu sua nave.

Mas também na ponta prática, o problemados limites da razão se coloca. Afinal, pode o ho-mem guiar-se moralmente apenas pela razão? Asentrevistas deste caderno deixam entrever clara-mente que dentre as heranças mais vivas de Kantpara o mundo ocidental está a sua filosofia moral,se não por seu apelo racional, então por sua filia-ção à tradição cristã. Ora, também aqui, no cam-po prático, a filosofia kantiana denuncia sua ori-gem histórica. Mas ao contrário do que se passacom sua filosofia teórica, o que de Kant é atual namoral é tanto o seu procedimento de análise efundamentação do fenômeno, quanto o conteúdode sua doutrina. Se por um lado, o racionalismokantiano permite a generalização do conteúdomoral de suas reflexões, este conteúdo condizcom a intuição ordinária sobre o valor moral dasações, qual seja, que tal valor está justamente lápara onde as nossas humanas inclinações sensí-veis não nos conduzem naturalmente. O valor, emoutros termos, está onde o desejo não está, maslá, para onde a razão, sozinha, dita que nossaação deva dirigir-se.

O rigorismo da moral kantiana, presente naidéia de que uma ação será boa somente se moti-vada apenas pelo dever, tem sido, desde Scho-penhauer, duramente criticado. Pode o homemguiar-se no agir apenas pela razão? Pode a razãoser prática, quer dizer, determinar por si mesma aação humana? Há algo como o interesse da liber-dade pela razão? Não é o caso de tentar aquiuma resposta a estas questões, mas posso, pelomenos, desdobrar o problema em uma perspecti-

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va que situe melhor, assim como o vejo, o fato deKant tomar a razão como eixo da moral. Numsentido que ainda precisa ficar claro, Kant nãotem nenhuma pretensão de reformador moral.Ao contrário, a moralidade, tal como a encon-tramos no mundo, está bem assim como é.Erram, pois, os críticos de Kant que o julgamcomo o pensador de uma moral impossível parao comum dos mortais. Nada pode estar maisdistante da filosofia moral kantiana, e isso mes-mo que talvez nunca tenha havido no mundo –quiçá à exceção de Cristo – uma ação legitima-mente moral.

O interesse pela concordância do conheci-mento prático que a filosofia crítica pode auferircom as intuições vulgares a respeito da moral éuma constante fundamental nos escritos práticosde Kant. Na verdade, o que esses escritos queremfundar são justamente as sadias intuições moraisque qualquer um, mesmo os menos dotados decapacidades intelectuais, tem. Escreverá ele noprefácio à Fundamentação: “… a razão humanano campo moral, mesmo no caso do mais vulgarentendimento, pode ser facilmente levada a umalto grau de justeza e desenvolvimento …” (GMS,BA XIV). Por isso mesmo, considera ele, a tarefade escrever uma crítica da razão pura em seu usoprático é muito menos necessária que a crítica deseu uso teórico (GMS, BA XIV).

Mas como compatibilizar esta crença na ca-pacidade de discernimento prático do senso co-mum com o conhecido ceticismo kantiano quantoà pureza dos motivos do agir humano? Ora, no to-cante a isso, a desconfiança é tão kantiana quantoa de qualquer homem entre os homens, e disso dáprova a severidade dos juízos de cada um sobre ovalor de suas próprias ações e das ações dos ou-tros. Se o discernimento prático é moeda comumentre os homens, o valor moral é aí jóia rara equando se trata de aquilatar sua legitimidade, sãoeles ourives cuidadosos contra a especiosidadedos caracteres.

É evidente, então, que aquilo que Kant alme-ja: que sua filosofia prática concorde com a co-mum moralidade não são as ações dos homens,mas o juízo que eles delas fazem. Se é de todo in-certo que alguma ação tenha sido levada a termo

motivada unicamente pelo mandamento da von-tade conforme a lei moral, quer dizer, pela puradeterminação da Razão, é certamente segundoela “que cada um julga se as ações são boas oumás” (KprV, 122). E se é verdade que, por maiorque seja a virtude do agente, sempre haverá apossibilidade de que sua ação tenha sido motiva-da por um móbil sensível e a ele mesmo, o agente,completamente desconhecido e imperceptível; éigualmente certo que onde termina a influência dasensibilidade, aí começa “o valor do caráter, queé, moralmente sem qualquer comparação, o maisalto, e que consiste em fazer o bem, não por incli-nação, mas por dever” (GMS, BA 12). Por isso, temmais valor a filantropia do avarento que a genero-sidade do despojado; a benevolência do bruto,que a afabilidade do gentil.

Portanto, aquilo do que a filosofia moral kan-tiana dá conta é do valor absoluto que ele vê pre-sente nos juízos morais que os homens fazem so-bre as ações suas e dos outros. Se uma filosofia re-cusa as conclusões kantianas e o rigorismo que elevincula à noção de dever, tem ainda de explicar aorigem do valor assim como ele se apresenta nosjuízos morais humanos, quer dizer, um valor quecresce na medida inversa que diminui a influênciadas inclinações sobre o agir.

É claro que a pergunta pela felicidade eclodecom toda a força quando confrontamos o rigor dodever com as reais circunstâncias da vida huma-na. Para esta vida e as comunidades e estadosque nela os homens edificam, Kant tem, em sua fi-losofia, um lugar preciso e jamais esquecido. Sesuas reflexões fundantes terminam por levá-lopara as esferas mais altas e transcendentais dopensamento, os pés da filosofia kantiana nuncaabandonaram o solo do mundo. E mesmo queseus fundamentos, expostos nas obras críticas,possam falhar, ainda assim haverá muito a apren-der da descrição kantiana do mundo humano, en-crustada em sua filosofia política, do direito, da re-ligião e, é claro, em sua antropologia. Tudo issocompõe um riquíssimo corolário descritivo do ho-mem ao qual se soma um conjunto harmônico desabedoria prudencial e que garantem à sua obrapelo menos a universalidade estética da boaliteratura.

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No espírito de uma reflexão que chama a fi-losofia de Kant para pensar o tempo presente apartir de sua descrição do homem, deixo ao lei-tor, antes de entregá-lo ao variegado cardápiodas entrevistas e textos reunidos neste volume

dos Cadernos IHU em formação dedicado aKant, o texto que segue esta apresentação. A to-dos uma agradável e frutífera leitura.

Dr. Adriano Naves de Brito

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Emmanuel Kant

Reproduzimos uma biografia de EmmanuelKant, escrita por Rubem Q. Cobra, disponível na pá-gina de Filosofia Moderna Geocities: http://www.an-troposmoderno.com/biografias/Kant.html

Emmanuel Kant (1724-1804), filósofo ale-mão, em geral considerado o pensador mais influ-ente dos tempos modernos, nasceu em Königs-berg, atual Kaliningrado, em 22 de abril de 1724.Não casou nem teve filhos, falecendo no dia 12 defevereiro de 1804 aos 80 anos. Kaliningrado si-tua-se onde foi a Prússia Oriental, um território nolitoral sul do Báltico, parte da Rússia desde 1946.

Kant era filho de um artesão que trabalhavacouro e fabricava selas. Sua mãe, de origem ale-mã, embora não tivesse estudo, foi mulher ad-mirada pelo seu caráter e pela sua inteligêncianatural. Seus pais eram do ramo pietista da Igre-ja Luterana, uma subdenominação que requeriados fiéis vida simples e integral obediência à leimoral.

A influência de seu pastor permitiu a Kant, oquarto de 11 crianças, porém o mais velho sobre-vivente, entrar na escola pietista onde estudou,por oito anos e meio, principalmente os clássicoslatinos.

Em 1740, aos dezesseis anos, Kant entroupara a universidade de Königsberg onde estudouaté os 21 anos. Apesar de ter assistido a cursos deteologia e até pregado alguns sermões, ele foi atraí-do mais pela matemática e pela física. Ajudadopor um jovem professor, Martin Knutzen, que ha-via estudado Christian Wolff, um sistematizadorda filosofia racionalista, e que também era um en-tusiasta da ciência de Sir Isaac Newton, Kant co-meçou a ler os trabalhos deste físico inglês e, em1744, começou seu primeiro livro, o qual tratavade um problema relativo a forças cinéticas, Idéias

sobre a Maneira Verdadeira de Calcular asForças Vivas.

Aos 21 anos – apesar de haver decidido se-guir uma carreira acadêmica –, com a morte deseu pai em 1746 e o seu fracasso em obter o postode subtutor em uma das escolas ligadas à universi-dade, Kant se viu obrigado a desistir temporaria-mente de seu projeto e a buscar meios imediatosde se manter. Foi compelido a suspender os estu-dos universitários e ganhar a vida como tutor par-ticular. Durante nove anos, manteve essa ocupa-ção, atividade em que foi bem sucedido e que lhepermitiu conviver com a sociedade mais influentee refinada de seu tempo. Serviu a três famílias di-ferentes, tendo, nesse período, viajado à cidadepróxima de Arnsdorf. Em 1755, ele retornou a Kö-nigsberg e lá passou o restante de sua vida.

Em 1755, ajudado por um amigo, Kant pôdecompletar seus estudos na universidade. Obteveseu doutorado e assumiu a posição de livre do-cente (Privatdozent, professor sem salário).

A seguir, por 15 anos, ele ensinou na univer-sidade, primeiro dando aulas de Ciência e Mate-mática, mas gradualmente ampliando seu campode interesse a quase todos os ramos da filosofia. AFísica newtoniana o impressionou, não apenaspelas suas implicações filosóficas, mas tambémpelo seu conteúdo científico. Comoveram-noigualmente as asserções leibnizianas, as quais criti-caria no futuro. A fama de Kant como professor eescritor aumentou constantemente durante seus15 anos como livre-docente. Cedo ele já leciona-va sobre muitos assuntos, além de física e mate-mática, incluindo lógica, metafísica e filosofia mo-ral. Até mesmo ensinou sobre fogos de artifício efortificações e cada verão, por 30 anos, deu umcurso popular sobre Geografia Física. Ele tevegrande sucesso como professor: seu estilo, que di-

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feria grandemente daquele de seus livros, era hu-morístico e vivo, vivificados por muitos exemplosde suas leituras em literatura inglesa e francesa, vi-agem e geografia, ciência e filosofia.

Embora as aulas e os trabalhos escritos nes-ses 15 anos como livre-docente estabeleceram suareputação como um filósofo original, ele não rece-beu uma cadeira na universidade até 1770, quan-do se tornou professor de Lógica e Metafísica,uma posição que manteve até 1797, continuan-do, nesses 27 anos, a atrair grande número de es-tudantes para Königsberg.

O ensino não-ortodoxo de religião de Kant,que era baseado no racionalismo mais que na reve-lação, colocaram-no em conflito com o governo daPrússia e, em 1792, ele foi proibido pelo rei Frederi-co Guilherme II de ensinar ou escrever sobre temasreligiosos. Kant obedeceu a essa ordem por cincoanos, até a morte do rei e então se sentiu liberadodessa proibição. Em 1798, o ano que se seguiu àsua aposentadoria da universidade, ele publicou umresumo de seus pontos de vista religiosos.

Com pouco mais de 1,50 m de altura, com opeito deformado e sofrendo de saúde precária,Kant manteve através da sua vida um severo regi-me. Era um sistema cumprido com tal regularida-de que as pessoas diziam poder acertar os relógiosde acordo com sua caminhada diária ao longo darua, que depois recebeu o nome, em sua homena-gem, de “Caminhada do Filósofo”, até que a ida-de o impediu. Sabe-se que ele somente deixou deaparecer regularmente na ocasião em que o Emi-le, de Rousseau o fascinou tanto que ele ficou emcasa por vários dias para poder lê-lo.

Após um declínio gradual, que foi muito do-loroso para seus amigos, tanto quanto para elepróprio, Kant morreu em Königsberg, em 12 de fe-vereiro de 1804. Suas últimas palavras foram:“Isto é bom”. Segundo a revista Der Spiegel,29-12-03, ele sofreu, no final da vida, de uma do-ença semelhante a Alzheimer e não conhecia maisos mais próximos dele.

A Crítica da Razão pura foi publicada em1781 e a Crítica da Razão prática, em 1788.

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A herança de Kant:A vinculação radical entre razão, liberdade e ética

Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira

Contribuindo com suas reflexões sobre a im-portância do pensamento de Kant, o professorManfredo Araújo de Oliveira, da Universidade Fe-deral do Ceará, Departamento de Filosofia, con-cedeu ao IHU On-Line a entrevista que publica-mos a seguir. Graduado em Filosofia pela Facul-dade de Filosofia de Fortaleza, obteve mestradoem Teologia pela Pontifícia Universidade Grego-riana de Roma (PUG) Itália, com dissertação inti-tulada A concupiscência na teologia de Karl Rah-

ner. Cursou o doutorado em Filosofia na Universi-tät München Ludwig Maximilian, na Alemanha, esua tese teve o título Subjetividade e mediação:

estudos sobre o desenvolvimento do pensamento

transcendental em Kant, E. Husserl e H. Wagner.É autor de várias obras, entre elas Diálogos en-tre razão e fé. São Paulo: Paulinas, 2000; Desa-fios éticos da globalização. São Paulo: Pauli-nas, 2001; e Para além da fragmentação. SãoPaulo: Loyola, 2002.

IHU On-Line – Como Emmanuel Kant veriao momento pelo qual está passando a filo-sofia contemporânea?Manfredo de Oliveira – Ele certamente veriacomo um momento que apresenta traços estrutu-rais muito semelhantes a seu próprio tempo. Emprimeiro lugar, trata-se de uma filosofia que levouadiante sua crítica às pretensões metafísicas de searticular como teoria do Absoluto e a partir doAbsoluto.O pensamento contemporâneo apro-funda a idéia de que nossa consciência é finita,

que não é fundamento de si mesma, portanto,que é essencialmente contingente e limitada. Masele também estaria feliz de ver que neste contexto,a partir da reviravolta lingüística, se renova hoje,em alguns pensadores, a perspectiva nova que eleabriu para a filosofia: a da reflexão transcendentalsobre os pressupostos irrecusáveis de nosso co-nhecimento finito.

IHU On-Line – A partir da concepção de éticade Kant, quais seriam apontados como prin-cipais problemas éticos da globalização?Manfredo de Oliveira – Ele retomaria suas con-siderações de uma filosofia do “direito cosmopoli-ta”, que trata das relações dos estados nacionaisentre si. A questão subjacente para Kant é aqui aefetivação da paz. Assim como os estados nacio-nais garantem a paz internamente pelo estabeleci-mento do direito, também a paz global só pode sergarantida se pensarmos numa “república mun-dial”, isto é, no estabelecimento de normas jurídi-cas universais que possam reger, de forma racio-nal, as relações dos estados entre si. Portanto, eleestaria muito bem situado nas discussões atuaissobre um estado universal, que emergiram a partirdo novo contexto de um mundo que se globaliza.

IHU On-Line – Nos últimos dias, notíciassobre falta de ética na política têm lotadoos jornais ao ponto de chegar a se perguntarse é possível a ética na política. O filósofoJosé Arthur Gianotti disse em recente arti-

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go que é próprio do mundo da política umacerta zona de amoralidade e que é insensa-to exercer o poder beneficiando o inimigo.Como se relacionam em Kant ética, moral epolítica?Manfredo de Oliveira – Kant distinguiu na esfe-ra da razão prática diferentes dimensões de nor-matividade, ou diferentes níveis de legislação que,em última instância, dizem respeito às diversas es-feras de realização do ser humano como ser livre.Isso significa que não existe dimensão da práxishumana que escape à normatividade. Aqui tam-bém vale o princípio: toda autoridade provém darazão. É, contudo, muito importante a distinçãodas “diversas esferas de normatividade” que nãoestá presente na nossa discussão atual. É funda-mental a distinção entre a legislação ética que te-matiza a lei fundamental da liberdade interna e alegislação jurídica que diz respeito à lei fundamen-tal da liberdade externa, na qual se situa propria-mente a problemática da política.O princípio dodireito formula a condição de coexistência de indi-víduos livres, a condição de igual liberdade paratodos. Assim, Kant define o direito como “a somadas condições sob as quais o arbítrio de um podeser unificado com o arbítrio do outro segundouma lei universal da liberdade”. O direito é o prin-cípio da liberdade externa, o que pressupõe aidéia do ser humano como ser autônomo, portan-to, como um ser que tem direito à liberdade. Esteé o direito originário que compete ao ser humanona medida em que ele é ser humano. É a partir da-qui que se pode entender as reflexões de Kant arespeito do direito político (sua preferência éticapelo Estado de Direito em virtude do tratamentoigual a todos os cidadãos) e do direito internacio-nal (a idéia da “república mundial”).

IHU On-Line – E a ética na economia?Como Emmanuel Kant avaliaria propostascomo a Alca?Manfredo de Oliveira – Como um filósofo uni-versalista, Kant saudaria as tendências universalis-tas que hoje estão em curso na economia. Por ou-tro lado, o universalismo não pode destruir a auto-nomia dos diferentes povos. Portanto, seu univer-

salismo diz respeito às condições de possibilidadeda efetivação da liberdade na vida dos povos. Elenão aprovaria, pois, qualquer associação de po-vos, mas somente aquelas que pudessem conduzira uma efetivação da liberdade.

IHU On-Line – Qual era a compreensão dofilósofo a respeito de Deus e qual sua visãodo cristianismo?Manfredo de Oliveira – Também aqui Kant foiinovador. Ele não reconheceu qualquer prova daexistência de Deus pela razão teórica: a análise doaparato cognitivo do ser humano demonstra quetais pretensões são pura ilusão. O acesso à realida-de divina se faz por outro caminho: sua preocupa-ção fundamental, no que diz respeito à religião,consistia em encontrar uma síntese entre, de umlado, os preceitos éticos e, de outro lado, a espe-rança na imortalidade e a fé em Deus. Portanto, oacesso que temos a Deus é de ordem moral: a di-mensão moral do ser humano abre um caminhoem que Deus certamente não é demonstrável,mas pode ser postulado. No fundo, Kant assume aconcepção de Deus do Iluminismo moderno paraquem Deus é o governante moral do mundo. Oconceito de Deus é essencialmente um conceitomoral e, como tal, Deus é pensado em distancia-mento da revelação divina, das instituições religi-osas, portanto, para além das fronteiras das diver-sas religiões e confissões. Ele emerge como o Deusque une todos os homens. Neste contexto de pen-samento, a religião é essencialmente moral. Seujulgamento das religiões positivas se faz a partirdeste horizonte moral. Daí sua profunda admira-ção pelo cristianismo.

IHU On-Line – Qual é a herança mais impor-tante que o filósofo deixou à contempo-raneidade?Manfredo de Oliveira – Gostaria de sublinhar,sobretudo, suas grandes intuições na esfera da ra-zão prática: Kant recusa claramente legitimar oscritérios da ação humana em elementos que trans-cendam a autonomia do sujeito, como, por exem-plo, a tradição, a vontade de Deus, a revelação, asnecessidades humanas, etc. Em seu pensamento,

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nenhuma pretensão de validade exterior é reco-nhecida: toda autoridade tem que se legitimar pe-rante a razão. O que conta para a ética não são ossentimentos ou o sucesso da ação, mas as máxi-mas da vontade humana e sua subordinação ao

imperativo categórico, a única instância que podeorientar a ação humana. Sua tentativa de vincularradicalmente razão, liberdade e ética é certamentea herança mais importante que ele deixou para ahumanidade.

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Kant: um investigador aberto a todas as possibilidades

Entrevista com Guido Antônio de Almeida

O professor Guido Antônio de Almeida, doInstituto de Filosofia e Ciências Sociais, Departa-mento de Filosofia, da Universidade Federal doRio de Janeiro, é também estudioso e pesquisadorde Kant. Graduado em Filosofia pela Universida-de Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre emFilosofia pela Fordham University, Estados Uni-dos, o professor Guido doutorou-se em Filosofiapela Universität Freiburg (Albert- Ludwigs), emFreiburg, na Alemanha. Ele obteve seu pós-dou-torado pela Freie Universität Berlin, em Berlim, naAlemanha. É autor de Enunciados de Valor. Riode Janeiro: Cadernos Edipuc, 1979 e organiza-dor, ao lado de R. F. Landim Filho, de Filosofiada Linguagem e Lógica. São Paulo: Loyola,1981.

IHU On-Line – Qual o significado mais im-portante do bicentenário da morte de Kantpara o senhor?Guido de Almeida – O que se comemora nestebicentenário não é apenas uma figura do passadoque teria sido muito importante na época, masconservaria apenas um interesse histórico. O quenós comemoramos, no caso de Kant, é o pensa-mento de um filósofo que permanece vivo, atual.De um modo geral, isso pode ser dito de todos osclássicos da Filosofia, como Platão, Aristóteles,Santo Tomás de Aquino, Descartes, Spinosa, He-gel. São considerados clássicos, porque o que elesdizem ainda tem interesse para nós. No caso deKant, especialmente, isso é mais válido do quenunca. Kant refletiu sobre todos os temas impor-tantes da Filosofia, o conhecimento e a ciência, amoral e a busca da felicidade, a experiência estéti-

ca e a arte. Sobre tudo isso, elaborou conceitos eidéias que merecem ser levados em conta e aindaservem de ponto de partida, ou pelo menos deponto de referência, para qualquer discussão des-ses temas. O que se comemora, pois, no ano dobicentenário da morte de Kant, é a atualidade doseu pensamento, o fato de que o seu pensamentocontiua vivo. Talvez se possa dizer que, entre ospensadores do passado, ele é um dos mais impor-tantes, senão o mais importante. Com efeito, umaparte enorme da vastíssima produção filosófica nomundo atual é dedicada ao aprofundamento detemas kantianos ou envolve a discussão dessestemas.

IHU On-Line – O que os conceitos kantia-nos de liberdade e moralidade poderiam in-terpelar à sociedade contemporânea?Guido de Almeida – Uma característica impor-tante da sociedade contemporânea é o papel quea ciência desempenha em todos os setores da suavida. Para, praticamente, tudo, em nossa vida,podemos buscar um especialista que nos ajude atomar uma ou outra decisão. Não há nada de malnisso, mas com essa importância crescente, essapresença avassaladora da ciência na sociedadecontemporânea, vai também uma certa ideologiapositivista, que pretende ver, na ciência, o únicopadrão possível, não apenas do conhecimento,mas do saber em geral. No entanto, uma das coi-sas importantes que Kant mostrou é que nós pen-samos as nossas ações e as nossas decisões combase em princípios que são radicalmente diferen-tes dos princípios do conhecimento e da ciênciada natureza; numa palavra, que o nosso saber

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prático se fundamenta em princípios e suposiçõesque são essencialmente diversos daqueles em quese alicerça a investigação científica da natureza.Assim, enquanto as explicações científicas se ba-seiam num conceito da causalidade natural queimplica o determinismo de tudo o que acontece,não podemos deixar de pensar nossas açõescomo livres, na medida em que fazemos juízosmorais sobre elas. Para tornar isso claro, pense,por exemplo, no seguinte: se um relógio marcacorretamente a hora, podemos elogiar a sua mar-ca e o seu produtor, e se ele atrasa, podemos cen-surá-lo, mas não tem sentido elogiar ou censurar ofuncionamento do relógio, uma vez que ele nãopode fazer de outra maneira: o que ele faz é deter-minado por seu mecanismo. Ao contrário, se elo-giamos ou censuramos as nossas ações, se as ava-liamos de um ponto de vista moral, é porque, e sóporque, supomos que elas dependem de nós e so-mos livres para fazê-las ou deixar de fazê-las.Assim, pensar as nossas ações como livres é pen-sá-las de um ponto de vista que é radicalmentedistinto da ciência da natureza. Por isso, o positi-vismo, que é a idéia de que a ciência é a únicapossibilidade, não só do conhecimento da nature-za, mas de todo saber, é incompatível com essa vi-são das nossas ações e com o próprio conceito damoralidade. Kant insistiu sobre isso como umponto fundamental da compreensão que o ser hu-mano tem de si mesmo. Ouso dizer que sua con-cepção da ação e da moralidade é, mais do quenunca, atual no mundo contemporâneo, onde aimportância da ciência serve de aval para umaideologia positivista.

IHU On-Line – Não é novidade a falta de éti-ca na política. Nestes dias, o tema está es-pecialmente em pauta e, ao ser constatadafalta de ética no PT (talvez onde menos seesperava), chega-se a formular a pergunta:“É possível ética na política?” Como o se-nhor responderia a essa questão, iluminadopor Kant?Guido de Almeida – Sobre ética e política, Kantdisse duas coisas importantes que precisam serpensadas para que tenhamos idéia de onde situarexatamente o que se chama de uma a crise da eti-

cidade na política, na política em geral e na políti-ca brasileira em particular. A primeira é que a baseda política tem que ser o direito e a base do direitotem de ser a moral, porque só isso pode conferirlegitimidade a ela. Com efeito, o que distingue apolítica da arbitrariedade e da força é a conformi-dade a leis aceitas, e o que dá legitimidade às leis éa presunção de que elas emanam, direta ou indi-retamente, da vontade de todos. Ora, a exigênciade agir com base em princípios que se possam to-mar como leis válidas para todos nada mais é doque a exigência moral. Assim, é preciso que as re-gras da vida política possam ser reconduzidas auma exigência moral, para que elas possam seraceitas como legítimas. Uma segunda idéia impor-tante de Kant é que, no domínio do direito e dapolítica, a única coisa que podemos esperar e exi-gir, é o que ele chama de “legalidade”, isto é, aconformidade externa a esses princípios morais,que constituem, no entanto, a base do direito e dapolítica, por oposição à moralidade, isto é, a con-formidade interna à lei moral por respeito à leimoral. Mas então, se o que está em questão navida política é unicamente a conformidade exter-na a princípios morais, o que pode entrar em crisenela não é a moralidade como tal. Da moralidade,como tal, podemos dizer duas coisas diversas, eapenas, na aparência, contraditórias, a saber,que, em certo sentido, ela nunca está em crise eque, em outro sentido, ela está sempre em crise.Ela nunca está em crise, porque está claro para to-dos em que consiste o ponto de vista moral, qualseja, a exigência de fazer um uso da nossa liberda-de, na tentativa de realizar os fins a que nos pro-pomos, que seja compatível com o uso pelos de-mais de sua liberdade na tentativa de realizar seuspróprios fins. Em outro sentido, ela está sempreem crise em cada um de nós, na medida em quedepende de uma decisão pessoal, que deve sersempre renovada e sobre a qual, segundo Kant,nunca podemos ter inteira certeza, visto que pode-mos sempre nos enganar sobre as nossas verda-deiras motivações e acreditar que agimos moral-mente, quando, na verdade, nos conformamoscom as leis morais por interesse ou cálculo egoísta.Em suma, se alguma coisa está em crise na vidapolítica, não é a moralidade como tal, visto que o

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que se espera na convivência com os demais nãoé a rigor da moralidade, mas a mera conformida-de externa a exigências morais.

IHU On-Line – Então, o que está em crise napolítica brasileira?Guido de Almeida – Embora Kant não tenhausado este termo neste sentido, eu diria que é aeticidade no sentido amplo da palavra, não a mo-ralidade em sentido próprio, que é algo subjetivoe individual, mas a conformidade externa dosnossos atos, exigências da moralidade, não im-porta o motivo que tenhamos para isso. É porquenão sabemos punir, não apenas pela aplicaçãodas leis jurídicas, mas também com sanções sociais,a saber, a desaprovação, nem recompensar, que aeticidade, a conformidade e a moralidade estãoem crise na política brasileira. Kant ensinou isto:cada um cuida da sua moralidade e, da conformi-dade externa, nós temos que cuidar. Porque nãosoubemos cuidar disso, a ética na política se tor-nou um problema tão grave.

IHU On-Line – Em que sentido o autor pode-ria iluminar o cristianismo e as religiões nogeral?Guido de Almeida – Conheço superficialmentea filosofia da religião kantiana. Kant incorporou,na sua teoria moral, muitos conceitos importantesque têm a sua origem no cristianismo, por exem-plo, o de boa vontade. Na verdade, é um conceitohistórico, mas que está presente desde o NovoTestamento, porque seus autores conheciam a fi-losofia grega. Este é um conceito importante, umconceito básico, essa idéia de que agir é moral-mente ter boa vontade, e ter boa vontade é agirpor dever, e não por interesse nas conseqüênciasda ação, essa idéia é fundamentalmente cristã. Oque interessa é a intenção, a pureza do coração.Essa é uma das idéias centrais da ética cristã e queestá presente na ética kantiana. Outro conceitoimportante que ele utilizou, também para formu-lar a idéia de algumas formas do princípio moral, éque o princípio moral tem várias fontes. Uma de-las já citei: agir de tal maneira que a máxima daação possa ser querida como uma lei por todos osdemais. Ele tem uma outra fórmula: agir de tal

maneira que possa querer que seja por essasações um membro de um reino do ser, um mem-bro de uma sociedade, uma comunidade onde selegisla com os demais para todos. Essa idéia deum reino do ser é de origem cristã, a idéia do reinode Deus, que Kant reformulou, para elaborar suaidéia de uma comunidade moral, onde todos fa-zem, com base em máximas aceitas pelos demais,regras universais, portanto de tal maneira que to-dos contribuam por sua ação para a felicidade detodos. Nós sabemos que isso não ocorre de fato.Jamais podemos esperar que nos tornemos coleti-vamente felizes, porque agimos moralmente, é ocontrário do que nós esperamos. Mas, como nósnão podemos deixar de esperar sermos felizes,sob a condição da moralidade, nós temos que es-perar que isso seja possível de alguma maneira,senão não faria sentido agir. A exigência moral éque cada um procure a sua felicidade, mas respei-tando o direito dos outros de serem felizes tam-bém. Esse é o ponto de vista universal da morali-dade. Nós não podemos querer isso, sem a expec-tativa de sermos felizes. Isso não é garantido pelanatureza. Nós somos, necessariamente, levados apostular a existência de Deus e a esperar uma vidafutura, e a existência de Deus como condição des-sa expectativa de ser feliz, agindo moralmente.Isso faz parte também da teoria moral kantiana.Por isso Kant pôde apresentar a sua teoria moralcomo o núcleo racional e moral de toda a religião.As religiões se diferenciam por crenças em fatoshistóricos, pela diversidade dos cultos, etc. Paramim, a importância de Kant, como filósofo da reli-gião, foi precisamente esta: ter destacado esse nú-cleo moral das religiões em geral, núcleo que ocristianismo tem em comum com outras religiões eque talvez tenha apresentado de uma maneiramais pura que outras religiões.

IHU On-Line – Qual o legado de Kant que auniversidade mais deveria aproveitar?Guido de Almeida – O que eu mais valorizo emKant é o fato de ele se apresentar como um pensa-dor crítico, não-dogmático, o que compreendeusempre como um pesquisador, como um investi-gador. Ele não é um filósofo que parte de umaidéia pré-concebida, de uma tese a demonstrar,

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uma hipótese a corroborar. Ele é precisamenteum investigador. Ele está aberto a todas as possi-bilidades. Ele não formula as suas questões, de talmaneira que a elaboração implique uma respostaou torne impossível certas respostas. É essa men-talidade aberta de Kant como investigador quedevemos cultivar. Kant e Aristóteles formularamos dois sistemas filosóficos mais impressionantesda história da Filosofia, Kant, entretanto, não pre-tendeu ensinar Filosofia. Isso ele diz expressamen-te em sua obra mais importante, A crítica da ra-zão pura. Filosofia não é algo que se pode ensi-nar. O que se pode ensinar é a filosofar. Isso paraKant, em última análise, é aclarar os conceitos da-dos, o domínio do conhecimento, da moral, da es-tética e da arte, procurando clareza sobre eles esobre as razões que nós temos para adotar essesconceitos, e não os outros. Isso é o que o acadêmi-co deve mais prezar do legado kantiano.

Só é legítima a política, na medida em queela não é apenas um exercício do poder arbitrário,ela requer legitimidade. Qualquer base de legiti-mação é política. É a exigência de que todas asdecisões políticas, por exemplo, a formulação delegislação, tem que se basear no princípio daigualdade, segundo o qual só são legítimas as de-cisões que nós tomamos e que envolvem outraspessoas, as leis que nós formulamos para outraspessoas, se elas podem ser aceitas por todos. Nes-se sentido, a política tem que ter uma base moral,porque só ela pode conferir legitimidade à políti-ca. Esse foi o ponto, a meu ver, mais importanteda teoria do princípio do direito e da vida políticaregrada segundo o Direito. Então é o mesmo prin-cípio da moralidade, o qual ele chamou de impe-rativo categórico, que diz que só devemos agircom base em máximas, em regras, que possam seradotadas pelos demais. Esse é o princípio daigualdade entre os indivíduos, do respeito a todosos demais como iguais.

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A pergunta de Kant ao PT:“Estamos construindo instituições em que soberanias

populares estão articuladas com os direitos humanos?”

Entrevista com Ricardo Terra

Ricardo Terra é professor titular do Departa-mento de Filosofia da Universidade de São Paulo(USP). É graduado, doutor e livre-docente em Fi-losofia pela USP. Seu pós-doutorado foi realizadona Universidade de Frankfurt, Alemanha. É autorde A política tensa. Idéia e realidade na filo-sofia da história de Kant. São Paulo: Iluminu-ras, 1995; Passagens Estudos sobre a filoso-fia de Kant. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ,2003; Kant e o Direito. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 2004. Organizou as obras Idéia deuma história universal de um ponto de vistacosmopolita, de E. Kant. São Paulo: MartinsFontes, 2004 e Duas introduções à Crítica doJuízo, de E. Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995.A seguir, a entrevista que concedeu ao IHUOn-Line sobre a importância da filosofia de Kant.

IHU On-Line – Qual seria o principal legadode Kant?Ricardo Terra – O legado de Kant é muito am-plo. Na história da Filosofia, existem poucos filó-sofos que podem se comparar a ele nesse aspecto.Aristóteles também tem essa virtude. No caso deKant, o legado é enorme. Na Crítica da razãopura, encontram-se questões vinculadas tanto àcrítica da metafísica como à análise das condiçõesde possibilidades da ciência do tempo dele, que éa física de Newton. Na Crítica da razão prática,há uma ampliação e radicalização da autofunda-ção da moral. Kant elabora uma filosofia moral in-dependente da religião e separada da ciência e da

estética. E, na terceira crítica, que é a Crítica dojuízo, ele ainda abre a possibilidade de se pensaro juízo estético, independente da religião, inde-pendente da ciência e da ética. A amplitude do le-gado kantiano pode ser avaliada pelas três críti-cas. Para dar apenas um exemplo: A razão práticaque possibilita a fundamentação da moral tam-bém leva a uma fundamentação do Direito, o quetem uma relevância enorme. Além de pensar afundamentação do direito privado e do direito pú-blico, no direito internacional Kant foi tão longeque podemos considerá-lo como precursor de or-ganismos como a Organização das Nações Unidas(ONU). Seu legado vai desde condições de possi-bilidade para se pensar a física de Newton, ou rea-lizar uma revolução na maneira de considerar ametafísica, até no plano político, repensar as rela-ções internacionais. O legado tem muitas perspec-tivas, tanto no plano da compreensão da ciência,da ética, da moral, do direito como na do própriojuízo estético.

IHU On-Line – Nessa moral autofundada, elemuda a concepção de Deus de sua época?Ricardo Terra – Há vários aspectos importantesna concepção kantiana de Deus. Kant escreveuum livro que tem o título Religião nos limitesda simples razão. Nesse livro, elabora uma con-cepção ético-religiosa em que interpreta a própriaescritura, mas do ponto de vista da razão, isto é,da religião nos limites da simples razão. A grandemudança que tem Kant em relação à religião ou

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em relação a Deus, é que ele acha impossível de-monstrar a existência de Deus. Isso faz uma dife-rença enorme, tendo-se em conta a metafísica an-terior, em que a prova da existência de Deus erafundamental até para a fundamentação do campodo conhecimento, se pensarmos, por exemplo,em Descartes. Para Kant, o fundamental do co-nhecimento no próprio sujeito, não depende deDeus. Não há uma prova da existência de Deus,mas isso não significa que não se acredita emDeus. Não há uma prova racional da existência deDeus, mas fica aberta a possibilidade para uma féracional. Também não se pode provar que Deusnão existe. Há uma limitação do que é o conheci-mento, e essa limitação abre possibilidade paraafirmar Deus de outra maneira, que não sejateórica.

IHU On-Line – Duzentos anos após a mortede Kant, quais as principais limitações deleque o senhor assinalaria?Ricardo Terra – Apesar de ser um crítico da me-tafísica, Kant ainda tem todo um lado metafísicocom a manutenção da noção da coisa em si. Deoutro lado, ele está limitado à ciência de seu tem-po. A epistemologia de Kant está no horizonte dafísica de Newton, o que apresenta uma limitação,se levamos em conta a teoria da relatividade ou afísica quântica. É claro que há uma certa limitaçãohistórica no pensamento de Kant. Mesmo assim, olegado é grande, porque a maneira como Kanttrabalha Newton pode ser repensada hoje para re-fletir a física contemporânea. Temos vários neo-kantismos que tentam repensá-la. Uma parte dolegado fundamental é encontrada no ponto devista político e jurídico. Há autores, como JohnRawls e Jürgen Habermas, que, de uma forma oude outra, desenvolveram a ética e o direito kantia-nos. Apesar da limitação da filosofia do sujeitokantiano, a inspiração kantiana se desdobra deoutras maneiras.

IHU On-Line – Em uma cultura de guerra naqual vivemos, com tanta violência terroristae “antiterrorista”, como o conceito de pazkantiano poderia iluminar nossa sociedadecontemporânea?

Ricardo Terra – Em muito. Além do legado dastrês críticas, o legado do pensamento políti-co-jurídico kantiano é fundamental, porque Kantinsiste o tempo todo no espaço público, na discus-são no espaço público. Nesse sentido, há uma re-sistência contra todos os fundamentalismos. Apostura kantiana é de abertura para as discussõespúblicas, e não para a violência pública. Kant querarticular os direitos liberais com os democráticos.Ele, o tempo todo, está querendo relacionar direi-tos humanos e soberania popular. Esse é o ele-mento fundamental do seu pensamento político.O filósofo contemporâneo alemão Jürgen Haber-mas diz que há uma co-originalidade entre direi-tos humanos e soberania popular em Kant. A so-berania popular é fundamental, mas também osdireitos humanos são fundamentais. A soberaniapopular, junto com os direitos humanos, deveriareger não só a política interna de cada país, mastambém, em última instância, a política externa.Podemos encontrar muitos elementos na filosofiakantiana contra a política como violência ou comoterrorismo, ou como antiterrorismo violento. Aperspectiva de paz de Kant não é uma mera pers-pectiva utópica. A paz para ele se constrói com oDireito. A condição da paz é o estado de direito, éa soberania popular e direitos humanos juntos.Diante do horror que estamos vivendo nessesdias, pensar a noção de direitos humanos juntocom a soberania popular é uma maneira de en-frentar essa situação e tentar construir instituiçõestanto nacionais quanto internacionais em que setenha mais justiça e menos fundamentalismos. Atolerância deveria se transformar em instituiçõesjurídicas que garantam tanto a soberania popularquanto os direitos humanos.

IHU On-Line – O que a filosofia de Kant po-deria dizer sobre ética na política brasileira?Ricardo Terra – Kant diz que a ação política nãopode ir contra a moral. Por outro lado, é evidenteque não podemos confundir política com ética in-dividual. Devemos pensar que instituições políti-cas estejam garantindo o estado de direito. Exis-tem problemas de falta de ética de indivíduos, maso importante seria haver instituições que cuidamdisso. Não podemos tirar toda a atenção da políti-

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ca por causa da falta de ética de certos agentes. Oimportante é criar estruturas que possam puniressa falta de ética. Estamos construindo ou nãoinstituições em que a soberania popular está arti-culada com os direitos humanos? Esta é a questãofundamental. Será que os governantes estão con-seguindo articular a soberania popular com os di-reitos humanos? Está havendo uma ampliação dedireitos sociais ou não? Esta questão tem uma di-mensão ética que diz respeito a garantir direitossociais. Problema muito maior do que a falta deética de alguns membros do partido, o que não seesperava que acontecesse, é se o PT está conse-guindo articular a soberania popular e os direitoshumanos, ou seja, há políticas que estão ampli-ando os direitos sociais e, ao mesmo tempo, ga-rantindo direitos individuais? O susto maior estáaí: não tanto em descobrir que existem pessoascorruptas. Isso sempre existiu e vai existir em to-dos os partidos. A integridade ética maior será seele está cumprindo ou não essa dimensão de arti-culação de direitos sociais e a soberania popular.O problema do partido é muito mais esse, a falhaestá muito mais nesse aspecto do que em ter ele-mentos corruptos, o que todos os partidos têm. Éclaro que os corruptos precisam ser investigados epunidos.

IHU On-Line – Há três semanas, a matériade capa de nosso boletim foi o papel da uni-versidade na sociedade. Qual seria o legadomais importante de Kant que a universida-de deveria assumir?Ricardo Terra – É difícil dizer o que Kant pen-saria da universidade. Ele refletiu sobre univer-sidade, mas principalmente sobre a indepen-dência das faculdades. Na época dele, haviaconflitos muito grandes entre as Faculdades deFilosofia e Teologia, e havia censura da Facul-dade de Teologia em relação à de Filosofia. Nopensamento kantiano, a universidade é o lugarprivilegiado do espaço público e da discussãosem coerção, sem censura. A universidade éonde deveria ser possível um desenvolver daciência das artes e do pensamento livre. Por ex-celência, a universidade precisa ser o elementocriativo do pensamento crítico. No tempo do go-

verno de Frederico II, havia liberdade de pensa-mento na Prússia. Já no fim da vida, Kant teveproblemas com a censura. É fundamental o âm-bito da liberdade do pensamento no espaço pú-blico. É fundamental que se possa publicar e dis-cutir sobre todos os assuntos. A universidade éum importante berço da criação de ciência, decultura, de arte.

IHU On-Line – Quais seriam as característi-cas básicas, e que, de repente, foram inova-doras em seu tempo, da concepção kantia-na de pessoa humana e de sociedade?Ricardo Terra – É uma ampla pergunta. Vousimplificar muito. A noção de dignidade da pessoaé um elemento fundamental para Kant. O interes-sante é que a dignidade da pessoa está vinculadacom a noção de autonomia, aí é que está o grandealcance da filosofia kantiana. O homem é digno,porque ele faz leis para ele mesmo. Essa noção deautonomia é fundamental, tanto no plano da éticaquanto no plano político e jurídico. Nós obedece-mos a leis que nós, como racionais, estamos ela-borando. Kant tem uma ética que não depende deelementos empíricos nem depende de Deus. Oshomens têm que seguir leis que estão fazendopara eles mesmos. No plano da relação interpes-soal, isso leva a que o homem não possa ser consi-derado apenas como meio para outro homem. Ohomem tem sempre fim em si mesmo. Aí existeuma crítica à exploração do homem por outro, jáque, pela dignidade, ele precisa sempre ser toma-do como fim, e não apenas como meio. No planopolítico, Kant pensa a noção de autonomia: a no-ção de soberania popular. O povo tem que obe-decer às leis que ele está elaborando para ele mes-mo. Só que, como a noção de dignidade é forteem Kant, ele tem que articular a noção de sobera-nia popular à noção de direitos humanos. Umadeterminada maioria conjuntural não pode ir con-tra a dignidade da minoria. A articulação de direi-tos humanos com soberania popular torna possí-vel uma noção de pessoa que garante a sua digni-dade, participando de uma sociedade em que háa soberania popular. Tanto no plano de vista éticoquanto político-jurídico a autonomia e a dignida-de são fundamentais.

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IHU On-Line – Com base nessa concepçãode autonomia da pessoa humana de Kant,há 200 anos, que consciência ele poderiater em relação à mulher?Ricardo Terra – Este é um ponto bem complica-do. Antes, em suas questões, uma dizia respeitoaos limites do pensamento de Kant. Ora, aqui vol-tamos a um limite. Apesar de Kant colocar toda aautonomia moral e ética e reconhecer a dignidadeda mulher, há uma limitação histórica em relaçãoà participação da mulher na política. Preso às con-cepções da Prússia de seu tempo, ele não defendeo direito da mulher de votar. Este é um limite his-tórico que, inclusive, contradiz, em certo sentido,

o espírito de toda a filosofia dele. Ele, que fala tan-to da dignidade e da autonomia ética da mulher,acaba não encontrando essa autonomia políticada mulher na vida social. Mas é bom lembrar que,mesmo na Constituição de 1791, da RevoluçãoFrancesa, a mulher não tinha direito ao voto, queé também o limite dos próprios constituintes. Tan-to na Revolução Francesa como na filosofia deKant, encontramos uma ambigüidade. EmboraKant, no plano ético, trate da dignidade e da auto-nomia da mulher; no plano político, ele não con-segue ir além do seu tempo. O grande filósofo dadignidade e da autonomia acabou tendo esse li-mite em relação aos direitos da mulher.

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Uma ética motivada pelo desejo de realização da humanidade

Entrevista com Valério Rohden

Valério Rohden é professor titular de Filoso-fia na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra),ex-professor titular de Filosofia da UniversidadeFederal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisa-dor do CNPq e presidente da Sociedade Kant Bra-sileira. Traduziu, de Kant, a Crítica da razãopura (Abril Cultural, 1981), a Crítica da facul-dade do juízo (Imprensa Nacional/Casa da Moe-da, Lisboa, 1992 / Forense Universitária, RJ,1993) e a Crítica da razão prática (MartinsFontes, 2002, edição bilíngüe 2003). É livre do-cente pela UFRGS e pós-doutor pela WilhelmsUniversität Münster, na Alemanha. É autor deInteresse da Razão e Liberdade. São Paulo:Ática, 1981.

IHU On-Line – Qual é o significado mais im-portante para o senhor do bicentenário damorte de Kant?Valério Rohden – Emmanuel Kant (1724-1804)foi um filósofo que não saiu de sua cidade, quemantinha uma atividade social diária, que realiza-va exercícios físicos regulares e participava da po-lítica universitária. Foi duas vezes reitor, leciona-va, escrevia, citando poucos autores; seus conhe-cimentos, entre teológicos, científicos, filosóficos,artísticos e comuns, estendiam-se a quase todosos domínios da teoria e da prática humana; elabo-rou uma ética exigente, mas acessível ao homemcomum e finito; investigou terremotos, os ventos,o fogo, o céu – “o céu estrelado sobre mim e a leimoral em mim” – ; suas teorias, especialmente seupensamento filosófico, foram de uma perspicáciatal, que ele ainda hoje – parece que com uma for-ça crescente – move-nos a conhecer e pensar. Eleequipara-se a qualquer gênio da filosofia grega.

Por isso, comemorar os 200 anos de sua mortesignifica celebrar o seu gênio, com suas contribui-ções inesgotáveis à nossa atividade filosófica, aonosso espírito crítico em qualquer âmbito, massignifica, sobretudo, homenagear sua grandeza,da qual ainda hoje aprendemos a viver. Tantomais fecundamente pensaremos nossos proble-mas atuais e procederemos bem, quanto mais in-tensamente nos aproximarmos dele, com o mes-mo espírito livre com que ele pensou e viveu.

IHU On-Line – Como vê a questão de Deusem Kant? Qual seria o projeto kantiano pe-rante a física contemporânea?Valério Rohden – Kant pensou Deus de maneirarenovada, tanto do ponto de vista teórico quanto doponto de vista prático. Ele contestou, na Crítica darazão pura, o pensamento especulativo e dogmáti-co da tradição racionalista, que presumia conhecerDeus com simples conceitos formais. Para ele, oproblema de Deus era metafisicamente ineludível,como os problemas da alma, do mundo e do ser.Sua prova prática da existência de Deus foi desen-volvida na seção sobre o sumo-bem moral, da Crí-tica da razão prática, segundo a qual o homemnão poderá realizar-se em sua finitude, que envolveuma conexão sintética entre moralidade e felicidadee que só Deus pode assegurar, se ele ao mesmotempo não existir. Logo, Deus existe: trata-se de umpostulado prático. Quanto à sua contribuição para afísica contemporânea, fiquemos com sua funda-mentação apriorística da possibilidade da experiên-cia, resolvendo o problema de Hume.

IHU On-Line – O que é para o autor o encon-tro ético e estético com o outro?

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Valério Rohden – Em todos os âmbitos, teóri-cos, práticos e estéticos, Kant pensou essas ativi-dades articuladamente, mais precisamente, me-diante uma articulação de faculdades (por exem-plo, na teoria: “O nosso conhecimento brota deduas fontes principais do ânimo/Gemüt...”). trata-va-se de conhecimentos válidos universalmente.Na prática, sua teoria moral inclui uma motivaçãoque supõe a articulação de razão e da sensibilida-de: trata-se de uma ética motivada pelo desejo derealização da idéia de humanidade. Na estética,também inspirada moral e cognitivamente (comocondições sine qua non da mesma), apesar decada esfera ser pensada em sua rigorosa especifi-cidade, a sua teoria estética desenvolve uma con-cepção de juízo que se exerce sempre do ponto devista do outro: é uma teoria da livre comunicabili-dade do prazer. Trata-se aí da mais elevada formakantiana de epicurismo.

IHU On-Line – De que forma Kant entende amoral sem Deus?Valério Rohden – Já vimos que a moral não se rea-liza sem Deus. Mas se trata de uma ética autônoma eracional, que, segundo a indireta sugestão de Tu-gendhat, poderia incluir Deus, já que Deus não nosimpõe nada autoritariamente, pois o que Ele faz, ob-viamente, é bom, o que significa que é algo que qual-quer um também poderia autonomamente querer.

IHU On-Line – Qual o legado de Kant que auniversidade mais deveria aproveitar?Valério Rohden – Inspirados nos textos O que é

Esclarecimento e Disputa das faculdades, poderíamosdizer que a universidade é o lugar por excelência tan-to da produção do conhecimento quanto da promo-ção da maioridade humana. Em relação a elas, o ho-mem e a universidade são autônomos, aquele, capazde pensar por si próprio e escolher fundadamenteuma forma elevada de vida, esta, pela sua autono-mia, capaz de determinar-se, em plena liberdade,apontando à sociedade e à política os rumos para oque considera justo, verdadeiro e bom.

IHU On-Line – De que forma a ética kantianamanifesta uma dimensão social e comunitá-ria? Qual a atualidade desses conceitos?

Valério Rohden – A filosofia moral de Kant éuma ética do indivíduo responsável perante to-dos os outros. O que nela está em jogo é o amorde cada um pelos outros na mesma medida doseu amor a si mesmo. Seu objeto é a humanida-de. A teoria ética kantiana é, mediante conceitos,como autonomia, universalidade e justificaçãoracional, a base indispensável do pensamentoético contemporâneo.

IHU On-Line – O que o grande filósofo dos di-reitos humanos, da igualdade perante a lei,da cidadania mundial, da paz universal e, aci-ma de tudo, da emancipação da razão, pode-ria dizer à sociedade global contemporânea?Valério Rohden – Com seu cosmopolitismo rea-lista e crítico, de cunho político e moral – a pontode ele dizer que, se a humanidade não se dispusera dar este último passo, todos os passos anterioresnão terão valido a pena – Kant viu, no direito e nocomércio internacionais, meios seguros nesse ca-minho para uma união democrática de países emfavor de um progresso pacífico, não isento de con-flitos, mas solúveis sem o recurso à guerra. Comoos homens, infelizmente, aprendem a viver melhoratravés dos males com que se autoflagelam e se au-todestroem, assim a razão, unida à natureza, ser-ve-se desse ardil para nos fazer crer que jamais pre-cisamos perder a esperança de um futuro mais hu-mano para todos. Precisamos do realismo crítico eda amplidão de vista do pensamento de Kant paranão desesperar e continuar acreditando no futuro.

IHU On-Line – De que forma, no Brasil, estásendo celebrado o bicentenário da morte dofilósofo?Valério Rohden – Nós conseguimos trazer parao Brasil o X Internationalen Kant-Kongress / 10th

International Kant Congress / X Congresso Kant

Internacional, a realizar-se na Universidade deSão Paulo, entre 04 e 09 de setembro de 2005. Oque prova o reconhecimento internacional denosso crescimento filosófico e nos propicia a mai-or oportunidade que jamais tivemos de dar passosainda mais decisivos nessa direção. Convidamosa todos os que se interessam pela filosofia de Kanta comparecerem a esse grande evento.

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Lógica e Metafísica em Kant e Nietzsche

Entrevista com Rogério Vaz Trapp

Rogério Vaz Trapp é licenciado e mestreem Filosofia pela Unisinos com dissertação inti-tulada A base ontológica da autonomia em Kant

e Nietzsche. Rogério participou como bolsista deIniciação Científica Fapergs, no projeto Da Nega-

tividade: a construção lógica e o lugar histórico

dos temas negativos na filosofia de Theodor

Adorno e Walter Benjamin. Este projeto cen-tra-se na consideração de que a história possívelda negatividade e do negativo em filosofia estáentremesclada à própria história da metafísicacom a qual a filosofia, durante muito tempo, seviu confundida.

IHU On-Line – Qual é a relevância da coe-rência entre a teoria, a prática e a lógica nopensamento kantiano?Rogério Vaz Trapp – Se compreendermos porcoerência a qualidade de um raciocínio de nãoapresentar sinal algum de contradição, entãoposso afirmar que a importância dela é, antes detudo, fundamental para o próprio sistema kantia-no, na medida em que os princípios da lógicaconfiguram e estruturam os princípios tanto desua filosofia teórica quanto de sua filosofia práti-ca. Com isso quero dizer que a própria possibili-dade do edifício kantiano sustenta-se sobre a ne-cessidade da correção formal. Em segundo lugar,a coerência entre aquelas três instâncias tambémé de suma importância para Kant, porque o sujei-to, como sujeito transcendental, condição depossibilidade do idealismo transcendental, queraciocina e age discursivamente, só o pode fazermediante a estrutura dos princípios lógico-formais,motivo pelo qual a coerência entre elas é garantia

não só de um raciocínio correto como tambémde uma ação moralmente boa. Portanto, exata-mente por haver uma convergência, em Kant,entre a estrutura dos princípios teóricos, práticose lógico-formais é que a sua coerência acaba porrevelar-se como a própria condição de possibili-dade da validade e legitimidade da filosofiatranscendental.

IHU On-Line – Quais as relações mais im-portantes que você estabelece na disserta-ção entre Kant e Nietzsche?Rogério Vaz Trapp – Eu diria que uma das rela-ções que julgo ser mais importante seria a de reu-nir Kant e Nietzsche sob um viés comum de com-preensão. Nesse sentido, a investigação não pre-tendeu realizar um esforço crítico, como já é cos-tumeiro no meio filosófico, mas elaborar a preo-cupação desses pensadores com um tema em co-mum: a relação entre lógica e metafísica. Assim,diria que o viés de compreensão, segundo o quala lógica ocupa o papel de estrutura metafísi-co-discursiva para ambos os pensadores, aindaque valorizada diferentemente por eles, é o temacentral de minha pesquisa. Depois, estender a re-flexão sobre a metafísica até o tema da autono-mia, na filosofia prática, é outra relação importan-te que desenvolvi, pois pretendi ter exposto as ba-ses ontológicas do sujeito auto-afirmativo moder-no tal como as encontramos nesses dois autores e,ainda que por vieses diferentes, conforme com-preendemos, que se constituem como o cumemais elevado da filosofia de ambos os pensado-res. Portanto, as relações que estabeleci em minhadissertação, e que julgo serem mais importantes,

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envolvem a lógica, a metafísica, a ética, a episte-mologia e a antropologia.

IHU On-Line – Em que aspectos o pensa-mento kantiano pode iluminar nossa épocacontemporânea?Rogério Vaz Trapp – Iluminar é um ótimo termopara usarmos com relação a um representante daAufklärung! Após a euforia hegeliana, um certoretorno a Kant foi inevitável. Com isso, podemosdizer que o intento crítico kantiano permaneceainda no cerne filosófico da reflexão atual. Assim,não só nossa época é profundamente kantianacomo também não podemos compreender filóso-fos, como Nietzsche, Husserl, Heidegger, Apel,Habermas ou Rawls sem passarmos por Kant. Atão extensa influência de Kant sobre a posteridadetalvez se deixe melhor compreender pela fecundi-

dade do pensamento desse filósofo. Com efeito,seja pela sua reflexão epistemológica, seja pelasquestões propriamente metafísicas, seja pela suafilosofia prática, com sua concepção de lei moral ede autonomia prática, seja pela sua estética e suateleologia, seja pela sua reflexão sobre a finalida-de da sociedade e a esperança depositada emuma “paz perpétua”, Kant está profundamentepresente na contemporaneidade por não ter extin-guido esses temas, legando tanto uma grandequantidade de problemas para os pensadoresposteriores, quanto gigantescas tentativas de solu-ção a esses mesmos problemas. Portanto, Kanthoje é de suma importância não só para compre-endermos a posição essencialmente crítica que oIluminismo nos legou, mas também para compre-endermos tudo que perdemos junto com o com-bustível que o Iluminismo teve que “queimar”para alimentar sua chama “esclarecedora”.

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Kant entre os sentimentos, a razão e a barbárie

Por Adriano Naves de Brito

Adriano Naves de Brito é doutor em filoso-fia pela UFRGS/Universitaet Bielefeld-RFA,1998. Professor do PPG em Filosofia da Unisi-nos e professor visitante no doutorado de Ciên-cias Ambientais da UFG, organizador, entre ou-tros, de Ética, questões de fundamentação,Brasília: UnB, 2004.

Obrigações morais são para nós um incômo-do. Mesmo que – já a elas habituados – possamosagir sem as perceber como regras constrangedo-ras da vontade, basta uma leve mudança em nos-sos interesses para que nos voltemos a sentir des-confortáveis sob seu jugo. Pesa-nos, então, sobreos ombros como nunca, aquilo para o que nossavontade se inclina. Estamos sob o império davontade e sua natureza é querer, querer e querer.Nietzsche, em sua Genealogia da Moral, é ras-cante: “prefere o homem querer o nada ao nãoquerer.”

Contra a litania pessimista e corrosiva dosdetratores da natureza humana volitiva, gostamosde cavar uma trincheira que nos defenda a digni-dade ameaçada. Sim, as obrigações nos moles-tam, mas também não nos aflige a nossa vontadecontra elas? E, portanto, não haveria nos vastos do-mínios do querer um terreno pedregoso em que pu-déssemos enterrar os fundamentos do dever? Queconforto poder apoiar em sólidas estruturas a forçaque obrigaria o querer! Que alívio ter bons motivospara aplacar o querer, para querer submeter-se!

Não há, está claro, como evadir-se da vonta-de. Kant, cuja filosofia nunca foi ingênua com res-peito à natureza da vontade humana, ergueu so-bre ela mesma – a vontade – a fortaleza das obri-gações morais. “Nesse mundo, e até também fora

dele, nada é possível pensar que possa ser consi-derado como bom sem limitação a não ser uma sócoisa: uma boa vontade.” Sua declaração no iní-cio da Fundamentação da Metafísica dosCostumes aponta apenas para um dos lados deseu objeto, mas deixa-nos entrever também o ou-tro, inteiramente. Se só a vontade pode ser boasem limitação, então não há o que possa ser con-siderado irrestritamente mau a não ser uma mávontade. Ela, sozinha, a vontade, divide o reinoda moral em seus dois campos: o do bom e o domau.

Assim é que o problema moral parece ser adomesticação da vontade. Muitos, depois deKant, se insurgiram contra essa idéia emasculado-ra do querer. E, de fato, vale perguntar até queponto estavam certos. Em meio aos sucessivosabalos que o pensamento do século XIX e os acon-tecimentos do século XX provocaram nos funda-mentos morais, a filosofia fundacionista reergueusua paliçada. O ceticismo moral e o niilismo fin du

siècle perderam seu glamour ntelectual tão logo osolhos do mundo viram em corpos humanos, de-positados e aniquilados nos campos de concentra-ção, o grau de crueldade que pode alcançar avontade. O que diríamos contra os protagonistasdo horror – os de antes, os de agora e os que certa-mente nos sucederão – se não tivéssemos, ao me-nos, um ponto em que pudéssemos fundar asobrigações morais para com os outros? Contra abarbárie, o que temos nós, os filósofos? Frente àbestialidade da vontade, a que nos resta recorrersenão à razão? Com efeito, a divisa de que, em al-guma medida, somos todos neokantianos nuncafoi tão corroborada quanto na filosofia moral do

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pós-guerra. Variações da filosofia prática de Kantestão em incontáveis tentativas de fundamenta-ção do dever que foram feitas desde então.

Segundo o diapasão kantiano, a vontadeboa é a vontade racional. Reside exatamente aí,no grau de robustez – ou, visto da perspectiva ne-gativa, no grau de debilidade – que se confere àrazão, uma das mais importantes notas distintivasentre quase todas as concepções filosóficas con-temporâneas que defendem haver um fundamen-to para a moral e, como querem, uma alternativaà barbárie. A origem comum, o pensamento do“relógio de Königsberg”, garante-lhes virtudes evícios semelhantes. Do lado das virtudes, está ofato de que os princípios da moral kantiana são fa-cilmente assimiláveis pela cultura ocidental cristãesclarecida, a que nos moldou como somos, parao melhor e o pior. Antes de sermos neokantianos,somos cristãos (convictos ou não); traço de ondegermina um vício comum a esta cepa de filosofiasfundacionistas da moral: o desdém pelas inclina-ções mundanas, mas humanas. É bom, porém,que não esqueçamos, somos também modernos eamamos a razão, assim como Kant.

Se o leitor quer saber como agir, não consul-te seus desejos e sentimentos, eles o trairão. Inva-riavelmente! Para Kant, não há bem real que se al-cance tendo-se como guia as inclinações sensíveis.A carne não é apenas fraca, ela é moralmentecega, pior, infensa à moral (e há quem possa duvi-dar agora do cristianismo kantiano?). Pergunte àrazão, leitor, e ela lhe dirá, concordando consigomesma, que você deve agir como se legisladorfosse; legislador de uma natureza cujas leis, as quevocê lhe der, serão universais, como o são as leisfísicas sobre as quais, no entanto, não temos qual-quer influência.

Colocados assim nessa condição de legislado-res coerentes (a razão nos aproxima de Deus!) deum mundo dos fins a ser edificado no reino da na-tureza, promulgaríamos máximas universais para aação, cujo traço comum seria a desconsideraçãopara com os interesses privados de cada membrodo reino moral. O problema é como agir conformeestas regras. Nós, que somos humanos, demasia-damente humanos (como vaticinou Nietzsche).

Que Kant não tenha sido ingênuo com respe-ito à natureza humana, vê-se sobretudo porquenunca esperou que pudéssemos dar conta desseproblema (pelo menos não sem a eternidaded’alma e a benevolência divina). Nossa vontade,que não é santa, inclina-se para todos os lados doprazer, mas quase nunca – aconteceu – para o dodever. Por sorte, segundo ele, nossa redenção sedá com pouco, muito pouco. Basta nossa firme in-tenção para agir por respeito à lei, que nossa pró-pria razão nos dá, para que haja esperança. Eapenas isso, esperança. A escolha, no entanto,tem de ser livre, quer dizer, uma determinação darazão pura em seu uso prático. Toda escolha cujofundamento seja a felicidade em alguma de suasformas já está condenada à imoralidade. Mas, en-tão, não estamos todos, que, afinal, só queremosser felizes, desde sempre condenados?

Eu não seria mesmo justo com Kant se nãoconcordasse que entre as maiores virtudes de suafilosofia moral está a crença no poder da razão hu-mana para disciplinar a vontade. E, no entanto,aqui também encontramos o seu maior vício. Oesclarecimento nos prometeu um paraíso racionallaico. A história nos mostrou também a barbárieda razão, e sob muitas bandeiras, à direita e à es-querda. Dirão que o conceito “razão” não é omesmo nos dois casos – em Kant e nos regimes to-talitários – ou que, pelo menos, não está aqui bemdefinido. Como não concordar com expedientetão filosófico? Os pruridos do filósofo não diminu-em, contudo, nossa legítima inquietação: comoescapar à barbárie (seja ela da vontade ou da ra-zão). Creio que nos duzentos anos de sua morte,também não seríamos justos com a grandeza deKant, se não pudéssemos submeter sua filosofiaao escrutínio de nosso tempo.

Numa frase da Crítica do Juízo, Kant fe-cha, com cristalina transparência, o círculo de seucarrocel conceitual. Diz ele: “Pois o bom é o obje-to da vontade (isto é, de uma faculdade de apeti-ção determinada pela razão)”. E onde a razão es-colheu, não há espaço para mais liberdade. Liber-dade, Razão e Vontade (a boa, melhor frisar) são,pois, meras variações de um mesmo tema: a ne-cessidade. Se queremos honrar Kant, sua filosofiadeveria ser revisitada hoje com a desconfiança

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que nós, contemporâneos, acumulamos nestes úl-timos dois séculos contra as muitas liberdades ne-cessárias que nos foram oferecidas. Mas não ape-nas isso, creio que deveríamos revisitá-la tambémcom as esperanças que – quem diria! – nossa pas-sional e contingente vontade não deixa morrer.Assim, entre razões e sentimentos, haveremos,como sempre, de encontrar alguma barricadacontra a barbárie, nossa inexorável sombra.

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Referências bibliográficas

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