EMOÇÕES E SOCIEDADE

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História: Questões & Debates, Curitiba, n. 59, p. 79-98, jul./dez. 2013. Editora UFPR EMOÇÕES E SOCIEDADE: UM PASSEIO NA OBRA DE NORBERT ELIAS Emotions and society: a walk in the work of Norbert Elias Mauro Guilherme Pinheiro Koury * RESUMO Este ensaio é uma introdução ao modo de pensar e fazer sociológico e aos processos de construções novas realizadas pela sociologia de Norbert Elias. Busca compreender a importância da obra de Norbert Elias para a análise social, cultural e histórica, tendo como lugar principal de fala a sociologia e como recorte de olhar, específico, a economia emocional por ele proposta e sua contribuição à sociologia das emoções. Em um primeiro andamento, o ensaio faz uma pequena abertura discursiva às diversas sociologias contidas na obra de Elias. Em seguida, procura realizar um sobrevoo nas relações tensas e de equilíbrio frágil entre indivíduo e sociedade, pairando sobre o processo de adequação e consolidação de uma nova sensibilidade ocidental, por meio da inter- nalização dos sentimentos e, em particular, da vergonha como motriz da ação individual no cultural e no societal. No momento final discute as noções de habitus e de rede humana configuracional. Palavras-chave: Norbert Elias; economia e cultura emocional; habitus; redes humanas. ABSTRACT This paper is an introduction to the way of thinking and doing socio- logical processes and new constructions undertaken by the sociology of Norbert Elias. It seeks to understand the importance of the work of Norbert Elias to analyze social, cultural and historical, whose principal place of talking sociology, and cut to look like, specifically, the emo- * Doutor em Sociologia e Professor dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) e de Direitos Humanos (PPGDH) da Universidade Federal da Paraíba. Coordenador do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções da mesma universidade.

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Um passeio pela obra de Norbert Elias

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    Histria: Questes & Debates, Curitiba, n. 59, p. 79-98, jul./dez. 2013. Editora UFPR

    EMOES E SOCIEDADE: UM PASSEIO NA OBRA DE NORBERT ELIAS

    Emotions and society: a walk in the work of Norbert Elias

    Mauro Guilherme Pinheiro Koury*

    RESUMO

    Este ensaio uma introduo ao modo de pensar e fazer sociolgico e aos processos de construes novas realizadas pela sociologia de Norbert Elias. Busca compreender a importncia da obra de Norbert Elias para a anlise social, cultural e histrica, tendo como lugar principal de fala a sociologia e como recorte de olhar, especfico, a economia emocional por ele proposta e sua contribuio sociologia das emoes. Em um primeiro andamento, o ensaio faz uma pequena abertura discursiva s diversas sociologias contidas na obra de Elias. Em seguida, procura realizar um sobrevoo nas relaes tensas e de equilbrio frgil entre indivduo e sociedade, pairando sobre o processo de adequao e consolidao de uma nova sensibilidade ocidental, por meio da inter-nalizao dos sentimentos e, em particular, da vergonha como motriz da ao individual no cultural e no societal. No momento final discute as noes de habitus e de rede humana configuracional.

    Palavras-chave: Norbert Elias; economia e cultura emocional; habitus; redes humanas.

    ABSTRACT

    This paper is an introduction to the way of thinking and doing socio-logical processes and new constructions undertaken by the sociology of Norbert Elias. It seeks to understand the importance of the work of Norbert Elias to analyze social, cultural and historical, whose principal place of talking sociology, and cut to look like, specifically, the emo-

    * Doutor em Sociologia e Professor dos Programas de Ps-Graduao em Antropologia (PPGA) e de Direitos Humanos (PPGDH) da Universidade Federal da Paraba. Coordenador do GREM Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoes da mesma universidade.

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    tional economy proposed by him and his contribution to the sociology of emotions. In a first movement, the essay makes a small opening to the various discursive sociologies contained in the work of Elias. It then attempts to perform a flyover in relations strained and fragile balance between individual and society, hovering over the process of adjustment and consolidation of a new Western sensibility through internalization of feelings and in particular shame as the motives of individual action in cultural and societal. In the final moment eliasiana discusses the notions of habitus and configuracional human network.

    Keywords: Norbert Elias; economy and culture emotional; habitus; human networks.

    As diversas sociologias de Elias e as emoes

    A obra eliasiana foca, principalmente, a relao entre poder, com-portamento, emoes e conhecimento nos processos sociais e histricos. Devido a circunstncias histricas1 como o exlio, o estado de pobreza, a precariedade de uma estabilidade no trabalho at 1954, o sofrimento ntimo pelo sentimento de culpa pela morte da me em um campo de concentrao e, sobretudo, problemas ligados ao processo de traduo de suas obras, principalmente na sua verso para o ingls , Elias permaneceu durante um longo perodo de sua vida, mesmo depois de estabilizado como professor na Universidade de Leicester, como um autor marginal, ou, nas palavras de Kilminster (1995, p. VIII), na periferia da sociologia instituda e, assim,

    1 Norbert Elias nasceu em 22 de junho de 1897, filho de uma famlia judia, em Breslau (Alemanha), atual Breslvia (Wroclaw), na Polnia, e morreu aos 93 anos, em 1 de agosto de 1990, na cidade de Amsterd, capital da Holanda, lugar que escolheu para viver seus ltimos anos de vida. Estudou medicina e filosofia em um momento em que a psicanlise freudiana estava em pleno desenvolvimento e formou-se em Sociologia, em um perodo tambm em que a sociologia alem era dominada pelo pensa-mento de Max Weber. De famlia judia, teve de fugir da Alemanha nazista um pouco depois de sua defesa de doutorado em Filosofia, exilando-se em 1933 na Frana, antes de se estabelecer na Inglaterra, em 1935, onde passa grande parte de seu exlio. Em Londres, Elias viveu de forma precria, antes de obter em 1954 um posto de professor na Universidade de Leicester. Sobre o sofrimento psquico e emotivo de Elias du-Sobre o sofrimento psquico e emotivo de Elias du-rante todo o perodo de exlio, Dunning e Mennell (1997) e Kilminster (1995) informam que ele nunca se recuperou do sentimento de culpa que o acompanhou durante toda a sua vida, por ter conseguido escapar do nazismo alemo, sem, contudo, conseguir tirar sua me da Alemanha, que acabou morta nas cmaras de gs de Auzuitch.

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    distanciado dela. Norbert Elias e sua obra vieram a ser descobertos por uma nova gerao de tericos das cincias sociais no final dos anos de 1970, vindo a se tornar um dos mais influentes socilogos do sculo XX e um cientista social cada vez mais influente no sculo XXI.

    Sua influncia atual pode ser atribuda, entre outros aspectos, s concepes do social como composto por grandes redes sociais e economia emocional, que envolve as relaes complexas entre indivduos interdependentes. Estas noes encontraram uso e aplicao nas sociedades ocidentais contemporneas, onde a presena da ao individual no pode ser negligenciada, ao mesmo tempo em que a nfase focada primordialmente no papel da estrutura social sobre o indivduo, at ento em vigor, decai e comea a ser criticada; isto, bom frisar, desde os anos de 1968, onde os gritos rebeldes giravam em torno de uma maior visibilidade e liberdade para o indivduo nos planos cultural e social.

    No conjunto da obra eliasiana, se destacam como um dos seus livros mais importantes e influentes os dois volumes de O processo civilizador (ELIAS, 1990; 1993). O processo civilizador foi originalmente publicado em 1939, em dois volumes, por uma editora sua especializada em publicao de autores judeus, e, em um s volume, na primeira edio inglesa de 1944, que no obteve boa aceitao, tendo passado em branco pela comunidade e pela crtica acadmica da poca, que, completamente, o ignorou.

    O processo civilizador teve uma segunda edio sua em 1969. Nesse momento, o livro comeou a ter uma pequena expresso, ainda que assustada, junto academia; e, logo aps esse primeiro impacto, foi lite-ralmente ignorado at sua redescoberta, em 1978, quando de sua segunda edio inglesa. A publicao desta segunda edio causou uma srie de sentimentos, discusses e debates, que variaram desde acusaes e rejeies a grandes processos de aceitabilidade como novidade terico-metodolgica no mundo das cincias sociais.

    O primeiro volume de O processo civilizador (ELIAS, 1990) possui o subttulo Uma histria dos costumes e discute os acontecimentos histricos do habitus europeu, isto , a estrutura psquica individual moldada pelas ati-tudes sociais. O segundo volume de O processo civilizador (ELIAS, 1993), com o subttulo Formao do estado e civilizao, aborda, por sua vez, as causas destes processos e os reconhece nas, cada vez mais, centralizadas e diferenciadas interconexes na cultura e na sociedade.

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    Neles, Elias procurou demonstrar como os padres europeus ps--medievais de violncia, comportamento sexual, funes corporais, etiqueta mesa e formas de discurso foram gradualmente transformados pelo cres-cente domnio da vergonha e do nojo, atuando para fora de um ncleo de etiqueta corts. Elias descreve, neste volume, a partir da anlise de manuais de etiqueta e de cdigos e tratados de conduta e comportamento, como os conceitos de cortesia, civilidade e civilizao vo se sucedendo na Europa, de maneira a demonstrar, em detalhes, como o cotidiano dos indivduos2 est vinculado a padres de experincia e vivncia da vergonha e seus corol-rios, como o embarao, a humilhao, o ressentimento, a baixa autoestima, a falta de autoconfiana, entre outros, bem como s noes estreitamente correlacionadas ao ato de envergonhar-se, como o sentimento de honra, o sentimento de orgulho e o autorrespeito em uma ordem moral que estrutura as emoes individuais conforme a diferenciao das funes sociais em uma sociabilidade dada (ELIAS, 1990)3.

    Elias argumenta que o processo civilizador ocidental se distingue de outros processos civilizacionais pela monopolizao da violncia fsica e fiscal em regies pacificadas e submetidas a centros de poder em equilbrio relativamente estvel, o que permite a conformao e estabilizao de um habitus pautado na gerncia e no refinamento das emoes como estratgia de hierarquizao e distino social, por meio da internalizao dos sen-timentos e, em particular, da vergonha como motriz da ao individual no cultural e no societal.

    A vergonha internalizada, a partir do prprio indivduo, estampa uma eficaz agncia de autocontrole e de autolimitao, em formas cons-cientes e inconscientes, de modo ambguo e ambivalente, para o indivduo. Indivduo social cuja estrutura mental sofre um alargamento e uma frag-mentao e distino considerveis, elevando, em contrapartida, o custo e o tempo para uma socializao bem-sucedida. A vergonha passa a ser vivida como uma tenso, como uma espcie de agitao e desordem no interior da prpria personalidade individual, que se debate conflitualmente nos limites impostos pela rede de interdependncias na qual se insere.

    2 Isto , gestos, expresses faciais, postura, vesturio, disciplina para o trabalho, compor-tamento mesa, higiene corporal e outros.

    3 Elementos que formam o centro bsico e o ncleo compreensivo de uma cultura emocional no social, de importante alcance terico-metodolgico na sociologia das emoes.

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    Na sua sociologia processual e da civilizao, essas transforma-es graduais se do pela noo de histria como tempo longo. Nela e por meio dela a noo de tempo ganha o significado de uma sntese social que se apresenta como conscincia da durao, da mudana e da referncia retrospectiva e prospectiva de projetos individuais e coletivos. Para Elias (1998, p. 63 grifos no original), os conceitos de passado, presente e futuro, expressam a relao que se estabelece entre uma srie de mudanas e a ex-perincia que uma pessoa (ou um grupo) tem dela. Seguindo esta linha de raciocnio, assim, os significados de passado, futuro e presente dependem das geraes vivas em cada momento socio-histrico singular e, como as geraes esto sempre interconectadas, era aps era, os sentidos conceituais de longa durao no param de evoluir.

    Nesse aspecto informa, observando e compreendendo o processo vivido para a modernidade ocidental, que a prudncia e o equilbrio das emoes consideradas espontneas, o controle dos sentimentos e o alar-gamento do espao intelectual e reflexivo para alm do presente vivido arrastam consigo e alteram, a cada momento da evocao, os sentidos impressos ao passado e ao futuro, ao costume e rotina de interligar os fatos em cadeias de causa e efeito. Processos que fazem parte e so todos estes considerados como distintos aspectos de uma mesma modificao e variao das condutas, que ocorrem necessariamente com [...] a extenso das cadeias da ao e interdependncia social (ELIAS, 1993, p. 198).

    Ocorre, no seu desenvolvimento, assim, no interior da perspectiva eliasiana, como que uma mudana civilizadora do comportamento. Por meio dessa sntese social Elias demonstra, passo a passo, o processo por onde o autocontrole comea a ser exigido, cada vez mais, por uma rede multplice de conexes sociais desenvolvidas por uma autopercepo psicolgica4, mas percebida por meio de um elaborado e mais complexo conceito: o de habitus, que veremos com mais vagar adiante. A obra de Elias, deste modo, entre outros aspectos, pode ser compreendida como uma precursora de uma sociologia das emoes (SCHEFF, 2001) ou portadora e promissora, como nos indicam Heinich (2001) e Mennell (1998), de uma sociologia dos afetos. Sociologia das emoes ou dos afetos que s pode ser pensada, no seu desenrolar metodolgico, no interior de uma sociologia da histria, do

    4 Noo em Elias influenciada e prxima, mas com consequncias prticas bastante des-semelhantes, do conceito freudiano de superego.

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    tempo longo, processual e de uma sociologia das figuraes, que d sentidos s redes humanas como um jogo e um espao de interaes continuadas.

    Elias aborda em sua anlise processual e da civilizao, em seu O processo civilizador, o desenvolvimento das novas maneiras de gerencia-mento das funes corporais e emocionais dos e pelos indivduos em um contexto histrico e social ocidental, e compreende tal processo como a mol-dagem de uma nova sociabilidade e sensibilidade5 no Ocidente, que funda a modernidade alem e europeia e se expande pelo mundo afora dominado pela ou sob a autoridade da tica e dos modos e estilos de vida ocidentais.

    Para ele, a observao e a anlise do surgimento e da insurgncia desta nova sensibilidade se fazem mediante a compreenso da ampliao e da extenso dos sentimentos de vergonha e suas variantes: o embarao, a averso, a repugnncia e o nojo. Estes, por sua vez, so aprendidos por meio de um processo de longa durao, civilizador, onde formas sociais caractersticas, nominadas por ele por meio da noo de sociognese, e uma tambm especfica economia psquica das emoes e dos afetos, por ele conceituada de psicognese, se consolidam. A relao tensa entre a socio-gnese e a psicognese em sua montagem de uma figurao em equilbrio precrio, assim, permitem a Elias uma formulao terico-metodolgica por meio da qual a histria e a narrativa de uma sociedade se refletem em uma histria e em uma narrao interna de cada indivduo.

    O habitus, este conceito central na obra de Elias, resulta, ento, de uma dinmica configuracional de interdependncia e equilbrio de ten-ses entre os indivduos e as redes social e cultural e entre os processos de distino e hierarquia desenvolvidos em uma sociabilidade dada. No seu conhecido trabalho emprico sobre uma comunidade de trabalhadores industriais na Inglaterra dos anos de 1940, Elias (2000) discute as noes de habitus e de hierarquizao entre os que ele denominou de estabeleci-dos e outsiders, estes ltimos denominados como aqueles que vivem ou so colocados s margens do sistema. Analisa as barreiras, os obstculos emocionais e as fronteiras de sensibilidade e reserva que se erigem e se organizam nesta comunidade e, concomitantemente, na estrutura mental dos indivduos relacionais nela e a ela dispostos e expostos.

    5 Para uma anlise da moldagem de uma nova sensibilidade no Brasil urbano, ver Koury (1996; 2003).

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    Modula, aqui, a noo de discrio j iniciada nos dois volumes de O processo civilizador como resultante da privatizao da subjetividade6, bem como das noes de orgulho e vergonha, consideradas como emoes fundamentais na microfundamentao do social (SCHEFF, 1990). Nesta anlise das relaes de poder em uma pequena comunidade, Elias utiliza o conceito de habitus para fugir da dicotomizao entre indivduo e so-ciedade, procedimento bem-sucedido quando demonstra que as emoes individuais, e a prpria cultura emotiva, derivam de processos coletivos de incorporao de formas de ser e estar no mundo a partir de processos tensos, conflituais de negociao e disputa entre estabelecidos e os considerados de fora da comunidade e que contagiam com seus modos e estilos de vida no condizentes com o costume e a moral local.

    Para Elias, em suma, o indivduo se apresenta como uma sntese complexa de um contexto scio-histrico singular, dotado de uma configu-rao exterior e de uma interioridade. A figurao do autocontrole individual est associada, assim, forma social de distribuio de bens materiais e simblicos, do controle da violncia fsica e de diviso do trabalho que exigem do indivduo uma busca permanente para obteno de saberes especficos. A sociologia configuracional de Elias, nesse sentido, pode ser vista como um espao de interaes e de redes intercomunicantes, onde as correlaes so sempre relacionais e o indivduo existe, enquanto tal, apenas quando compondo uma rede de interdependncias, em um sistema de interaes sempre tenso e conflitual, por onde se realiza sua identidade individual e social e se organiza sua vida emocional.

    A obra, como j anunciado acima, e de acordo com Dunning e Mennell (1997), no prefcio brasileiro de Os alemes, teve difcil aceitao na Gr-Bretanha, na sua primeira edio inglesa, continuando esta dificul-dade tambm logo aps a segunda edio em 1978, tanto na Gr-Bretanha quanto nos EUA, por mal-entendidos ligados, segundo os autores citados, questo de traduo do alemo para o ingls.

    Neste momento, cabe fazer aqui uma breve digresso: Thomas Scheff (2003, p. 241-242), socilogo americano que trabalha com a socio-logia das emoes, em um artigo sobre o impacto causado pelO processo

    6 Seria estimulante, aqui, uma anlise comparativa com o mesmo processo em Simmel, cujo conceito de discrio a tnica para se pensar a privatizao do indivduo na sociabilidade moderna ocidental, que ser feita em outro momento, j que fugiria em termos do objetivo deste ensaio.

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    civilizador de Elias, afirma que a grande dificuldade na aceitao da obra nos pases de lngua inglesa, principalmente na Gr-Bratanha e nos Estados Unidos, foi devido dificuldade de traduo, principalmente, do conceito de vergonha eliasiano, como vimos acima, noo fundamental para entender o processo de autocontrole no interior do processo civilizador analisado.

    Informa Scheff que, diferente do alemo, que possui dois termos para expressar vergonha, o Schande (vergonha de sentir vergonha) e scham (vergonha cotidiana), em ingls s existe uma expresso para a palavra vergonha (shame), que prxima do Schande alemo. O termo vergonha, ao ser traduzido pela sua expresso literal inglesa e lido nessa direo, causou uma certa repugnncia, de acordo com Thomas Scheff, no texto acima citado, ao conceito eliasiano, j que a aspereza da palavra em ingls bloqueava toda rea de pessoalidade do debate e insinuava apenas a ver-gonha de sentir vergonha, que um termo com forte tenso e sentido de ofensa, tanto social quanto no plano individual.

    importante salientar, ainda, que outro impacto negativo tambm circunscreveu as primeiras edies dO processo civilizador. Assim, quando a obra de Elias comeou a ser acolhida, sua anlise do processo social foi mal compreendida, no s pelo aspecto do autocontrole, tendo a vergonha como um dos principais conceitos, mas tambm porque foi vista como uma nova teoria evolucionista da sociedade, como uma espcie de darwinismo social. Mais tarde, contudo, esta primeira compreenso comeou a ser abandonada embora se apresente argumentos nessa direo at hoje e a sua obra comea a ser entendida a partir de uma outra chave compreensiva, ou seja, como uma teoria voltada para a anlise dos processos sociais.

    Os estudiosos da obra de Norbert Elias, como Mennell (1998), Heinich (2001) e Scheff (2001; 2002), por exemplo, acreditam que ele desenvolveu uma sociologia complexa para se pensar o social contempo-rneo e acreditam que sua obra pode ser pensada atravs de trs grandes caminhos terico-metodolgicos: um caminho para uma Sociologia Pro-cessual, outro para uma Sociologia Figuracional e um terceiro para uma Sociologia dos Afetos e das Emoes. Esses trs caminhos, contudo, se cruzam a todo momento e podem ser pensados como sendo apenas uma diviso metodolgica e terica abstrata para melhor pensar a construo e a lgica interna da obra eliasiana.

    A Sociologia Figuracional eliasiana, assim, por exemplo, examina a origem e a constituio de configuraes sociais como resultados no

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    premeditados da interao social. Nela, ou por meio dela, a sociedade e sua cultura so vistas como uma formao oriunda do conjunto dos seres humanos, que dela fazem parte, em uma pluralidade no planejada e, muito menos, pretendida por nenhum indivduo em particular ou pelo conjunto dos indivduos a ela ou nela situados.

    A anlise sociolgica para Elias, nessa trajetria, nada mais nada menos do que um grande esforo terico na e de representao da sociedade como teias ou redes de indivduos interdependentes. Teias e redes por ele chamadas de figuraes, por intermdio das quais e por onde sentimentos, decises, aes, atitudes e relaes mudam em respostas a processos e desenvolvimentos sociais.

    Estas figuraes, como teias ou redes, em seus movimentos con-tnuos, esto sujeitas tanto a processos civilizadores quanto a processos descivilizadores7, ambos podendo ocorrer simultaneamente em uma deter-minada sociedade e cultura e no apenas em diferentes sociedades e culturas, ou em sociedades e culturas especficas em diferentes pontos do tempo8.

    A anlise sociolgica eliasiana busca, nessa direo, resolver uma questo central das cincias sociais, que a oposio entre indivduo e socie-dade, por meio do que ele vai nominar de sociedade dos indivduos e vai explorar conceitualmente, e desenvolver em uma direo mais diretamente metodolgica, em uma coleo de ensaios que compem o livro do mesmo nome, Sociedade dos indivduos (ELIAS, 1994). Para Elias, assim, essa oposio resolvida ao se considerar o mbito social como composto pelas leis autnomas das relaes entre as pessoas individualmente consideradas. Para ele, portanto, o indivduo sempre existe na relao com os outros, e essa relao possui uma estrutura particular, que especfica da sociedade em que os indivduos vivem.

    Essa relao singular, em Elias, sempre satisfaz um processo de individualizao, que impele cada indivduo, por meio da estrutura social, que ele chama de Rede Humana, a um alto grau de controle e transformao

    7 Para uma definio e anlise sobre os processos descivilizadores ver, principalmente, a grande obra eliasiana Os alemes (1997).

    8 Cabe, nesse momento, mais uma pequena digresso explicativa desse movimento e sua implicao para a anlise sociolgica e para a anlise das cincias sociais e histricas: para Elias, sempre existe um grau de indeterminao nos processos sociais, acompanhando, deste modo, a anlise weberiana e simmeliana de indeterminao. Ao pensar a disciplina sociolgica como disciplina cientfica, ele informa que, embora toda compreenso possibilite predies de uma ou outra espcie; qualquer tentativa nessa direo pode ser desastrosa e no passar de apenas profetizaes sobre o futuro.

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    dos seus instintos. Daqui d para ver e inferir as constantes interseces entre a sua anlise no interior de uma Sociologia dos Afetos e das Emoes e seus cruzamentos e entrecruzamentos com os veios analticos de suas Sociologias Figuracional e Processual.

    O processo de individualizao, assim, nada mais do que um tecer e destecer ininterrupto das ligaes dos seres humanos com outros seres humanos. , nesse sentido, por meio dessa construo contnua do que ele denomina de rede humana9, e atravs de relaes sociais estabelecidas no seu interior, que a teoria eliasiana tenta resolver a questo da relao indivduo e sociedade. Os seres humanos, juntos, compem um contnuo scio-histrico, de onde cada um deles e por onde cada pessoa cresce e se desenvolve como participante e coparticipante desse contnuo, a partir de um determinado ponto desse processo ou continuum scio-histrico singular.

    Nessa ideia processual, est implcito que o indivduo nasce, cresce e se desenvolve a partir de um momento especfico desse contnuo, que molda e compromete o indivduo dentro das Redes ou Teias de Sentidos de uma configurao social especfica e lhe confere todo o alcance de sua vida. O que significa e demonstra, em outras palavras, a dependncia do indivduo em relao aos outros e a dependncia dos outros a ele. Ou me-lhor, e ainda, s funes dos outros para com ele (indivduo) e as funes dele para com os outros.

    Esse continuum de seres humanos interdependentes, para Elias, des-te modo, o objeto de estudo principal da Sociologia, seja ela Figuracional, Processual, mas tambm a dos Afetos e das Emoes. J que todas se com-plementam e constroem a singularidade do objeto e da anlise sociolgica, e por que no, das cincias sociais e histricas. Seguindo nesse raciocnio e de acordo com a formulao eliasiana, se chega concluso plausvel de que a Rede Humana ou Sociedade produz no apenas o semelhante e o tpico, mas tambm o individual. Deste modo, uma pessoa qualquer s pode dizer eu se e porque pode dizer ns. Nesse momento, o seu conceito de habitus pode ajudar bastante nesta reflexo.

    9 Em Elias, bom frisar e sempre bom pensar tambm que o contnuo no pode ser pensado sem possibilidade de descontinuidade.

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    O conceito de habitus em Elias

    Antes de iniciar a discusso da noo de habitus em Elias, necessrio mais uma pequena digresso: o termo habitus usado por Elias no livro O processo civilizador, de 1939, seria utilizado por ele, de forma contundente, mais tarde, quase 40 anos depois, em Os alemes (ELIAS, 1997), obra considerada por alguns autores como seminal e para outros a sua segunda mais importante desde O processo civilizador, e nos livros A sociedade de corte (ELIAS, 2001), Os estabelecidos e os outsiders (ELIAS, 2000), A sociedade dos indivduos (ELIAS, 1994), entre outros.

    De acordo com Dunning e Mennell (1997, p. 9), o conceito de habitus, apesar de popularizado por Pierre Bourdieu, foi usado de forma contundente por Elias em seu seminal O processo civilizador, de 1939; Nathalie Heinich (2001) corrobora o argumento de Dunning e Mennell e conta que Pierre Bourdieu teve acesso a um dos exemplares de O processo civilizador, na sua edio de 1939, de um Elias ainda s margens da socio-logia instituda e annimo para o grande pblico acadmico, dele retirando o conceito de habitus, sem o citar, e o popularizando, fazendo dele um dos conceitos-chave de sua sociologia.

    No livro sobre Trabalho e trabalhadores na Arglia, de 1963 (BOURDIEU, 1963), utiliza pela primeira vez o conceito de habitus que, nesse primeiro momento de uso, corresponde a uma espcie de matriz, de-terminada pela posio social do indivduo: o que permite a quem o veste pensar, ver e agir nas mais variadas situaes. O conceito de habitus na sua utilizao posterior, em Bourdieu, sobretudo a partir do livro A distino, de 1979 (BOURDIEU, 2011), traduz estilos de vida, julgamentos polti-cos, morais e estticos e , tambm, um meio de ao que permite criar ou desenvolver estratgias individuais e coletivas.

    O conceito bourdiesiano de habitus, assim, de acordo com Heinich, seria uma apropriao da noo eliasiana de habitus10. Para Bourdieu, tanto quanto para Elias, a noo de habitus evidencia a dependncia dos indivduos em relao aos comportamentos, ao mesmo tempo apreendidos

    10 Como um autor desconhecido do grande pblico e mesmo no interior da academia na poca, Bourdieu no se preocupou em cit-lo, apropriando-se do conceito e dando ao mesmo uma roupagem pessoal.

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    e prprios do grupo a que o indivduo pertence. Porm, seguindo Heinich (2001, p. 131), diferente da proposta eliasiana circunscrita em seu conceito e aplicao de habitus, a noo de habitus em Bourdieu no est relacionada com a livre-escolha dos indivduos.

    O conceito de habitus para Elias, portanto, vai alm e significa a configurao social dos indivduos, uma espcie de um saber social incor-porado, ou uma segunda natureza do indivduo em sociedade. Segundo Dunning e Mennell (1997), o conceito foi usado por Elias para, em grande parte, superar os problemas trazidos pela antiga noo de carter nacional, muito usada na sociologia e na antropologia, principalmente americana, do incio do sculo XX.

    Para Elias, a identidade eu-ns parte integrante do habitus social de uma pessoa e, como tal, se encontra aberto individualizao. A noo de habitus em Elias, assim, uma construo conceitual que utiliza a figura de uma espcie de balana eu-ns como instrumento de observao. Balana eu-ns essa que indica sempre um equilbrio tenso e frgil na relao entre indivduo (eu) e sociedade (ns), fortalecendo o seu entendimento da rede humana como um continuum em permanente mudana e conservao, de forma simultnea e contraditria. O que o leva a demonstrar o social como um combinado de interdependncias entre indivduos em desenvolvimentos indeterminados e composto por jogos e alianas entre seus membros. De-monstra, tambm, que esses movimentos interacionais em redes humanas de ao nunca satisfazem a um projeto individual ou coletivo determinado, mas so sempre resultado do jogo e da sua composio singular de mo-mentos especficos onde as alianas se formaram e do frgil contedo do conjunto de projetos dspares que a informam e que a satisfazem em uma contraposio com outras alianas e conformaes tambm singulares ou dispostas contidas no jogo conformado pela balana eu-ns configurada em um tempo-espao especfico.

    Dessa forma, o conceito de habitus pode ser entendido como a incorporao nos indivduos de um ethos sociocultural no interior de uma sociabilidade dada, neles sedimentados como uma espcie de figurao constituda pela tradio, costumes e mores. Isto , pelas maneiras, estilos e modos, moralidade, formas de agir e de conduta, e pelas construes imaginrias e formas dos eus e dos ns verem a si prprios, aos outros e ao mundo (ELIAS, 1997, p. 30-31).

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    Em Elias, assim, diferente de Bourdieu, o conceito de habitus pode mudar com o tempo, porque, para a anlise eliasiana, as experincias de um indivduo no interior de uma configurao ou sociedade, ou de uma nao, e seus agrupamentos esto em movimento contnuo, mesmo que com mais lentido em um momento e mais acelerao em outros, e, ao mesmo tem-po, nesse processo vo se acumulando os novos aos habitus mais antigos, transfigurando-os, reformando-os ou sendo a eles incorporados, sempre com uma boa dose de tenso.

    Elias enfatiza nesse movimento as tenses entre indivduos e sociedade e novas conformaes como fundamento, tanto dos processos sociais quanto das mudanas nos cdigos de conduta e figuraes emocio-nais dos indivduos e das redes por eles dispostas. Embora, de acordo com a sua anlise, um substrato dessas tenses e conformaes possa preexistir por uma longa durao, no imaginrio e nas pulses sociais e pessoais dos indivduos que coabitam um mesmo espao interacional em termos de interdependncia e modos de vida comum: em forma, enfim, de um povo. O que deixa marcas peculiares no registro cultural, social e emocional de uma sociabilidade dada, tanto em nvel individual quanto coletivo.

    O conceito de habitus eliasiano, deste modo, implica sempre uma noo de equilbrio na balana eu-ns no interior das tenses emocionais e configuracionais das redes de interdependncia e de novas conformaes que se do nos processos de continuidade, conformidade e mudana11.

    Interdependncia entre pessoas

    A Sociologia Figuracional eliasiana, assim, segundo o prprio Elias (1994, p. 150-151), parte da definio da sociedade, como j dito anteriormente, como uma rede humana, ou melhor, como uma interdepen-dncia das pessoas, que, para ele, tem o sentido de ver o social como uma espcie de estruturas sociais entrelaadas. Desta maneira, o conceito de Figurao ou de Configurao pode ser entendido como o padro mutvel

    11 Ver, por exemplo, as pginas 35 a 51 de Os alemes (ELIAS, 1997), onde trata de forma acurada da questo.

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    criado pelo conjunto dos participantes12, isto , pela totalidade das aes individuais nas relaes que sustentam uns indivduos aos outros em uma figurao, em uma sociedade ou em uma Rede Humana.

    Esta figurao, de acordo com o raciocnio eliasiano, forma uma espcie de entrelaado flexvel de tenses. Formulao, ao que parece, que leva ao entendimento de que a interdependncia dos participantes na rede humana configuracional s pode ser pensada como uma interdependncia de aliados ou de adversrios. nessa direo e sentido que Elias define o conceito de foras sociais, importante em sua conformao terica. Para Elias (1980), desse modo, a noo de foras sociais pode ser definida como a energia exercida pelas pessoas sobre as outras pessoas e sobre elas prprias.

    Nesse movimento prprio de reflexo, compreende o conceito de totalidade social como uma configurao de seres humanos interdependentes (ELIAS, 1980). Compreenso que remete o conceito de totalidade social noo de Equilbrio, este pensado, por sua vez, atravs da figura de uma balana eu-ns. atravs do conceito de equilbrio, pensado atravs de uma balana eu-ns e pressuposto a partir de uma noo de totalidade social, vista como uma interdependncia tensional entre seres humanos no encontro dos outros e de si prprios, que Elias chega ao conceito de Ordem Social.

    O conceito de ordem social em Elias parte do mesmo pressupos-to e se encontra no interior do mesmo sentido do que ele intitula Ordem Natural. Assim, de acordo com sua anlise (ELIAS, 1980), a decadncia e a destruio tm o seu lugar, lado a lado, com o crescimento. E a morte e a desintegrao habitam, lado a lado, com o nascimento e a integrao. Dessa forma, nesta mesma lgica reflexiva, o conceito de funo, em Elias, deve ser entendido como um conceito que pressupe relao: s se pode falar em funes sociais quando se est referindo a interdependncias, que constrangem as pessoas dentro de uma maior ou de uma menor amplitude (ELIAS, 1980). E, nessa mesma direo reflexiva, compreende o cotidiano e sua rotinizao como o campo fundamental de interesse das cincias sociais e de sua busca de compreenso do social (ELIAS, 1980, p. 112).

    Em um primeiro esforo de sntese do at agora falado, se pode dizer que, para Elias (1994), os indivduos em sociedade vivem uma existncia no finalista, por onde se misturam imagens variveis de seus objetivos,

    12 Como metfora para a ilustrao, Elias utiliza a imagem dos jogos coletivos, como o futebol, entre outros.

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    em uma espcie de ordem invisvel da vida em comum. Ordem invisvel esta que no pode ser diretamente percebida em forma de funes e de comportamentos possveis.

    A todo ou em cada momento os indivduos se encontram em mo-vimento, criando um tecido de relaes mveis (ELIAS, 1994, p. 28) e afirmando o social (ns) e a individualidade de cada ser humano em sociedade. Por outro lado, mas seguindo a mesma lgica reflexiva, todo o processo de individualizao depende da rede de relaes sociais que conformam a estrutura de uma dada sociedade.

    A individualidade, deste modo, especfica de cada sociedade e a cognoscividade dos indivduos sociais produz uma autoimagem individual que constituir a roupagem externa de suas relaes com os outros indiv-duos. Esta autoimagem, por sua vez, constitui a expresso singular de uma tambm singular conformao histrica dos indivduos em suas relaes (ELIAS, 1994, p. 32).

    Falando agora em termos da sociologia processual eliasiana, se pode perguntar quais seriam os princpios bsicos da sua Sociologia. Utilizando aqui um artigo de Elias intitulado Zeitschrift fr Gundlegung einer Theorie sozialer Prozesse (Para uma teoria dos processos sociais), publicado no Zeitschrift fr Soziologie (Jornal de Sociologia) (ELIAS, 1977) e com verso em ingls no British Journal of Sociology, com o ttulo Towards a theory of social processes (ELIAS, 1997a), possvel responder a esta questo levantando quatro pontos principais. O primeiro deles informa que para Elias as cincias sociais e a sociologia, em particular, trabalham com os indivduos no plural, o que ele identifica conceitualmente como figuraes. O segundo ponto informa que estas figuraes, ou melhor, esses indivduos no plural, agem de forma interdependente e se encontram em constante fluxo, isto , em movimento continuado.

    Seguindo a lgica do raciocnio, o terceiro ponto fala dos processos de desenvolvimento de longo prazo, que so, em larga medida, desenvol-vimentos no planejados e no previsveis. Para fechar a reflexo, o quarto ponto indica que o desenvolvimento dos saberes social e individual s pode se dar no interior das figuraes, isto , se processa internamente, por meio das relaes travadas por esses indivduos no plural e as redes que formam e conformam continuamente as interaes, conformando uma cultura e uma economia emocionais como produto das experincias e da vivncia desses indivduos em redes.

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    Assim, de acordo com Elias, o termo figurao pode ser definido como redes formadas por seres humanos interdependentes, com mudanas assimtricas na balana do poder. Esse modo conceitual d nfase ao car-ter processual e dinmico das redes criadas pelos indivduos e traz em si o efeito demonstrativo de informar que incorreto explicar eventos sociais em funo das aes humanas intencionais. Para Elias, deste modo, os processos so engendrados pelo entrelaar de aes intencionais e planos de muitos indivduos, embora nenhum deles os tenha planejado ou desejado individualmente.

    Segundo Elias (1980, p. 50), no livro Introduo Sociologia, a interpenetrao de indivduos interdependentes forma um nvel de inte-grao em que as formas de organizao, as formas de estruturao social e os processos no podem ser deduzidos das caractersticas biolgicas ou psicolgicas que constituem os indivduos. De acordo com a teoria eliasiana, assim, os processos sociais e culturais esto estruturados ao longo do pro-cesso civilizatrio de uma rede humana singular. Para explicar melhor esse pensamento, Elias (1987), em um longo artigo publicado na revista Theory, Culture and Society, intitulado The retreat of sociologists into the present (O refgio dos socilogos no presente), informa ao leitor as quatro funes elementares das redes humanas ou sociedades13: a primeira funo, para ele, tem base econmica e se encontra associada sobrevivncia dos indivduos; a segunda associada ao controle da violncia, interna e externa; a terceira funo, por sua vez, estaria ligada ao processo de obteno do saber; e a quarta funo, por fim, seria a funo de autocontrole.

    De posse dessas quatro funes, Elias (1980, p. 52) afirma que a individualidade s pode ser vista atravs da expresso da maneira particular, bem como do grau em que a forma do comando psquico de um indivduo se distingue dos demais indivduos. O que o leva a afirmar que a sociedade no apenas um fator de uniformizao, mas, tambm, de individualizao (ELIAS, 1980, p. 103).

    O que nos faz retomar, aqui, mais uma vez, a importncia da noo de habitus na obra eliasiana. A noo de habitus, em Elias (1990; 1993), no seu livro O processo civilizador, descreve a maneira como so individual-mente incorporadas as modalidades de percepo e de ao coletivamente

    13 Convm lembrar, aqui, que o conceito de funo em Elias est vinculado ao de relaes, como j se indicou anteriormente neste artigo.

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    desenvolvidas no sistema de interaes. Desse modo, o conceito eliasiano de habitus fornece um meio concreto de contornar a dicotomizao indivduo e sociedade, ao mostrar que as emoes e as disposies vividas no plano individual se devem a processos coletivos de incorporao, amplamente inconscientes.

    Deste modo, possvel perceber que a noo de habitus em Elias engloba processos que vo dos comportamentos mais individualizados aos mais compartilhados, coletivos. O conceito de habitus eliasiano, assim, con-duz os indivduos nele envolvidos a serem ao mesmo tempo depositrios e atores de uma identidade coletiva, ou melhor, como um ethos ou como uma identidade nacional, como ele trabalha, por exemplo, em Os alemes (1997).

    O conceito eliasiano de habitus, assim, aponta para a concretizao das relaes praticadas entre planos muito diferentes e heterogneos da experincia; relaes que vo, de acordo com a anlise desenvolvida em Os alemes, desde a competncia para a interao subscrita no espao social at a performance produzida pelos indivduos em situao.

    Notas finais

    Em resumo, no conjunto de sua obra Elias argumenta que o processo civilizador, no ocidente, se constituiu e emergiu assentado em uma nova sensibilidade, cuja caracterstica principal pode ser assentida no processo de internalizao da vergonha, visto como um dos conceitos-chave para a anlise das emoes e das relaes entre indivduos e sociedade. Processo este que tornou possvel um crescente e expandido controle dos impulsos e conduziu racionalizao da economia psquica mediante a diferenciao interior da vida interna dos indivduos em redes inter-relacionais. A obra eliasiana deste modo elabora como vimos no decorrer deste ensaio uma apreciao profunda sobre um amplo espectro de questes e temticas, abrangendo, entrecruzando e, por que no, transcendendo e ultrapassando fronteiras disciplinares. Sua obra navega por campos disciplinares e terico--metodolgicos da histria, da sociologia, da psicologia, da filosofia, da antropologia, da psicanlise e de outras reas afins, e abre caminho para a compreenso da categoria emoes como uma categoria central para a

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    anlise de um social e de um cultural dado (KOURY, 2009). Esta elabora-o permitiu a construo de um modelo lgico e coerente de apreenso da relao sempre tensa e ao mesmo tempo interdependente entre indivduos e sociedade a partir do estudo do cotidiano de suas redes interacionais.

    Cabe afirmar, por fim, que, de acordo com Elias, preciso dire-cionar as cincias sociais e a sociologia, em particular, para o estudo dos processos, das mudanas e das relaes. Isto , para o estudo e pesquisa das prticas cotidianas e dos sistemas emocionais em rede e da dinmica das posies, como, por exemplo, o processo de estigmatizao em uma rede humana singular, ou em um coletivo especfico, como o trabalhado por ele no livro Os estabelecidos e os outsiders (ELIAS, 2000), ao invs de um direcionamento das investigaes para uma ontologia dos seres, entendida no contexto eliasiano como o estudo das categorias sociais e das propriedades de classe, entre outros aspectos.

    Essa nota sobre a necessidade de mudana do olhar compreensivo na pesquisa das cincias sociais como um todo e na sociologia, de modo particular, traz um alerta sobre a obrigatoriedade destes campos cientficos de romper com a dura fachada dos conceitos reificantes que reforam a im-presso de que a sociedade composta de formaes apenas situadas fora do eu singular, do indivduo, deixando de lado a vida pulsante e tensional das interdependncias entre os seres humanos que possibilitam configuraes sociais e culturais especficas, em contnuo movimento, isto , sempre em possibilidade tensional de mudana e mutao, e que so o fundamento da teoria social eliasiana e ponto de partida de uma sociologia das emoes.

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    Recebido em outubro de 2013.Aprovado em novembro de 2013.