Emoções na disputa política - abant.org.br · 11 Viviana Zelizer, no texto “Dinheiro, poder e...

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1 Emoções na disputa política: a arena pública atravessada por "amor" 1 Bernardo Fonseca Machado 2 USP/São Paulo Palavras-chave: amor, emoções, discursos políticos A palavra “amor” evoca uma multiplicidade de sentidos. É comum ouvir que “amor” é ingrediente fundamental para a salvação religiosa, essência das relações entre as pessoas e indispensável para a existência humana – canções, livros, filmes e novelas estão repletos de afirmações desse teor. Notável, entretanto, como não se costuma associar “amor” à esfera política. Pode-se amar uma causa, uma ideologia, mas no momento de disputas de agenda, não é comum evocar o “amor” como argumento para obter vantagens e conquistar demandas. Isso está em processo de mudança. Nos últimos anos, aqui e acolá, o termo “amor” foi empregado em plena arena pública para qualificar – ou desqualificar – discursos de agentes. Trabalho neste texto com duas ocasiões: primeiro, as manifestações denominadas “mais amor em SP”, ocorridas durante 2012, ano eleitoral na capital do estado de São Paulo, Brasil; e, segundo, o hashtag 3 “#lovewins” – “#OAmorVence” em português – publicado e divulgado em 26 de junho de 2015 após a suprema corte dos Estados Unidos aprovar a união civil entre pessoas do mesmo 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dia 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. Desdobramento teórico de minha pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) denominada Produzindo Emoções: o cenário do teatro musical na cidade de São Paulo no século XXI. 2 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Lilia Katri Moritz Schwarcz. 3 Hashtags são indexações de palavras na internet. Essa marcação de termos ocorre quando a palavra- chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). As hashtags viram hiperlinks dentro da internet, uma vez indexados, os termos podem ser clicados ou buscados em mecanismos como o Google. As hashtags mais usadas no Twitter ficam agrupadas como Trending Topics, isso é, “tópicos mais usados ou acessados”. 4 O livro de Lutz, Unnatural Emotions é considerado um marco desse campo. A autora realiza um esforço para desconstruir da ideia de que “emoções” são originadas de determinantes psicológicas individuais e simultaneamente universais. Ela descreve que, enquanto ouvia as pessoas do grupo Ifaluk falarem, anotava uma linguagem marcada por palavras emotivas: “tornou-se claro para mim que os conceitos de emoção podem, de maneira rentável, ser vistos como tendo fins comunicativos, morais e Desdobramento teórico de minha pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) denominada Produzindo Emoções: o cenário do teatro musical na cidade de São Paulo no século XXI. 2 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Lilia Katri Moritz Schwarcz. 3 Hashtags são indexações de palavras na internet. Essa marcação de termos ocorre quando a palavra- chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). As hashtags viram hiperlinks dentro da internet, uma vez indexados, os termos podem ser clicados ou buscados em mecanismos como o Google. As hashtags mais usadas no Twitter ficam agrupadas como Trending Topics, isso é, “tópicos mais usados ou acessados”.

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Emoções na disputa política: a arena pública atravessada por "amor"1

Bernardo Fonseca Machado2

USP/São Paulo Palavras-chave: amor, emoções, discursos políticos

A palavra “amor” evoca uma multiplicidade de sentidos. É comum ouvir que

“amor” é ingrediente fundamental para a salvação religiosa, essência das relações

entre as pessoas e indispensável para a existência humana – canções, livros, filmes e

novelas estão repletos de afirmações desse teor. Notável, entretanto, como não se

costuma associar “amor” à esfera política. Pode-se amar uma causa, uma ideologia,

mas no momento de disputas de agenda, não é comum evocar o “amor” como

argumento para obter vantagens e conquistar demandas.

Isso está em processo de mudança. Nos últimos anos, aqui e acolá, o termo

“amor” foi empregado em plena arena pública para qualificar – ou desqualificar –

discursos de agentes. Trabalho neste texto com duas ocasiões: primeiro, as

manifestações denominadas “mais amor em SP”, ocorridas durante 2012, ano eleitoral

na capital do estado de São Paulo, Brasil; e, segundo, o hashtag3 “#lovewins” –

“#OAmorVence” em português – publicado e divulgado em 26 de junho de 2015 após

a suprema corte dos Estados Unidos aprovar a união civil entre pessoas do mesmo                                                                                                                1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dia 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. Desdobramento teórico de minha pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) denominada Produzindo Emoções: o cenário do teatro musical na cidade de São Paulo no século XXI. 2 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Lilia Katri Moritz Schwarcz. 3 Hashtags são indexações de palavras na internet. Essa marcação de termos ocorre quando a palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). As hashtags viram hiperlinks dentro da internet, uma vez indexados, os termos podem ser clicados ou buscados em mecanismos como o Google. As hashtags mais usadas no Twitter ficam agrupadas como Trending Topics, isso é, “tópicos mais usados ou acessados”. 4 O livro de Lutz, Unnatural Emotions é considerado um marco desse campo. A autora realiza um esforço para desconstruir da ideia de que “emoções” são originadas de determinantes psicológicas individuais e simultaneamente universais. Ela descreve que, enquanto ouvia as pessoas do grupo Ifaluk falarem, anotava uma linguagem marcada por palavras emotivas: “tornou-se claro para mim que os conceitos de emoção podem, de maneira rentável, ser vistos como tendo fins comunicativos, morais e

Desdobramento teórico de minha pesquisa de doutorado financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) denominada Produzindo Emoções: o cenário do teatro musical na cidade de São Paulo no século XXI. 2 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo sob a orientação da Profa. Dra. Lilia Katri Moritz Schwarcz. 3 Hashtags são indexações de palavras na internet. Essa marcação de termos ocorre quando a palavra-chave do assunto antecedida pelo símbolo cerquilha (#). As hashtags viram hiperlinks dentro da internet, uma vez indexados, os termos podem ser clicados ou buscados em mecanismos como o Google. As hashtags mais usadas no Twitter ficam agrupadas como Trending Topics, isso é, “tópicos mais usados ou acessados”.

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sexo. A partir dessas duas ocasiões, procuro dialogar com o que se convencionou

chamar de Antropologia das Emoções.

A respeito do assunto, nos anos 1980, proliferaram estudos na área da

antropologia que tomaram “emoções” como objeto. Michelle Rosaldo (1980), Robert

Solomon (1984), Lila Abu-Lughod (1986) e Catherine Lutz (1986)4 são alguns dos

nomes do que posteriormente será chamado de antropologia das emoções. Comum à

essa literatura, sobretudo no início, era a pesquisa das “emoções” em sociedades

“não-euro-americanas” ou em contextos “não-ocidentais” 5. Anos depois, durante a

década 2000, serão pesquisadoras na área de gênero que retornam ao debate e fazem a

pesquisa avançar, tomando como objeto as sociedades urbanas e utilizando, muitas

vezes, uma abordagem interseccional (Constable, 2009).

No Brasil, exemplo de pesquisadoras que assumiram as “emoções” como

objeto para análise são Maria Claudia Coelho (2006, 2010a, 2010b) e Claudia

Barcellos Rezende (2009, 2010)6. Particularmente, em 2010, Coelho explora relatos

de pessoas que foram vítima de assaltos a suas residências. Seu texto revela como

manifestações emotivas dos sujeitos estão inseridos em uma micropolítica das

emoções – isso é, Coelho revela “a capacidade que as emoções têm de atualizar, na

                                                                                                               4 O livro de Lutz, Unnatural Emotions é considerado um marco desse campo. A autora realiza um esforço para desconstruir da ideia de que “emoções” são originadas de determinantes psicológicas individuais e simultaneamente universais. Ela descreve que, enquanto ouvia as pessoas do grupo Ifaluk falarem, anotava uma linguagem marcada por palavras emotivas: “tornou-se claro para mim que os conceitos de emoção podem, de maneira rentável, ser vistos como tendo fins comunicativos, morais e culturais complexos em vez de simplesmente como rótulos para os estados internos cuja natureza ou essência se presume ser universal” (Lutz, 1988, p.5). Lutz, posteriormente em entrevista concedida à Revista Mana (2012) revela como o livro era uma resposta às referências e debates que ocorriam em Harvard na época de seu doutorado: a exposição à antropologia psicológica e ao pós-estruturalismo. Trecho acima livremente traduzido de “As I listened to people speak the language of emotion in everyday encounters with each other on Ifaulk atol, it became clear to me that the concepts of emotion can more profitably be viewed as serving complex communicative, moral, and cultural purposes rather than simply as labels for internal states whose nature or essence is presumed to be universal” (Lutz, 1988, p.5). 5 Para saber mais sobre essa literatura, há fontes variadas. Em 1984, Richard Shweder e Robert LeVine organizaram um volume cujos capítulos – assinados por antropólogos e antropólogas importantes do período – tratavam da relação entre a mente, o “self” e as emoções. Na ocasião, tomar as “emoções” como objeto de analise fazia parte da estratégia da então crescente antropologia culturalista: as emoções teriam fins comunicativos, não seriam estados internos com natureza universal. Alguns anos depois, em 1990, foi publicado o livro Language and the politics of emotion por Lila Abu-Lughod e Catherine Lutz. Nele as autoras diagnosticavam quatro tipos de abordagem analítica sobre emoções: essencialista, relativista, historicista e contextualista e propunham uma abordagem que tomasse os discursos emotivos como atos pragmáticos e performances comunicativas. No Brasil, um livro de bolso foi escrito por Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho (2010). Denominado Antropologia das Emoções, ele mapeia as grandes discussões que atravessaram a disciplina, os pressupostos teóricos e os autores que estudaram e tangenciaram o assunto. 6 Com abordagem distinta, mas tocando em questões semelhantes, Laura Moutinho (2004) salienta como relações afetivo-sexuais são marcadas por raça e gênero.

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vivência subjetiva dos indivíduos, aspectos de nível macro da organização social”

(Coelho, 2010a, p.266).

No que diz respeito ao “amor”, a pesquisadora Tania Salazar (2012), da

universidade de Guadalajara, mapeou diversas pesquisas nas ciências sociais que

abordaram o tema. Segundo ela, há quatro enfoques teóricos diversos que investigam

o assunto: sócio-estrutural, sócio-histórico, cultural e de crítica cultural. As leituras

trazem reflexões acerca dos contextos sócio históricos e das dimensões culturais que

explicariam o amor: o individualismo, a mercantilização e a modernidade seriam

grandes movimentos que justificariam a existência do afeto da maneira como ele se

apresenta no mundo “ocidental”. Saliento como nenhuma das abordagens faz menção

à categoria “amor” na esfera pública; o material abordado se debruça exclusivamente

nas relações íntimas entre agentes7.

As reflexões que levanto procuram chamar a atenção para o caráter público

que o “amor” pode assumir em determinadas situações, não apenas nas relações entre

indivíduos, mas também como mecanismo discursivo político. Sendo assim, procuro

explorar os rendimentos que uma análise como essa pode oferecer8. Deixo claro,

desde já, que “amor” é tomado como categoria êmica, e não analítica – sigo os usos

que a palavra assumiu nas circunstâncias selecionadas9. Por “discursos políticos”,

entendo os discursos acionados por pessoas e grupos com objetivo de pautar a agenda

de movimentos sociais, governos, membros da sociedade civil e outros.

Procuro sinalizar como discursos que usam o termo “amor” operam um

deslocamento semântico: com a mobilização do “afeto” 10 pretende-se um argumento

“universal” e não marcado por interesses determinados. Seria uma estratégia política,

afinal “o amor atravessa fronteiras”. Chamo essa operação de “sentimentalização dos

                                                                                                               7 Para saber mais sobre o que se entende por “estudos de amor”, ver Jónasdóttir & Ferguson (2014). As autoras defendem a possibilidade de estudar o amor com ferramentas oriundas do feminismo e do marxismo. Esta não é a empreitada deste texto, embora o livro de Jónasdóttir & Ferguson auxilie na compreensão da defesa do amor como matéria para pesquisa. 8 Segundo Cole e Thomas (2009) é necessário dessacralizar e relativizar a noção de amor a fim de produzir uma reflexão sobre ela.  9 É preciso atenção a respeito deste assunto. Em artigo de 1996, Peter Fry discute as limitações do termo “raça” como categoria analítica. Segundo ele, uma das regras fundamentais do método antropológico é estabelecer uma clara distinção entre as descrições e categorias do analista e os conceitos e descrições utilizados pelos sujeitos presentes em campo, comprometendo a clareza das análises e a verticalidade que as pesquisas podem assumir.    10 Destaco que as palavras afeto, emoção e sentimento são usadas de maneira intercambiável no texto, apesar de elas poderem funcionar com significados diferenciados em disciplinas específicas. Por exemplo, na psicologia e na psicanálise, afeto é geralmente usado para indicar a manifestação física de uma emoção enquanto emoção é presumida para indicar um estado individual específico. Para saber mais sobre essa discussão, cf. Cole & Thomas, 2009.

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discursos políticos”. Tomo com inspiração para a expressão o livro de Rafael de la

Dehesa: Queering the public sphere in Mexico and Brazil (2010). No texto, o autor

destaca como agentes dos movimentos sociais LGBT inseriram-se nos espaços

estatais e passaram a produzir políticas públicas específicas para essa população.

Supostamente purificada, a esfera pública aparecerá não como o campo “racional”

cujas decisões são livres de emoções, muito pelo contrário, se mostra embebida em

ímpetos afetivos11. Portanto a questão é: como e por que o “amor” foi acionado nos

debates políticos em questão?

Existe amor em SP

No dia 21 de outubro de 2012 – entre o primeiro e o segundo turno das

eleições municipais para a prefeitura de São Paulo – ocorreu, na Praça Roosevelt,

região central, um festival chamado “Existe Amor em SP”. Grupos envolvidos com a

produção cultural da cidade tinham como objetivo mostrar para os então candidatos à

prefeitura, Fernando Haddad12 (PT) e José Serra13 (PSDB), que na capital paulista

haveria um “espírito de solidariedade e resistência política que transcende partidos e

regiões”14. Na ocasião, os organizadores reuniram, segundo suas estimativas, cerca de

8 mil pessoas.

Embora o festival tenha sido caracterizado por uma manifestação pública e

volumosa, o assunto – a existência ou não de amor na cidade – já circulava em

                                                                                                               11 Viviana Zelizer, no texto “Dinheiro, poder e sexo” (2009), está preocupada em apontar como muitos pesquisadores supõem que há “esferas separadas” da vida social que operam de acordo com princípios diferentes: racionalidade, eficiência e planejamento, de um lado; solidariedade, sentimento e impulso, de outro. A atividade econômica pertenceria à primeira esfera, as relações sexuais à segunda. O que Zelizer procura atentar é justamente para a coexistência das duas esferas. Este trabalho segue esta inspiração analítica evitando polarizar esferas – a política e a intimidade. 12 Fernando Haddad nasceu em 1963 em São Paulo. É bacharel em direito, mestre em economia e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo. Iniciou sua carreira política em 2001 como chefe de gabinete da Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico do município na gestão da então prefeita Marta Suplicy. Em 2003 foi convidado para integrar o Ministério do Planejamento do Governo Federal e, em 2004, se tornou o Secretário-Executivo do Ministério da Educação. Em 2005 assumiu o cargo de Ministro da Educação no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. E, em 2012, o Partido dos Trabalhadores formalizou a candidatura de Haddad para concorrer as eleições daquele ano.    13 Natural da capital paulista, nascido em 1942 é economista e político brasileiro filiado ao PSDB. Com longa carreira política, foi candidato à prefeitura de São Paulo, pela primeira vez, em 1996, terminando a corrida em terceiro lugar, com 810 mil votos (atrás de Celso Pitta e Luiza Erundina). Em 2002, foi candidato à presidência da República e derrotado no segundo turno por Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2004, concorreu, pela segunda vez, a prefeitura de São Paulo, e, dessa vez, saiu vencedor com 3,3 milhões de votos. Nas eleições seguintes, em 2006, concorreu para governador do Estado e foi, novamente, eleito. Já em 2010, lançou sua candidatura para presidente e foi derrotado por Dilma Rousseff. Torna-se candidato, pela terceira vez, à prefeitura de São Paulo, em 2012, e perde para Fernando Haddad. 14 Extraído de https://www.facebook.com/events/433169650073617/. Acesso em 21/07/15

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jornais, músicas e nas falas de alguns paulistanos. A nomeação do evento fazia

referência à música “Não existe amor em SP” lançada em 2011 no álbum “Nó na

Orelha” do rapper Criolo15. A letra declarava: “Não existe amor em SP/ Os bares

estão cheios de almas tão vazias/ A ganância vibra, a vaidade excita/ Devolva minha

vida e morra/ Afogada em seu próprio mar de fel/ Aqui ninguém vai pro céu”.

Segundo o texto, a inexistência de amor na cidade estaria intrinsecamente relacionada

à presença de ganância e vaidade. A lógica é de exclusão: quando há ganância e

vaidade anula-se a possibilidade de respiros amorosos e salvação divina.

No mesmo ano, Adriana Küchler16, em 30/07/2011, para a Revista Folha São

Paulo17 perguntou para doze paulistanos diferentes: “Existe amor em SP?”. A matéria

estava diretamente inspirada na música de Criolo. As respostas foram diversas;

seleciono algumas para análise. Um chef de restaurantes declarou “Sim. É certo que

ele anda meio raro no meio de tanto caos e egoísmo, mas ainda existe muito amor em

SP para aqueles que têm coragem de amar (e errar e tentar de novo)”. Um artista

plástico disse: “Existe amor em SP. Soterrado nas profundezas dos coraçõezinhos

amortecidos pela aridez pálida da cidade, brilha falho tal qual vaga-lume em noite de

garoa”. Uma cantora afirmou: “Existe... muito... na aparente frieza. Na pressa... nas

ruas malucas... existem seres maravilhosos... Nasci aqui e tenho uma noção muito real

do amor maluco que envolve SP... É a mais bela cidade horrível do Brasil”.

Essa falas sintetizam, em metáforas, a experiência urbana que identificam na

cidade: caos, aridez e frieza18. O suposto é de que São Paulo seria caótica, egoísta,

árida e fria. Há uma espécie de personificação da cidade, um sujeito produtor de

efeitos em seus habitantes; o corpo urbano marcaria as experiências de seus cidadãos

e cidadãs. Contudo, embora a metrópole possua características não compatíveis com

afeto, ela seria dotada de amor. Os argumentos sinalizam que, apesar das adversidades

da cidade, o amor continua a existir.

                                                                                                               15 Nascido em São Paulo em 1975, atua como rapper desde 1989. Em 2011 ganhou destaque nacional e levou o prêmio “Música do Ano” e “Álbum do ano” no Vídeo Music Brasil da MTV com o primeiro álbum gravado: o citado “Nó na orelha”.  16 Jornalista da Folha de São Paulo de 2005 até o momento. 17 Retirado de http://www1.folha.uol.com.br/revista/saopaulo/sp3107201105.htm acesso em 14/07/15. 18 Joan Scott, no texto, “A invisibilidade da experiência” (1998) problematiza abordagens analíticas que assumem a experiência de indivíduos como provas incontestáveis para a produção de análises. Segundo Scott, ao invés de assumir a experiência como origem para estudos, é importante partir de relatos de experiência e estudar como assuntos são constituídos como diferentes. Tornar visível a experiência dos sujeitos salientando como as diferenças são estabelecidas, como operam e como constituem os sujeitos que vêem e atuam no mundo, este deve ser o caminho de uma análise.

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No mesmo ano, em 15/04/11, Xico Sá, escreveu uma coluna sobre o CD de

Criolo no jornal Folha de São Paulo. O nome do texto era, dessa vez em forma de

afirmação, “Existe amor em SP”. O escritor chamava a atenção para manifestações

urbanas presentes na cidade: grafites e pichações estampavam muros e viadutos da

zona oeste. Eles diziam: “O amor é importante, porra” e “Mais amor, por favor”.

Nesses escritos não está claro o que se entende por “amor”, mas assume-se sua

necessidade e importância: “amor” é fundamental e não há discussão. O que os

grafiteiros ou grafiteiras lamentam é a ausência desse tipo de afeto na cidade. Xico Sá

ainda declarava, “O amor em SP é como o metrô da Paulista: começa no Paraíso e

termina na Consolação”. Presente na metrópole, o afeto estaria condenado a uma

trajetória de dor, justamente porque, ao final, o sujeito (ou o habitante) precisaria ser

consolado.

Nota-se como, desde 2011, há uma série de metáforas que circulavam sobre

“amor” e São Paulo. Tais metáforas informavam os sujeitos a pensar e enunciar suas

experiências19. Assim, um ano antes das eleições para a prefeitura do município, já

estava em discussão a dúvida acerca da presença ou ausência de “amor” na cidade.

Estes questionamentos evidenciavam o tema em processo de negociação.

Em 2012, quando a corrida eleitoral entrou em vigor, o candidato Celso

Russomanno (Partido Republicano Brasileiro – PRB20) assumiu, logo no início, o

primeiro lugar das intenções de voto. Em segundo lugar estava o candidato José Serra

(PSDB) e Fernando Haddad (PT) constava em terceiro na maior parte das pesquisas.

Por conta dessa conjuntura, foi organizada, nas redes sociais, uma reação ao

candidato Celso Russomanno. No dia 05 de outubro de 2012, às 20h, após

convocação realizada pela internet, diversas pessoas se reuniram na Praça Roosevelt,

região central de São Paulo, para manifestar-se contra a candidatura que estava, até

então, em primeiro lugar nas pesquisas de intensão de voto. A máxima da

manifestação era: “Amor sim, Russomanno não”.

                                                                                                               19 Sara Ahmed (2004) aposta que o uso de metáforas evidenciam como emoções se transformam em atributos de coletivos que se constroem como “seres” através de seus “sentimentos”. 20 Nascido em 1956 em São Paulo, formou-se em em direito pela Faculdade de Guarulhos. É especialista em defesa do consumidor. Tornou-se popularmente conhecido nos anos 1990 quando apresentava o programa Aqui Agora no SBT. Em 1994 foi eleito como deputado federal pelo PSDB, desde então, foi reeleito todas as vezes em que se candidatou. Em 2012, foi candidato à prefeitura da cidade de São Paulo.

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A frase constrói uma oposição entre “Amor” e “Russomanno” – uma pessoa

passa a ser o polo contrário de um sentimento21. O suposto é que o candidato Celso

Russomanno sintetizaria o que não é amor. Supõem-se que um sentimento deve ser

preservado em detrimento de um candidato à prefeitura. Há um deslizamento: o par

de oposição de “amor” não é um outro sentimento, mas sim uma pessoa,

“Russomanno”.

As fotos do evento revelam também uma escolha política e estética: o rosa

choque estampava bandeiras, enfeites, roupas e maquiagens das e dos manifestantes22.

Nas imagens publicadas pelo Circuito Fora do Eixo23, vê-se uma performance de

gênero feminina circulando na praça: mulheres com os seios à mostra e homens de

cílios postiços foram convocados por uma bandeira rosa – pigmento costumeiramente

associado ao feminino.

Fotos do Festival “Amor Sim, Russomanno Não” realizado na Praça Roosevelt em 05/10/12 Créditos: Circuito Fora do Eixo.

Não é possível desconsiderar que essa cor aparecia como uma alternativa para

o “azul” e o “vermelho” associados diretamente aos partidos que também disputavam

as eleições no período: PSDB e PT, respectivamente. Na ocasião, em 2012, a

prefeitura de São Paulo era disputada por nove homens e três mulheres24. Desde o

começo das pesquisas, apenas os candidatos homens estiveram com a maior

                                                                                                               21 Retirado de https://www.facebook.com/AmorSimRussomannoNao/info?tab=page_info Acesso em 14/07/15. 22 Uma série de fotos foi feita durante o evento, muitas delas estão disponíveis no endereço: http://bit.ly/AmorSimRussomannoNAO, acesso em 21/07/15 23 O Circuito Fora do Eixo é uma rede de coletivos culturais surgida no final de 2005 e ativa até hoje.  24 Candidatas e candidatos eram Ana Luiza de Figueiredo Gomes (PSTU), Anaí Caproni (PCO), Carlos Giannazi (PSOL), Celso Russomanno (PRB), Eymael (PSDC), Fernando Haddad (PT), Gabriel Chalita (PMDB), José Serra (PSDB), Levy Fidelix (PRTB), Miguel (PPL), Paulinho da Força (PDT) e Soninha (PPS).

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porcentagem de intenções de voto. Somadas, as mulheres receberam, ao final, o total

de 2,88% ou 176.580 dos votos25.

Portanto, o festival “Amor sim, Russomanno não”, travestido de rosa,

demandava “amor” e a saída de um dos candidatos homens da corrida eleitoral.

Talvez a escolha por essa tinta evidenciasse que aquele cenário político não

representava uma parcela da população – candidatos homens que não se preocupavam

com o afeto na cidade deveriam ser confrontados no espaço público por mulheres e

homens com performances de gênero feminina.

Duas semanas após a manifestação, um segundo evento, dessa vez

denominado “Existe Amor em São Paulo”, tomou conta da mesma Praça Roosevelt.

A página de convocação na rede social Facebook declarava:

Há 15 dias, instigada pela possibilidade de ter Celso Russomanno como prefeito, uma rede de pessoas e coletivos começou a emergir em São Paulo. Em poucos dias, um festival pensado na internet levou milhares de pessoas, debaixo de chuva, à Praça Roosevelt. "Amor Sim, Russomanno Não". Mais do que protestar contra o sujeito, a ideia era fazer de sua sombria candidatura o estopim de uma tomada de consciência pública. Um festival, rosa choque, libertário, apartidário e essencialmente político. Uma forma de quebrar o cinismo de muitos indignados que não se dignavam a falar alto. A noite foi linda26.

Tanto na página do Facebook quanto na matéria publicada pelo G1 em 21 de

outubro de 2012, há a afirmação de que a manifestação foi apartidária, organizada por

grupos os mais diversos27. O que o texto sugere é que o evento do dia 05/10/12 não foi

capitaneado por nenhum grupo/partido político em específico, embora estivesse

comprometido em ser “essencialmente político”. Notável como o que se entende por

“política” aparece, tal como o que se entende por “amor”, pouco definido. O texto do

evento continua:

E, para coroar o fim de semana, Celso Russomanno ficou fora do segundo turno. (...) Na mesma noite, um mapa eleitoral da cidade foi divulgado. E vimos uma São Paulo rigorosamente dividida entre um centro solidamente "azul", tucano, e uma periferia exclusivamente "vermelha", petista. Mais que estatística, o contraste em cores do mapa era o símbolo perfeito de uma leitura simplista, maniqueísta, da mentalidade política da cidade.

                                                                                                               25 Fonte http://eleicoes.uol.com.br/2012/candidatos/resultado.htm?dados-municipio-ibge-id=3550308&dados-cargo-disputado-id=11. Acesso em 21/07/15 26 Disponível em https://www.facebook.com/events/433169650073617/ acesso em 17/07/15 27 Dentre outros, participaram os grupos Sarau na Quebrada, Matilha Cultural, SampaPé e Fora do Eixo.

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Há anos SP vem se tornando mais agressiva, repressiva, individualista, proibida, militarizada. Enquanto favelas pegam fogo e a polícia ganha status de milícia, o poder político tenta acabar com o público em prol do privado. Acabar com a festa em prol do silêncio. Acabar com o pobre em prol do rico. Acabar com a justiça em prol da ordem. E, culturalmente, cria-se uma fronteira entre "azul" e "vermelhos" que só acirra ânimos e pânicos na cidade. Não acreditamos nessa falsa dualidade. É hora de mostrar que existe em São Paulo um espírito de solidariedade e resistência política que transcende partidos e regiões. Que há uma maneira mais atual, eficiente e inspirada de fazer política por aqui. São pedestres, ciclistas, trabalhadores, desempregados, artistas, ativistas, cidadãos de todos os bairros que estão se encontrando, articulando e descobrindo que, juntos, podem ocupar a rua em nome de uma cidade mais pública, humana, inclusiva e gentil. Uma cidade mais Rosa Choque! Uma cidade com mais amor!28

O discurso do excerto selecionado opera em uma lógica binária. Em um

primeiro parágrafo, sinaliza a oposição entre os dois partidos que disputariam a

prefeitura no segundo turno: PSDB e PT; azul e vermelho. Em seguida, aposta em

uma série de oposições que existiram na cidade: público e privado; festa e silêncio;

pobre e rico; e justiça e ordem. A proposta no terceiro parágrafo defende transcender

os binarismos a partir de um “espírito de solidariedade” e “resistência política”

sintetizada na frase “Uma cidade com mais amor!”.

A aposta: o “amor” poderia unificar polos políticos e acabar com a

desigualdade. O suposto: como o amor é universal, capaz de transcender “partidos e

regiões”, tornaria a cidade mais “pública, humana, inclusiva e gentil”. Não se trata de

qualquer tipo de amor, mas um marcado por gênero – feminino e rosa choque – capaz

de gerar gentileza entre cidadãos. Não é um amor cristão ou religioso que se faz

presente, tampouco um amor romântico, mas justamente um discurso de amor que

não se filia a partidos e pode circular livremente pela cidade, transformando-a em um

espaço sensível. O “amor” assume uma capacidade política transcendente.

Meses depois, em janeiro de 2013, o prefeito eleito, Fernando Haddad do PT,

em seu discurso de posse, declarou:

(...) às vésperas do segundo turno, houve uma manifestação espontânea na cidade de São Paulo, nas imediações da Praça Roosevelt (...). As redes sociais convocaram a cidadania paulistana com um lema que me tocou muito profundamente: 'existe amor em São Paulo'. Esse era o lema da convocação. Eu entendo que talvez durante toda a campanha essa manifestação

                                                                                                               28 Disponível em https://www.facebook.com/events/433169650073617/ acesso em 17/07/15

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não partidária, essa manifestação que não procurava angariar votos para um ou outro candidato, diz muito sobre o que a cidade de São Paulo espera de nós. Tratava-se de um grupo bastante expressivo da cidade que tinha nesse lema um pedido para aquele que fosse eleito no domingo seguinte: cultivar a solidariedade, cultivar a diversidade, cultivar o amor ao próximo, que diz tanto sobre a nossa cidade. (...) Eu sou daqueles que acreditam não apenas que haja amor em São Paulo. Acredito que esse amor está pronto para se manifestar com cada vez mais força, com cada vez mais presença na cidade.29

A fala do prefeito empossado sinaliza como a disputa política sob a bandeira

“amor” tornou-se vitoriosa e – até – oficial. Fernando Haddad conclama a necessidade

de “amor” na cidade de São Paulo. Notável como a categoria assumiu, nas eleições de

2012 para a prefeitura da cidade de São Paulo, um papel central na arena pública.

Esse é o exemplo de um sentimento que ganhou fôlego nos discursos políticos para

justificar projetos de cidade e orientações de governo.

Não estou sugerindo que foi o “amor” que ganhou as eleições. Apenas sinalizo

para o fato de que foi o termo circulou nas falas de diversos agentes e se fez presente

em jornais e nos discursos oficiais como uma substância importante para que o debate

sobre a cidade ocorresse. Contudo, “amor” como categoria em discursos políticos não

se restringiu a disputa eleitoral da prefeitura de São Paulo

#lovewins – casamento civil entre pessoas do mesmo sexo nos EUA

No dia 26 de junho de 2015, a Suprema Corte dos Estados Unidos definiu a

inconstitucionalidade de qualquer lei estadual que proíba pessoas do mesmo sexo de

se casarem, na prática restou reconhecido o direito ao casamento entre lésbicas e gays

em qualquer um dos 50 estados americanos. A decisão foi aprovada por 5 dos 9 juízes

da mais alta câmara judiciária dos EUA. Dos votos favoráveis, três foram de mulheres

e dos votos contrários, todos vieram de homens30.

                                                                                                               29 Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/86716-sei-que-as-tarefas-nao-sao-simples-afirma-haddad-durante-a-posse.shtml acesso em 22/07/15 30 Os juízes John G. Roberts Jr, Antonin Scalia, Clarence Thomas e Samuel Anthony Alito Jr votaram contrários as juízas Ruth Bader Gisburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan bem como Anthony M. Kennedy e Stephen G. Breyer votaram favoráveis. Gostaria de salientar que na página oficial da Suprema Corte consta a biografia de cada um dos nove membros. As únicas informações pessoais declaradas são o local e data de nascimento de cada um bem como as pessoas com quem são casadas. Dos seis juízes homens, todos são casados e possuem filhos. Dentre as três juízas, apenas uma possui a informação sobre seu casamento – Ruth Bader Gisburg. As breves biografias de Sonia Sotomayor e Elena Kagan não contém informações sobre suas relações maritais, o que nos leva a considerar que podem ser solteiras, divorciadas, viúvas ou homossexuais – não importa. O que interessa é o fato de

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Um dos casos apreciados na corte se chamava Obergefell vs. Hodges. Jim

Obergefell era parceiro de John Arthur há 21 anos. Eles se conheceram em 1992 e

mantinham uma vida juntos em Cincinnati, no Estado de Ohio. Em 2011, Arthur foi

diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica, uma doença que, segundo a

medicina, não tem cura e cuja consequência é a perda do controle de movimentos

musculares. Na época, eles não poderiam desfrutar de benefícios de assistência

médica oferecidos pelo estado a casais pois, aos olhos da lei, não poderiam ser

considerados casados. Isso se deve ao fato de que, desde 1996, estava em vigor a Lei

Federal DOMA (Defense of Marriage Act) responsável por definir o matrimônio nos

EUA:

Fica determinado que no significado de qualquer Lei do Congresso, ou de qualquer norma, regulamento, decreto ou interpretação dos vários órgãos administrativos e agências dos Estados Unidos a expressão 'matrimônio' significa exclusivamente a união legal entre um homem e uma mulher como marido e mulher, e a palavra 'esposos' refere-se apenas à pessoa em oposição ao outro sexo que é marido ou mulher.31

Entretanto, em 26 de junho de 2013, a Suprema Corte decidiu pela

inconstitucionalidade de tal lei, em uma votação de 5 a 432. Na ocasião, não emergiu,

por parte de juízas/es, qualquer argumento que evocasse a palavra “amor” para

justificar os votos. A única manifestação que fez menção ao termo foi do então

presidente Barack Obama, que, em comemoração à votação, declarou: “amor é

amor”33. O suposto de Obama era de que amor é um sentimento universal capaz de

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             que todos os juízes homens e a juíza Gisburg são heterossexuais, uma vez que se casaram antes da decisão do dia 26/06/15 ser tomada. Sendo assim, a sentença sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi tomada por 9 juízes, dos quais 7 eram casados e presumidamente heterossexuais. Se levarmos em conta os votos dos contrários à decisão, 100% eram casados e heterossexuais. Destaco também o fato de que há apenas um juiz negro, Clarence Thomas, cujo voto foi contrário a decisão tomada pela Suprema Corte. 31 Livremente traduzido de “In determining the meaning of any Act of Congress, or of any ruling, regulation, or interpretation of the various administrative bureaus and agencies of the United States, the word `marriage' means only a legal union between one man and one woman as husband and wife, and the word `spouse' refers only to a person of the opposite sex who is a husband or a wife.” Disponível em http://thomas.loc.gov/cgi-bin/query/z?c104:H.R.3396.enr:, acesso em 24/07/15 32 Pela constitucionalidade da lei votaram John G. Roberts Jr, Antonin Scalia, Clarence Thomas e Samuel Anthony Alito Jr votaram pela inconstitucionalidade as juízas Ruth Bader Gisburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan bem como Anthony M. Kennedy e Stephen G. Breyer. Uma votação exatamente igual àquela que, dois anos depois, declarou a inconstitucionalidade de qualquer lei que proibisse pessoas do mesmo sexo de se casarem. 33 Em seu Twitter, Obama escreveu: “Today’s DOMA ruling is a historic step forward for #MarriageEquality. #LoveIsLove”. Extraído de http://forward.com/opinion/179327/obama-tweets-love-is-love-on-gay-marriage/#ixzz3hJPAB3Zp acesso em 24/07/15.  

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igualar as pessoas: “Nós somos pessoas que declaramos sermos igualmente criados,

assim o amor com o qual nos comprometemos com os outros precisa ser igual

também”34

Após a declaração da inconstitucionalidade da lei DOMA, o casal John e Jim,

percebeu que poderia ter acesso a benefícios federais que até então eram exclusivos

para heterossexuais. Por isso, eles decidiram se casar. Como em Ohio o casamento

entre pessoas do mesmo sexo não era permitido, viajaram até Maryland, estado no

qual a união marital entre homossexuais era legalizada e, em 11 de Julho de 2013,

trocaram votos e alianças, regressando, em seguida, para Cincinnati.

Três meses após a cerimônia, Arthur morreu e John entrou com uma ação para

que o casamento fosse formalmente reconhecido na certidão de óbito de seu esposo.

O casal obteve decisão favorável em primeira instância, entretanto o Estado de Ohio

recorreu e o caso chegou à Suprema Corte. Em 26 de Junho de 2015, o colegiado

votou pelo reconhecimento nacional do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

A decisão do julgamento, como dito, não foi unânime. Do ponto de vista

jurídico, os argumentos foram polarizados. De um lado, grosso modo, havia aqueles

que alegavam não caber à Suprema Corte a decisão sobre a possibilidade do

casamento entre pessoas do mesmo sexo, pois o judiciário não poderia realizar

decisões de teor legislativo. Além disso, defendiam o princípio federativo da

Constituição estadunidense, alegando que cabe a cada ente federado as decisões sobre

casamento.

Do outro lado, juízas/es alegavam poder decidir sobre a matéria pois ela dizia

respeito a questões fundamentais na jurisprudência estadunidense: 1) o direito ao

casamento, 2) a igualdade de direitos para todos os cidadãos. A ala de juízes

favoráveis a união entre pessoas do mesmo sexo defendia o casamento como um

direito inerente à liberdade individual – “instituição fundamental ao longo da história

e da tradição”. O voto assinado por Anthony Kennedy, defendia a igualdade no direito

ao casamento entre pessoas do mesmo sexo realizando um paralelo à decisão da

                                                                                                               34 Livremente traduzido de “We are a people who declared that we are all created equal, and the love we commit to one another must be equal as well,” Disponível em: http://forward.com/opinion/179327/obama-tweets-love-is-love-on-gay-marriage/#ixzz3gpiMEIbe acesso em 24/07/15

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Suprema Corte quando invalidou, em 1967, leis estaduais e federais que proibiam a

união entre pessoas de diferentes raças35.

Em seu voto, Kennedy afirmava existirem quatro princípios que

demonstravam como o casamento é fundamental para a Constituição estadunidense.

Em primeiro lugar, o casamento está diretamente associado ao princípio da autonomia

individual na escolha por seu parceiro ou parceira. Em segundo lugar, assegura a

união entre duas pessoas de uma forma única e íntima. Em terceiro lugar, é uma

instituição que promove segurança e proteção para as crianças. E, por último, é a

chave para a ordem social Nacional.

Portanto, Kennedy promove um argumento que assume a centralidade do

casamento na experiência individual e da nação estadunidense. Por esse motivo,

prezando pela igualdade, haveria a necessidade de considerar como direito o

casamento entre pessoas do mesmo sexo. Só assim seria possível garantir a igualdade

entre todas e todos e a ordem da “nação”36. No parágrafo conclusivo de seu voto,

Kennedy declara:

Não há união mais profunda que o casamento, que representa os mais altos ideais de amor, fidelidade, devoção, sacrifício e família. Ao formar uma união marital, duas pessoas se tornam algo maior do que antes eles foram. Como demonstram os demandantes desses casos, o casamento representa um amor que pode sobreviver à morte. Não teríamos compreendido esses casais se disséssemos que eles desrespeitam a ideia de casamento.37

É notável como Kennedy faz uso do termo “amor” para fundamentar seu voto.

O juiz realiza uma associação direta entre casamento, amor, fidelidade, devoção,

sacrifício e família – o referencial cristão fornece subsídio para justificar seu parecer.

Em seguida, anuncia que o casamento é a expressão de um “amor que pode                                                                                                                35 Em 1967, no caso Loving V. Virgina, a Suprema Corte dos Estados Unidos sentenciou invalidas todas as leis que proibiam o casamento interracial no território nacional. 36 É possível assinalar que o juiz estaria promovendo o que Sergio Carrara (2013) diagnostica como “cidadanização da homossexualidade”. Carrara está interessado em tratar historicamente de como o conhecimento antropológico contribuiu para o processo de “cidadanização da homossexualidade”, isso é, como foram negociadas as fronteiras entre antropologia e política para a constituição de direitos para a população LGBT. Trata-se de um processo no qual agentes públicos, movimentos sociais, ativistas e outros exigem que sexualidades e expressões de gênero não normativas e, portanto, marginalizadas, sejam incorporadas dentro do estado e das políticas públicas. 37 Livre tradução do original em inglês: “No union is more profound than marriage, for it embodies the highest ideals of love, fidelity, devotion, sacrifice, and family. In forming a marital union, two people be- come something greater than once they were. As some of the petitioners in these cases demonstrate, marriage embodies a love that may endure even past death. It would misunderstand these men and women to say they disrespect the idea of marriage”. Disponível em: http://www.supremecourt.gov/opinions/14pdf/14-556_3204.pdf acesso em 21/07/15.

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sobreviver à morte”, isso é, o casamento defendido ao longo do texto é, em última

instância, a representação do “amor”: um tipo de afeto especial que ultrapassa limites

temporais e, portanto, a própria morte.

Notemos a operação retórica utilizada por Kennedy. Em primeiro lugar, ele

assume o casamento como um elemento fundante da sociedade e da nação

estadunidense; em seguida, o juiz declara que casamento é, nada mais, nada menos,

do que a expressão de amor; por último, o amor é tido como substância comum

presente em casais heterossexuais e em casais homossexuais. Sendo assim, Kennedy

se esforça para justificar o casamento entre pessoas do mesmo sexo indicando que há

nessa união o mesmo substrato que define a relação entre heterossexuais. O elemento

comum em todos os casamentos é o amor: uma substância capaz de sobreviver à

morte e que pode ser universalmente compreendida e experimentada, tanto por

heterossexuais quanto por homossexuais. Assim, estaria fundamentado que seria justo

assegurar à pessoas do mesmo sexo o direito de se casarem, uma vez que casamento e

amor são pares que convivem. Faltaria aos parceiros de mesmo sexo apenas uma

instituição capaz de formalizar o afeto entre casal: o casamento. Um elemento que

seria supostamente exclusivo da esfera da intimidade passa a ser alavancado como

argumento político.

Notável como a categoria “amor” possuí um teor de substância, aparece nos

discursos com um efeito de estabilização. O suposto é: todos amam, todos sentem

amor – não haveria como negar isso. Portanto, “amor” aparece como uma substância

transhistórica e universal, capaz de permitir que heterossexuais e homossexuais

compreendam as experiências uns dos outros. O “amor” aparece como uma essência

que permite o diálogo. Não estou dizendo que a essencialização do “amor” é algo

exclusivo deste exemplo, mas seu caráter ganha novos significados em tempos de

casamento entre gays e lésbicas pois ao essencializar é possível comparar afetos que

seriam, a princípio incomparáveis – como os de heterossexuais e homossexuais38.

No mesmo dia, 26 de junho de 2015, logo após a decisão do judiciário, o então

presidente Barack Obama publicou em seu twitter a frase: “Hoje é um grande passo

em nossa marcha para a igualdade. Casais de gays e lésbicas agora têm o direito de

                                                                                                               38 Segundo Gayle Rubin (1993) há um suposto operante que assumem a práticas heterossexuais e homossexuais serem essencialmente diferentes.

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casar, tal como qualquer um. #OAmorVenceu”39. O hashtag “Love Wins” ou, em

português “O amor venceu”, foi divulgado e tornou-se um dos trend topics do Twitter

alcançado o terceiro lugar dos assuntos mais comentados em 26 de junho de 201540.

Em sua declaração após a decisão da suprema corte, o presidente

estadunidense declarou “As pessoas devem ser tratadas igualmente,

independentemente de quem são e de quem amam”41. Obama sinaliza que o amor

pode diferenciar, isso é, as pessoas podem ser diferentes pois depositam seu afeto de

forma diversa: homoafetivamente ou heteroaferivamente. Mais adiante, na mesma

declaração, o presidente declara: “Amor é amor”, isso é, uma substância que não é

experimentada de modo diferente por ninguém. Portanto, nessa disputa política,

“amor” aparece tanto um aparato universal como também diferencial. Ele assume, de

maneira ambivalente, ambas as figuras, universal pois sentido por todos, diferencial

pois marcado por gênero e orientação sexual.

“Amor” apresenta-se uma categoria genérica, personificada, dotada de agência

e capaz de vencer uma suposta batalha. A qual “amor” o presidente Barack Obama se

referia quando sintetizou sua fala nos termos “O amor venceu”? Tratava-se do amor

entre pessoas do mesmo sexo que ganharam um acesso a direitos antes negados? Ou o

amor – como categoria universal – que vence o ódio? Talvez a força política esteja

nessa indeterminação semântica. Uma batalha supõe vencedores e perdedores. No

texto de Obama, a expressão “o amor vence” oculta uma acusação: o sentimento

vence os desprovidos de amor? Ou os que defendem a desigualdade? É uma frase

com teor político poderoso pois desqualifica, via sentimento, quem não defende o

casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Necessário salientar que a repercussão da decisão judiciária estadunidense

extrapolou o território nacional e foi celebrada em redes sociais42. Segundo nota

divulgada pela rede Facebook, cerca de 26 milhões de usuários no mundo utilizaram

um filtro com a cor do arco-íris para celebrar a conquista do movimento LGBT, o que

                                                                                                               39 Livremente traduzido do original: “Today is a big step in our march toward equality. Gay and lesbian couples now have the right to marry, just like anyone else. #LoveWins”. Disponível em: https://twitter.com/potus/status/614435467120001024, acesso em 10/07/15. 40 Retirado do site: http://www.trendinalia.com/twitter-trending-topics/globales/globales-150626.html acesso em 22/07/15.  41 Disponível em: http://newyork.cbslocal.com/2015/06/26/supreme-court-same-sex-marriage/ acesso em 23/07/15 42 Destaco que seria fundamental realizar um estudo sobre ativismo na internet. Boa parte da organização das manifestações analisadas teve origem no meio virtual. Contudo não cabe ao escopo deste texto tratar de tal assunto.

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corresponderia a cerca de 0,01% dos usuários da rede na época43. Já as interações –

curtidas e comentários – nos filtros, somaram 565 milhões até 30 de junho de 201544.

Sendo assim, trata-se de um amor com cores de bandeira do arco-íris, um amor

marcado por uma sexualidade específica. Universal nos argumentos, singular nas

cores.

Se formos considerar a paleta que passou a estampar tanto a Casa Branca,

quanto o Palácio do Planalto – símbolos de poder dos Estados Unidos e do Brasil

respectivamente – podemos considerar que o amor LGBT venceu. O Palácio do

Planalto, além de alterar sua foto no Facebook escreveu, em sequência, as hashtags:

#OrgulhoLGBT #LGBTPride #OAmorVence #LoveWins.

Imagem retirada do Facebook em 24/07/15. (Foto: Reprodução/ Facebook/ White House)

Imagem retirada do Facebook em 24/07/15. (Foto: Reprodução/ Facebook/Palácio do Planalto)

Mais uma vez, não se trata de qualquer tipo de “amor”, mas um marcado por

orientação sexual – LGBT. Um discurso sobre universalidade de afetos é

simultaneamente pintado por uma bandeira do arco-íris que sinaliza que a arena

                                                                                                               43 Segundo dados divulgados pela empresa Facebook, em 28 de janeiro de 2015, o número de usuários somava 1,39 bilhões. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/tec/2015/01/1581963-facebook-supera-estimativa-de-receita-de-analistas-usuarios-ja-sao-14-bi.shtml acesso em 22/07/15 44 A título de comparação, entre 06 de julho e 27 de outubro de 2014, as interações dentro do Facebook referentes às eleições presidenciais brasileiras somaram 674,4 milhões, segundo o site Uol. Foram 89 dias com média de 3,8 milhões interações diárias. No caso do filtro que comemorava o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a média foi de 18 milhões de interações diárias entre 26/07/15 e 30/07/15. Disponível em: http://olhardigital.uol.com.br/noticia/eleicoes-batem-recorde-no-facebook-com-674-milhoes-de-interacoes/44874 acesso em 22/07/15.

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política será disputada não apenas por racionalidade, mas também por sentimentos,

inclusive daqueles que foram e são socialmente marginalizados. Nas palavras do

chefe do Comitê Nacional do partido Democrata, Debbie Wasseman-Schultz, “O

amor é amor, e amor agora é lei”45. Nota-se, mais uma vez, a sentimentalização de

discursos na arena política46.

Considerações finais – O amor nos discursos políticos

No livro Love, Heterosexuality and Society, Paul Johnson (2005) afirma que o

amor é experimentado como profundamente essencial para o gênero humano, como

uma propriedade da personalidade, como uma questão transhistórica, algo que está

para além da lógica racional e também intrinsicamente relacionado às ideias de

sexualidade.

Contudo, segundo os exemplos acima apresentados, é possível sinalizar um

deslizamento semântico: presente em discursos oficiais – nas palavras de movimentos

sociais, prefeitos, juízas/es e presidentes – o “amor” assumiu a capacidade de vencer

disputas e pautar discussões. Trata-se de uma emoção que se insere na arena política

dotada de um poder que justifica práticas e discursos. A isso chamo de

sentimentalização da esfera pública.

Ao que tudo indica, a aposta política reside justamente na capacidade de

transcendência do termo “amor”. Ele superaria oposições (partidárias, sexuais,

ideológicas) apesar de ser – nos dois casos tratados – um termo marcado por gênero e

sexualidade – no movimento “Existe amor em SP” vinculado ao espectro feminino e

no #lovewin associado à bandeira LGBT. A despeito dessas associações, o “amor”,

exatamente por ser transcendente, seria um argumento difícil de ser combatido,

aparecendo portanto como um instrumento discursivo47 supostamente universal.

                                                                                                               45 Disponível em: http://www.theguardian.com/us-news/2015/jun/26/obama-gay-marriage-speech-victory-for-america acesso em 23/07/15 46 Não é possível desconsiderar que o argumento de liberdade e igualdade esteve presente nos discursos de Obama bem como nos votos dos juízes, contudo, como já foi sinalizado antes, este texto procura seguir a palavra “amor” e seus múltiplos significados para, quem sabe realizar uma contribuição nas reflexões sobre o assunto. Um estudo mais detido sobre a conquista do movimento LGBT nos EUA precisaria verticalizar a discussão acerca das noções de liberdade e igualdade em jogo nessa disputa pelo casamento entre pessoas do mesmo sexo. 47 Retiro o termo de Sealing Cheng (2010). A autora defende que discursos amorosos podem ser usados como performances comunicativas entre sujeitos: mulheres Filipinas prostitutas usam discursos amorosos em suas relações mercantis com clientes. Para Cheng o amor serve, nessas circunstâncias, como um idioma para comunicação que contém valores sobre o sujeito, sua intimidade, a família em

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“Amor” aparece como uma estratégia de negociação – capaz de defender ou

acusar sujeitos políticos. É um termo que produz diferenças e exclusões: se há amor

em São Paulo, ele deve ser cor de rosa, ele subjuga Celso Russomanno. O “amor” que

“vence” nos EUA, ganha dos discursos conservadores e religiosos e é colorido, igual

às cores do arco-íris. É notável como o termo sugere uma universalidade – todos

sabem o que é amor e todos querem amor –, e simultaneamente define uma fronteira

para a exclusão – quem não tem amor pode ser acusado. Além disso, é uma palavra

que, nos casos analisados, possui marcas de gênero e sexualidade exatamente em uma

arena majoritariamente masculina como os discursos políticos.

Valendo-se de um marcador poderoso, grupos progressistas acusam outros de

serem desprovidos de afeto. A indefinição do termo aparece como substância potente

pois permite as mais diversas interpretações e sugere uma universalização de

demandas. Um discurso que aciona o termo “amor” na política driblaria, a princípio, a

necessidade de um posicionamento definitivo dos sujeitos, pois a linguagem do amor

tem um efeito de neutralização das desigualdades. Entretanto, mesmo assim, há

marcas de gênero e sexualidade nos casos estudados. O amor – supostamente –

universaliza, mas também acusa.

Importante sinalizar que se trata de uma manobra arriscada, pois “amor” não

carrega em si um sentido pre-determinado (aliás como todos os termos) e assume

facilmente uma dimensão universal. Desse modo, pode ser acionado politicamente

para defender causas as mais diversas, como, por exemplo, a criminalização do

aborto: em nome do amor pelo filho pode-se impedir assistência para mulheres que

desejam abortar. Em nome do amor pode-se defender qualquer bandeira.

Simultaneamente, acionar a categoria “amor” é contaminar a esfera pública,

costumeiramente masculina e definida como racional, com um afeto tido por feminino

e irracional. Em meio a candidatos na eleição para a prefeitura de São Paulo e

membros da Suprema Corte dos EUA majoritariamente homens, inserir o “amor” nos                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              processos de modernização e globalização. Neste texto, realizo um deslocamento da noção usada por Cheng para um outro contexto, noto como o termo “amor” pode circular como instrumento comunicativo em esferas não apenas econômicas, mas também políticas. Saliento que as abordagens analíticas produzidas pelo casal Hildred Geertz (1959) e Cliford Geertz ([1973], 2008), também foram determinantes para a formulação de emoções como enunciados comunicativos. Em suas pesquisas os dois elaboraram as noções: “vocabulário emotivo” (no caso de Hildred) e “educação sentimental” (no caso de Clifford). Embora com diferenças, ambas as definições tomavam a cultura como um texto (ou uma linguagem) que poderia ser interpretada por antropólogos e antropólogas. Contudo, considero que tal tipo de análise horizontaliza as posições de sujeitos e impossibilita atentar para as assimetrias existentes entre eles. Considero importante atentar para as formas de poder envolvidas na comunicação.

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discursos é um deslocamento que chama a atenção. Nota-se uma esfera pública

sentimentalizada, local de ambivalências nas quais, ao que tudo indica, há assuntos

que não serão decididos por uma lógica exclusivamente racional. Muito pelo

contrário, precisam o debate pode ser invadido por emoções que contagiam a matéria

jurídica e a arena política com uma substância que tem efeitos de universalização de

demandas.

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