Empoderamento, relações de poder e democracia comunicativa...

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1 Empoderamento, relações de poder e democracia comunicativa em Niketche: uma história de poligamia, de Paulina Chiziane Tássia Valente Viana Arouche - autora Márcio Matiassi Cantarin orientador Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o romance Niketche: uma história de poligamia, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, com base nos conceitos de empoderamento, relações de poder e democracia comunicativa, provenientes do campo da Ciência Política. Para isso, utiliza, de forma central, os autores Baquero e Baquero (empoderamento), Michel Foucault (relações de poder) e Iris Marion Young (democracia comunicativa). Como conclusão, apresenta como tais conceitos podem ser percebidos na obra de Chiziane, focando-se especialmente no processo de autoempoderamento da protagonista Rami. Palavras-chave: Niketche: uma história de poligamia. Paulina Chiziane. Empoderamento. Relações de poder. Democracia comunicativa. Abstract: This paper intends to analyse the novel Niketche: a story of polyamy, by the mozambican writer Paulina Chiziane, based on the concepts of empowerment, power relations and communicative democracy, from the Political Science field. To accomplish this, it uses, centrally, the authors Baquero and Baquero (empowerment), Michel Foucault (power relations) and Iris Marion Young (communicative democracy). In conclusion, it shows how these concepts can be seen in the novel of Chiziane, focusing especially on the process of self- empowerment of the protagonist Rami. Keywords: Niketche: a story of polygamy. Paulina Chiziane. Empowerment. Power relations. Communicative democracy. 1. Introdução Este artigo centraliza suas análises no processo de autoempoderamento por qual passa Rami, a protagonista e narradora do romance Niketche: uma história de poligamia, da autora moçambicana Paulina Chiziane. Ao lermos o romance, percebemos o contraste na caracterização de Rami no início e no final da narrativa. Se, no início, Rami é demasiadamente dependente do marido, Tony, não conseguindo, inclusive, resolver sozinha

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Empoderamento, relações de poder e democracia comunicativa em Niketche: uma

história de poligamia, de Paulina Chiziane

Tássia Valente Viana Arouche - autora

Márcio Matiassi Cantarin – orientador

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o romance Niketche: uma história de

poligamia, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, com base nos conceitos de

empoderamento, relações de poder e democracia comunicativa, provenientes do campo da

Ciência Política. Para isso, utiliza, de forma central, os autores Baquero e Baquero

(empoderamento), Michel Foucault (relações de poder) e Iris Marion Young (democracia

comunicativa). Como conclusão, apresenta como tais conceitos podem ser percebidos na obra

de Chiziane, focando-se especialmente no processo de autoempoderamento da protagonista

Rami.

Palavras-chave: Niketche: uma história de poligamia. Paulina Chiziane. Empoderamento.

Relações de poder. Democracia comunicativa.

Abstract: This paper intends to analyse the novel Niketche: a story of polyamy, by the

mozambican writer Paulina Chiziane, based on the concepts of empowerment, power

relations and communicative democracy, from the Political Science field. To accomplish this,

it uses, centrally, the authors Baquero and Baquero (empowerment), Michel Foucault (power

relations) and Iris Marion Young (communicative democracy). In conclusion, it shows how

these concepts can be seen in the novel of Chiziane, focusing especially on the process of

self- empowerment of the protagonist Rami.

Keywords: Niketche: a story of polygamy. Paulina Chiziane. Empowerment. Power relations.

Communicative democracy.

1. Introdução

Este artigo centraliza suas análises no processo de autoempoderamento por qual passa

Rami, a protagonista e narradora do romance Niketche: uma história de poligamia, da autora

moçambicana Paulina Chiziane. Ao lermos o romance, percebemos o contraste na

caracterização de Rami no início e no final da narrativa. Se, no início, Rami é

demasiadamente dependente do marido, Tony, não conseguindo, inclusive, resolver sozinha

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um problema doméstico relativamente simples (o que a leva a procurá-lo e, como

consequência, a encontrar as outras mulheres e famílias que ele mantém paralelamente, dando

início a todo o conflito que marca o romance); por outro lado, enquanto a ação se desenvolve,

observamos Rami se aliando às outras mulheres – estas também dependentes econômica e

afetivamente de Tony –, buscando a sua e incentivando a independência financeira das

demais, tecendo com elas laços de solidariedade e afetividade – tudo isso sem deixar de

recorrer a aspectos da própria tradição, mesmo que, nesse contexto, esta confira às mulheres

um papel de submissão em relação ao marido.

É recorrendo a esta tradição que Rami realiza uma espécie de vingança do marido infiel,

ainda que não possamos afirmar que esta seja uma ação calculada, explicitamente desejada

pela protagonista. Após Rami fazer com que o marido legitimasse todas as demais mulheres e

oficializasse a relação poligâmica, ao final, todas as outras encontram-se em relacionamentos

em que são “primeiras esposas”, desta forma abandonando Tony e o deixando apenas para

Rami. A protagonista, no entanto, está grávida de Levy, irmão de Tony, como consequência

de ter participado do tradicional kutchinga (cerimônia de purificação sexual da viúva). Isto

porque seu marido foi oficialmente dado como morto, enquanto, na realidade, estava em Paris

com uma amante. Além disso, Rami passa a apresentar um perfil de mulher mais madura e

autônoma, amuderecimento e autonomia que vão se concretizando no decorrer da trama.

Na análise, lançaremos mão dos conceitos de relações de poder, empoderamento e de

democracia comunicativa, com o objetivo de identificar como estes processos estão presentes

em Niketche: uma história de poligamia. Se, em geral, para a teoria da democracia, os estudos

se dão no nível social, aqui, transportaremos o conceito de democracia para um contexto

específico, no qual se desenvolve a narrativa, que é o ambiente familiar poligâmico do

romance.

Entendemos, como Silveirinha (2005), que a teoria e a prática das democracias

contemporâneas têm o desafio de:

[...] por um lado, reconhecer que os indivíduos são posicionados de formas

múltiplas, em termos de marcadores identitários ‘minoritários’ como a raça, o

gênero, a idade, ou a cultura, e, por outro, desenvolver formas de lidar com os

processos de exclusão gerados pela concentração de poder e pela impossibilidade de

acesso a formas de participação na vida coletiva que tenha justamente em conta

essas diferenças (SILVEIRINHA, 2005, p. 42).

Para tentar dar conta deste desafio apresentado pela diversidade – diversidade que está

presente no romance em estudo –, Iris Marion Young, partindo de discussões e premissas

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feministas, elabora o modelo de “democracia comunicativa”, que prioriza a possibilidade de

comunicar a diferença. Junto com Nancy Fraser e Seyla Benhabib, Young preocupa-se com

[...] a forma como as mulheres são marginalizadas da política, com base,

nomeadamente, na própria definição de ‘política’ como uma esfera à parte da vida

privada que obscurece a forma como as relações de poder se estendem aos dois

domínios, atuando assim como uma forma discursiva de poder. Esse poder de

excluir o cotidiano da política estreita não só o leque de quem pode aceder ao espaço

público, mas também o que está aberto à discussão política e à própria forma como

pode ser discutido (SILVEIRINHA, 2005, p. 53).

Isto é explicitado aqui, pois entendemos que, embora a narrativa do romance em

estudo se desenvolva basicamente no ambiente familiar e doméstico, privado, a discussão a

seu respeito pode ser compreendida como de âmbito político, pois envolve descompassos nas

relações estabelecidas. Em relação à noção de política subjacente a este entendimento,

apoiamo-nos em Hannah Arendt, que afirma que a política está vinculada às ideias de

liberdade e espontaneidade humanas, “muito acima da compreensão usual e mais burocrática

da coisa política, que realça apenas a organização e a garantia da vida dos homens”

(ARENDT, 2011, p. 9). Para Arendt, o conceito de política baseia-se na pluralidade dos

homens: “A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam

politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos

absoluto das diferenças” (ARENDT, 2011, p. 22). Seu papel é organizar “diversidades

absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas”

(ARENDT, 2011, p. 24). Se por um lado sua base é a pluralidade dos homens, o seu sentido é

a liberdade.

A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto, centrada em torno da

liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o não ser-dominado e

não-dominar, e positivamente como um espaço que só pode ser produzido por

muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus iguais

não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina outros e, por conseguinte,

é diferente dos outros em princípio, é mais feliz e digno de inveja que aqueles a

quem ele domina, mas não é mais livre em coisa alguma (ARENDT, 2011, p. 49).

Dito isto, faz sentido trazermos conceitos próprios da Ciência Política, como relações

de poder, democracia e empoderamento, para a análise de Niketche: uma história de

poligamia. Assim, como próxima etapa deste artigo, apresentamos estes conceitos.

2. Relações de poder e sexualidade

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Antes de falarmos sobre empoderamento e democracia comunicativa, é necessário

tratar da ideia de relações de poder e sua ligação com o dispositivo1 da sexualidade, a partir

do que propõe Michel Foucault. Isto porque entendemos que a questão das relações de poder

e da sexualidade é central na obra em análise de Paulina Chiziane.

Assim como Arendt, Foucault critica um entendimento mais burocrático acerca do

conceito de poder. Para ele, “o poder deve ser analisado em termos de relações de poder”

(FOUCAULT, 1979, p. 256). A análise desta questão feita “unicamente em termos de

legislação, de Constituição, ou somente em termos de Estado ou de aparelho de Estado” estará

empobrecida, já que “o poder é mais complicado, muito mais denso e difuso que um conjunto

de leis ou um aparelho de Estado” (FOUCAULT, 1979, p. 221). Um poder pensado partindo

de um determinado ponto, para Foucault, não existe, pois:

Na realidade, o poder é um feixe de relações mais ou menos organizado, mais ou

menos piramidalizado, mais ou menos coordenado. […] Se o objetivo for construir

uma teoria do poder, haverá sempre a necessidade de considerá-lo como algo que

surgiu em um determinado ponto, em um determinado momento, de que se deverá

fazer a gênese e depois a dedução. Mas se o poder na realidade é um feixe aberto,

mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações, então o

único problema é munir-se de princípios de análise que permitam uma analítica das

relações de poder (FOUCAULT, 1979, p. 248).

Neste sentido, é possível falar em micropoderes e, ainda que Foucault se recuse a

compreender o poder como algo que emana de um ponto acima em direção a uma base, ele

entende que estes micropoderes podem funcionar de cima para baixo, pois “na medidade em

que as relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada de forças, é

evidente que isto implica em um em cima e um em baixo, uma diferença de potencial”

(FOUCAULT, 1979, p. 250). No entanto, é preciso que se ressalte que, segundo Foucault,

para haver este movimento de cima para baixo, é necessário que exista, ao mesmo tempo,

uma capilaridade de baixo para cima.

Nesse cenário, Foucault afirma que todo mundo se opõe a todo mundo: “Quem luta

contra quem? Nós lutamos contra todos. Existe sempre algo em nós que luta contra outra

coisa em nós” (FOUCAULT, 1979, p. 257). Trata-se de um contexto de coalisões transitórias,

em que o elemento primeiro e último são os indivíduos e mesmo os sub-indivíduos.

1 Sobre a ideia de dispositivo, Michel Foucault irá esclarecer que se trata de “um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 1979, p. 244).

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Havendo relação de poder, a resistência é uma possibilidade, já que, para Foucault

(1979, p. 241), “jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua

dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”.

Neste cenário, a sexualidade não é aquilo de que o poder tem medo, mas é aquilo

através de que o poder se exerce. Como exemplo disso, Foucault (1979, p. 232) fala sobre a

perseguição da masturbação infantil a partir do começo do século XVIII. Através da

sexualidade infantil, “específica, precária, perigosa, a ser constantemente vigiada”, o objetivo

era tecer “uma rede de poder sobre a infância”, e não apenas proibir ou produzir “uma miséria

sexual da infância e da adolescência”. “Na encruzilhada do corpo e da alma, da saúde e da

moral, da educação e do adestramento, o sexo das crianças tornou-se ao mesmo tempo um

alvo e um instrumento de poder” (FOUCAULT, 1979, p. 232).

Presente, a miséria sexual não pode ser simplesmente explicada de forma negativa por

uma repressão. Existem, na verdade, mecanismos positivos que produzem a sexualidade de

uma forma ou de outra, acarretando efeitos de miséria. Nesse sentido, o poder não se exerce

apenas através do interdito e da proibição, que, para Foucault, não são formas essenciais do

poder, mas seus limites e formas extremas. Isto porque “as relações de poder são, antes de

tudo, produtivas” (FOUCAULT, 1979, p. 236) e dizem respeito a fenômenos complexos,

como no caso da reivindicação do próprio corpo:

O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito

do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento

muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo… tudo isto conduz ao desejo de seu

próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder

exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio. Mas, a partir

do momento em que o poder produziu este efeito, como consequência direta de suas

conquistas, emerge inevitavelmente a reinvindicação de seu próprio corpo contra o

poder, a saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade,

do casamento, do pudor. E, assim, o que tornava forte o poder passa a ser aquilo por

que ele é atacado… O poder penetrou no corpo, encontra-se exposto no próprio

corpo…” (FOUCAULT, 1979, p. 146).

No mesmo sentido, o temor referente ao fato de crianças e jovens se masturbarem, ao

mesmo tempo em que gerava controle, vigilância e perseguição dos corpos, produzia “a

intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo” (FOUCAULT, 1979, p. 147).

Assim, Foucault (1979, p. 230) afirma que “as proibições existem, são numerosas e fortes.

Mas fazem parte de uma economia complexa em que existem ao lado de incitações, de

manifestações, de valorizações. São sempre interditos que são enfatizados”.

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Ainda em sua análise sobre a sexualidade, Foucault esclare que o entendimento de que

a miséria sexual simplesmente vem da repressão acaba por configurar uma “armadilha

perigosa”, pois:

Eles [sexólogos, médicos, policiais do sexo] dizem mais ou menos o seguinte:

‘Vocês têm uma sexualidade, esta sexualidade está ao mesmo tempo frustrada e

muda, proibições hipócritas a reprimem. Então venham a nós, digam e mostrem tudo

isto a nós, revelem seus infelizes segredos a nós…’

Este tipo de discurso é, na verdade, um formidável instrumento de controle e de

poder. Ele utiliza, como sempre, o que dizem as pessoas, o que elas sentem, o que

elas esperam. Ele explora a tentação de acreditar que é suficiente, para ser feliz,

ultrapassar o umbral do discurso e eliminar algumas proibições. E de fato acaba

depreciando e esquadrinhando os movimentos de revolta e liberação…

(FOUCAULT, 1979, p. 232-233).

Em relação à questão das mulheres, Foucault afirma que buscou-se fixá-las, por muito

tempo, à sua sexualidade, dizendo a elas: “Vocês são apenas o seu sexo”, um sexo “frágil,

quase sempre doente e sempre indutor de doença. ‘Vocês são a doença do homem’”. Tal

fenômeno se acelera no século XVIII até chegar à patologização da mulher. A partir deste

cenário, os movimentos feministas passam a se afirmar na sua sexualidade, aceitando ser

“sexo por natureza”, mas sexo “em sua singularidade e especificidade irredutíveis”. Com isso,

partem “desta sexualidade na qual se procura colonizá-las e atravessá-la para ir em direção a

outras afirmações”, um tipo próprio de existência, política, econômica, cultural etc.

(FOUCAULT, 1979, p. 234).

Assim, entendendo a sexualidade como “instrumento formado há muito tempo e que

se constitui como um dispositivo de sujeição milenar”, Foucault observa que os movimentos

de liberação da mulher partiram do próprio discurso que era formulado no interior dos

dispositivos de sexualidade no sentido de “um deslocamento em relação à centralização

sexual do problema, para reivindicar formas de cultura, de discurso, de linguagem, etc., que

são não mais esta espécie de determinação e de fixação a seu sexo” (FOUCAULT, 1979, p.

268).

Essa ideia de relações de poder e sexualidade é importante na análise, pois na trama de

Niketche vemos uma série de mulheres ocupando o lugar de “um em baixo”, em que o

dispositivo da sexualidade aparece como uma forma de controlá-las (especialmente em

relação à personagem Rami), gerando, nos dizeres de Foucault, miséria sexual. E, ao mesmo

tempo, é a partir deste mesmo dispositivo – não é à toa, neste caso, o romance ser chamado

Niketche, que significa “dança do amor” – que as mulheres acabam por ressignificar suas

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relações, buscando novos tipos de existência – afetiva, econômica etc. – rumo a um processo

de empoderamento.

3. Empoderamento e democracia comunicativa

Para tratarmos do conceito de empoderamento, lançamos mão de parte da discussão

proposta por Marcello Baquero e Rute V. A. Baquero. Ao tentar elucidar o conceito de

empoderamento, os autores contextualizam a discussão no âmbito da América Latina, onde

reconhecem que existem padrões elitistas que “privilegiam determinadas identidades

(minoritárias) em detrimento de outras (mais coletivas) majoritárias, gerando a exclusão de

camadas significativas do povo que não veem no Estado uma estrutura representativa de seus

interesses” (BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 242). Nesse contexto, apresenta-se um desafio

relativo à necessidade de resgatar o conceito de cidadania para que se possa “construir

culturas políticas caracterizadas pela igualdade mínima entre os cidadãos”. Para se alcançar

tal desafio, segundo os autores, o processo de empoderamento emancipatório configura-se

como uma possibilidade. De acordo com Baquero e Baquero:

O termo ‘empoderamento’ assume diferentes significados em diversos contextos

socioculturais e políticos. Concebido como processo e resultado de determinadas

ações, guarda estreita relação com o sistema de valores locais, apresentando valor

intrínseco. Apresenta também valor instrumental, tanto em nível individual quanto

coletivo, podendo incidir em ações de natureza econômica, social ou política

(BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 243).

O conceito é complexo e sua definição pode se dar tanto de forma negativa – nos

contextos em que se nota a ausência de alguns de seus indicadores e percebem-se “alienação,

impotência e desamparo de indivíduos e grupos” – como de forma positiva – em que se

“abordam dimensões como alcance de poder e controle sobre decisões e recursos que

determinam a qualidade de vida de cada um”. Além disso, o conceito pode se dar em nível

individual (“quando se refere às variáveis comportamentais”), organizacional (quando se

refere à mobilização participativa de recursos e oportunidades em determinada organização”)

ou comunitário (“quando a estrutura das mudanças sociais e a estrutura sociopolítica estão em

foco”) (BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 243).

Cabe, aqui, apresentar o que os autores dizem a respeito de cada nível do processo de

empoderamento, para que possamos estabelecer com qual nível (ou níveis) iremos trabalhar

na análise de Niketche. Para isso, apresentam-se os níveis em um quadro conceitual.

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Nível individual Empoderamento psicológico. “Trata-se de uma autoemancipação que se

funda em uma compreensão individualista de empoderamento, a qual

enfatiza a dimensão psicossocial. A ênfase é no aumento do poder

individual, medido em termos do aumento no nível de autoestima, de

autoafirmação e de autoconfiança das pessoas.”

Nível organizacional “[…] abordagem do processo de trabalho que objetiva a delegação do

poder de decisão à autonomia e à participação dos funcionários na

administração das empresas (Baquero, 2006). […] significa obter o

comprometimento dos empregados em contribuir para as decisões

estratégicas, com vistas a aumentar o nível de produtividade da empresa

(Cunningham e Hyman, 1999).”

Nível comunitário “[…] se direciona ao desenvolvimento da capacitação de grupos

desfavorecidos para a articulação de interesses e a participação

comunitária, visando à conquista plena dos direitos da cidadania, à defesa

desses direitos e a influenciar as ações do Estado.”

QUADRO 1 – NÍVEIS DE EMPODERAMENTO

FONTE: BAQUERO; BAQUERO (2011, p. 243)

Entendemos que, dentre os níveis abordados pelos autores, o processo de

empoderamento que se dá em Niketche: uma história de poligamia é do tipo individual,

considerando-se aqui a personagem Rami. No entanto, os próprios autores apresentam uma

outra concepção de empoderamento, de Paulo Freire, que questiona a validade deste processo

no nível individual. Trata-se de uma concepção de empoderamento de classe social, que não

enfatiza a dimensão individual, pois, para Freire, não há autoliberação, já que a libertação é

um ato social (BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 243). Segundo Freire (1986, p. 135 apud

BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 243), um indivíduo que se sente livre incapaz “de usar sua

liberdade recente para ajudar os outros a se libertarem” só estaria “exercitando uma atitude

individualista no sentido do empowerment ou da liberdade”. Assim, para Freire, quando se

trata de empoderamento, a dimensão do crescimento pessoal é insuficiente, pois deve haver o

engajamento na produção do bem comum. Freire está se referindo a uma dimensão mais

social de atuação política, enquanto que em Niketche, como já observamos, a ação dá-se em

um contexto mais privado, do âmbito familiar. Mesmo assim, podemos afirmar que Rami não

exercita uma atitude individualista, pois empodera-se ao se relacionar com as outras esposas

de Tony e, ao mesmo tempo, contribui para o processo de empoderamento delas. Assim,

ainda que o processo analisado dê-se em um nível individual e no âmbito privado, não está

caracterizada uma atitude individualista; pelo contrário, há uma ação solidária.

Para concluir a discussão, os autores caracterizam assim o empoderamento:

[…] como processo e resultado, pode ser concebido como emergindo de um

processo de ação social no qual os indivíduos tomam posse da própria vida pela

interação com outros indivíduos, gerando pensamento crítico sobre a realidade,

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favorecendo a construção da capacidade pessoal e social e questionando as relações

sociais de poder (BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 244).

Tal processo envolve “noções de democracia, direitos humanos e participação” e vai

além, pois não se caracteriza apenas pelo nível conceitual, já que é caracterizado também pelo

agir, “implicando processos de reflexão sobre a ação, visando a uma tomada de consciência a

respeito de fatores de diferentes ordens – econômica, política e cultural – que conformam a

realidade, incidindo sobre o sujeito” (BAQUERO; BAQUERO, 2011, p. 244).

Dentre os conceitos listados pelos autores que estão relacionados ao processo de

empoderamento, trabalharemos com a noção de democracia, mais especificamente com o

modelo de democracia comunicativa proposto por Iris Marion Young.

Em si, o conceito de democracia é complexo e tem como característica natural estar

em transformação, pois “a democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si

mesmo” (BOBBIO, 2000, p. 19). Neste sentido, John Keane (2010, p. 782) critica a ideia de

que a democracia é “um presente, uma parte da ordem evolucionária ou natural das coisas”, já

que, para ele, a democracia é um modo de vida histórico. Ainda assim, Bobbio (2000, p. 22)

diz que se pode falar em uma definição mínima de democracia, “segundo a qual por regime

democrático entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a

formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla

possível dos interessados”. O autor defende o modelo da democracia direta, que deve ladear

ou substituir a democracia representativa. No entanto, a democracia direta é um ideal de

difícil aplicação prática em uma sociedade complexa. Como alternativa, tem-se a democracia

deliberativa, onde se encaixa a proposta de democracia comunicativa de Young.

Para Chambers (2009), a teoria democrática deliberativa é normativa e sugere modos

de se intensificar a democracia e de se criticar as instituições que não satisfaçam tal padrão

normativo. A autora também aponta que a teoria se afirma como um modo mais justo de lidar

com o pluralismo, em comparação com outros modelos de democracia. Substituindo uma

teoria democrática centrada no voto e afastando-se das visões individualistas liberais ou

econômicas de democracia, o modelo deliberativo ancora-se nas concepções de accountability

e discussão. Esta passa a ser um elemento central, havendo foco “nos processos

comunicativos de formação da opinião e da vontade que precedem o voto” (CHAMBERS,

2009, p. 241). O consentimento não desaparece, mas será substituído pela accountability –

“processo no qual uma política pública é articulada, explicada e justificada publicamente”. A

democracia deliberativa é entendida não como uma alternativa à democracia representativa,

mas como uma ampliação desta.

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Assim como a democracia deliberativa é uma ampliação da democracia representativa,

a democracia comunicativa de Iris Marion Young (2011) pode ser entendida, por sua vez,

como uma ampliação da democracia deliberativa, que a pesquisadora critica por sua

dificuldade em reconhecer as diferenças. Para Young, que defende o ideal da democracia

baseada na discussão e não nos interesses, há dois problemas quando se teoriza a respeito da

democracia deliberativa: a restrição do conceito de discussão democrática à argumentação

crítica, “o que tende a silenciar ou desvalorizar determinadas pessoas ou grupos” (YOUNG,

2001, p. 365), e a suposição de que os processos de discussão partem de um elemento comum

de entendimento ou objetivam um bem comum.

Desse modo, a autora propõe um modelo que traz “a possibilidade de comunicar a

diferença no seu centro” (SILVEIRINHA, 2005, p. 54). Segundo Young (apud

SILVEIRINHA, 2005), a injustiça é reforçada quando se universalizam as normas dos grupos

dominantes com base em políticas que não consideram a diferença. Assim, são pensados

mecanismos que permitem reconhecer diferentes vozes, como a organização própria dos

grupos e propostas políticas como o poder de veto.

Young descarta o modelo da democracia deliberativa em que os cidadãos devem se

reconhecer como iguais e desenvolver uma mesma capacidade comunicativa, baseada na

argumentação racional e em “uma forma de discussão que não admite diferença ao falar e

escutar”, pois considera que “grupos estruturados com base em identidades específicas têm

formas particulares de discutir as questões políticas” (SILVEIRINHA, 2005, p. 54). A questão

da diferença, para Young, tem, inclusive, relação com a transformação que o processo

comunicativo ligado à discussão pública deve produzir nas opiniões dos participantes.

Se estamos procurando o que já temos em comum – seja condição prévia, seja

resultado – não estamos transformando nosso ponto de vista. Vemos apenas nossa própria

imagem espelhada nos outros. Por outro lado, com a hipótese de que a interação comunicativa

significa encontrar diferenças de significado, posição social ou necessidades que não

compartilho e com as quais não me identifico, podemos descrever melhor como a interação

transforma as preferências (YOUNG, 2001, p. 377). Segundo a pesquisadora, enquanto a

democracia deliberativa nega a crítica e o dissenso por criarem divisões, a democracia

comunicativa “espera a diferença, a discordância e o conflito. O objetivo do discurso, nessa

nova versão da democracia, não é a identificação mútua, mas o reconhecimento e o abranger

das diferenças” (SILVEIRINHA, 2005, p. 59).

Com o objetivo de “resolver a injustiça sistemática do mundo”, a teoria democrática

de Young tem como base o ideal normativo de democracia como “um processo de

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comunicação entre cidadãos e oficiais públicos, pelo qual eles fazem propostas e se criticam,

procurando persuadir-se uns aos outros da melhor solução para os problemas coletivos”

(YOUNG apud SILVEIRINHA, 2005, p. 56). Para garantir um espaço aberto e público, a

autora pensa em formas comunicativas que garantam a inclusão e impeçam qualquer tipo de

exclusão, externa e interna. A ação comunicativa envolve “reciprocidade assimétrica” entre os

sujeitos, uma reciprocidade que implica respeito igual, sendo cada participante

diferencialmente posicionado.

Em Niketche, percebemos a vivência do modelo de democracia comunicativa entre

Rami e as outras esposas de Tony, que são inclusive de outra região de Moçambique e

possuem outras tradições; isto em contraposição com a forma como se configuram as reuniões

da família de Tony, onde se percebe o “despotismo” da cultura e da tradição machistas.

4. Niketche: uma história de empoderamento

No romance de Paulina Chiziane Niketche: uma história de poligamia, temos a

protagonista Rami, que também é a narradora-personagem. Rami é uma mulher casada há

mais de vinte anos com Tony e moradora de Maputo, capital de Moçambique. Personagem de

rica caracterização, Rami irá se transformar no decorrer da trama, e é esse processo de

autoempoderamento que será central nesta análise. Além disso, seu processo de

transformação é complexo, humano, cheio de hesitações e questionamentos.

O romance tem início com um pequeno incidente doméstico, em que o filho caçula de

Rami, Betinho, quebra o vidro do “carro de homem rico” com uma pedra, ao tentar derrubar

uma manga do pé. Rami, sem saber onde se encontra o marido, sente-se perdida e incapaz de

lidar com a situação.

Entro num delírio silencioso, profundo. Rajadas de ansiedade varrem-me os nervos

como lâminas de vento. Este acidente enche-me de dor e de saudade. Meu Tony,

onde andas tu? Por que me deixas só a resolver os problemas de cada dia como

mulher e como homem, quando tu andas por aí?

Há momentos na vida em que uma mulher se sente mais solta e desprotegida como

um grão de poeira. Onde andas, meu Tony, que não te vejo nunca? Onde andas, meu

marido, para me protegeres, onde? Sou uma mulher de bem, uma mulher casada.

Uma revolta interior envenena todos os caminhos. Sinto vertigens. Muito fel na

boca. Náuseas. Revolta. Impotência e desespero (CHIZIANE, 2004, p. 10).

É desta forma que temos o primeiro contato com a personagem Rami, uma mulher

submissa, impotente, que se sente incapaz inclusive de repreender o próprio filho, e

dependente do marido.

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Se o meu Tony estivesse por perto, repreenderia o filho como pai e como homem.

Se ele estivesse aqui, agora, resolveria o problema do vidro quebrado com o

proprietário do carro, homem com homem se entendem, ah, se o Tony estivesse

perto!

Mas onde anda o meu Tony que não vejo desde sexta-feira? Onde anda esse homem

que me deixa os filhos e a casa e não dá um sinal de vida? Um marido em casa é

segurança, é protecção. Na presença de um marido, os ladrões se afastam. Os

homens respeitam. As vizinhas não entram de qualquer maneira para pedir sal,

açúcar, muito menos para cortar na casaca da outra vizinha. Na presença de um

marido, um lar é mais lar, tem conforto e prestígio (CHIZIANE, 2004, p. 11).

Além de caracterizar Rami como uma mulher frágil e dependente, o início do romance

é importante porque apresenta o acontecimento que levará ao grande conflito da narrativa:

com o incidente, ela irá atrás do marido e chegará à casa da outra mulher que sabe que Tony

tem, Julieta. Assim, aos poucos passará a saber que existem outras mulheres (além de Julieta,

Luísa, Saly e Mauá Sualé) e se perceberá em uma relação poligâmica, ainda que não

oficializada, pois apenas o seu casamento é oficial.

O coração do meu Tony é uma constelação de cinco pontos. Um pentágono. Eu,

Rami, sou a primeira dama, a rainha mãe. Depois vem a Julieta, a enganada,

ocupando o posto de segunda dama. Segue-se a Luísa, a desejada, no lugar de

terceira dama. A Saly, a apetecida, é a quarta. Finalmente a Mauá Sualé, a amada, a

caçulinha, recém-adquirida. O nosso lar é um polígono de seis pontos. É polígamo.

Um hexágono amoroso (CHIZIANE, 2004, p. 58).

Esses encontros com as outras mulheres de Tony serão inicialmente marcados pelo

conflito: Rami briga e apanha de todas elas, indo parar na prisão no confronto com Luísa.

Como resultado dos confrontos, Rami sente “o corpo pesado, moído de tanta pancada das

rivais em defensiva, invadidas no seu território. Dói-me tudo” (CHIZIANE, 2004, p. 59). No

entanto, há um segundo momento apaziguador: ao conversar com a rival Julieta, por exemplo,

Rami percebe que ela também sofre: “Esta mulher tem uma angústia bem pior que a minha.

Eu, pelo menos, conheci o sonho e o altar. [...] A Julieta foi enganada desde a primeira hora.

Nada pior que uma eterna frustração” (CHIZIANE, 2004, p. 26).

Neste momento, Rami encontra-se confusa e não sabe como solucionar seu problema

com Tony. Ela passa a ter aulas com uma “conselheira de amor”, mas ao se arrumar para

seduzir o marido, este lança a ela um “sorriso de troça”. Também não dá certo confrontar as

rivais, o que só lhe trouxe “problemas de saúde e aborrecimentos”. Outra alternativa que

Rami explora é a magia, o que também a frustra.

Apesar do início conflituoso, uma rede de solidariedade começa a se formar entre

Rami e as outras mulheres de Tony: Rami está presente no aniversário do filho de dois anos

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de Luísa, que, na ocasião, acaba lhe cedendo o amante para uma “assistência conjugal,

informal”, como Rami chama a experiência.

Em outro momento, Rami chama as outras mulheres, menos a mais nova que ainda

recebia a atenção de Tony, para lhes propor que se unam:

Cada uma de nós é um ramo solto, uma folha morta, ao sabor do vento – explico. –

Somos cinco. Unamo-nos num feixe e formemos uma mão. Cada uma de nós será

um dedo, e as grandes linhas da mão a vida, o coração, a sorte, o destino e o amor.

Não estaremos tão desprotegidas e poderemos segurar o leme da vida e traçar o

destino (CHIZIANE, 2004, p. 105).

Com isso, Rami sente-se feliz e realizada: “Era bom, dirigir aquele encontro, para mim

que nunca tinha dirigido nada na vida. Sentia-me primeira esposa, esposa grande, a mulher

antiga, a rainha de todas as outras mulheres, verdadeira primeira dama” (CHIZIANE, 2004, p.

103-104).

Mesmo propondo às mulheres que se unam, Rami, como uma personagem que hesita e

questiona, mostra-se em vários momentos desconfortável com a ideia de viver um

relacionamento poligâmico.

Acham que eu devo abraçar a poligamia, e pôr-me aos gritos de urras e vivas e

salves, só para preserver o nome emprestado? Acham que devo dizer sim à

poligamia só para preserver este pedaço de chão onde repousam os meus pés? Não,

não vou fazer isso, tenho os braços presos para aplaudir, e a garganta seca para

gritar. Não, não posso. Não sei. Não tenho vontade nenhuma (CHIZIANE, 2004, p.

91).

Ainda assim, ela planeja uma pequena vingança na festa de 50 anos de Tony. Seu

plano é expor a toda a família que Tony possui outras mulheres, obrigando-o a reconhecer

publicamente o que fazia secretamente. Assim, todas as mulheres de Tony aparecem com seus

filhos, todas vestidas iguais, pois era assim que se apresentavam as mulheres de um polígamo,

e com todos os filhos também vestidos iguais. A reação do marido é de surpresa, vergonha,

lágrimas e raiva.

Aqui, cabe falar sobre a relação de poder estabelecida entre Tony e Rami, uma relação

desigual, em que Tony encontra-se em um lugar superior e Rami está submissa. Quando, logo

após encontrar Julieta, Rami questiona Tony sobre a traição, ele responde da seguinte forma:

“- Traição? Não me faça rir, ah, ah, ah, ah! A pureza é masculina, e o pecado é feminino. Só

as mulheres podem trair, os homens são livres, Rami” (CHIZIANE, 2004, p. 29). Enfatizando

a desigualdade de tratamento para homens e mulheres, Rami, em outro momento, reflete:

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“Poligamia é destino de homem e castidade é destino de mulher. Um homem mata para salvar

a honra e é aplaudido. Uma mulher faz ciúmes e é condenada” (CHIZIANE, 2004, p. 130).

Por encontrar-se em um lugar privilegiado é que Tony não deseja expor nem

formalizar sua condição de polígamo. Pois antes, quando a situação era informal, ele dizia

viver uma vida boa, em que “fazia tudo o que queria. Visitava as mulheres quando me

apetecia. Tirava o dinheiro do meu bolso, pagava-as quando mereciam” (CHIZIANE, 2004, p.

166).

Cabe observar que tal lugar privilegiado do homem é cultural. Ao conversar com a sua

conselheira de amor, Rami e a conselheira, que é do norte de Moçambique, falam sobre

diversos tabus e mitos que explicam – ou melhor, naturalizam – práticas culturais e a própria

submissão da mulher ao homem.

[…] tabus da menstruação que impedem a mulher de aproximar-se da vida pública

de norte a sul. Dos tabus do ovo, que não pode ser comido por mulheres, para não

terem filhos carecas e não se comportarem como galinhas poedeiras na hora do

parto. Dos mitos que aproximam as meninas do trabalho doméstico e afastam os

homens do pilão, do fogo e da cozinha para não apanharem doenças sexuais, como

esterilidade e impotência. Dos hábitos alimentares que obrigam as mulheres a servir

aos maridos os melhores nacos de carne, ficando para elas os ossos, as patas, as asas

e o pescoço. Que culpam as mulheres de todos os infortúnios da natureza. Quando

não chove, a culpa é delas. Quando há cheias, a culpa é delas. Quando há pragas e

doenças, a culpa é delas que sentaram no pilão, que abortaram às escondidas, que

comeram o ovo e as moelas, que entraram nos campos nos momentos de impureza

(CHIZIANE, 2004, p. 36).

No entanto, para desgosto de Tony, as mulheres, unidas, passam a buscar sua

independência financeira, não tendo mais que se submeter aos critérios de merecimento de

Tony para receberem dinheiro, conquistando, assim, sua liberdade e autonomia.

Rami é quem incentiva as mulheres a abrirem seus próprios negócios, ao notar que o

dinheiro de Tony não é suficiente para suprir as necessidades de cinco lares e mais de 15

filhos. Assim, Rami vai emprestando dinheiro às outras mulheres, construindo com elas laços

de solidariedade. O resultado é promissor:

Vendemos [Rami e Luísa] a roupa usada durante seis meses. Criámos capital. A Lu

e eu, cada uma de nós abriu uma pequena loja para vender roupas novas e o negócio

começou a correr melhor. A Saly construiu uma loja. Vende bebidas por grosso.

Tem um café e um salão de chá. A Ju conseguiu fazer um pequeno armazém e já

vende bebidas por grosso. A Mauá abriu um salão de cabeleireiro no centro da

cidade e continua a fazer trabalho na garagem da casa. Tem uma clientela que nunca

mais acaba.

Conseguimos ter um mínimo de segurança para comprar o pão, o sal e o sabão sem

suportar a humilhação de estender a mão e pedir esmola. As minhas rivais andam

encantadas, e têm remorsos da sova que um dia me deram, mas eu digo: não tem

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importância. Foram coisas daquele tempo. O que queriam vocês que acontecesse?

(CHIZIANE, 2004, p. 122).

Por decisão da mãe de Tony, que apoia a poligamia, as mulheres são loboladas2 e os

filhos, legalmente reconhecidos. Na primeira reunião formal, chamada parlamento conjugal,

Rami é considerada pilar da família, rainha da casa, mas ela se sente “promovida na

hierarquia da tirania”, com “um chicote a que chamam ceptro” e promete não açoitar

ninguém.

Mesmo com o arranjo com as cinco mulheres, Tony encontra outra amante, Eva. Ao

descobrirem, as mulheres conjuntamente discutem a situação e decidem fazer algo a respeito.

Suas reuniões têm caráter muito diverso das demais reuniões de família que são descritas no

romance. Entre elas, apesar de suas fortes diferenças culturais (duas mulheres são do sul –

Rami e Julieta – e as outras três são do norte3), todas podem expor suas opiniões divergentes e

chegam, conjuntamente, a uma decisão sobre o que fazer, em um processo de deliberação que

podemos classificar como de democracia comunicativa.

Assim, após as mulheres investigarem sobre a nova amante, elas decidem fazer um

protesto que não fosse uma greve de sexo, mas uma manifestação amorosa e pacífica. Elas

fazem um jantar para Tony e, no entanto, acabam por confrontá-lo, primeiro perguntando

sobre a amante e depois, por iniciativa de Saly, propondo uma “orgia de amor”, em que ele

deve, se for capaz, realizar-se com todas as cinco de uma vez só. Tony, por sua vez, fica

horrorizado e foge.

Este episódio fará com que Tony convoque o conselho de família, onde acabará vindo

à tona a tentativa das mulheres de fazerem uma “orgia de amor”, o que é mal recebido pelos

familiares, que, supersticiosos, temem pela sorte de Tony. Nos comentários das mulheres

sobre a reunião, surge a palavra que intitula o romance – niketche, quando Mauá afirma que

Tony deveria celebrar e não chorar, pois tinha cinco esposas fazendo a dança do amor só para

2 Lobolo significa dote. As mulheres são recebidas no lar polígamo, que passa a ter regras de funcionamento, como a escala

conjugal, em que Tony deve permanecer uma semana na casa de cada esposa. No entanto, as mulheres não se encontram

casadas legalmente com Tony, apenas Rami. 3 Sobre as diferenças entre as mulheres do norte e do sul: “As mulheres do sul acham que as do norte são umas frescas, umas

falsas. As do norte acham que as do sul são umas frouxas, umas frias. Em algumas regiões do norte, o homem diz: querido

amigo, em honra da nossa amizade e para estreitar os laços da nossa fraternidade, dorme com a minha mulher esta noite. No

sul, o homem diz: a mulher é meu gado, minha fortuna. Deve ser pastada e conduzida com vara curta. No norte, as mulheres

enfeitam-se como flores, embelezam-se, cuidam-se. No norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo. No norte as mulheres

são leves e voam. Dos acordes soltam sons mais doces e mais suaves que o canto dos pássaros. No sul as mulheres vestem

cores tristes, pesadas. Têm o rosto sempre zangado, cansado, e falam aos gritos como quem briga, imitando os estrondos da

trovoada. Usam o lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha. Vestem-se porque não podem

andar nuas. Sem gosto. Sem jeito. Sem arte. O corpo delas é reprodução apenas” (CHIZIANE, 2004, p. 36).

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ele. Niketche4 representa a força do amor e da sensualidade das mulheres, que, unidas desta

forma, acabam deixando Tony acuado.

Podemos notar, aqui, que as mulheres e especialmente Rami já se encontram em outro

patamar, diferente daquele do início do romance – não são mais tão submissas a Tony, agora

que têm independência financeira, estão em um relacionamento legítimo e oficial, possuem

direitos, portanto. Isso, claro, deixa Tony insatisfeito. Ele, então, decide punir Rami pedindo o

divórcio, para colocá-la “ao nível das outras mulheres”. Por sua vez, Rami recusa-se a assinar

o divórcio e as outras mulheres, temerosas, pedem para que ela não aceite.

No meio deste conflito, Tony desaparece e, por causa do atropelamento de um homem

não-identificado, os familiares consideram-no morto. Rami sabe que aquele não é Tony, pois

não encontra no corpo uma cicatriz que seu marido tem. No entanto, ninguém quer acreditar

nela, nem mesmo a sua sogra.

Segue-se mais uma reunião familiar, em que Rami sente-se oprimida e é culpada pela

morte de Tony. A família exige que todas as tradições da morte sejam cumpridas, inclusive o

kutchinga, que é uma cerimônia de purificação sexual. Seguindo a tradição, cobrem Rami de

óleos mal cheirosos, colocam-na em um quarto com incensos e raspam-lhe os cabelos.

Antes do kutchinga, Rami recebe a visita da amante de Tony, Eva. Ela desmente a

história da morte de Tony e conta pra Rami que ele foi para Paris de férias. Eva havia

sugerido a viagem a Tony para ele se consultar com um médico e providenciou tudo da

viagem. No entanto, ele levou outra mulher, Gaby, no lugar de Eva.

Ainda segundo a tradição, o próximo passo é a cerimônia do kutchinga, pela qual

Rami anseia, pois se deitará com um homem belo, Levy, irmão de Tony. Rami conta a Eva

que vê a oportunidade como “um momento de amor” e “um bom castigo” a Tony.

Após o funeral, em que se segue a divisão dos bens de Rami, ocasião em que ela se

sente pilhada, e logo após a cerimônia do kutchinga, Tony retorna à casa e a vê vazia. Rami

conta tudo o que aconteceu, deixando-o arrasado. Ela fala com prazer, mesmo percebendo a

dor de Tony. “No meu peito explodem aplausos. Surpreendo-me. Sinto que endureci nas

minhas atitudes. O meu desejo de vingança é superior a qualquer força deste mundo”

(CHIZIANE, 2004, p. 227).

4 Nas palavras de Chiziane, niketche é: “A dança do sol e da lua, dança do vento e da chuva, dança da criação. Uma dança

que mexe, que aquece. Que imobiliza o corpo e faz a alma voar. As raparigas aparecem de tangas e missangas. Movem o

corpo com arte saudando o despertar de todas as primaveras. Ao primeiro toque do tambor, cada um sorri, celebrando o

mistério da vida ao sabor do niketche. Os velhos recordam o amor que passou, a paixão que se viveu e se perdeu. As

mulheres desamadas reencontram no espaço o príncipe encantado com quem cavalgam de mãos dadas no dorso da lua. Nos

jovens desperta a urgência de amar, porque o niketche é sensualidade perfeita, rainha de toda a sensualidade. Quando a dança

termina, podem ouvir-se entre os assistentes suspiros de quem desperta de um sonho bom” (CHIZIANE, 2004, p. 160-161).

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Agora é Rami quem quer ir embora, mas Tony não permite. As outras mulheres

chegam e culpam-no por tudo o que aconteceu. Os papeis estão invertidos e as relações de

poder se alteram. Desta vez é Tony, humilde, que pede perdão.

- Peço perdão, esposas minhas, peço perdão.

O Tony ajoelha-se aos nossos pés e humilha-se. Somos cinco rainhas em tronos de

areia, a vida colocou-me acima do chão.

- Quero que tudo volte a ser como dantes. Nunca mais vos irei trair, prometo.

Cumprirei a escala semanal com muito rigor.

- Tony, fecha essa boca já – ordena a Saly muito furiosa – , foste a causa deste

sofrimento que passámos. Por que voltaste? Por que não ficaste lá na morte onde a

tua família te quer guardado? Por que não ficaste lá no paraíso da Europa, com essa

santa, que te colocou uma brasa de amor no perito, que te fez esquecer o mundo e te

elevou às estrelas? Agora pedes perdão? Fecha a boca, Tony, que o diabo te leve, tu

és um morto. Não nos venha falar de amor, que toda a tua vida é falsidade, antiamor,

maldade.

- A tua família fez de nós tudo o que quis, porque não existimos – grito eu.

- Éramos pedras, paredes, ar. Lançaram-nos no fogo e expulsaram-nos das nossas

casas como se espantam os demónios. Enquanto isso, tu sorrias na lua-de-mel

francesa, com essa tal Gaby – diz a Lu.

- Nas mãos da tua sagrada família, éramos castanha de caju no braseiro de lenha,

éramos peixe grelhado, com vinagre e pimenta. Enquanto isso, tu vivias a primavera

francesa, com essa tal Gaby – desabafa a Mauá (CHIZIANE, 2004, p. 237-238).

De fato, as relações de poder encontram-se modificadas. Em mais um parlamento

conjugal, em que Saly entregará Tony a Ju, esta pergunta se Saly não pode ficar com ele mais

uma semana. Mas Tony já está na casa de Saly há três semanas. Ocupada, Ju diz que não tem

tempo para mimar Tony: “- Não me convém. Não tenho tempo para lhe dedicar atenção. O

volume de trabalho cresce e tenho estado ocupada até à madrugada” (CHIZIANE, 2004, p.

263). Mauá diz algo no mesmo sentido: “- Um homem em casa é trabalho duplo – diz a Mauá

–, não há tempo. É preciso perseguir os negócios e recolher o dinheiro que passa”

(CHIZIANE, 2004, p. 263). A Saly também não quer continuar com Tony, quer passá-lo para

frente e a Ju aceita recebê-lo, mas afirma: “Cuidar dele tornou-se um fardo” (CHIZIANE,

2004, p. 264). Trata-se de uma dinâmica completamente nova, pois, antes, as mulheres

brigavam entre elas para ter Tony para si.

A maior novidade, no entanto, vem com o anúncio do casamento de Lu e Vito, que

deixa Tony revoltado, principalmente por se ver atingido em seu papel de macho: “Todos os

homens zombarão de mim. Todos duvidarão da minha virilidade e serei motivo de chacota.

Dirão que entrei na andropausa. Que estou a perder os meus poderes. Que deixei a gaiola

aberta por incompetência” (CHIZIANE, 2004, p. 271).

Na madrugada antes do casamento, Tony se exalta e passa mal, indo parar no hospital.

Lá, Rami tenta explicar ao médico o que houve e é repreendida por Tony: “- Fecha essa boca!

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Como podes tu falar da minha intimidade a qualquer um, se nunca te admiti? Como teu

marido não permito que te comportes como qualquer peixeira. És mulher e deves pôr-te no

teu lugar, que da minha saúde cuido eu” (CHIZIANE, 2004, p. 285).

Rami, indignada, não se mostra submissa: “- Doutor, suportei este homem a vida

inteira. Se ele não quer que eu fale, então que morra!” (CHIZIANE, 2004, p. 286). Deste

modo, deixa Tony e volta para casa. No dia seguinte, arruma-se e vai para o casamento da Lu.

Antes, porém, liga para o médico para se certificar de que o marido está bem.

De volta para casa, Tony decide que quer ficar apenas com Rami. Mas Rami recusa a

decisão, pois as outras mulheres ficariam sozinhas com seus filhos, sem suporte. Para ela,

Tony precisa mesmo é lobolar uma nova mulher.

Assim, Rami convoca as outras mulheres e conta o que aconteceu. Todas dizem que

não têm tempo para satisfazer os caprichos de Tony e concordam com a solução de Rami de

sugerir uma nova mulher a Tony. Com isso, as mulheres vão para o norte onde encontram

Saluá e a apresentam a Tony. Mas Tony não aceita a oferta.

Diante disso, Saly diz, de forma incisiva: “A tua recusa é uma declaração de

impotência sexual, e então vamos reunir o conselho de família, informar do que se passa e

procurar assistentes conjugais. Este é um direito que a poligamia nos confere” (CHIZIANE,

2004, p. 325).

Por sua vez, Mauá anuncia que já tem um assistente conjugal e que irá se casar com

ele em quinze dias. A Ju também informa que irá subir ao altar em breve. Todas as mulheres

recusam Tony e partem. Rami é a única que resta:

Ruínas de uma família. A Lu, a desejada, partiu para os braços de outro com véu e

grinalda. A Ju, a enganada, está loucamente apaixonada por um velho português

cheio de dinheiro. A Saly, a apetecida, enfeitiçou o padre italiano que até deixou a

batina só por amor a ela. A Mauá, a amada, ama outro alguém. Só fiquei eu, a

rainha, a principal, para lhe salvar a honra de macho (CHIZIANE, 2004, p. 332).

A sós com Rami, Tony ainda sente orgulho de homem e ensaia um pedido de perdão:

- Hoje queria dizer-te palavras de arrependimento. Mas um homem não se

arrepende. Tudo o que faz é sempre bem feito.

- Ainda bem.

- Gostaria de dizer-te que és uma grande mulher. Também não posso. As mulheres

são sempre pequenas.

- Eu sei, meu Tony.

- Eu adoro-te. Quero adorar-te, mas não posso. Adorar é ajoelhar. Um homem com

H maiúsculo não se curva, é erecto.

- Ai, sim?

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- Queria também dizer que confio em ti, mas também não me é permitido. Os

homens devem desconfiar sempre das mulheres, e as mulheres devem confiar

sempre nos homens.

- Já sei. (CHIZIANE, 2004, p. 328).

Mas a verdade é que, como dito antes, só Rami que pode lhe salvar a honra de macho.

Enquanto se abraçam, Tony percebe que Rami está grávida e implora pra que ela diga que o

filho é dele. Rami pensa sobre o que irá responder: “Dizer sim e resgatá-lo. Dizer não e perdê-

lo. Mas eu o perdi muito antes de o encontrar. Ignorou-me muito antes de me conhecer”

(CHIZIANE, 2004, p. 332-333). E, finalmente, conta que o filho que ela carrega é de Levy.

5. Conclusão

O romance de Paulina Chiziane Niketche: uma história de poligamia é um romance de

transformações. No início observamos uma mulher, Rami, submissa e impotente, em uma

relação amorosa insatisfatória, em que se sente traída e abandonada pelo marido. Mas esta não

é a mesma Rami que vemos nas últimas páginas de Niketche. Ao final, Rami torna-se uma

mulher mais madura, independente, não mais submissa – agora é ele que se encontra

submisso, pois Rami terá o papel decisivo de salvar-lhe a honra (o que ela opta por não fazer,

pois escolhe dizer a verdade).

De transformações também das relações de poder que se estabelecem no

relacionamento poligâmico. Empoderada, e contribuindo para o empoderamento das demais

mulheres, Rami, assim como as mulheres, reverte o seu lugar de submissão em relação a

Tony. Isto é possível porque, tecendo uma rede de solidariedade, as mulheres se unem e

conquistam direitos (dentro do relacionamento poligâmico), podem então exigir que Tony

cumpra seus deveres de marido e, além disso, conquistam sua independência financeira. Isto

até que as outras mulheres desejem sair do relacionamento poligâmico para realizar seus

sonhos de mulher e de esposa legítima. Tony, então, é deixado só, com Rami, que, por sua

vez, carrega o filho de um outro homem.

De transformações, ainda, na maneira como as mulheres se relacionam entre si –

inicialmente de forma conflituosa, mas em seguida com solidariedade, buscando

compreender-se mutuamente apesar das diferenças e divergências, deliberando

conjuntamente, tendo espaço para falarem e serem ouvidas umas pelas outras – em um

ambiente privado, familiar, restrito, mas que podemos identificar como seguindo o modelo da

democracia comunicativa.

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Referências

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