Empresas, mercados, tecnologia Uma perspectiva...
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* Versão adaptada para o português do Brasil por Marcos Barbosa de Oliveira.
Empresas, mercados, tecnologia
Uma perspectiva biográfica
In: Revista NADA no. 16, 2012, pp. 14-37*
Hermínio Martins
Alguém disse há tempos “a escola é uma empresa”. Fiquei a pensar nesta frase
memorável. Pela mesma lógica, poderíamos dizer “a universidade é uma empresa”, “a
Igreja é uma empresa”, “o Estado é uma empresa”, e mesmo “a família é uma
empresa”. E de fato, todas estas instituições têm sido vistas pelo prisma dos mercados
e das empresas, segundo um modo de análise que se tornou praticamente hegemônico.
No entanto, o uso do verbo “ser” nestes contextos merece alguma reflexão. Disse o
sábio Adam Smith, que além da sua obra econômica, escreveu trabalhos importantes
de filosofia do conhecimento e da moral, que o verbo “ser” (to be) podia ser
caracterizado como o mais metafísico de todos os verbos. Muitos pensadores
procuram evitar este verbo como particularmente conducente a reificações ou
coisificações, diminuído a nossa capacidade de pensamento crítico (na língua
portuguesa, ao contrário de muitas outras, dispomos de dois verbos nestes contextos
assertóricos, ser e estar). Um movimento de pensamento “anti-Aristotélico”, hoje
denominado de Semântica Geral, quis proibir, e eliminar, este verbo dos seus
trabalhos, matriz lógico-gramatical de todos os essencialismos, com as suas
consequências sócio-políticas e até civilizacionais perniciosas. Construíram mesmo
uma linguagem sem este verbo. Mesmo sem ir tão longe, seria salutar evitar o verbo
em muitas ocasiões em que se fala com autoridade política: porque não falar das
funções, da missão, da vocação, ou dos requisitos das escolas, em vez da estipulação
dogmática referida? Num mundo saturado de mercados, em que mercados dominam
esferas cada vez mais amplas da vida, devemos pensar nos limites do mercado,
especialmente nos limites éticos.
Talvez não seja inoportuno revistar brevemente a maneira como mercados,
empresas e tecnologia invadiram ou estão por invadir domínios inéditos sem
justificação plena do ponto de vista da democracia liberal. Neste texto começamos
com o princípio da vida que seguimos até o fim da vida, notando algumas das
novidades tecno-mercantis em anos recentes. Num texto breve tivemos que omitir a
discussão de áreas importantíssimas como os mídia, as artes, o desporto, os locais de
2
trabalho, entre outras. Mesmo assim, alguns temas centrais foram aflorados e poderão
incentivar mais reflexão crítica sobre a saturação da vida pelos mercados hoje, quase
sempre com o pretexto da inovação tecnológica.
1. Nascemos – vamos nascer cada vez mais frequentemente – num hospital-
empresa ou clínica-empresa (senão numa ambulância-empresa). Mesmo antes do
nascimento, devemos muito a empresas que tratam da nossa concepção nos casos de
FIV [fertilização in vitro] (em geral sob controle médico) ou da inseminação uterina, e
da gestação (com a medicalização da gravidez e do parto). A reprodução sexual é fácil
e absolutamente grátis, embora o sexo sem reprodução seja praticamente todo o sexo
hoje nos países ocidentais. A reprodução sem sexo, pelo contrário, só funciona com as
“novas tecnologias reprodutivas”, e os custos em tempo e dinheiro para os pais,
biológicos ou não, que decorrem do seu uso podem ser consideráveis: as técnicas são
bem imperfeitas (muitos “ciclos” de tratamento podem ser precisos) e os custos
multiplicados. No entanto, o número de nascimentos devidos a esta modalidade de
reprodução tem estado a crescer em todos os países ocidentais, e representa uma
proporção cada vez maior do total de nascimentos: os casais férteis reduzem a
procriação natural para níveis cada vez mais baixos (reduzida ainda mais pelo aborto),
e os casais inférteis ou homossexuais procuram avidamente a reprodução artificial1.
1 A questão é um pouco mais complicada que a distinção entre fertilidade e
infertilidade, e não só por razões médicas. Já há casos no Reino Unido de mulheres
jovens e férteis (entre os 18 e os 25 anos, nas melhores fatias etárias para a procriação
natural) que preferem a inseminação artificial, recorrendo a sites oferecendo esperma,
grátis ou não, de indivíduos ou agências (estas bem mais caras), porque, sendo
economicamente e profissionalmente independentes, querem ter filhos com a máxima
liberdade, quando quiserem, sem sexo, sem parceiros, sem amor, sem as complicações
das relações pessoais. Portanto, a mera existência da tecnologia incentiva a escolha de
outras opções que as relações pessoais e o amor sexual, opções impessoais e clínicas.
A invenção da tecnologia de FIV foi defendida como uma magna resposta
humanitária da biomedicina ao desespero dos casais inférteis: a infertilidade afeta 10
a 15 % da população, mas que passou na altura de uma minoria silenciosa e
envergonhada a uma minoria com voz, força e peso na economia da reprodução,
exercendo pressão constante sobre o desenvolvimento dos mercados e tecnologias
apropriadas. Hoje a tecnologia de FIV serve outras finalidades também que não foram
antecipadas ou pelo menos foram consideradas nos tempos da propaganda inicial
como extremamente improváveis: serve mulheres solteiras perfeitamente férteis e
saudáveis, e mesmo alguns casais perfeitamente sadios e férteis. Há fatores sociais,
culturais, económicos e psicológicos, para além dos biológicos, nestas opções. A
3
Uma autora feminista diz que depois da luta pelos direitos ao aborto a pedido do fim
do século XX ou princípios do século XXI, a grande questão equivalente no século
XXI será o melhoramento do acesso à procriação medicamente assistida, ou, em
geral, à “indústria de fertilidade” ou ao “mercado de fertilidade”2. Ou seja, a
industrialização/comercialização da reprodução humana numa escala crescente. As
sociedades ocidentais poderão estar evoluindo para um modo de reprodução
generalizado totalmente inédito, o “modo de reprodução biomédico”3.
Consequentemente, os fluxos monetários biomédicos associados aos bebês que
surgem como “produtos” (a expressão “manufatura de embriões” é corrente entre os
agentes biomédicos) apontam para uma nova contabilização dos nascituros no PIB
(como acontece quando qualquer atividade se industrializa e se comercializa). E
contam certamente para o que se poderia chamar o Produto Demográfico Bruto (PDB)
como componente do PIB nacional: outrora, os nascimentos eram registados somente
nas estatísticas demográficas nacionais, separadamente da contabilidade econômica
nacional, mas com este processo de mercantilização, com os rendimentos da nova
“indústria de fertilidade”, a contabilidade nacional tem que acompanhar estas
mudanças e registar todos os mercados (à medida que a taxa de fertilidade natural
decresce, os investimentos de pais e empresas na fertilidade artificial aumentam, e
mesmo as despesas públicas, quando o Estado subsidia direta ou indiretamente a
procriação medicamente assistida).
O “mercado de bebês”, a baby business no seu conjunto, FIV, os submercados
como o mercado de gametas, a transferência ou venda de embriões extra-corporais, o
aluguel de mães para gestação, a seleção de embriões extra-corporais pelo diagnóstico
de pré-implantação, certas formas de adoção, etc., está destinado a um grande futuro4.
procura de FIV pode resultar de outros fatores que a infertilidade, o que não foi
previsto, pelo menos em público, pelos biólogos e médicos que elaboraram a
tecnologia. 2 Liza Mundy Everything conceivable –How assisted reproduction is changing men,
women and the world London 2007. 3 Charis Thompson Making parents – The ontological choreography of reproductive
technologies Cambridge Mass 2005. 4 Sobre a baby business como complexo tecno-mercantil com estes variados sub-
mercados, ver o livro de Debora L. Spar, professora de Direito na Harvard Business
School: The baby business – How money, science and politics drive the market of
conception Cambridge Mass., 2006.
4
Como deve ser óbvio as novas tecnologias reprodutivas propiciam janelas de
oportunidade para escolhas de eugenia negativa (eliminação de embriões com defeitos
genéticos de toda a espécie) e mesmo, mais lentamente, de eugenia positiva (escolha
dos “melhores” embriões segundo critérios diversos), sem falar da seleção do sexo,
um direito reclamado em nome da “liberdade procriativa”, mas ainda não aceite nos
países ocidentais5.
Tendo em conta a empresarialização universal, o mais simples seria registar o
nascituro como um empresário, um start-up, potencial, em conjunto com a certidão de
nascimento (eletrônica-digital), como um equivalente funcional do batismo na
sociedade tecno-mercantil onde terão que viver.
2. Iremos a uma escola-empresa. Se “a escola é uma empresa”, poderíamos ir
mais longe na visão empresarialista da educação. Por exemplo, na advocacia da
pedagogia de começar a formar empresários já nas escolas: segundo doutrinários
recentes, a escola devia promover as aptidões que poderão ajudar os alunos a se
tornarem empreendedores e empresários – ou pelo menos bons empregados das
empresas hi-tech. Assim, o “currículo empresarial” (enterprise curriculum) devia ser
obrigatório por lei, não só o currículo com disciplinas acadêmicas (geografia, história,
línguas estrangeiras, por exemplo), e a preparação para os exames nessas disciplinas6.
Os mesmos doutrinários salientam também a necessidade da criação duma
5 Sobre a persistência do eugenismo, e em especial a sua recrudescência nas últimas
décadas, ver o cap. IX do meu livro Experimentum Mundi Lisboa, 2011. 6 Os propagandistas da “educação empreendedorista” (enterprise education) no
Reino Unido destacam as atitudes e comportamentos, ou aptidões como
“honestidade, integridade, pontualidade, reliability, boa apresentação, teamwork ”,
que podem assegurar a empregabilidade (James Hurley “Employers call for
“enterprise curriculum””,The Daily Telegraph 26 de Julho de 2011). A honestidade e
integridade chamavam-se antigamente virtudes, e não “aptidões” (skills) –se o ditado
inglês rezava “honesty is the best policy” ficava subentendido que a honestidade,
além de ser uma virtude, tinha também valor instrumental –, e é interessante ver como
os ideólogos deste tipo de educação veem a escola como devendo ser uma escola de
virtudes, denominando-as como aptidões: a educação moral, como se chamava
antigamente, mas não necessariamente laica, porque as escolas religiosas estão muito
em moda no Reino Unido, mesmo entre famílias irreligiosas, não se encontra no
currículo, em geral. Educação moral: e a educação cívica? Se o Estado-nação, cada
vez menos credível hoje, se tornar numa empresa, ou consórcio de empresas, não
vamos precisar de uma formação específica para vivermos na sociedade politica, ou
uma educação para a cidadania.
5
mentalidade empresarial (entrepreneurial mind-set) pela formação apropriada dos
professores de escolas primárias e secundárias: um papel crucial dos professores será
“to teach enterprise” (haverá lições também sobre aptidões comerciais nas creches,
não tenho dúvidas). A escola, para estes ideólogos, não só é uma empresa, mas uma
empresa para empresas e para empresários.
Mas, essencialmente, o que perspectivam é a empregabilidade, não tanto o
empreendorismo, apesar do rótulo da educação que favorecem. Não se vê bem se o
que mais conta: a educação para a “empregabilidade” (dando uma grande ênfase às
aptidões práticas, em vez das aptidões acadêmicas), ou a educação para o
empreendedorismo. No entanto, as aptidões na língua materna e em matemática, não
são “práticas” no mesmo sentido, embora, de fato, sejam eminentemente práticas para
os empregadores. Há uma certa tensão entre a necessidade de bons empregados, a que
não se irão necessariamente exigir grandes capacidades de iniciativa e de imaginação
para as empresas, e a incentivação do empreendedorismo em geral. Mas como a
“flexibilidade”, ou a perspectiva de que ninguém vai ter empregos estáveis, que se
possam desfrutar por muito tempo, será irreversível, também se poderia esperar que as
escolas formassem pessoas “flexíveis”, embora este desiderato não apareça em
qualquer lista publicada pelas associações de propaganda empresarial tão ativas em
anos recentes. Para os licenciados no Reino Unido, a estimativa mais citada há alguns
anos era de que teriam de sofrer na média cinco mudanças significativas de profissão
durante a sua vida, talvez como serial entrepreneurs com os seus altos e baixos (como
nas suas vidas pessoais poderão mudar de localidade, de parceiros, de gênero, de
sexualidade, de identidade, de nacionalidade, de religião, etc., mais do que uma vez,
portanto a “serialidade” representa uma forma comum)7. Possivelmente com muitos
altos e baixos ao longo da vida profissional, à maneira dos romances picarescos do
século XVIII. Possivelmente com vários empregos ou atividades econômicas ao
mesmo tempo, voltando ao clássico “cabide de empregos”, ou “cabide de empresas”.
3. Depois frequentaremos, sem dúvida, uma universidade-empresa, ou alguma
instituição de ensino terciário, empresarializada, no espírito ou na prática. O modelo
da universidade pública clássica está a sofrer ataques sucessivos dos governos de
vários países ocidentais, com o Reino Unido na vanguarda. Estamos a evoluir para a
7 Em média, um cidadão americano muda de empregos mais de dez vezes, muda de
casa mais de seis vezes, casa-se mais do que uma vez, durante a sua vida (David
Gilbert Stumbling into happiness London 2006, p. 214.).
6
integração cada vez maior das universidades com a economia de mercado. Para
alguns cientistas, as universidades podiam viver de patentes, sem dinheiro do Estado,
se se tornassem em fábricas de patentes, com a investigação científica dirigida
principalmente para assuntos que poderão ser de interesse para essa finalidade. Por
enquanto, os Estados irão subsidiar só as disciplinas do STEM (sigla inglesa para
“Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática”), deixando o ensino das
humanidades, das artes e das ciências sociais para as forças do mercado. Triste
constatar que alguns jovens professores já consideram natural definir a relação entre
professores e alunos como uma relação comercial banal, entre o aluno cliente
(customer) ou de consumidor, e o professor como “fornecedor de serviços”
(provider). Se esta tendência, por si só, continuar, o ethos das universidades será
transformado radicalmente. Certamente a experiência universitária foi completamente
diferente para as pessoas de mais de 25 anos8.
4. Quanto estivermos doentes, seremos tratados numa clínica-empresa ou
hospital-empresa. Poderemos servir como cobaias, sem o saber (há uma longa história
destes ensaios nos países ocidentais), mas ficaremos talvez mais descansados quando
nos explicarem que numerosíssimos ensaios clínicos se realizam em países distantes,
com gente pobre e iletrada. A expansão dos mercados numa economia aberta e
globalizada implica a expansão do outsourcing, uma macro-tendência potente, um
mega-trend (antigamente dizíamos uma “lei”, ou uma “lei de tendência”) da economia
mundial na época da globalização, de que vamos dar mais exemplos. Se o outsourcing
da produção industrial representa a modalidade mais avançada, bem saliente no caso
dos EUA, onde uma parte substancial da capacidade produtiva das indústrias
transformadoras foi transferida para a China a partir dos anos 90, também ocorre em
muitos outros tipos de mercados de bens e serviços, mercados que surgiram em escala
significativa recentemente devido a avanços na tecnologia biomédica, como aqueles
que concernem a reprodução, onde não se trata de força de trabalho barata,
disciplinada, e não-sindicalizada, mas de “forças reprodutivas” domesticadas ou
sujeitos clínicos baratos e dóceis9. No caso dos ensaios clínicos, a troco de pagamento
de quantias ínfimas de dinheiro, e de receitas para os hospitais onde se realizam, e
8 Sobre os processos e as origens das ideologias da mercantilização das universidades
ver o meu artigo “The marketization of the universities” on-line no site do Prof.
Adelino Torres. 9 A China conquistou o lugar de quarta potência económica mundial em 2005.
7
perks para os médicos que os realizam ou escolhem os sujeitos a serem testados em
países “em vias de desenvolvimento” ou mesmo em “países emergentes” como a
Índia, estatuto que este país goza hoje, como o Brasil e a China. A Índia tem sido um
campo privilegiado para estes ensaios clínicos transnacionais, a pedido não só de
empresas comerciais normais que querem abreviar o hiato temporal entre o
laboratório e o mercado, mas mesmo de organizações não-lucrativas, que querem ver
avanços biomédicos rápidos, reduzindo o intervalo entre os resultados obtidos no
laboratório (wet labs) e a sua aplicação na terapia (em primeira instância, na
América). Esses ensaios têm sido realizados em grande parte em jovens iletrados
desempregados, sem que as condições mínimas do “consentimento informado e
livre”, máxima fundamental da ética médica em tempos recentes, tenham sido
cumpridas (os agentes locais, médicos, clínicas, hospitais, etc., muitas vezes não
demonstram muitas preocupações humanitárias). Os locais onde as grandes
companhias farmacêuticas realizam estes ensaios clínicos nos países referidos são
numerosíssimos: eram pelo menos uns 2.500 já há alguns anos. Trata-se de um
mercado pouco regulado10
.
10
Ver Adriana Petryna When experiments travel – clinical trials and the global search
for human subjects Princeton 2011. Mesmo assim, a necessidade de ensaios clínicos é
tão grande, com a enorme expansão da biomedicina de pesquisa, que uma catedrática
de bioética americana pronunciou-se recentemente no sentido que existe um
obrigação moral de todos os cidadãos adultos do país participaram em ensaios
clínicos, mesmo contra a sua vontade, dispensando portanto a máxima de
consentimento livre e informado, obsoleta, segundo esta professora. Se essa obrigação
moral fosse traduzida em lei, implicaria uma grande ampliação do universo de
pacientes (“sujeitos”) destes ensaios, tornando a população nacional num universo de
experimentáveis biomédicos (seriamos “cidadãos biomédicos”, por assim dizer, como
os que participaram, pelo menos devido à proximidade, em ensaios nucleares se
denominaram “cidadãos atômicos”, ou os afetados pelo desastre de Chernobyl que se
auto-denominaram “cidadãos biológicos”, as reported by Adriana Petryna em Life
exposed – biological citizens after Chernobyl Princeton 2003). Poderia reduzir
consideravelmente a prática corrente de outsourcing destes ensaios para países com
uma população de miseráveis abundante e ignorante, mas a procura de “sujeitos” é tão
grande que possivelmente nem esse resultado benéfico virá a acontecer (sobre o
assunto ver as referências e links no artigo de Bill Gleason “Do people have a moral
obligation to participate in research?” The Chronicle of Higher Education 14 de
Outubro 2011). No entanto, mesmo as pessoas que se sujeitam voluntariamente a
ensaios clínicos, em geral não recebem compensação se as coisas andam mal, nem
sequer ajudas de custo. Há um ou dois anos uma instituição americana biomédica
8
5. Se encontrarmos emprego, iremos certamente trabalhar numa empresa (ou
várias ao mesmo tempo), a não ser que constituíssemos a(s) nossa(s) própria(s)
empresas. Aliás, qualquer de nós pode registar-se como uma empresa, ou talvez várias
ao mesmo tempo (pelo menos no Reino Unido), possivelmente com a inclusão de
todos os membros da família. Seriamos self-employed, como se diz em inglês,
empregados de nós próprios, sendo empresa, empresário e empregado ao mesmo
tempo, apenas distintos conceptualmente (como numa época não muita remota as
crianças podiam trabalhar a partir dos 6 anos, não sei a que idade nos poderemos
começar a constituir-nos como empresários, ou membros de uma empresa11
). Já temos
uma expressão mais adequada para esta condição, a de sermos auto-empresários, ou
constituirmos auto-empresas.
6. O trabalho científico será feito em empresas (institutos-empresas,
universidades-empresas, laboratórios-empresas), ao serviço de outras empresas, num
mercado global de “ciência à venda”. Muitos cientistas dos mais “puros” como
Einstein requisitaram patentes para vários inventos (neste caso, de bem pouco
muito respeitável tinha sugerido a utilização de prisioneiros para ensaios clínicos,
também dispensando a máxima de consentimento informado (sujeitar prisioneiros a
experimentos biomédicos, inclusive psicocirúrgicos, é uma prática que vem de longe,
e não só na América). Sobre a questão da coação nos experimentos biomédicos ver o
cap. VI do meu livro Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição
humana, Lisboa, 2011. 11
Pelo menos a socialização das crianças para os papéis de consumidores ou
participantes na economia de mercado pode começar bem cedo: já há apps. para
iPhones destinadas a crianças a partir dos dois anos de idade, jogos em particular, e a
multiplicidade e ubiquidade das telas eletrônicas hoje, em casa ou em lugares
públicos, não poupa ninguém, nem os bebês, praticamente 24/7. Quanto à
socialização para o papel de empresários, já há creches onde se ensinam os méritos
dos empresários, a importância dos empresários na vida nacional e internacional. Não
deve faltar muito para concursos para os melhores empresários infantis e para o
equivalente empresarial do Portugal dos Pequeninos (depois de escrever esta nota, vi
uma notícia de que as Girl Scouts da América vão organizar concursos com prêmios
para as escoteiras que apresentarem os melhores business models e os melhores
conhecimentos de contabilidade, e não só da economia doméstica, como
antigamente). Em certas culturas católicas tradicionais procurava-se estimular o
máximo de vocações para sacerdotes ou para a vida religiosa em geral: neste
admirável mundo novo, promove-se qualquer coisa como um equivalente funcional,
estimulando o máximo de vocações para a vida empresarial ou pelo menos para o
papel de bons consumidores, de bons fregueses.
9
proveito), mas nessas atividades procediam como se fossem subsidiárias e mesmo
periféricas aos seus interesses fundamentais como cientistas. Mas hoje em dia, a
figura do cientista livre e independente já cedeu lugar à figura dupla do cientista-
empresário, ou à figura tripla do cientista-engenheiro-empresário (muitos exemplos
em Silicon Valley e aglomerações semelhantes noutras regiões dos EUA ou noutros
países).
Os cientistas-empresários formaram nas últimas duas décadas pelo menos uma
boa quota dos start-ups em áreas como as novas tecnologias de informação e
comunicação, mas brotam cada vez mais em vários domínios da biogenética, o
exemplo máximo sendo talvez J. Craig Venter, um dos fundadores da biologia
sintética, bem mais radical que a chamada engenharia genética, no sentido comum
(mas mesmo ele está ser ultrapassado por geneticistas ainda mais ambiciosos com
respeito à manufatura da vida). Numerosíssimos cientistas que fazem investigação em
universidades têm ligações fortes com empresas especialmente nas áreas da genética e
da biomedicina ou são co-fundadores de empresas desse tipo. Mesmo sem esse grau
de empreendedorismo, já se encontram muitos cientistas-acionistas, pois são pagos
em parte com ações das empresas para os quais fizeram algum trabalho científico,
especialmente no caso de empresas biomédicas, da indústria farmacêutica, da Big
Pharma (o que não deixa de ser preocupante, dado o conflito de interesses potencial).
No limite, teríamos não só um “capitalismo de acionistas”12
, em que acrescentar o
valor das ações se torna o critério prioritário para os gestores das empresas, mas
também o que poderíamos chamar uma “ciência de acionistas”, de cientistas-
empresários que têm de participar, como empresários, nesse capitalismo de acionistas,
e de cientistas-acionistas no sentido que indicámos (até desfrutando de stock options,
para os vincular fortemente às grandes empresas, especialmente farmacêuticas), sem
esquecermos que os cientistas assalariados trabalham para instituições cada vez mais
empresarializadas e dependentes das práticas do capitalismo de acionistas,
globalmente falando, qualquer que seja o seu sentido subjetivo de independência
interior em relação a este envolvimento. Seria uma modalidade de ciência totalmente
imprevista.
12
Denominado o “capitalismo total” por um empresário-estudioso francês, J.
Peyreval.
10
Além de empresários, muitos cientistas são gestores nas universidades com
respeito às suas equipes, ou em centros de investigação, por necessidade ou por
apetência. Muitos mais serão a obrigados a tirar cursos de gestão e de marketing.
Muito trabalho científico é feito por equipes, e onde as equipes trabalham muito
tempo em projetos coletivos, a coordenação poderá ser feita por gestores científicos.
7. Para os libertários consequentes, as Igrejas, ou as confissões religiosas em
geral, deveriam concorrer no mercado livre sem restrições legais de entrada, como as
impostas por alguns Estados de autorização e de registro para o tratamento fiscal e de
direito público, comparável com o que as confissões históricas têm desfrutado.
Qualquer indivíduo poderia registar-se como uma confissão-empresa, ou como um
sacerdote/ministro de uma qualquer religião (não necessariamente teísta ou deísta,
claro), vendendo ou comprando crenças, breviários, liturgias, cerimônias, hinos, etc.,
registáveis ou mesmo patenteadas como Propriedade Intelectual. Podem ter uma
existência puramente virtual, na rádio ou on-line: “igrejas de rádio” (radio churches)
já existiam nos EUA e no Brasil nos anos 30, e a religião on-line tem ainda muito
espaço para crescer. Por outro lado, qualquer pessoa terá a liberdade de optar por
qualquer das ofertas no “mercado” religioso, possivelmente escolhendo a mais
atraente promessa de salvação [(como assim foi descrito por eminentes sociólogos da
religião, com a maior seriedade, já há décadas)], mudar as suas escolhas, criar novas
ofertas, ou não escolher nenhum dos “produtos” disponíveis nesse mercado (mas
mesmo entre ateísmos, irreligiões e arreligiões pode haver várias ofertas). Seria
simplesmente levar o padrão americano de seitas e denominations em concorrência
permanente, à sua expressão mais completa. Com certas religiões historicamente não-
exclusivistas podem-se praticar várias ao mesmo tempo13
.
13 A religião já deixou de ser registada nos passaportes nos países ocidentais, embora
só há poucos anos que a religião Ortodoxa deixou de ser inscrita universalmente nos
passaportes gregos, como se religião e nacionalidade coincidissem, sendo ambos
atributos adscritivos dos cidadãos. O recrudescimento do nacionalismo etno-religioso
poderá trazer esta prática de volta em alguns países. Recentemente, um escritor
israelita conseguiu registar-se como judeu etnicamente mas sem pertencer à religião
judaica: o primeiro caso bem-sucedido deste tipo no país, porque antigamente a
etnicidade supostamente coincidia com a religião.
11
8. Os que tiverem a sorte de possuir genes/alelos de interesse comercial,
poderão vendê-los, constituindo talvez uma empresa genética/genômica para o efeito
mas de fato hoje as empresas do ramo estão a patentear tudo o que podem. Os ricos,
certamente o 1% de que se fala tanto hoje, podem comprar os melhores
genes/alelos/superalelos no “híper-mercado genético” global para o seu próprio
melhoramento genético ou da sua prole. O filósofo anarco-capitalista de Harvard,
Robert Nozick, no seu livro famoso Anarchy, law and the State (1971), um tratado de
filosofia política bastante influente, falou de um “supermercado genético” mundial a
que todos os pais deveriam ter acesso livre, pelo menos legalmente e moralmente,
sem interferência dos Estados, das Igrejas ou de qualquer outra autoridade. O mercado
livre de genes, de super-alelos especificamente, tem sido defendido por vários
bioeticistas numa versão do que se poderia chamar o liberalismo biomercantil, no
domínio humano como noutros14
. Alguns aceitam as implicações mais radicais desse
mercado, tal como a possível constituição pela “reprogenética” ( a combinação das
tecnologias genéticas com as tecnologias reprodutivas) de duas classes biológicas ou
biogenéticas, os “ricos em genes (alelos desejáveis)” e os “pobres em genes” (na
qualidade de alguns genes, pelo menos). Uma sociedade dual ou pelo menos
estratificada em termos genéticos claramente definidos, talvez fenotipicamente, e
provavelmente legitimada pela alegada superioridade genética da casta dominante.
Mesmo hoje, é preciso ter muito cuidado, porque nas últimas três ou quatro
décadas a questão sobre os direitos de propriedade sobre os “nossos” genes, os genes
residentes no “nosso” corpo, que foram identificados e “trabalhados” (processed) por
empresas biomédicas, tornando-se Propriedade Intelectual dessas empresas, tem sido
objeto de disputas legais em vários países, chegando mesmo às últimas instâncias
judiciais, com desfechos diversos. Mesmo que não se chegue à situação de perdermos
qualquer direito de propriedade aos nossos genes, ao nosso DNA, quando e na medida
que sejam de interesse para uma qualquer empresa biomédica, e como a
biotecnologia, com as suas promessas de novos medicamentos, biocombustíveis,
alimentos, etc., avança rapidamente, com o apoio substancial de vários governos, a
lista de genes humanos patenteados irá crescer, pelo menos nos países onde esta
prática é permitida pela lei, nos EUA certamente. Em 2005 já se contavam mais de 4
14
O tratado mais extenso em prol da escolha livre neste mercado: Colin Gavaghan
Defending the genetic supermarket –Law and the ethics of choosing the next
generation, London, 2007.
12
mil genes humanos patenteados, ou seja mais ou menos 1/5 do nosso genoma. As
patentes de genes referem-se a sequências de genes, ou segmentos de genes, ou a
proteínas produzidas por genes, ou seja estruturas, funções e processos dos genes. Na
sua grande maioria, portanto, as patentes em questão não protegem invenções
propriamente ditas, mas a descobertas de como sequenciar genes, ou matérias afins.
Talvez pela primeira vez na história o sistema de patentes, garantias estatais, foi
utilizado para proteger os lucros decorrentes de descobertas, e não de invenções15
. Os
críticos liberais do sistema de patentes, que supostamente favorecem os mercados
livres, notam que só neste domínio é que as patentes têm incentivado a pesquisa e
desenvolvimento das empresas, quer dizer na exploração de descobertas que não
deviam gerar direitos de propriedade16
.
9. Além do nosso patrimônio de genes, possuímos órgãos que poderão ser
também de interesse biomédico, e para esses efeitos recomenda-se que nos registemos
como empresas individuais de venda de órgãos (ou mesmo de membros), mesmo se
não o fizermos por algum tempo, à espera, por exemplo, do melhor preço no mercado
(a venda de órgãos é proibida, mas existe um mercado negro nesta área). Com os
avanços da biomedicina, tornou-se possível transplantar certos tipos de órgãos
humanos com êxito, e com relativa segurança para os doadores. Nas próximas
décadas, o leque de órgãos inter-transplantáveis entre corpos humanos nestas
condições irá aumentar, tornando possível com o tempo uma gradual modularização
do corpo humano (sendo a modularização um dos princípios constitutivos da
industrialização, tendo avançado especialmente nos EUA – um belo estudo sobre esse
país intitula-se Modular America – nada de surpreendente nesta variante de
modularização no mundo da biomedicina). O Homem Modular, biologicamente, ou
15
Ver a discussão importante deste tipo de patente e a defesa dos “comuns genéticos”
em vez do regime atual de expansão dos direitos de propriedade sobre matérias
genéticas nos EUA no livro do filósofo David Koepsell Who owns you? The
corporate gold rush to patent your genes, Oxford 2009.
As matéria genéticas abrangem haplótipos, SNP (polimorfismos) , CNVs . Além das
patentes de genes, também nos EUA se desenvolveu uma jurisprudência que aceita
patentes de células, tecidos e mesmo denças humanas. E os biomercados, as patentes
de sementes, micro-organismos, organismos multi-celulares, plantas, e genes e
genomas de organismos não-humanos cresceram muito a partir dos anos 70. 16
Segundo Terence Kealey Sex, science and profits – how people evolved to make
money, London, 2009, p. 379.
13
melhor, organologicamente falando, representaria, por assim dizer, uma versão
biotecnológica do corpus mysticum, como também, até certo ponto, a globalização de
mercados biohumanos da reprodução, e as migrações, resultam numa espécie de
panmixia, mantendo de fato a unidade e unicidade biológica da espécie humana, que
certos reprogeneticistas gostariam que viesse a desaparecer.
Com as novas técnicas de transplante, e as carências de doentes com órgãos
disfuncionais, surgem novos mercados, ou pelo menos mercados negros (há sempre
empresários para estas atividades). Como no caso de outras tecnologias avançadas
biomédicas, surgem questões espinhosas, dilemas, aporias, predicamentos, de ética
sobre a legitimidade destes mercados e das alternativas nas circunstâncias
contemporâneas (no futuro, a medicina regenerativa e as próteses eletromecânicas
mais sofisticadas, como o coração artificial que poderá ser comercializado nos
próximos anos, poderão mitigar, mesmo que não dispensem completamente, a
necessidade de transplantes, e nessa conjuntura estas questões seriam menos
urgentes).
Os ricos podem comprar os melhores órgãos mais rapidamente no
hipermercado global de órgãos humanos, no duplo mercado, o mercado legal e o
mercado negro, embora de fato talvez seja apropriado falar também, neste contexto,
como noutros, de mercados cinzentos. No entanto, não se trata só do mercado de
órgãos Norte-Sul, ou Sul-Sul. Como as soluções de mercado são recomendadas pelos
economistas, fazem parte do credo de um grande número de think tanks prolíficos
através do mundo, recomendam-se aos políticos, e cobrem áreas cada mais extensas
da vida, a entrada de órgãos humanos para transplante num mercado especifico legal
tem sido defendida para providenciar a maior oferta de órgãos para transplante, em
muitos países (a procura deve-se em parte ao envelhecimento das suas populações
resultando das “Revoluções de Longevidade”), pois as doações, embora tenham
estado a crescer significativamente, ainda ficam aquém da procura.
O mercado global de órgãos humanos foi defendido por um filósofo
americano, James Stacey Taylor, no seu livro Stakes and kidneys: why markets in
human body parts are morally imperative (2005). Segundo este autor, não há nada de
imoral em alguém comprar órgãos quando o vendedor não tem recursos, está
desesperado e recorre à venda de partes do seu corpo porque não tem alternativa para
sobreviver. Além disso, o filósofo argumenta que temos o dever moral de participar
nesse mercado de órgãos. Ele não quer dizer que exista uma obrigação moral de doar
14
órgãos, para familiares ou mesmo para estranhos, como muitos argumentam, filósofos
ou não filósofos, doação que os Estados querem incentivar cada vez mais, dada a
procura crescente de órgãos para transplante, mas o dever de os vender, se os não
quisermos doar gratuitamente e voluntariamente, se e quando a extração de órgãos
para transplante não prejudique a nossa saúde e esperança de vida. Mesmo com estas
restrições, o pool de potenciais vendedores de órgãos seria enorme, e o mercado seria
fabuloso, numericamente e crematisticamente. Quanto á extração de órgãos de
moribundos, como aliás há milhares de pessoas que sofrem acidentes automobilísticos
fatais todos os anos, os governos de vários países têm considerado várias medidas
para a incentivar, por exemplo, exigindo que como condição necessária para se se
poder obter ou renovar uma carta de condução seja feita uma declaração para permitir
o transplante, recusar o transplante ou pensar no assunto (no Reino Unido esta medida
poderá tomar efeito em breve). A expectativa é que nessas circunstâncias um bom
número de pessoas, confrontadas com a obrigação legal de escolher, irão optar pelo
consentimento prévio, e ficarão assim a pertencer à lista nacional (eletrônica, claro) de
doadores. Não ficou claro se se poderá mudar de opinião, e exprimir esta mudança de
opinião, de algum modo que possa ser registada e acatada pelas autoridades.
Uma proposta muito recente pode apontar para o futuro, não só da constituição
de um mercado de órgãos humanos nos países ocidentais que o têm recusado até
agora, mas como do seu inter-relacionamento com outros mercados, que lidam com
bens e serviços completamente diferentes. A proposta foi de que, como os estudantes
ingleses17
têm que pagar anuidades cujo nível atinge 9.000 libras esterlinas num
grande número de universidades públicas ou semi-públicas como são hoje
praticamente todas (não só as mais prestigiadas), a dívida bancária que contraem para
as pagar enquanto frequentam a universidade, deixaria de ser um grande fardo se os
estudantes pudessem vender um rim por 28.000 libras, ou mais ou menos 90.000 reais
(um preço razoável, ao que parece, tanto para os compradores como para os
vendedores, sendo uma quantia equivalente ao rendimento médio anual no Reino
Unido). O clima de opinião a respeito da venda de órgãos para transplantes ainda não
se transformou ao ponto de esta proposta ser aplaudida como uma das soluções
legítimas para a crise do financiamento das universidades pelas anuidades, como para
17
Não é o caso dos estudantes escoceses, cujo acesso às universidades é praticamente
gratuito por enquanto.
15
o déficit de órgãos para transplante, mas o próprio fato de a proposta ter sido colocada
por uma acadêmica – uma investigadora senior na sociologia da medicina numa
universidade escocesa – merece ser notado. E se a proposta foi feita no caso de
estudantes ou licenciados, outras propostas análogas podiam ser feitas, por paridade
de raciocínio, com respeito a desempregados e indigentes, por exemplo, ou qualquer
pessoa ou categoria de pessoas numa situação econômica muito difícil, com a mesma
justificação, mas obviamente o aumento da oferta poderia diminuir o preço, e o
rendimento desta operação.
12. Com respeito à reprodução humana, o mercado de gametas, de óvulos e de
esperma, para a inseminação artificial humana, já foi globalizado (embora haja países
que proíbem a exportação de gametas, como a Índia, nenhum parece proibir a sua
importação, e de qualquer modo o turismo reprodutivo internacional pode superar
essas barreiras legais). Existem tabelas de preços que se podem consultar facilmente
on-line, com empresas especializadas, embora este mercado não esteja ainda
suficientemente diferenciado e competitivo, com um déficit da oferta no caso de
várias etnias nos EUA, no Reino Unido, e provavelmente noutros países também. Os
óvulos das alunas de licenciatura de Harvard são, de longe, os mais caros nos EUA:
parece haver uma correlação forte com o ranking internacional das universidades no
caso norte-americano (seria mais econômico determinar o ranking das universidades
por este indicador, do que pelos modos correntes)18
. A escolha dos doadores de
esperma pode ser feita por vídeos, ou on-line, segundo os dados biométricos (a altura,
em particular), atestados médicos, o curriculum educacional e profissional, ou os
resultados dos SATs, dos doadores disponíveis, e fotos, sendo os preços bem menores
que no caso da doação de óvulos19
. O mercado de gametas, mesmo quando se trata de
18
Mas a procura de óvulos pode abranger pessoas de estatuto sócio-econômico
relativamente baixo. E a transação pode ser bem curiosa, como no caso genuíno de
uma dançarina americana que vendeu óvulos para poder pagar implantes mamários,
mais ou menos necessários na sua profissão. 19
Dados de Renée Almeling, cujos trabalhos anteriores citei no cap. IX do meu livro
Experimentum Humanum. O seu novo livro Sex cells –the medical market for eggs
and sperm Chicago 2011, trata do assunto mais extensamente. Há vários paradoxos
associados com as novas tecnologias reprodutivas. Um doador de esperma americano
afirma ser virgem aos 36 anos, embora seja pai genético de umas 15 crianças, pois
tem sido um doador entusiástico, com umas quarenta mulheres clientes (curiosamente,
não trabalhava para uma agência, mas por conta própria, grátis). O mesmo podia
16
um mercado negro, tem sido predominantemente Norte-Norte, ou doméstico, ao
contrário de outros mercados biológicos, muito mais transcontinentalizados seguindo
um gradiente econômico, com gente dos países mais ricos sendo os compradores,
como no caso dos mercados dos órgãos, dos genes, ou da gestação, sem falar de
mercados biológicos transnacionais mais inocentes, como o dos cabelos. No entanto,
se propostas como a referida acima, de iniciar a compra e venda de órgãos dentro dum
país do Norte forem aceites, o mercado de órgãos humanos legal podia ser também
nacional.
10. A gestação humana, ou o “trabalho reprodutivo” das mulheres, como
outras formas de trabalho, pode ser outsourced, neste caso só a outras mulheres,
grátis, ou por um certo preço, familiares (irmãs, mães, avós, tias, primas), amigas, ou
estranhas, com muitas implicações não-convencionais para as relações parentais e de
filiação. Em princípio, o assunto podia ser tratado diretamente on-line, como nos
dating sites, mas já existe um mercado para o outsourcing da gestação a mulheres em
outros continentes, segundo os preços, e outros fatores, com empresas a tratar deste
negócio delicado, e os preços podem variar segundo os países e as preferências dos
pais genéticos. Neste domínio também, as regras legais podem não estar muito bem
definidas, especialmente devido a questões de jurisprudência identitária, quando se
trata de outsourcing transnacional e especialmente transcontinental. Na França,
recentemente, bebês nascidos de embriões de pais biológicos, ou melhor, genéticos,
franceses, implantados em mulheres indianas como as suas “mães de aluguel”, foram
negados a cidadania francesa, quando a regra geral prevalente era que o filho de
cidadãos franceses, onde quer que nascesse, seria francês20
. A República Francesa,
dirão alguns, continua obcecada com a ideia que o ventre que dá nascimento aos
filhos biológicos de cidadãos franceses (trata-se de um casal homossexual) tem que
ser também de nacionalidade francesa: uma espécie de protecionismo
reprodutivo…Casos como estes demonstram o conflito entre Estado e mercado numa
área onde as pré-definições de cidadania, mesmo pelo jus sanguinis, não preveram
acontecer com mulheres, virgens-mães, embora nenhum caso tenha sido publicitado, e
o pai-virgem poderá ser único. E com o congelamento de esperma ou de embriões
pode-se ser pai depois da morte, anos depois. 20
As normas legais a este respeito na França mudaram consideravelmente várias
vezes nos últimos cento e tal anos. Neste caso específico, a mãe genética, a doadora
do óvulo, foi anônima. Mesmo assim, muitas mães biológicas em França ou noutros
países serão desconhecidas.
17
este tipo de situações: especialmente quando se trata dum Estado de elevada
“estatidade”21
.
Todas estas questões perderão a sua razão de ser quando chegarem os úteros
artificiais, com todas as funcionalidades necessárias e a gestação poderá então ter
lugar fora de qualquer corpo biológico natural, humano ou não humano, em condições
perfeitamente controladas. A ectogênese, no sentido estrito do termo, em que todo o
processo desde a concepção não-sexual, extra-corporal, até a hora em que o nascituro
possa ter uma vida independente, decorre dentro do útero artificial, fora do corpo
humano, ou de qualquer outro corpo biológico natural. De certo modo, seria o
desfecho da Revolução Reprodutiva humana das últimas décadas. Revolução
anunciada com brio anunciada em 1923 por um biólogo britânico, que só
verdadeiramente se iniciou em 1978 com o nascimento do primeiro bebê concebido
num tubo de ensaio, embora se possa datar também da introdução da pílula
anticoncepcional feminina (digo “desfecho” se excluirmos a clonagem reprodutiva
humana). Com a combinação das novas tecnologias reprodutivas e da engenharia
genética, a Revolução Reprodutiva podia transformar-se numa Revolução
Reprogenética.
11. O sangue humano para transfusões já foi comercializado há muito tempo
nos EUA, onde há gente com poucos recursos para quem vender sangue regularmente
pode ser uma fonte de rendimento significativa por anos e anos. A introdução do
mercado de sangue no Reino Unido diminuiu a oferta voluntária de sangue,
considerável, que por décadas tinha sido uma fonte de orgulho para o país. O cientista
social Richard Titmuss no seu livro clássico de 1971, The gift relationship, já tinha
avisado que um efeito de crowding out da oferta voluntária de bens para fins altruístas
pela mercadorização iria ocorrer, com uma deterioração da qualidade, o que
poderíamos chamar o “efeito Titmuss”. Efeito patente com respeito a outras
modalidades de dádiva, de altruísmo, com a introdução de mercados, escalas de
21
Um dos resultados típicos deste outsourcing já foi denominado o “bebê global”, ou
o “bebê mundial”, pois é perfeitamente possível que o doador de esperma, o doador
do óvulo, a mãe proveta, o pai jurídico, a mãe jurídica, e o local de nascimento sejam
de nacionalidades diferentes, como a cidadania do bebê, que pode ser conferida pela
nacionalidade dos pais adoptivos: pelo menos cinco nacionalidades em questão (a
mãe proveta representa certamente uma novidade tecnológica). Uma nova indústria,
coordenando pais adotivos, doadores de gametas, mães provetas, clínicas ou hospitais,
em vários países, trata destes assuntos transnacionais.
18
preços, etc.22
. É interessante notar que a mercadorização do sangue foi uma
intervenção pioneira na promoção de biomercados humanos legais em grande escala
nas sociedades tecno-mercantis: depois do sangue, gametas, tecidos, células, órgãos
(provavelmente legalizados em breve), etc.
12. Há um processo pendente no Supremo Tribunal dos Estados Unidos que
concerne a questão de os médicos deverem ser ou não obrigados por lei a vender os
relatos das suas receitas para os seus pacientes, arquivadas como dados eletrônicos
digitais, a empresas farmacêuticas. Como em todos os outros casos onde se exige que
dados sejam arquivados em forma digital (exigência praticamente universal hoje), fica
praticamente garantido o seu acesso, eventualmente, sem o conhecimento das pessoas
cujos dados foram assim arquivados, mesmo sem o conhecimento, ou pelo menos sem
o consentimento, dos profissionais que se comprometeram em boa fé em assegurar a
sua privacidade e intangibilidade. O acesso a esses e-dados será por vias legais, semi-
legais ou ilegais, pelo hacking ou pelo data-mining, ou o “ciber-roubo”. O acesso a
esses dados para efeitos comerciais, como no caso citado, é às vezes assegurado pela
lei (no caso de dados protegidos pelas barreiras da segurança nacional, a ciber-
espionagem e a ciber-guerra tornam-se cada vez mais sofisticadas). Seja como for, a
extração e armazenamento de dados digitais torna mais fácil a exploração comercial,
não só nestes casos, mas nas nossas ciber-vidas normais, nos intervalos não
preenchidos pelas atividades profissionais ou as transações comerciais, com o correio
eletrônico, os SMSs ou as IMs, ou as visitas à Internet (não só à eBay): todos estes
episódios de comunicação eletrônica, geram cumulativamente a “pegada digital” e a
“sombra digital” dos utentes, mesmo sem o hacking propriamente falando, que
interfere mais brutalmente com a privacidade. Mesmo os mais entusiastas pela
“Revolução dos Dados”, que o registo das transações comerciais, profissionais e
outras propiciam, quando digitalizadas, reconhecem que toda informação digital é
potencialmente comercializável, sendo toda a informação digital mercadoria mais
cedo ou mais tarde.
22
Para um dos maiores intelectuais bolcheviques, Alexandr Bogdanov, a doação
voluntária e gratuita de sangue para transfusão, praticada em grande escala, seria uma
das marcas da sociedade socialista, altruísta e solidária (Nikolai Kermentsov A
Martian stranded on Earth – Alexandr Bogdanov, blood transfusion and proletarian
science Chicago 2011). De fato, na URSS a doação de sangue para transfusão era
geralmente feita em troca de compensação monetária, pelo menos em tempo de paz.
19
12a. A comunicação eletrônica, com a “revolução digital”, tornou-se um
grande multiplicador e acelerador da mercantilização universal, universal em extensão
geográfica, mas também no escopo do que pode ser incluído no processo, mensagens,
imagens, sons, ideias, informações, bens físicos, sexo, objetos, propriedades, armas,
etc. A globalização financeira, aliás uma alavanca crucial da globalização em geral a
partir dos anos 70, embora ainda seja uma “semi-globalização”, porque o mundo não
é assim tão liso como foi anunciado, representa por sua vez um mecanismo de
mercantilização acelerada. Os instrumentos financeiros, cada vez mais “sofisticados”,
são processados nas Bolsas, numa grande proporção, pelo high-frequency computer
trading (também denominado “algorithmic trading,” ou “black-box trading”), quer
dizer, por algoritmos sofisticados, elaborados por matemáticos e físicos formados nas
melhores universidades (os quants). As proporções cada vez mais amplas das
transações negociadas por algoritmos, e não por humanos, nas Bolsas de Valores
chegaram já a cerca de 75 % nos EUA, ou mais agora em 2011. Esta proporção,
embora menor nas Bolsas europeias, irá provavelmente aumentar cada vez mais, tanto
nos EUA como na EU, mas possivelmente sem chegar à automatização total, a 100 %
dos negócios de ações, mas aproximando-se significativamente deste limite,
certamente ultrapassando os 80% e mesmo os 90%, reduzindo os operadores
humanos a uma pequena minoria, tratando de uma porção bem pequena to volume e
valor dos negócios bolseiros. Tendo em conta o stress desta atividade para os agentes
humanos (alguns quase morrem todos os dias, pelo menos assim o dizem aos
investigadores), esta substituição será de certo modo positiva. Mas, como sabemos,
não obstante as vantagens apregoadas, como maior rapidez e eficiência, os efeitos
globais desta substituição de humanos por algoritmos, por programas de software,
neste domínio têm sido perversos para a economia real, bem patentes especialmente
desde 2008: a “eficiência” e rapidez nas transações financeiras não é necessariamente
conducente à estabilidade econômica global, antes pelo contrário.
Os robôs negociadores de ações, os robôs que tomam conta cada vez mais das
transações das Bolsas, “robot traders”, representam um a espécie de vanguarda dos
robôs inteligentes (com programas de software sofisticados) que já se ocupam de
variadas tarefas da “economia de conhecimento”, substituindo a wetware dos
profissionais humanos, cujos cérebros são incapazes de processar rapidamente as
grandes quantidades de dados (notícias econômicas e financeiras neste caso) que
chegam a cada minuto de toda a parte, com a compressão máxima do ciber-tempo e
20
do ciber-espaço. Os “robôs cientistas”, já desenhados numa forma elementar há
alguns anos, e avançando lentamente, mas já capazes de descobertas científicas, com
resultados inéditos, e os “robôs jornalistas”, que só começaram a funcionar este ano,
ainda não funcionam numa escala comparável (mesmo assim o “jornalismo assistido
por computador” e o “jornalismo computacional” já estão na moda nos EUA). O
“robô conversador”, interativo, que ensina a falar inglês on-line, é uma novidade no
Japão (pode ser adaptado ao ensino de outras línguas). Não se espera que possam
substituir os cientistas ou jornalistas não-robóticos tão amplamente num futuro
próximo23
.
13. Pagaremos impostos a um Estado-empresa, ou talvez melhor dito, a um
Estado de empresas locais ou nacionais, ou um Estado em vias de empresarialização
permanente. Antes disso, o comportamento dos funcionários do Estado, da
administração pública, dos partidos políticos e dos eleitores, já tinha sido analisado
pelos politólogos em termos de mercados de votos, da concorrência de empresas, por
analogia com a análise microeconômica das empresas e dos empresários, sugerida já
por Schumpeter em 1942 (entre outros dos seus contemporâneos) com respeito aos
partidos políticos e as eleições parlamentares ou presidenciais competitivas e livres: a
própria expressão “political marketing” difundiu-se no Brasil há trinta anos. A nossa
relação com o Estado, se a palavra ainda sobreviver (a palavra “Estado” é pouco
favorecida nos países anglo-saxónicos), se as tendências correntes prevalecerem, será
de fregueses/clientes de determinados serviços prestados por uma empresa sui
generis, ou consórcio de empresas, com preços transparentes naturalmente24
. Os
cidadãos potenciais vão comportar-se como consumidores ou investidores,
procurando os maiores rendimentos políticos pelo melhor preço, sem fortes
preferências pelo território onde viveram praticamente toda a vida (os bilionários já se
comportam assim, emigrando para onde os impostos são mais baixos). Idealmente,
23
Os telescópios automatizados, que fazem observações seguindo programas de
software poderiam ser chamados “robôs astrônomos”, complementando os humanos,
tanto profissionais como amadores (“cidadãos cientistas”). 24
Há muitos anos que o Príncipe-Consorte do Reino Unido se refere à Família Real
como “The Firm” (“A empresa”), aliás título de um filme sobre esta mesma família.
Na ausência de uma Família Real no trono, não podemos desfrutar de uma empresa
deste tipo. Mas há dinastias políticas em repúblicas democráticas que poderão ser
consideradas como equivalentes funcionais desta “empresa” monárquica, embora
menos faustosas.
21
todos os indivíduos adultos poderiam escolher no mercado internacional a melhor
oferta estatal, tal como fazem as grandes empresas ou os maiores empresários hoje
com respeito às melhores “jurisdições fiscais”, fugindo assim aos impostos dos países
com mais despesas sociais. Esta mobilidade podia ser facilitada se a prática de as
pessoas se registarem anualmente como querendo ou não continuar a aceitar a
nacionalidade de que desfrutam, possivelmente desde a nascença, se, por exemplo,
querem ou não continuar a ser franceses, ou reclamarem o direito de escolherem outra
nacionalidade, fosse institucionalizada25
. Os nossos passaportes serão emitidos por
empresas 26
.
A moeda deixará de ser monopólio do Estado, ou das uniões monetárias, como
o euro na UE, e empresas privadas poderão fornecer moedas em concorrência num
mesmo território (aliás, hoje mesmo, quem “produz” o dinheiro que aparece nas
estatísticas nacionais e internacionais são predominantemente os bancos não
estatais)27
.
14. Se ainda há forças armadas vinculadas a Estados, serão bandos de
mercenários: já se chamam assim, injustamente, aos voluntários que hoje constituem
as forças armadas dos países que abandonaram o serviço militar obrigatório em tempo
de paz. O mercado internacional de armas, tão importante na economia mundial há já
várias décadas, poderá ser suplementado por um mercado mundial de militares, ou de
“especialistas da violência”, que por enquanto só existe em números muito limitados.
Alguns programas do Pentágono, além de planejarem a introdução de “super-
soldados,” com exo-esqueletos para carregar mais equipamento sem dificuldades de
25
Prática que foi recomendada por um sociólogo francês famoso, Alain Touraine (não
sei se ele ainda concorda com essa opinião). 26
Há tempos, alguns cidadãos britânicos que tinham pedido passaportes receberam
uma carta de desculpas da agência que trata do assunto, endereçada a “Dear
customer”! É verdade que se paga por um passaporte, mesmo legal, mas mesmo
assim, no passado este fato não implicava que a troca de dinheiro por um passaporte a
que temos direito como cidadãos constituísse uma transação comercial como qualquer
outra. Trata-se de uma relação de cidadania, não de uma relação de mercado. A não
ser que se identifique o Estado como uma empresa. 27
A desestatização, desnacionalização ou privatização da moeda foi defendida por
Hayek em vários estudos, além de outros economistas de menor fama.
22
maior28
, e mobilidade comparável ao dos gigantes dos contos de fadas, encaram a
substituição de soldados por robôs armados, de tanques tripulados por tanques
controlados por robôs, dos aviões de guerra ou helicópteros tripulados pelos drones,
aviões ou helicópteros armados com mísseis, das mais variadas dimensões, assistidos
por ciber-insetos diversos para a vigilância, etc., robotizando os conflitos armados (as
guerras inter-estatais seriam entre robôs e robôs). Isto em conjunção com a ciber-
guerra eletrônica, defensiva ou ofensiva, que está a ser travada por um certo número
de países há décadas, entre vírus e worms de computador (acompanhada por ciber-
espionagem e ciber-terrorismo, nas suas variantes industriais, comerciais e políticas).
15. As polícias, todas privatizadas (as melhoras empresas de polícia irão
sobreviver com certeza num mercado muito competitivo), segundo a proposta de
economistas neoliberais29
. A não ser que cada indivíduo seja encarregado de ser
polícia, ou assume um papel policial, part-time ou full-time, nas horas vagas, ou nas
férias, talvez em troca de uma pequena redução nos impostos (ou, ainda melhor,
descontos nos supermercados). Muita vigilância em todos os espaços públicos (e não
só neles) já é feita por CCTVs [closed-circuit television] (milhões no Reino Unido,
com a maior densidade per capita de CCTVs em qualquer país). Os smartphones,
com as suas capacidades fotográficas poderão ampliar esta vigilância, que passará a
ser de todos por todos, modificando assim o ditado de Hobbes30
, sem custos para o
Estado, para os contribuintes. Já há quem queira exigir Webcams em todos os
ministérios, em todas as repartições públicas, inclusive consulados e embaixadas
(alguns diriam mesmo: em todos os tribunais). E também tudo o que se discute nos
Parlamentos devia ficar sob a observação, por Webcams, ou outros meios análogos,
para os cidadãos ficarem sempre ao par do que passa lá em cima. No entanto, se e
28
Os exo-esqueletos são, em princípio, de óbvia utilidade para civis, para os
paralisados e os incapacitados ou de pouca mobilidade por outras razões, como a
idade, e a sua produção já começou nos EUA. 29
A privatização das polícias foi defendida pelo economista David Friedman, filho do
mais famoso e nobelizado Milton Friedman. 30
O que já foi chamado “equiveillance”, jogando com a palavra inglesa
“surveillance” (que pode ser lida não só como vigilância, que é a tradução normal,
mas também, tendo em conta o prefixo “sur” recordando a sua acepção latina, como
vigilância pelos “de cima”, pelas autoridades) como também na expressão
“sousveillance”, vigilância pelos de baixo, pelos subordinados. Vários autores têm
falado da “democratização da vigilância”, do “panopticon eletrônico”, ou do
“superpanopticon”.
23
quando o Estado se empresarializar completamente, seria de esperar que as empresas
sucessoras do Estado não-empresarial em questão gozem dos direitos de privacidade
comercial, que normalmente protege os processos decisórios internos às empresas
comerciais (“privadas”, precisamente), que ninguém nega normalmente. Os segredos
comerciais são melhor protegidos que os “segredos de Estado”31
.
16. Quanto ao nosso envelhecimento e senilidade, que remédio para a grande
maioria senão procurarem abrigos e asilos cada vez mais empresarializados: devido
aos constrangimentos legais ainda existentes, e o peso da ideologia dos direitos
humanos, haverá ainda algum respeito pela pessoa humana, mas o interesse essencial
dessas empresas em nós será como fontes de rendimento, como mercadorias32
. Trata-
se certamente de uma área onde a carência de projetos de “empresários sociais”, de
invenções sociais para lidar com um fenômeno sem precedentes nas sociedades
modernas, se nota ainda mais que em qualquer outra talvez. No entanto, hoje surgem
mais rapidamente soluções tecnológicas e não sociais, como, por exemplo, a
introdução de robôs de companhia, de robôs-assistentes de enfermagem, de robôs
domésticos (limpeza da casa, segurança, cuidar da roupa, entre outras tarefas), robôs-
mordomos, etc., para facilitar a vida dos mais idosos ou vários tipos de deficientes,
em conjunto com uma panóplia de monitores, chips subcutâneos, sensores (nas camas,
nas cadeiras, etc.), sem falar de nanossensores nos corpos, vídeo-câmeras,
assegurando um contato permanente bilateral dos idosos, especialmente os isolados,
com médicos, enfermeiros e hospitais (a “telesaúde” ou telehealth) e outras agências.
Na Coreia do Sul, por exemplo, o governo espera providenciar pelo menos um robô
por cada família (household) para o ano 2020 (seriam milhões!). Na União Europeia
também se projeta o desenvolvimento de “robôs companheiros para os cidadãos”.
Note-se que, com respeito a problemas humanos e sociais desta gravidez, recorre-se
acima de tudo à intensificação e extensificação tecnológica, microeletrônica,
31
Com o recente sucessor do famoso Stuxnet, o worm Duqu, espiando empresas
comerciais, parece haver Estados espiando as empresas comerciais dos outros países
pelos meios mais sofisticados. 32
No dia 1 de Agosto deste ano saiu um artigo no jornal diário londrino The Times,
hoje propriedade do império comercial-político de Rupert Murdoch, em que se fala
assim. A linguagem da mercadorização (“commodification”) já há alguns anos deixou
de ser o apanágio de marxistas, ex-marxistas, ou sociólogos, para entrar no
vocabulário geral da cultura académica anglo-saxónica, mesmo nas Faculdades de
Direito.
24
computacional, robótica, da vida. Seriam precisos muitos robôs para atender a todas
as carências das pessoas que sofrem de demência, por exemplo, ou robôs
extremamente versáteis.
17. Com a morte, os nossos cadáveres serão sujeitos a um processo de venda
de todos os órgãos, tecidos, ossos, cérebros, etc., de interesse para algum hospital,
clínica de investigação, laboratório, museu, galeria de arte, artista, ou psicopata
(muitos serão oferecidos grátis, incondicionalmente, mas mesmo assim, a sua
extração requere a intervenção de alguma empresa especializada, e isso tem custos, e
alguém terá de pagar).
A não ser que haja o interesse, o dinheiro e o apoio moral, técnico ou
financeiro de parentes ou amigos de simpatias “imortalistas”, ou pelo menos, se não o
forem, dispostos a cumprir os “testamentos vitais” dos defuntos, para recorrer à
criogenia, nos países onde esta prática é legal, na expectativa de que, dentro de duas
ou três décadas, com os avanços da biomedicina, se possa realizar uma eventual
ressurreição: prática que envolve o congelamento, a criopreservação, dos corpos, ou
só dos cérebros, que na sua segunda vida biológica estariam associados a um novo
corpo (por enquanto há só umas poucas centenas de criogenizados à espera, em várias
instalações, nos EUA)33
.
Se não recorrermos à criogenia, e se ficar algum resíduo a tratar depois da
extração dos órgãos, etc., esses restos mortais serão processados por um crematório-
empresa (a mais bem sucedida modalidade da industrialização do tratamento dos
mortos34
).
33
Durante a primeira década do poder bolchevique, alguns soviéticos sonharam com
uma coisa semelhante no caso de Lenine, na expectativa que com os avanços sem
precedentes da ciência propiciados pelo socialismo instalado, ele seria num futuro não
muito distante o primeiro dos humanos imortais. O tema da imortalidade por vias
biomédicas e tecnocientíficas em geral, de indivíduos ou de coletividades (em
princípio, a sociedade socialista), já tinha sido debatido entre os intelectuais do
partido antes da Revolução de Outubro de 1917, num ambiente cultural onde estas
questões tinham sido colocadas por intelectuais de outros quadrantes ideológicos. 34
Embora haja muita procura de outras opções, não-industriais, não-comerciais,
mesmo lúdicas, nas sociedades europeias pós-cristãs. Curiosamente, esta tem sido
uma área onde a “escolha livre” tão apregoada nas economias de mercado
contemporâneas, e a invenção de novas formas simbólicas, não se tem manifestado
tanto como se poderia esperar.
25
18. Depois da morte, a nossa imagem póstuma poderá ser gerida, no caso de
termos deixado um certo capital para estes fins, por uma empresa (como já acontece),
que se poderá encarregar, por exemplo, de dar o nosso nome a uma estrêla, pelo
melhor preço (o mercado para este efeito já existe, e há imensas estrelas).
A nossa morte pode ser documentada exaustivamente, se quisermos (ou
mesmo se não quisermos), e os custos não serão elevados. A documentação audio-
visual, digitalizada, da morte poderá ser arquivada como memento mori. Podíamos
chamar “tanatoteca” a este tipo de arquivo.
A auto-documentação eletrônica de tudo o que fazemos e das nossas imagens
pari passu, já parcialmente realizada na vida quotidiana com os Iphones, pode ser
ampliada quase ad infinitum. Podiamos chamar “e-bioteca” ao arquivo de vidas
humanas, em princípio, o arquivo digital da totalidade de cada vida individual, no
limite em correspondência biunívoca com tudo o que fizemos, e talvez mesmo tudo o
que se passa no nosso cérebro, com as tecnologias de neuroimagens como fMRI
podem revelar eletronicamente (audiovisualmente por enquanto, mas no futuro talvez
também com sensores gustatórios e olfativos). Teremos a nossa vida, a vida que
vivemos em primeira mão, e a nossa e-vida, ou a nossa vida digitalizada em
simultâneo, que poderá ser arquivada numa bioteca familiar ou museológica, virtual:
como já vivemos on-line uma boa parte do nosso tempo, especialmente os hiper-
conectados (com web-cams ainda mais diretamente), a transferência da nossa vida
biológica, analógica, para a a vida on-line, eletrônica, digital, na íntegra, não
representará um grande salto35
.
E já surgiram “grupos memoriais” via Facebook. Nestes grupos virtuais
comemorando os falecidos, partilham-se fotos e vídeos do falecido, podcasts,
gravações de todo o tipo, e links, além de testemunhos diversos e os arquivos
pessoais, inclusive e-books, na sua totalidade: como o ciberespaço é infinito, todos
cabem, humanos e não-humanos, todos os seres a que damos valor36
. As nossas vidas
35
No passado, guardavam-se objetos, mechas de cabelo, retratos dos mortos, como
relíquias ou memorabilia, ou diários e memórias não publicadas, e no caso dos
monarcas, algo mais; com o advento da fotografia, álbuns de fotos da família, e
depois gravações e vídeos; mas só agora o que pode ter sido imaginado na ficção
científica se pode aproximar da realidade. Poucos terão uma casa de família partilhada
por várias gerações através do tempo, décadas ou séculos, como memória física. 36
A quase-divinização do ciberespaço, na sequência da quase-divinização do espaço
físico em pensadores como Newton, em que o espaço cósmico era definido como
26
podem ser filmadas/áudio-vídeo gravadas na sua totalidade, 24/7, minuto a minuto: a
tecnologia está disponível, e já há quem se disponibilizou para o efeito. Estes
testemunhos, recordações e outros atos memoriais no grupo podem prolongar-se
através dos anos, sem as limitações do espaço físico, das ocasiões breves, liminais,
dos rituais funerários e piaculares que ainda se observam e da memória coletiva. Uma
espécie de quase-imortalidade, senão do corpo, ou da consciência, pelo menos da
“alma virtual”, uma versão eletrônica da “imortalidade subjetiva” Comteana,
assegurada através de uma grande rede social digital, mas provavelmente também
através de outras, mais cedo ou mais tarde. Para os que forem objeto de algum grupo
memorial…se potencialmente todos os mortos (humanos) poderiam gozar deste tipo
de tratamento, o mais provável será uma estratificação de status e prestígio dos
defuntos, com os seus ratings e rankings, depois como antes da morte, pois a
reputação póstuma pode variar imenso. A imensa maioria ficará no limbo póstumo
virtual. Haverá, no entanto, oportunidades de mercado com respeito a este assunto, e
também para empresários inovadores.
sensorium Dei, encontra-se em muitos autores, referidos em Margaret Wertheim The
pearly gates of cyberspace –a history of space from Dante to the Internet, Londres,
1999). No entanto, nesta versão a quase- divinização do ciberespaço abrangeria a
incorporação virtual de todos os mortos humanos através da documentação digital das
suas vidas. Possivelmente poderia incorporar mais do que os humanos, os animais de
estimação tão queridos de muita gente, embora alguns deles já tenham sido clonados –
outra solução tecnológica.