Empresas, mercados, tecnologia Uma perspectiva...

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* Versão adaptada para o português do Brasil por Marcos Barbosa de Oliveira. Empresas, mercados, tecnologia Uma perspectiva biográfica In: Revista NADA no. 16, 2012, pp. 14-37* Hermínio Martins Alguém disse há tempos “a escola é uma empresa”. Fiquei a pensar nesta frase memorável. Pela mesma lógica, poderíamos dizer “a universidade é uma empresa”, “a Igreja é uma empresa”, “o Estado é uma empresa”, e mesmo “a família é uma empresa”. E de fato, todas estas instituições têm sido vistas pelo prisma dos mercados e das empresas, segundo um modo de análise que se tornou praticamente hegemônico. No entanto, o uso do verbo “ser” nestes contextos merece alguma reflexão. Disse o sábio Adam Smith, que além da sua obra econômica, escreveu trabalhos importantes de filosofia do conhecimento e da moral, que o verbo “ser” ( to be) podia ser caracterizado como o mais metafísico de todos os verbos. Muitos pensadores procuram evitar este verbo como particularmente conducente a reificações ou coisificações, diminuído a nossa capacidade de pensamento crítico (na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras, dispomos de dois verbos nestes contextos assertóricos, ser e estar). Um movimento de pensamento “anti -Aristotélico”, hoje denominado de Semântica Geral, quis proibir, e eliminar, este verbo dos seus trabalhos, matriz lógico-gramatical de todos os essencialismos, com as suas consequências sócio-políticas e até civilizacionais perniciosas. Construíram mesmo uma linguagem sem este verbo. Mesmo sem ir tão longe, seria salutar evitar o verbo em muitas ocasiões em que se fala com autoridade política: porque não falar das funções, da missão, da vocação, ou dos requisitos das escolas, em vez da estipulação dogmática referida? Num mundo saturado de mercados, em que mercados dominam esferas cada vez mais amplas da vida, devemos pensar nos limites do mercado, especialmente nos limites éticos. Talvez não seja inoportuno revistar brevemente a maneira como mercados, empresas e tecnologia invadiram ou estão por invadir domínios inéditos sem justificação plena do ponto de vista da democracia liberal. Neste texto começamos com o princípio da vida que seguimos até o fim da vida, notando algumas das novidades tecno-mercantis em anos recentes. Num texto breve tivemos que omitir a discussão de áreas importantíssimas como os mídia, as artes, o desporto, os locais de

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* Versão adaptada para o português do Brasil por Marcos Barbosa de Oliveira.

Empresas, mercados, tecnologia

Uma perspectiva biográfica

In: Revista NADA no. 16, 2012, pp. 14-37*

Hermínio Martins

Alguém disse há tempos “a escola é uma empresa”. Fiquei a pensar nesta frase

memorável. Pela mesma lógica, poderíamos dizer “a universidade é uma empresa”, “a

Igreja é uma empresa”, “o Estado é uma empresa”, e mesmo “a família é uma

empresa”. E de fato, todas estas instituições têm sido vistas pelo prisma dos mercados

e das empresas, segundo um modo de análise que se tornou praticamente hegemônico.

No entanto, o uso do verbo “ser” nestes contextos merece alguma reflexão. Disse o

sábio Adam Smith, que além da sua obra econômica, escreveu trabalhos importantes

de filosofia do conhecimento e da moral, que o verbo “ser” (to be) podia ser

caracterizado como o mais metafísico de todos os verbos. Muitos pensadores

procuram evitar este verbo como particularmente conducente a reificações ou

coisificações, diminuído a nossa capacidade de pensamento crítico (na língua

portuguesa, ao contrário de muitas outras, dispomos de dois verbos nestes contextos

assertóricos, ser e estar). Um movimento de pensamento “anti-Aristotélico”, hoje

denominado de Semântica Geral, quis proibir, e eliminar, este verbo dos seus

trabalhos, matriz lógico-gramatical de todos os essencialismos, com as suas

consequências sócio-políticas e até civilizacionais perniciosas. Construíram mesmo

uma linguagem sem este verbo. Mesmo sem ir tão longe, seria salutar evitar o verbo

em muitas ocasiões em que se fala com autoridade política: porque não falar das

funções, da missão, da vocação, ou dos requisitos das escolas, em vez da estipulação

dogmática referida? Num mundo saturado de mercados, em que mercados dominam

esferas cada vez mais amplas da vida, devemos pensar nos limites do mercado,

especialmente nos limites éticos.

Talvez não seja inoportuno revistar brevemente a maneira como mercados,

empresas e tecnologia invadiram ou estão por invadir domínios inéditos sem

justificação plena do ponto de vista da democracia liberal. Neste texto começamos

com o princípio da vida que seguimos até o fim da vida, notando algumas das

novidades tecno-mercantis em anos recentes. Num texto breve tivemos que omitir a

discussão de áreas importantíssimas como os mídia, as artes, o desporto, os locais de

2

trabalho, entre outras. Mesmo assim, alguns temas centrais foram aflorados e poderão

incentivar mais reflexão crítica sobre a saturação da vida pelos mercados hoje, quase

sempre com o pretexto da inovação tecnológica.

1. Nascemos – vamos nascer cada vez mais frequentemente – num hospital-

empresa ou clínica-empresa (senão numa ambulância-empresa). Mesmo antes do

nascimento, devemos muito a empresas que tratam da nossa concepção nos casos de

FIV [fertilização in vitro] (em geral sob controle médico) ou da inseminação uterina, e

da gestação (com a medicalização da gravidez e do parto). A reprodução sexual é fácil

e absolutamente grátis, embora o sexo sem reprodução seja praticamente todo o sexo

hoje nos países ocidentais. A reprodução sem sexo, pelo contrário, só funciona com as

“novas tecnologias reprodutivas”, e os custos em tempo e dinheiro para os pais,

biológicos ou não, que decorrem do seu uso podem ser consideráveis: as técnicas são

bem imperfeitas (muitos “ciclos” de tratamento podem ser precisos) e os custos

multiplicados. No entanto, o número de nascimentos devidos a esta modalidade de

reprodução tem estado a crescer em todos os países ocidentais, e representa uma

proporção cada vez maior do total de nascimentos: os casais férteis reduzem a

procriação natural para níveis cada vez mais baixos (reduzida ainda mais pelo aborto),

e os casais inférteis ou homossexuais procuram avidamente a reprodução artificial1.

1 A questão é um pouco mais complicada que a distinção entre fertilidade e

infertilidade, e não só por razões médicas. Já há casos no Reino Unido de mulheres

jovens e férteis (entre os 18 e os 25 anos, nas melhores fatias etárias para a procriação

natural) que preferem a inseminação artificial, recorrendo a sites oferecendo esperma,

grátis ou não, de indivíduos ou agências (estas bem mais caras), porque, sendo

economicamente e profissionalmente independentes, querem ter filhos com a máxima

liberdade, quando quiserem, sem sexo, sem parceiros, sem amor, sem as complicações

das relações pessoais. Portanto, a mera existência da tecnologia incentiva a escolha de

outras opções que as relações pessoais e o amor sexual, opções impessoais e clínicas.

A invenção da tecnologia de FIV foi defendida como uma magna resposta

humanitária da biomedicina ao desespero dos casais inférteis: a infertilidade afeta 10

a 15 % da população, mas que passou na altura de uma minoria silenciosa e

envergonhada a uma minoria com voz, força e peso na economia da reprodução,

exercendo pressão constante sobre o desenvolvimento dos mercados e tecnologias

apropriadas. Hoje a tecnologia de FIV serve outras finalidades também que não foram

antecipadas ou pelo menos foram consideradas nos tempos da propaganda inicial

como extremamente improváveis: serve mulheres solteiras perfeitamente férteis e

saudáveis, e mesmo alguns casais perfeitamente sadios e férteis. Há fatores sociais,

culturais, económicos e psicológicos, para além dos biológicos, nestas opções. A

3

Uma autora feminista diz que depois da luta pelos direitos ao aborto a pedido do fim

do século XX ou princípios do século XXI, a grande questão equivalente no século

XXI será o melhoramento do acesso à procriação medicamente assistida, ou, em

geral, à “indústria de fertilidade” ou ao “mercado de fertilidade”2. Ou seja, a

industrialização/comercialização da reprodução humana numa escala crescente. As

sociedades ocidentais poderão estar evoluindo para um modo de reprodução

generalizado totalmente inédito, o “modo de reprodução biomédico”3.

Consequentemente, os fluxos monetários biomédicos associados aos bebês que

surgem como “produtos” (a expressão “manufatura de embriões” é corrente entre os

agentes biomédicos) apontam para uma nova contabilização dos nascituros no PIB

(como acontece quando qualquer atividade se industrializa e se comercializa). E

contam certamente para o que se poderia chamar o Produto Demográfico Bruto (PDB)

como componente do PIB nacional: outrora, os nascimentos eram registados somente

nas estatísticas demográficas nacionais, separadamente da contabilidade econômica

nacional, mas com este processo de mercantilização, com os rendimentos da nova

“indústria de fertilidade”, a contabilidade nacional tem que acompanhar estas

mudanças e registar todos os mercados (à medida que a taxa de fertilidade natural

decresce, os investimentos de pais e empresas na fertilidade artificial aumentam, e

mesmo as despesas públicas, quando o Estado subsidia direta ou indiretamente a

procriação medicamente assistida).

O “mercado de bebês”, a baby business no seu conjunto, FIV, os submercados

como o mercado de gametas, a transferência ou venda de embriões extra-corporais, o

aluguel de mães para gestação, a seleção de embriões extra-corporais pelo diagnóstico

de pré-implantação, certas formas de adoção, etc., está destinado a um grande futuro4.

procura de FIV pode resultar de outros fatores que a infertilidade, o que não foi

previsto, pelo menos em público, pelos biólogos e médicos que elaboraram a

tecnologia. 2 Liza Mundy Everything conceivable –How assisted reproduction is changing men,

women and the world London 2007. 3 Charis Thompson Making parents – The ontological choreography of reproductive

technologies Cambridge Mass 2005. 4 Sobre a baby business como complexo tecno-mercantil com estes variados sub-

mercados, ver o livro de Debora L. Spar, professora de Direito na Harvard Business

School: The baby business – How money, science and politics drive the market of

conception Cambridge Mass., 2006.

4

Como deve ser óbvio as novas tecnologias reprodutivas propiciam janelas de

oportunidade para escolhas de eugenia negativa (eliminação de embriões com defeitos

genéticos de toda a espécie) e mesmo, mais lentamente, de eugenia positiva (escolha

dos “melhores” embriões segundo critérios diversos), sem falar da seleção do sexo,

um direito reclamado em nome da “liberdade procriativa”, mas ainda não aceite nos

países ocidentais5.

Tendo em conta a empresarialização universal, o mais simples seria registar o

nascituro como um empresário, um start-up, potencial, em conjunto com a certidão de

nascimento (eletrônica-digital), como um equivalente funcional do batismo na

sociedade tecno-mercantil onde terão que viver.

2. Iremos a uma escola-empresa. Se “a escola é uma empresa”, poderíamos ir

mais longe na visão empresarialista da educação. Por exemplo, na advocacia da

pedagogia de começar a formar empresários já nas escolas: segundo doutrinários

recentes, a escola devia promover as aptidões que poderão ajudar os alunos a se

tornarem empreendedores e empresários – ou pelo menos bons empregados das

empresas hi-tech. Assim, o “currículo empresarial” (enterprise curriculum) devia ser

obrigatório por lei, não só o currículo com disciplinas acadêmicas (geografia, história,

línguas estrangeiras, por exemplo), e a preparação para os exames nessas disciplinas6.

Os mesmos doutrinários salientam também a necessidade da criação duma

5 Sobre a persistência do eugenismo, e em especial a sua recrudescência nas últimas

décadas, ver o cap. IX do meu livro Experimentum Mundi Lisboa, 2011. 6 Os propagandistas da “educação empreendedorista” (enterprise education) no

Reino Unido destacam as atitudes e comportamentos, ou aptidões como

“honestidade, integridade, pontualidade, reliability, boa apresentação, teamwork ”,

que podem assegurar a empregabilidade (James Hurley “Employers call for

“enterprise curriculum””,The Daily Telegraph 26 de Julho de 2011). A honestidade e

integridade chamavam-se antigamente virtudes, e não “aptidões” (skills) –se o ditado

inglês rezava “honesty is the best policy” ficava subentendido que a honestidade,

além de ser uma virtude, tinha também valor instrumental –, e é interessante ver como

os ideólogos deste tipo de educação veem a escola como devendo ser uma escola de

virtudes, denominando-as como aptidões: a educação moral, como se chamava

antigamente, mas não necessariamente laica, porque as escolas religiosas estão muito

em moda no Reino Unido, mesmo entre famílias irreligiosas, não se encontra no

currículo, em geral. Educação moral: e a educação cívica? Se o Estado-nação, cada

vez menos credível hoje, se tornar numa empresa, ou consórcio de empresas, não

vamos precisar de uma formação específica para vivermos na sociedade politica, ou

uma educação para a cidadania.

5

mentalidade empresarial (entrepreneurial mind-set) pela formação apropriada dos

professores de escolas primárias e secundárias: um papel crucial dos professores será

“to teach enterprise” (haverá lições também sobre aptidões comerciais nas creches,

não tenho dúvidas). A escola, para estes ideólogos, não só é uma empresa, mas uma

empresa para empresas e para empresários.

Mas, essencialmente, o que perspectivam é a empregabilidade, não tanto o

empreendorismo, apesar do rótulo da educação que favorecem. Não se vê bem se o

que mais conta: a educação para a “empregabilidade” (dando uma grande ênfase às

aptidões práticas, em vez das aptidões acadêmicas), ou a educação para o

empreendedorismo. No entanto, as aptidões na língua materna e em matemática, não

são “práticas” no mesmo sentido, embora, de fato, sejam eminentemente práticas para

os empregadores. Há uma certa tensão entre a necessidade de bons empregados, a que

não se irão necessariamente exigir grandes capacidades de iniciativa e de imaginação

para as empresas, e a incentivação do empreendedorismo em geral. Mas como a

“flexibilidade”, ou a perspectiva de que ninguém vai ter empregos estáveis, que se

possam desfrutar por muito tempo, será irreversível, também se poderia esperar que as

escolas formassem pessoas “flexíveis”, embora este desiderato não apareça em

qualquer lista publicada pelas associações de propaganda empresarial tão ativas em

anos recentes. Para os licenciados no Reino Unido, a estimativa mais citada há alguns

anos era de que teriam de sofrer na média cinco mudanças significativas de profissão

durante a sua vida, talvez como serial entrepreneurs com os seus altos e baixos (como

nas suas vidas pessoais poderão mudar de localidade, de parceiros, de gênero, de

sexualidade, de identidade, de nacionalidade, de religião, etc., mais do que uma vez,

portanto a “serialidade” representa uma forma comum)7. Possivelmente com muitos

altos e baixos ao longo da vida profissional, à maneira dos romances picarescos do

século XVIII. Possivelmente com vários empregos ou atividades econômicas ao

mesmo tempo, voltando ao clássico “cabide de empregos”, ou “cabide de empresas”.

3. Depois frequentaremos, sem dúvida, uma universidade-empresa, ou alguma

instituição de ensino terciário, empresarializada, no espírito ou na prática. O modelo

da universidade pública clássica está a sofrer ataques sucessivos dos governos de

vários países ocidentais, com o Reino Unido na vanguarda. Estamos a evoluir para a

7 Em média, um cidadão americano muda de empregos mais de dez vezes, muda de

casa mais de seis vezes, casa-se mais do que uma vez, durante a sua vida (David

Gilbert Stumbling into happiness London 2006, p. 214.).

6

integração cada vez maior das universidades com a economia de mercado. Para

alguns cientistas, as universidades podiam viver de patentes, sem dinheiro do Estado,

se se tornassem em fábricas de patentes, com a investigação científica dirigida

principalmente para assuntos que poderão ser de interesse para essa finalidade. Por

enquanto, os Estados irão subsidiar só as disciplinas do STEM (sigla inglesa para

“Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática”), deixando o ensino das

humanidades, das artes e das ciências sociais para as forças do mercado. Triste

constatar que alguns jovens professores já consideram natural definir a relação entre

professores e alunos como uma relação comercial banal, entre o aluno cliente

(customer) ou de consumidor, e o professor como “fornecedor de serviços”

(provider). Se esta tendência, por si só, continuar, o ethos das universidades será

transformado radicalmente. Certamente a experiência universitária foi completamente

diferente para as pessoas de mais de 25 anos8.

4. Quanto estivermos doentes, seremos tratados numa clínica-empresa ou

hospital-empresa. Poderemos servir como cobaias, sem o saber (há uma longa história

destes ensaios nos países ocidentais), mas ficaremos talvez mais descansados quando

nos explicarem que numerosíssimos ensaios clínicos se realizam em países distantes,

com gente pobre e iletrada. A expansão dos mercados numa economia aberta e

globalizada implica a expansão do outsourcing, uma macro-tendência potente, um

mega-trend (antigamente dizíamos uma “lei”, ou uma “lei de tendência”) da economia

mundial na época da globalização, de que vamos dar mais exemplos. Se o outsourcing

da produção industrial representa a modalidade mais avançada, bem saliente no caso

dos EUA, onde uma parte substancial da capacidade produtiva das indústrias

transformadoras foi transferida para a China a partir dos anos 90, também ocorre em

muitos outros tipos de mercados de bens e serviços, mercados que surgiram em escala

significativa recentemente devido a avanços na tecnologia biomédica, como aqueles

que concernem a reprodução, onde não se trata de força de trabalho barata,

disciplinada, e não-sindicalizada, mas de “forças reprodutivas” domesticadas ou

sujeitos clínicos baratos e dóceis9. No caso dos ensaios clínicos, a troco de pagamento

de quantias ínfimas de dinheiro, e de receitas para os hospitais onde se realizam, e

8 Sobre os processos e as origens das ideologias da mercantilização das universidades

ver o meu artigo “The marketization of the universities” on-line no site do Prof.

Adelino Torres. 9 A China conquistou o lugar de quarta potência económica mundial em 2005.

7

perks para os médicos que os realizam ou escolhem os sujeitos a serem testados em

países “em vias de desenvolvimento” ou mesmo em “países emergentes” como a

Índia, estatuto que este país goza hoje, como o Brasil e a China. A Índia tem sido um

campo privilegiado para estes ensaios clínicos transnacionais, a pedido não só de

empresas comerciais normais que querem abreviar o hiato temporal entre o

laboratório e o mercado, mas mesmo de organizações não-lucrativas, que querem ver

avanços biomédicos rápidos, reduzindo o intervalo entre os resultados obtidos no

laboratório (wet labs) e a sua aplicação na terapia (em primeira instância, na

América). Esses ensaios têm sido realizados em grande parte em jovens iletrados

desempregados, sem que as condições mínimas do “consentimento informado e

livre”, máxima fundamental da ética médica em tempos recentes, tenham sido

cumpridas (os agentes locais, médicos, clínicas, hospitais, etc., muitas vezes não

demonstram muitas preocupações humanitárias). Os locais onde as grandes

companhias farmacêuticas realizam estes ensaios clínicos nos países referidos são

numerosíssimos: eram pelo menos uns 2.500 já há alguns anos. Trata-se de um

mercado pouco regulado10

.

10

Ver Adriana Petryna When experiments travel – clinical trials and the global search

for human subjects Princeton 2011. Mesmo assim, a necessidade de ensaios clínicos é

tão grande, com a enorme expansão da biomedicina de pesquisa, que uma catedrática

de bioética americana pronunciou-se recentemente no sentido que existe um

obrigação moral de todos os cidadãos adultos do país participaram em ensaios

clínicos, mesmo contra a sua vontade, dispensando portanto a máxima de

consentimento livre e informado, obsoleta, segundo esta professora. Se essa obrigação

moral fosse traduzida em lei, implicaria uma grande ampliação do universo de

pacientes (“sujeitos”) destes ensaios, tornando a população nacional num universo de

experimentáveis biomédicos (seriamos “cidadãos biomédicos”, por assim dizer, como

os que participaram, pelo menos devido à proximidade, em ensaios nucleares se

denominaram “cidadãos atômicos”, ou os afetados pelo desastre de Chernobyl que se

auto-denominaram “cidadãos biológicos”, as reported by Adriana Petryna em Life

exposed – biological citizens after Chernobyl Princeton 2003). Poderia reduzir

consideravelmente a prática corrente de outsourcing destes ensaios para países com

uma população de miseráveis abundante e ignorante, mas a procura de “sujeitos” é tão

grande que possivelmente nem esse resultado benéfico virá a acontecer (sobre o

assunto ver as referências e links no artigo de Bill Gleason “Do people have a moral

obligation to participate in research?” The Chronicle of Higher Education 14 de

Outubro 2011). No entanto, mesmo as pessoas que se sujeitam voluntariamente a

ensaios clínicos, em geral não recebem compensação se as coisas andam mal, nem

sequer ajudas de custo. Há um ou dois anos uma instituição americana biomédica

8

5. Se encontrarmos emprego, iremos certamente trabalhar numa empresa (ou

várias ao mesmo tempo), a não ser que constituíssemos a(s) nossa(s) própria(s)

empresas. Aliás, qualquer de nós pode registar-se como uma empresa, ou talvez várias

ao mesmo tempo (pelo menos no Reino Unido), possivelmente com a inclusão de

todos os membros da família. Seriamos self-employed, como se diz em inglês,

empregados de nós próprios, sendo empresa, empresário e empregado ao mesmo

tempo, apenas distintos conceptualmente (como numa época não muita remota as

crianças podiam trabalhar a partir dos 6 anos, não sei a que idade nos poderemos

começar a constituir-nos como empresários, ou membros de uma empresa11

). Já temos

uma expressão mais adequada para esta condição, a de sermos auto-empresários, ou

constituirmos auto-empresas.

6. O trabalho científico será feito em empresas (institutos-empresas,

universidades-empresas, laboratórios-empresas), ao serviço de outras empresas, num

mercado global de “ciência à venda”. Muitos cientistas dos mais “puros” como

Einstein requisitaram patentes para vários inventos (neste caso, de bem pouco

muito respeitável tinha sugerido a utilização de prisioneiros para ensaios clínicos,

também dispensando a máxima de consentimento informado (sujeitar prisioneiros a

experimentos biomédicos, inclusive psicocirúrgicos, é uma prática que vem de longe,

e não só na América). Sobre a questão da coação nos experimentos biomédicos ver o

cap. VI do meu livro Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição

humana, Lisboa, 2011. 11

Pelo menos a socialização das crianças para os papéis de consumidores ou

participantes na economia de mercado pode começar bem cedo: já há apps. para

iPhones destinadas a crianças a partir dos dois anos de idade, jogos em particular, e a

multiplicidade e ubiquidade das telas eletrônicas hoje, em casa ou em lugares

públicos, não poupa ninguém, nem os bebês, praticamente 24/7. Quanto à

socialização para o papel de empresários, já há creches onde se ensinam os méritos

dos empresários, a importância dos empresários na vida nacional e internacional. Não

deve faltar muito para concursos para os melhores empresários infantis e para o

equivalente empresarial do Portugal dos Pequeninos (depois de escrever esta nota, vi

uma notícia de que as Girl Scouts da América vão organizar concursos com prêmios

para as escoteiras que apresentarem os melhores business models e os melhores

conhecimentos de contabilidade, e não só da economia doméstica, como

antigamente). Em certas culturas católicas tradicionais procurava-se estimular o

máximo de vocações para sacerdotes ou para a vida religiosa em geral: neste

admirável mundo novo, promove-se qualquer coisa como um equivalente funcional,

estimulando o máximo de vocações para a vida empresarial ou pelo menos para o

papel de bons consumidores, de bons fregueses.

9

proveito), mas nessas atividades procediam como se fossem subsidiárias e mesmo

periféricas aos seus interesses fundamentais como cientistas. Mas hoje em dia, a

figura do cientista livre e independente já cedeu lugar à figura dupla do cientista-

empresário, ou à figura tripla do cientista-engenheiro-empresário (muitos exemplos

em Silicon Valley e aglomerações semelhantes noutras regiões dos EUA ou noutros

países).

Os cientistas-empresários formaram nas últimas duas décadas pelo menos uma

boa quota dos start-ups em áreas como as novas tecnologias de informação e

comunicação, mas brotam cada vez mais em vários domínios da biogenética, o

exemplo máximo sendo talvez J. Craig Venter, um dos fundadores da biologia

sintética, bem mais radical que a chamada engenharia genética, no sentido comum

(mas mesmo ele está ser ultrapassado por geneticistas ainda mais ambiciosos com

respeito à manufatura da vida). Numerosíssimos cientistas que fazem investigação em

universidades têm ligações fortes com empresas especialmente nas áreas da genética e

da biomedicina ou são co-fundadores de empresas desse tipo. Mesmo sem esse grau

de empreendedorismo, já se encontram muitos cientistas-acionistas, pois são pagos

em parte com ações das empresas para os quais fizeram algum trabalho científico,

especialmente no caso de empresas biomédicas, da indústria farmacêutica, da Big

Pharma (o que não deixa de ser preocupante, dado o conflito de interesses potencial).

No limite, teríamos não só um “capitalismo de acionistas”12

, em que acrescentar o

valor das ações se torna o critério prioritário para os gestores das empresas, mas

também o que poderíamos chamar uma “ciência de acionistas”, de cientistas-

empresários que têm de participar, como empresários, nesse capitalismo de acionistas,

e de cientistas-acionistas no sentido que indicámos (até desfrutando de stock options,

para os vincular fortemente às grandes empresas, especialmente farmacêuticas), sem

esquecermos que os cientistas assalariados trabalham para instituições cada vez mais

empresarializadas e dependentes das práticas do capitalismo de acionistas,

globalmente falando, qualquer que seja o seu sentido subjetivo de independência

interior em relação a este envolvimento. Seria uma modalidade de ciência totalmente

imprevista.

12

Denominado o “capitalismo total” por um empresário-estudioso francês, J.

Peyreval.

10

Além de empresários, muitos cientistas são gestores nas universidades com

respeito às suas equipes, ou em centros de investigação, por necessidade ou por

apetência. Muitos mais serão a obrigados a tirar cursos de gestão e de marketing.

Muito trabalho científico é feito por equipes, e onde as equipes trabalham muito

tempo em projetos coletivos, a coordenação poderá ser feita por gestores científicos.

7. Para os libertários consequentes, as Igrejas, ou as confissões religiosas em

geral, deveriam concorrer no mercado livre sem restrições legais de entrada, como as

impostas por alguns Estados de autorização e de registro para o tratamento fiscal e de

direito público, comparável com o que as confissões históricas têm desfrutado.

Qualquer indivíduo poderia registar-se como uma confissão-empresa, ou como um

sacerdote/ministro de uma qualquer religião (não necessariamente teísta ou deísta,

claro), vendendo ou comprando crenças, breviários, liturgias, cerimônias, hinos, etc.,

registáveis ou mesmo patenteadas como Propriedade Intelectual. Podem ter uma

existência puramente virtual, na rádio ou on-line: “igrejas de rádio” (radio churches)

já existiam nos EUA e no Brasil nos anos 30, e a religião on-line tem ainda muito

espaço para crescer. Por outro lado, qualquer pessoa terá a liberdade de optar por

qualquer das ofertas no “mercado” religioso, possivelmente escolhendo a mais

atraente promessa de salvação [(como assim foi descrito por eminentes sociólogos da

religião, com a maior seriedade, já há décadas)], mudar as suas escolhas, criar novas

ofertas, ou não escolher nenhum dos “produtos” disponíveis nesse mercado (mas

mesmo entre ateísmos, irreligiões e arreligiões pode haver várias ofertas). Seria

simplesmente levar o padrão americano de seitas e denominations em concorrência

permanente, à sua expressão mais completa. Com certas religiões historicamente não-

exclusivistas podem-se praticar várias ao mesmo tempo13

.

13 A religião já deixou de ser registada nos passaportes nos países ocidentais, embora

só há poucos anos que a religião Ortodoxa deixou de ser inscrita universalmente nos

passaportes gregos, como se religião e nacionalidade coincidissem, sendo ambos

atributos adscritivos dos cidadãos. O recrudescimento do nacionalismo etno-religioso

poderá trazer esta prática de volta em alguns países. Recentemente, um escritor

israelita conseguiu registar-se como judeu etnicamente mas sem pertencer à religião

judaica: o primeiro caso bem-sucedido deste tipo no país, porque antigamente a

etnicidade supostamente coincidia com a religião.

11

8. Os que tiverem a sorte de possuir genes/alelos de interesse comercial,

poderão vendê-los, constituindo talvez uma empresa genética/genômica para o efeito

mas de fato hoje as empresas do ramo estão a patentear tudo o que podem. Os ricos,

certamente o 1% de que se fala tanto hoje, podem comprar os melhores

genes/alelos/superalelos no “híper-mercado genético” global para o seu próprio

melhoramento genético ou da sua prole. O filósofo anarco-capitalista de Harvard,

Robert Nozick, no seu livro famoso Anarchy, law and the State (1971), um tratado de

filosofia política bastante influente, falou de um “supermercado genético” mundial a

que todos os pais deveriam ter acesso livre, pelo menos legalmente e moralmente,

sem interferência dos Estados, das Igrejas ou de qualquer outra autoridade. O mercado

livre de genes, de super-alelos especificamente, tem sido defendido por vários

bioeticistas numa versão do que se poderia chamar o liberalismo biomercantil, no

domínio humano como noutros14

. Alguns aceitam as implicações mais radicais desse

mercado, tal como a possível constituição pela “reprogenética” ( a combinação das

tecnologias genéticas com as tecnologias reprodutivas) de duas classes biológicas ou

biogenéticas, os “ricos em genes (alelos desejáveis)” e os “pobres em genes” (na

qualidade de alguns genes, pelo menos). Uma sociedade dual ou pelo menos

estratificada em termos genéticos claramente definidos, talvez fenotipicamente, e

provavelmente legitimada pela alegada superioridade genética da casta dominante.

Mesmo hoje, é preciso ter muito cuidado, porque nas últimas três ou quatro

décadas a questão sobre os direitos de propriedade sobre os “nossos” genes, os genes

residentes no “nosso” corpo, que foram identificados e “trabalhados” (processed) por

empresas biomédicas, tornando-se Propriedade Intelectual dessas empresas, tem sido

objeto de disputas legais em vários países, chegando mesmo às últimas instâncias

judiciais, com desfechos diversos. Mesmo que não se chegue à situação de perdermos

qualquer direito de propriedade aos nossos genes, ao nosso DNA, quando e na medida

que sejam de interesse para uma qualquer empresa biomédica, e como a

biotecnologia, com as suas promessas de novos medicamentos, biocombustíveis,

alimentos, etc., avança rapidamente, com o apoio substancial de vários governos, a

lista de genes humanos patenteados irá crescer, pelo menos nos países onde esta

prática é permitida pela lei, nos EUA certamente. Em 2005 já se contavam mais de 4

14

O tratado mais extenso em prol da escolha livre neste mercado: Colin Gavaghan

Defending the genetic supermarket –Law and the ethics of choosing the next

generation, London, 2007.

12

mil genes humanos patenteados, ou seja mais ou menos 1/5 do nosso genoma. As

patentes de genes referem-se a sequências de genes, ou segmentos de genes, ou a

proteínas produzidas por genes, ou seja estruturas, funções e processos dos genes. Na

sua grande maioria, portanto, as patentes em questão não protegem invenções

propriamente ditas, mas a descobertas de como sequenciar genes, ou matérias afins.

Talvez pela primeira vez na história o sistema de patentes, garantias estatais, foi

utilizado para proteger os lucros decorrentes de descobertas, e não de invenções15

. Os

críticos liberais do sistema de patentes, que supostamente favorecem os mercados

livres, notam que só neste domínio é que as patentes têm incentivado a pesquisa e

desenvolvimento das empresas, quer dizer na exploração de descobertas que não

deviam gerar direitos de propriedade16

.

9. Além do nosso patrimônio de genes, possuímos órgãos que poderão ser

também de interesse biomédico, e para esses efeitos recomenda-se que nos registemos

como empresas individuais de venda de órgãos (ou mesmo de membros), mesmo se

não o fizermos por algum tempo, à espera, por exemplo, do melhor preço no mercado

(a venda de órgãos é proibida, mas existe um mercado negro nesta área). Com os

avanços da biomedicina, tornou-se possível transplantar certos tipos de órgãos

humanos com êxito, e com relativa segurança para os doadores. Nas próximas

décadas, o leque de órgãos inter-transplantáveis entre corpos humanos nestas

condições irá aumentar, tornando possível com o tempo uma gradual modularização

do corpo humano (sendo a modularização um dos princípios constitutivos da

industrialização, tendo avançado especialmente nos EUA – um belo estudo sobre esse

país intitula-se Modular America – nada de surpreendente nesta variante de

modularização no mundo da biomedicina). O Homem Modular, biologicamente, ou

15

Ver a discussão importante deste tipo de patente e a defesa dos “comuns genéticos”

em vez do regime atual de expansão dos direitos de propriedade sobre matérias

genéticas nos EUA no livro do filósofo David Koepsell Who owns you? The

corporate gold rush to patent your genes, Oxford 2009.

As matéria genéticas abrangem haplótipos, SNP (polimorfismos) , CNVs . Além das

patentes de genes, também nos EUA se desenvolveu uma jurisprudência que aceita

patentes de células, tecidos e mesmo denças humanas. E os biomercados, as patentes

de sementes, micro-organismos, organismos multi-celulares, plantas, e genes e

genomas de organismos não-humanos cresceram muito a partir dos anos 70. 16

Segundo Terence Kealey Sex, science and profits – how people evolved to make

money, London, 2009, p. 379.

13

melhor, organologicamente falando, representaria, por assim dizer, uma versão

biotecnológica do corpus mysticum, como também, até certo ponto, a globalização de

mercados biohumanos da reprodução, e as migrações, resultam numa espécie de

panmixia, mantendo de fato a unidade e unicidade biológica da espécie humana, que

certos reprogeneticistas gostariam que viesse a desaparecer.

Com as novas técnicas de transplante, e as carências de doentes com órgãos

disfuncionais, surgem novos mercados, ou pelo menos mercados negros (há sempre

empresários para estas atividades). Como no caso de outras tecnologias avançadas

biomédicas, surgem questões espinhosas, dilemas, aporias, predicamentos, de ética

sobre a legitimidade destes mercados e das alternativas nas circunstâncias

contemporâneas (no futuro, a medicina regenerativa e as próteses eletromecânicas

mais sofisticadas, como o coração artificial que poderá ser comercializado nos

próximos anos, poderão mitigar, mesmo que não dispensem completamente, a

necessidade de transplantes, e nessa conjuntura estas questões seriam menos

urgentes).

Os ricos podem comprar os melhores órgãos mais rapidamente no

hipermercado global de órgãos humanos, no duplo mercado, o mercado legal e o

mercado negro, embora de fato talvez seja apropriado falar também, neste contexto,

como noutros, de mercados cinzentos. No entanto, não se trata só do mercado de

órgãos Norte-Sul, ou Sul-Sul. Como as soluções de mercado são recomendadas pelos

economistas, fazem parte do credo de um grande número de think tanks prolíficos

através do mundo, recomendam-se aos políticos, e cobrem áreas cada mais extensas

da vida, a entrada de órgãos humanos para transplante num mercado especifico legal

tem sido defendida para providenciar a maior oferta de órgãos para transplante, em

muitos países (a procura deve-se em parte ao envelhecimento das suas populações

resultando das “Revoluções de Longevidade”), pois as doações, embora tenham

estado a crescer significativamente, ainda ficam aquém da procura.

O mercado global de órgãos humanos foi defendido por um filósofo

americano, James Stacey Taylor, no seu livro Stakes and kidneys: why markets in

human body parts are morally imperative (2005). Segundo este autor, não há nada de

imoral em alguém comprar órgãos quando o vendedor não tem recursos, está

desesperado e recorre à venda de partes do seu corpo porque não tem alternativa para

sobreviver. Além disso, o filósofo argumenta que temos o dever moral de participar

nesse mercado de órgãos. Ele não quer dizer que exista uma obrigação moral de doar

14

órgãos, para familiares ou mesmo para estranhos, como muitos argumentam, filósofos

ou não filósofos, doação que os Estados querem incentivar cada vez mais, dada a

procura crescente de órgãos para transplante, mas o dever de os vender, se os não

quisermos doar gratuitamente e voluntariamente, se e quando a extração de órgãos

para transplante não prejudique a nossa saúde e esperança de vida. Mesmo com estas

restrições, o pool de potenciais vendedores de órgãos seria enorme, e o mercado seria

fabuloso, numericamente e crematisticamente. Quanto á extração de órgãos de

moribundos, como aliás há milhares de pessoas que sofrem acidentes automobilísticos

fatais todos os anos, os governos de vários países têm considerado várias medidas

para a incentivar, por exemplo, exigindo que como condição necessária para se se

poder obter ou renovar uma carta de condução seja feita uma declaração para permitir

o transplante, recusar o transplante ou pensar no assunto (no Reino Unido esta medida

poderá tomar efeito em breve). A expectativa é que nessas circunstâncias um bom

número de pessoas, confrontadas com a obrigação legal de escolher, irão optar pelo

consentimento prévio, e ficarão assim a pertencer à lista nacional (eletrônica, claro) de

doadores. Não ficou claro se se poderá mudar de opinião, e exprimir esta mudança de

opinião, de algum modo que possa ser registada e acatada pelas autoridades.

Uma proposta muito recente pode apontar para o futuro, não só da constituição

de um mercado de órgãos humanos nos países ocidentais que o têm recusado até

agora, mas como do seu inter-relacionamento com outros mercados, que lidam com

bens e serviços completamente diferentes. A proposta foi de que, como os estudantes

ingleses17

têm que pagar anuidades cujo nível atinge 9.000 libras esterlinas num

grande número de universidades públicas ou semi-públicas como são hoje

praticamente todas (não só as mais prestigiadas), a dívida bancária que contraem para

as pagar enquanto frequentam a universidade, deixaria de ser um grande fardo se os

estudantes pudessem vender um rim por 28.000 libras, ou mais ou menos 90.000 reais

(um preço razoável, ao que parece, tanto para os compradores como para os

vendedores, sendo uma quantia equivalente ao rendimento médio anual no Reino

Unido). O clima de opinião a respeito da venda de órgãos para transplantes ainda não

se transformou ao ponto de esta proposta ser aplaudida como uma das soluções

legítimas para a crise do financiamento das universidades pelas anuidades, como para

17

Não é o caso dos estudantes escoceses, cujo acesso às universidades é praticamente

gratuito por enquanto.

15

o déficit de órgãos para transplante, mas o próprio fato de a proposta ter sido colocada

por uma acadêmica – uma investigadora senior na sociologia da medicina numa

universidade escocesa – merece ser notado. E se a proposta foi feita no caso de

estudantes ou licenciados, outras propostas análogas podiam ser feitas, por paridade

de raciocínio, com respeito a desempregados e indigentes, por exemplo, ou qualquer

pessoa ou categoria de pessoas numa situação econômica muito difícil, com a mesma

justificação, mas obviamente o aumento da oferta poderia diminuir o preço, e o

rendimento desta operação.

12. Com respeito à reprodução humana, o mercado de gametas, de óvulos e de

esperma, para a inseminação artificial humana, já foi globalizado (embora haja países

que proíbem a exportação de gametas, como a Índia, nenhum parece proibir a sua

importação, e de qualquer modo o turismo reprodutivo internacional pode superar

essas barreiras legais). Existem tabelas de preços que se podem consultar facilmente

on-line, com empresas especializadas, embora este mercado não esteja ainda

suficientemente diferenciado e competitivo, com um déficit da oferta no caso de

várias etnias nos EUA, no Reino Unido, e provavelmente noutros países também. Os

óvulos das alunas de licenciatura de Harvard são, de longe, os mais caros nos EUA:

parece haver uma correlação forte com o ranking internacional das universidades no

caso norte-americano (seria mais econômico determinar o ranking das universidades

por este indicador, do que pelos modos correntes)18

. A escolha dos doadores de

esperma pode ser feita por vídeos, ou on-line, segundo os dados biométricos (a altura,

em particular), atestados médicos, o curriculum educacional e profissional, ou os

resultados dos SATs, dos doadores disponíveis, e fotos, sendo os preços bem menores

que no caso da doação de óvulos19

. O mercado de gametas, mesmo quando se trata de

18

Mas a procura de óvulos pode abranger pessoas de estatuto sócio-econômico

relativamente baixo. E a transação pode ser bem curiosa, como no caso genuíno de

uma dançarina americana que vendeu óvulos para poder pagar implantes mamários,

mais ou menos necessários na sua profissão. 19

Dados de Renée Almeling, cujos trabalhos anteriores citei no cap. IX do meu livro

Experimentum Humanum. O seu novo livro Sex cells –the medical market for eggs

and sperm Chicago 2011, trata do assunto mais extensamente. Há vários paradoxos

associados com as novas tecnologias reprodutivas. Um doador de esperma americano

afirma ser virgem aos 36 anos, embora seja pai genético de umas 15 crianças, pois

tem sido um doador entusiástico, com umas quarenta mulheres clientes (curiosamente,

não trabalhava para uma agência, mas por conta própria, grátis). O mesmo podia

16

um mercado negro, tem sido predominantemente Norte-Norte, ou doméstico, ao

contrário de outros mercados biológicos, muito mais transcontinentalizados seguindo

um gradiente econômico, com gente dos países mais ricos sendo os compradores,

como no caso dos mercados dos órgãos, dos genes, ou da gestação, sem falar de

mercados biológicos transnacionais mais inocentes, como o dos cabelos. No entanto,

se propostas como a referida acima, de iniciar a compra e venda de órgãos dentro dum

país do Norte forem aceites, o mercado de órgãos humanos legal podia ser também

nacional.

10. A gestação humana, ou o “trabalho reprodutivo” das mulheres, como

outras formas de trabalho, pode ser outsourced, neste caso só a outras mulheres,

grátis, ou por um certo preço, familiares (irmãs, mães, avós, tias, primas), amigas, ou

estranhas, com muitas implicações não-convencionais para as relações parentais e de

filiação. Em princípio, o assunto podia ser tratado diretamente on-line, como nos

dating sites, mas já existe um mercado para o outsourcing da gestação a mulheres em

outros continentes, segundo os preços, e outros fatores, com empresas a tratar deste

negócio delicado, e os preços podem variar segundo os países e as preferências dos

pais genéticos. Neste domínio também, as regras legais podem não estar muito bem

definidas, especialmente devido a questões de jurisprudência identitária, quando se

trata de outsourcing transnacional e especialmente transcontinental. Na França,

recentemente, bebês nascidos de embriões de pais biológicos, ou melhor, genéticos,

franceses, implantados em mulheres indianas como as suas “mães de aluguel”, foram

negados a cidadania francesa, quando a regra geral prevalente era que o filho de

cidadãos franceses, onde quer que nascesse, seria francês20

. A República Francesa,

dirão alguns, continua obcecada com a ideia que o ventre que dá nascimento aos

filhos biológicos de cidadãos franceses (trata-se de um casal homossexual) tem que

ser também de nacionalidade francesa: uma espécie de protecionismo

reprodutivo…Casos como estes demonstram o conflito entre Estado e mercado numa

área onde as pré-definições de cidadania, mesmo pelo jus sanguinis, não preveram

acontecer com mulheres, virgens-mães, embora nenhum caso tenha sido publicitado, e

o pai-virgem poderá ser único. E com o congelamento de esperma ou de embriões

pode-se ser pai depois da morte, anos depois. 20

As normas legais a este respeito na França mudaram consideravelmente várias

vezes nos últimos cento e tal anos. Neste caso específico, a mãe genética, a doadora

do óvulo, foi anônima. Mesmo assim, muitas mães biológicas em França ou noutros

países serão desconhecidas.

17

este tipo de situações: especialmente quando se trata dum Estado de elevada

“estatidade”21

.

Todas estas questões perderão a sua razão de ser quando chegarem os úteros

artificiais, com todas as funcionalidades necessárias e a gestação poderá então ter

lugar fora de qualquer corpo biológico natural, humano ou não humano, em condições

perfeitamente controladas. A ectogênese, no sentido estrito do termo, em que todo o

processo desde a concepção não-sexual, extra-corporal, até a hora em que o nascituro

possa ter uma vida independente, decorre dentro do útero artificial, fora do corpo

humano, ou de qualquer outro corpo biológico natural. De certo modo, seria o

desfecho da Revolução Reprodutiva humana das últimas décadas. Revolução

anunciada com brio anunciada em 1923 por um biólogo britânico, que só

verdadeiramente se iniciou em 1978 com o nascimento do primeiro bebê concebido

num tubo de ensaio, embora se possa datar também da introdução da pílula

anticoncepcional feminina (digo “desfecho” se excluirmos a clonagem reprodutiva

humana). Com a combinação das novas tecnologias reprodutivas e da engenharia

genética, a Revolução Reprodutiva podia transformar-se numa Revolução

Reprogenética.

11. O sangue humano para transfusões já foi comercializado há muito tempo

nos EUA, onde há gente com poucos recursos para quem vender sangue regularmente

pode ser uma fonte de rendimento significativa por anos e anos. A introdução do

mercado de sangue no Reino Unido diminuiu a oferta voluntária de sangue,

considerável, que por décadas tinha sido uma fonte de orgulho para o país. O cientista

social Richard Titmuss no seu livro clássico de 1971, The gift relationship, já tinha

avisado que um efeito de crowding out da oferta voluntária de bens para fins altruístas

pela mercadorização iria ocorrer, com uma deterioração da qualidade, o que

poderíamos chamar o “efeito Titmuss”. Efeito patente com respeito a outras

modalidades de dádiva, de altruísmo, com a introdução de mercados, escalas de

21

Um dos resultados típicos deste outsourcing já foi denominado o “bebê global”, ou

o “bebê mundial”, pois é perfeitamente possível que o doador de esperma, o doador

do óvulo, a mãe proveta, o pai jurídico, a mãe jurídica, e o local de nascimento sejam

de nacionalidades diferentes, como a cidadania do bebê, que pode ser conferida pela

nacionalidade dos pais adoptivos: pelo menos cinco nacionalidades em questão (a

mãe proveta representa certamente uma novidade tecnológica). Uma nova indústria,

coordenando pais adotivos, doadores de gametas, mães provetas, clínicas ou hospitais,

em vários países, trata destes assuntos transnacionais.

18

preços, etc.22

. É interessante notar que a mercadorização do sangue foi uma

intervenção pioneira na promoção de biomercados humanos legais em grande escala

nas sociedades tecno-mercantis: depois do sangue, gametas, tecidos, células, órgãos

(provavelmente legalizados em breve), etc.

12. Há um processo pendente no Supremo Tribunal dos Estados Unidos que

concerne a questão de os médicos deverem ser ou não obrigados por lei a vender os

relatos das suas receitas para os seus pacientes, arquivadas como dados eletrônicos

digitais, a empresas farmacêuticas. Como em todos os outros casos onde se exige que

dados sejam arquivados em forma digital (exigência praticamente universal hoje), fica

praticamente garantido o seu acesso, eventualmente, sem o conhecimento das pessoas

cujos dados foram assim arquivados, mesmo sem o conhecimento, ou pelo menos sem

o consentimento, dos profissionais que se comprometeram em boa fé em assegurar a

sua privacidade e intangibilidade. O acesso a esses e-dados será por vias legais, semi-

legais ou ilegais, pelo hacking ou pelo data-mining, ou o “ciber-roubo”. O acesso a

esses dados para efeitos comerciais, como no caso citado, é às vezes assegurado pela

lei (no caso de dados protegidos pelas barreiras da segurança nacional, a ciber-

espionagem e a ciber-guerra tornam-se cada vez mais sofisticadas). Seja como for, a

extração e armazenamento de dados digitais torna mais fácil a exploração comercial,

não só nestes casos, mas nas nossas ciber-vidas normais, nos intervalos não

preenchidos pelas atividades profissionais ou as transações comerciais, com o correio

eletrônico, os SMSs ou as IMs, ou as visitas à Internet (não só à eBay): todos estes

episódios de comunicação eletrônica, geram cumulativamente a “pegada digital” e a

“sombra digital” dos utentes, mesmo sem o hacking propriamente falando, que

interfere mais brutalmente com a privacidade. Mesmo os mais entusiastas pela

“Revolução dos Dados”, que o registo das transações comerciais, profissionais e

outras propiciam, quando digitalizadas, reconhecem que toda informação digital é

potencialmente comercializável, sendo toda a informação digital mercadoria mais

cedo ou mais tarde.

22

Para um dos maiores intelectuais bolcheviques, Alexandr Bogdanov, a doação

voluntária e gratuita de sangue para transfusão, praticada em grande escala, seria uma

das marcas da sociedade socialista, altruísta e solidária (Nikolai Kermentsov A

Martian stranded on Earth – Alexandr Bogdanov, blood transfusion and proletarian

science Chicago 2011). De fato, na URSS a doação de sangue para transfusão era

geralmente feita em troca de compensação monetária, pelo menos em tempo de paz.

19

12a. A comunicação eletrônica, com a “revolução digital”, tornou-se um

grande multiplicador e acelerador da mercantilização universal, universal em extensão

geográfica, mas também no escopo do que pode ser incluído no processo, mensagens,

imagens, sons, ideias, informações, bens físicos, sexo, objetos, propriedades, armas,

etc. A globalização financeira, aliás uma alavanca crucial da globalização em geral a

partir dos anos 70, embora ainda seja uma “semi-globalização”, porque o mundo não

é assim tão liso como foi anunciado, representa por sua vez um mecanismo de

mercantilização acelerada. Os instrumentos financeiros, cada vez mais “sofisticados”,

são processados nas Bolsas, numa grande proporção, pelo high-frequency computer

trading (também denominado “algorithmic trading,” ou “black-box trading”), quer

dizer, por algoritmos sofisticados, elaborados por matemáticos e físicos formados nas

melhores universidades (os quants). As proporções cada vez mais amplas das

transações negociadas por algoritmos, e não por humanos, nas Bolsas de Valores

chegaram já a cerca de 75 % nos EUA, ou mais agora em 2011. Esta proporção,

embora menor nas Bolsas europeias, irá provavelmente aumentar cada vez mais, tanto

nos EUA como na EU, mas possivelmente sem chegar à automatização total, a 100 %

dos negócios de ações, mas aproximando-se significativamente deste limite,

certamente ultrapassando os 80% e mesmo os 90%, reduzindo os operadores

humanos a uma pequena minoria, tratando de uma porção bem pequena to volume e

valor dos negócios bolseiros. Tendo em conta o stress desta atividade para os agentes

humanos (alguns quase morrem todos os dias, pelo menos assim o dizem aos

investigadores), esta substituição será de certo modo positiva. Mas, como sabemos,

não obstante as vantagens apregoadas, como maior rapidez e eficiência, os efeitos

globais desta substituição de humanos por algoritmos, por programas de software,

neste domínio têm sido perversos para a economia real, bem patentes especialmente

desde 2008: a “eficiência” e rapidez nas transações financeiras não é necessariamente

conducente à estabilidade econômica global, antes pelo contrário.

Os robôs negociadores de ações, os robôs que tomam conta cada vez mais das

transações das Bolsas, “robot traders”, representam um a espécie de vanguarda dos

robôs inteligentes (com programas de software sofisticados) que já se ocupam de

variadas tarefas da “economia de conhecimento”, substituindo a wetware dos

profissionais humanos, cujos cérebros são incapazes de processar rapidamente as

grandes quantidades de dados (notícias econômicas e financeiras neste caso) que

chegam a cada minuto de toda a parte, com a compressão máxima do ciber-tempo e

20

do ciber-espaço. Os “robôs cientistas”, já desenhados numa forma elementar há

alguns anos, e avançando lentamente, mas já capazes de descobertas científicas, com

resultados inéditos, e os “robôs jornalistas”, que só começaram a funcionar este ano,

ainda não funcionam numa escala comparável (mesmo assim o “jornalismo assistido

por computador” e o “jornalismo computacional” já estão na moda nos EUA). O

“robô conversador”, interativo, que ensina a falar inglês on-line, é uma novidade no

Japão (pode ser adaptado ao ensino de outras línguas). Não se espera que possam

substituir os cientistas ou jornalistas não-robóticos tão amplamente num futuro

próximo23

.

13. Pagaremos impostos a um Estado-empresa, ou talvez melhor dito, a um

Estado de empresas locais ou nacionais, ou um Estado em vias de empresarialização

permanente. Antes disso, o comportamento dos funcionários do Estado, da

administração pública, dos partidos políticos e dos eleitores, já tinha sido analisado

pelos politólogos em termos de mercados de votos, da concorrência de empresas, por

analogia com a análise microeconômica das empresas e dos empresários, sugerida já

por Schumpeter em 1942 (entre outros dos seus contemporâneos) com respeito aos

partidos políticos e as eleições parlamentares ou presidenciais competitivas e livres: a

própria expressão “political marketing” difundiu-se no Brasil há trinta anos. A nossa

relação com o Estado, se a palavra ainda sobreviver (a palavra “Estado” é pouco

favorecida nos países anglo-saxónicos), se as tendências correntes prevalecerem, será

de fregueses/clientes de determinados serviços prestados por uma empresa sui

generis, ou consórcio de empresas, com preços transparentes naturalmente24

. Os

cidadãos potenciais vão comportar-se como consumidores ou investidores,

procurando os maiores rendimentos políticos pelo melhor preço, sem fortes

preferências pelo território onde viveram praticamente toda a vida (os bilionários já se

comportam assim, emigrando para onde os impostos são mais baixos). Idealmente,

23

Os telescópios automatizados, que fazem observações seguindo programas de

software poderiam ser chamados “robôs astrônomos”, complementando os humanos,

tanto profissionais como amadores (“cidadãos cientistas”). 24

Há muitos anos que o Príncipe-Consorte do Reino Unido se refere à Família Real

como “The Firm” (“A empresa”), aliás título de um filme sobre esta mesma família.

Na ausência de uma Família Real no trono, não podemos desfrutar de uma empresa

deste tipo. Mas há dinastias políticas em repúblicas democráticas que poderão ser

consideradas como equivalentes funcionais desta “empresa” monárquica, embora

menos faustosas.

21

todos os indivíduos adultos poderiam escolher no mercado internacional a melhor

oferta estatal, tal como fazem as grandes empresas ou os maiores empresários hoje

com respeito às melhores “jurisdições fiscais”, fugindo assim aos impostos dos países

com mais despesas sociais. Esta mobilidade podia ser facilitada se a prática de as

pessoas se registarem anualmente como querendo ou não continuar a aceitar a

nacionalidade de que desfrutam, possivelmente desde a nascença, se, por exemplo,

querem ou não continuar a ser franceses, ou reclamarem o direito de escolherem outra

nacionalidade, fosse institucionalizada25

. Os nossos passaportes serão emitidos por

empresas 26

.

A moeda deixará de ser monopólio do Estado, ou das uniões monetárias, como

o euro na UE, e empresas privadas poderão fornecer moedas em concorrência num

mesmo território (aliás, hoje mesmo, quem “produz” o dinheiro que aparece nas

estatísticas nacionais e internacionais são predominantemente os bancos não

estatais)27

.

14. Se ainda há forças armadas vinculadas a Estados, serão bandos de

mercenários: já se chamam assim, injustamente, aos voluntários que hoje constituem

as forças armadas dos países que abandonaram o serviço militar obrigatório em tempo

de paz. O mercado internacional de armas, tão importante na economia mundial há já

várias décadas, poderá ser suplementado por um mercado mundial de militares, ou de

“especialistas da violência”, que por enquanto só existe em números muito limitados.

Alguns programas do Pentágono, além de planejarem a introdução de “super-

soldados,” com exo-esqueletos para carregar mais equipamento sem dificuldades de

25

Prática que foi recomendada por um sociólogo francês famoso, Alain Touraine (não

sei se ele ainda concorda com essa opinião). 26

Há tempos, alguns cidadãos britânicos que tinham pedido passaportes receberam

uma carta de desculpas da agência que trata do assunto, endereçada a “Dear

customer”! É verdade que se paga por um passaporte, mesmo legal, mas mesmo

assim, no passado este fato não implicava que a troca de dinheiro por um passaporte a

que temos direito como cidadãos constituísse uma transação comercial como qualquer

outra. Trata-se de uma relação de cidadania, não de uma relação de mercado. A não

ser que se identifique o Estado como uma empresa. 27

A desestatização, desnacionalização ou privatização da moeda foi defendida por

Hayek em vários estudos, além de outros economistas de menor fama.

22

maior28

, e mobilidade comparável ao dos gigantes dos contos de fadas, encaram a

substituição de soldados por robôs armados, de tanques tripulados por tanques

controlados por robôs, dos aviões de guerra ou helicópteros tripulados pelos drones,

aviões ou helicópteros armados com mísseis, das mais variadas dimensões, assistidos

por ciber-insetos diversos para a vigilância, etc., robotizando os conflitos armados (as

guerras inter-estatais seriam entre robôs e robôs). Isto em conjunção com a ciber-

guerra eletrônica, defensiva ou ofensiva, que está a ser travada por um certo número

de países há décadas, entre vírus e worms de computador (acompanhada por ciber-

espionagem e ciber-terrorismo, nas suas variantes industriais, comerciais e políticas).

15. As polícias, todas privatizadas (as melhoras empresas de polícia irão

sobreviver com certeza num mercado muito competitivo), segundo a proposta de

economistas neoliberais29

. A não ser que cada indivíduo seja encarregado de ser

polícia, ou assume um papel policial, part-time ou full-time, nas horas vagas, ou nas

férias, talvez em troca de uma pequena redução nos impostos (ou, ainda melhor,

descontos nos supermercados). Muita vigilância em todos os espaços públicos (e não

só neles) já é feita por CCTVs [closed-circuit television] (milhões no Reino Unido,

com a maior densidade per capita de CCTVs em qualquer país). Os smartphones,

com as suas capacidades fotográficas poderão ampliar esta vigilância, que passará a

ser de todos por todos, modificando assim o ditado de Hobbes30

, sem custos para o

Estado, para os contribuintes. Já há quem queira exigir Webcams em todos os

ministérios, em todas as repartições públicas, inclusive consulados e embaixadas

(alguns diriam mesmo: em todos os tribunais). E também tudo o que se discute nos

Parlamentos devia ficar sob a observação, por Webcams, ou outros meios análogos,

para os cidadãos ficarem sempre ao par do que passa lá em cima. No entanto, se e

28

Os exo-esqueletos são, em princípio, de óbvia utilidade para civis, para os

paralisados e os incapacitados ou de pouca mobilidade por outras razões, como a

idade, e a sua produção já começou nos EUA. 29

A privatização das polícias foi defendida pelo economista David Friedman, filho do

mais famoso e nobelizado Milton Friedman. 30

O que já foi chamado “equiveillance”, jogando com a palavra inglesa

“surveillance” (que pode ser lida não só como vigilância, que é a tradução normal,

mas também, tendo em conta o prefixo “sur” recordando a sua acepção latina, como

vigilância pelos “de cima”, pelas autoridades) como também na expressão

“sousveillance”, vigilância pelos de baixo, pelos subordinados. Vários autores têm

falado da “democratização da vigilância”, do “panopticon eletrônico”, ou do

“superpanopticon”.

23

quando o Estado se empresarializar completamente, seria de esperar que as empresas

sucessoras do Estado não-empresarial em questão gozem dos direitos de privacidade

comercial, que normalmente protege os processos decisórios internos às empresas

comerciais (“privadas”, precisamente), que ninguém nega normalmente. Os segredos

comerciais são melhor protegidos que os “segredos de Estado”31

.

16. Quanto ao nosso envelhecimento e senilidade, que remédio para a grande

maioria senão procurarem abrigos e asilos cada vez mais empresarializados: devido

aos constrangimentos legais ainda existentes, e o peso da ideologia dos direitos

humanos, haverá ainda algum respeito pela pessoa humana, mas o interesse essencial

dessas empresas em nós será como fontes de rendimento, como mercadorias32

. Trata-

se certamente de uma área onde a carência de projetos de “empresários sociais”, de

invenções sociais para lidar com um fenômeno sem precedentes nas sociedades

modernas, se nota ainda mais que em qualquer outra talvez. No entanto, hoje surgem

mais rapidamente soluções tecnológicas e não sociais, como, por exemplo, a

introdução de robôs de companhia, de robôs-assistentes de enfermagem, de robôs

domésticos (limpeza da casa, segurança, cuidar da roupa, entre outras tarefas), robôs-

mordomos, etc., para facilitar a vida dos mais idosos ou vários tipos de deficientes,

em conjunto com uma panóplia de monitores, chips subcutâneos, sensores (nas camas,

nas cadeiras, etc.), sem falar de nanossensores nos corpos, vídeo-câmeras,

assegurando um contato permanente bilateral dos idosos, especialmente os isolados,

com médicos, enfermeiros e hospitais (a “telesaúde” ou telehealth) e outras agências.

Na Coreia do Sul, por exemplo, o governo espera providenciar pelo menos um robô

por cada família (household) para o ano 2020 (seriam milhões!). Na União Europeia

também se projeta o desenvolvimento de “robôs companheiros para os cidadãos”.

Note-se que, com respeito a problemas humanos e sociais desta gravidez, recorre-se

acima de tudo à intensificação e extensificação tecnológica, microeletrônica,

31

Com o recente sucessor do famoso Stuxnet, o worm Duqu, espiando empresas

comerciais, parece haver Estados espiando as empresas comerciais dos outros países

pelos meios mais sofisticados. 32

No dia 1 de Agosto deste ano saiu um artigo no jornal diário londrino The Times,

hoje propriedade do império comercial-político de Rupert Murdoch, em que se fala

assim. A linguagem da mercadorização (“commodification”) já há alguns anos deixou

de ser o apanágio de marxistas, ex-marxistas, ou sociólogos, para entrar no

vocabulário geral da cultura académica anglo-saxónica, mesmo nas Faculdades de

Direito.

24

computacional, robótica, da vida. Seriam precisos muitos robôs para atender a todas

as carências das pessoas que sofrem de demência, por exemplo, ou robôs

extremamente versáteis.

17. Com a morte, os nossos cadáveres serão sujeitos a um processo de venda

de todos os órgãos, tecidos, ossos, cérebros, etc., de interesse para algum hospital,

clínica de investigação, laboratório, museu, galeria de arte, artista, ou psicopata

(muitos serão oferecidos grátis, incondicionalmente, mas mesmo assim, a sua

extração requere a intervenção de alguma empresa especializada, e isso tem custos, e

alguém terá de pagar).

A não ser que haja o interesse, o dinheiro e o apoio moral, técnico ou

financeiro de parentes ou amigos de simpatias “imortalistas”, ou pelo menos, se não o

forem, dispostos a cumprir os “testamentos vitais” dos defuntos, para recorrer à

criogenia, nos países onde esta prática é legal, na expectativa de que, dentro de duas

ou três décadas, com os avanços da biomedicina, se possa realizar uma eventual

ressurreição: prática que envolve o congelamento, a criopreservação, dos corpos, ou

só dos cérebros, que na sua segunda vida biológica estariam associados a um novo

corpo (por enquanto há só umas poucas centenas de criogenizados à espera, em várias

instalações, nos EUA)33

.

Se não recorrermos à criogenia, e se ficar algum resíduo a tratar depois da

extração dos órgãos, etc., esses restos mortais serão processados por um crematório-

empresa (a mais bem sucedida modalidade da industrialização do tratamento dos

mortos34

).

33

Durante a primeira década do poder bolchevique, alguns soviéticos sonharam com

uma coisa semelhante no caso de Lenine, na expectativa que com os avanços sem

precedentes da ciência propiciados pelo socialismo instalado, ele seria num futuro não

muito distante o primeiro dos humanos imortais. O tema da imortalidade por vias

biomédicas e tecnocientíficas em geral, de indivíduos ou de coletividades (em

princípio, a sociedade socialista), já tinha sido debatido entre os intelectuais do

partido antes da Revolução de Outubro de 1917, num ambiente cultural onde estas

questões tinham sido colocadas por intelectuais de outros quadrantes ideológicos. 34

Embora haja muita procura de outras opções, não-industriais, não-comerciais,

mesmo lúdicas, nas sociedades europeias pós-cristãs. Curiosamente, esta tem sido

uma área onde a “escolha livre” tão apregoada nas economias de mercado

contemporâneas, e a invenção de novas formas simbólicas, não se tem manifestado

tanto como se poderia esperar.

25

18. Depois da morte, a nossa imagem póstuma poderá ser gerida, no caso de

termos deixado um certo capital para estes fins, por uma empresa (como já acontece),

que se poderá encarregar, por exemplo, de dar o nosso nome a uma estrêla, pelo

melhor preço (o mercado para este efeito já existe, e há imensas estrelas).

A nossa morte pode ser documentada exaustivamente, se quisermos (ou

mesmo se não quisermos), e os custos não serão elevados. A documentação audio-

visual, digitalizada, da morte poderá ser arquivada como memento mori. Podíamos

chamar “tanatoteca” a este tipo de arquivo.

A auto-documentação eletrônica de tudo o que fazemos e das nossas imagens

pari passu, já parcialmente realizada na vida quotidiana com os Iphones, pode ser

ampliada quase ad infinitum. Podiamos chamar “e-bioteca” ao arquivo de vidas

humanas, em princípio, o arquivo digital da totalidade de cada vida individual, no

limite em correspondência biunívoca com tudo o que fizemos, e talvez mesmo tudo o

que se passa no nosso cérebro, com as tecnologias de neuroimagens como fMRI

podem revelar eletronicamente (audiovisualmente por enquanto, mas no futuro talvez

também com sensores gustatórios e olfativos). Teremos a nossa vida, a vida que

vivemos em primeira mão, e a nossa e-vida, ou a nossa vida digitalizada em

simultâneo, que poderá ser arquivada numa bioteca familiar ou museológica, virtual:

como já vivemos on-line uma boa parte do nosso tempo, especialmente os hiper-

conectados (com web-cams ainda mais diretamente), a transferência da nossa vida

biológica, analógica, para a a vida on-line, eletrônica, digital, na íntegra, não

representará um grande salto35

.

E já surgiram “grupos memoriais” via Facebook. Nestes grupos virtuais

comemorando os falecidos, partilham-se fotos e vídeos do falecido, podcasts,

gravações de todo o tipo, e links, além de testemunhos diversos e os arquivos

pessoais, inclusive e-books, na sua totalidade: como o ciberespaço é infinito, todos

cabem, humanos e não-humanos, todos os seres a que damos valor36

. As nossas vidas

35

No passado, guardavam-se objetos, mechas de cabelo, retratos dos mortos, como

relíquias ou memorabilia, ou diários e memórias não publicadas, e no caso dos

monarcas, algo mais; com o advento da fotografia, álbuns de fotos da família, e

depois gravações e vídeos; mas só agora o que pode ter sido imaginado na ficção

científica se pode aproximar da realidade. Poucos terão uma casa de família partilhada

por várias gerações através do tempo, décadas ou séculos, como memória física. 36

A quase-divinização do ciberespaço, na sequência da quase-divinização do espaço

físico em pensadores como Newton, em que o espaço cósmico era definido como

26

podem ser filmadas/áudio-vídeo gravadas na sua totalidade, 24/7, minuto a minuto: a

tecnologia está disponível, e já há quem se disponibilizou para o efeito. Estes

testemunhos, recordações e outros atos memoriais no grupo podem prolongar-se

através dos anos, sem as limitações do espaço físico, das ocasiões breves, liminais,

dos rituais funerários e piaculares que ainda se observam e da memória coletiva. Uma

espécie de quase-imortalidade, senão do corpo, ou da consciência, pelo menos da

“alma virtual”, uma versão eletrônica da “imortalidade subjetiva” Comteana,

assegurada através de uma grande rede social digital, mas provavelmente também

através de outras, mais cedo ou mais tarde. Para os que forem objeto de algum grupo

memorial…se potencialmente todos os mortos (humanos) poderiam gozar deste tipo

de tratamento, o mais provável será uma estratificação de status e prestígio dos

defuntos, com os seus ratings e rankings, depois como antes da morte, pois a

reputação póstuma pode variar imenso. A imensa maioria ficará no limbo póstumo

virtual. Haverá, no entanto, oportunidades de mercado com respeito a este assunto, e

também para empresários inovadores.

sensorium Dei, encontra-se em muitos autores, referidos em Margaret Wertheim The

pearly gates of cyberspace –a history of space from Dante to the Internet, Londres,

1999). No entanto, nesta versão a quase- divinização do ciberespaço abrangeria a

incorporação virtual de todos os mortos humanos através da documentação digital das

suas vidas. Possivelmente poderia incorporar mais do que os humanos, os animais de

estimação tão queridos de muita gente, embora alguns deles já tenham sido clonados –

outra solução tecnológica.