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    O Sujeito Discursivo Contemporneo: um exemplo

    Eni P. Orlandi (Unicamp)

    O sujeito discursivo implica a relao do simblico com o poltico. E isto tem posto

    muitas vezes uma srie de dificuldades em sua compreenso. Vou ler uma referncia feita

    por Francine Mazire (2005,p.62) ao trabalho que desenvolvemos no Brasil para dar a

    dimenso de como nosso trabalho percebido em relao questo do sujeito.

    Diz ela: sem dvida no Brasil, essencialmente em Campinas, nos trabalhos

    dirigidos por Eni Orlandi, que a questo do sujeito, organizada pela ideologia e pelo

    inconsciente pode ser mais completamente explorada. As equipes tm ao mesmo tempo um

    excelente conhecimento dos textos fundamentais da anlise de discurso (tudo foi traduzido)

    e uma dupla prtica da anlise de discurso, pela crtica e pela comprovao sobre corpora

    diversificados: corpus de discursos civilizadores, civilizados, censurados, instituintes,

    institudos, em contacto, em conflito, em instituies como as academias, as universidades,

    a escola, a rua, em instrumentos lingsticos que so os manuais, as gramticas, os

    dicionrios, e em uma lngua diversa e dividida, em portugus, em brasileiro, em lngua

    geral (tupi), atravs de todos os regionalismos que constituem os lxicos brasileiros ou

    portugus. A revistaLangages 130 (1998), a Hyperlangue brsilienne d apenas uma viso

    da grande variedade dessas produes, de seu constante cuidado em pensar um lugar do

    sujeito, na difcil (impossvel) localizao, ou na perda de localizao e de posio.

    Devo fazer duas observaes a respeito desta referncia. Primeiro, que as anlises

    com seus objetos quando se trata da anlise de discurso so efetivamente capazes de trazer-

    fazer emergir teoricamente descobertas, novos elementos, novos modos de compreenso

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    em anlise de discurso. Segundo, que no era propriamente a questo do sujeito que eu

    visava mas verdade que ao aprofundar nas anlises me foi recorrente a questo sobre

    sujeito. Da a necessidade que senti, em um dado momento de minhas pesquisas e

    reflexes, de fazer uma sntese de como eu via a questo do sujeito na anlise de discurso.

    Refiro-me ao meu texto Do sujeito no histrico e no simblico.(2002,p.65), de que farei

    aqui uma rpida meno.

    Como diz M. Pcheux o indivduo interpelado em sujeito pela ideologia. Eu diria

    que ao inscrever-se na lngua o indivduo interpelado em sujeito pela ideologia, da

    resultando uma forma sujeito histrica. No nosso caso, o sujeito do capitalismo.Na figura

    da interpelao esto criticadas duas formas de evidncia: a da constituio do sujeito e a

    do sentido. Crtica feita pela teoria materialista do discurso filosofia idealista da

    linguagem que se apresenta quer sob o modo do objetivismo abstrato ou do subjetivismo

    idealista. O sujeito se submete lngua mergulhado em sua experincia de mundo e

    determinado pela injuno a dar sentido, a significar-se. E o faz em um gesto, um

    movimento scio-historicamente situado, em que se reflete sua interpelao pela ideologia.

    A ordem da lngua e a da histria, em sua articulao e seu funcionamento, constituem a

    ordem do discurso.

    Nessa perspectiva eu me perguntava o modo como concebemos o fato de que a

    materialidade dos lugares dispe a vida dos sujeitos e, ao mesmo tempo, a resistncia

    desses sujeitos constitui outras posies que vo materializar novos (ou outros) lugares. Ou

    seja, minha questo era: como se d a resistncia? Para pensar esta questo vamos pensar o

    sujeito contemporneo e sua forma histrica. Como sabemos, a interpelao do sujeito

    capitalista o sujeito da contemporaneidade faz intervir o direito, a lgica, a

    identificao. Nela no h separao entre exterioridade e interioridade, ainda que, para o

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    sujeito, essa separao continue a ser uma evidncia sobre a qual ele constri, duplamente

    sua iluso: a de que ele origem de seu dizer (logo ele diz o que quer) e a da literalidade

    (aquilo que ele diz s pode ser aquilo) como se houvesse uma relao termo a termo entre

    linguagem/pensamento/mundo. A compreenso dessa articulao de noes mostra a

    maneira como a subjetividade leva ao equvoco da impresso idealista da origem em si

    mesmo do sujeito. Sujeito ao mesmo tempo livre e responsvel, determinador e

    determinado. Essa iluso se assenta a meu ver no des-conhecimento de um duplo

    movimento na compreenso da constituio do sujeito.

    Segundo o que tenho exposto, teramos dois momentos no movimento dessa

    compreenso:

    Em um primeiro momento temos a interpelao do indivduo em sujeito pela

    ideologia. Essa a forma de assujeitamento que, em qualquer poca, mesmo que modulada

    de maneiras diferentes, o passo para que o indivduo, afetado pelo simblico, na histria,

    seja sujeito, se subjetive. assim que podemos dizer que o sujeito ao mesmo tempo

    despossudo e mestre do que diz. Expresso de uma teoria da materialidade do sentido que

    procura levar em conta a necessria iluso do sujeito de ser mestre de si e de sua fala, fonte

    de seu dizer.

    Temos acesso assim ao modo como, pela ideologia, afetado pelo simblico o

    indivduo interpelado em sujeito. A forma sujeito, que resulta dessa interpelao pela

    ideologia uma forma-sujeito histrica com sua materialidade. A partir da, com essa

    forma sujeito j constituda podemos observar outro momento desse processo.

    Se pensamos a relao do sujeito com a linguagem como parte de sua relao com o

    mundo, em termos sociais e polticos, uma nova perspectiva nos permite, ento,

    compreender um segundo momento terico: nesse passo, o estabelecimento (e a

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    transformao) do estatuto do sujeito corresponde ao estabelecimento (e transformao)

    das formas de individualizao do sujeito em relao ao Estado. Em um novo movimento

    em relao aos processos identitrios e de subjetivao, agora o Estado, com suas

    instituies e as relaes materializadas pela formao social que lhe corresponde que

    individualiza a forma-sujeito histrica, produzindo diferentes efeitos nos processos de

    identificao, leia-se de individualizao do sujeito na produo dos sentidos. Portanto o

    indivduo, nesse passo, no a unidade de origem mas o resultado de um processo, um

    constructo, referido pelo Estado.

    Uma vez interpelado em sujeito pela ideologia em um processo simblico, o

    indivduo, agora como sujeito, determina-se pelo modo como, na histria, ter sua forma

    individual concreta: no caso do capitalismo, que o caso presente, a forma de um

    indiovduo livre de coeres e responsvel, que deve assim responder, como sujeito jurdico

    (sujeito de direitos e deveres) diante do Estado e de outros homens. Nesse passo resta

    pouco visvel sua constituio pelo simblico, pela ideologia. Temos o sujeito

    individualizado, caracterizado pelo percurso bio-psico-social. O que fica de fora quando se

    pensa o sujeito j individualizado justamente o simblico, o histrico e a ideologia, que

    tornam possvel a interpelao do indivduo em sujeito. esta a interpretao a meu ver

    equivocada que fazem os adeptos da pragmtica: tomam o sujeito individualizado como se

    fosse a unidade de origem. E o compreendem a partir de sua iluso: a de ser origem,

    com/por sua vontade.

    Ao contrrio, penso que de maneira complexa que podemos pensar a questo do

    sujeito, da ideologia e, agora sim, da resistncia como algo que no se d apenas pela

    disposio privilegiada de um sujeito que ento poderia ser livre e s no o por falta de

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    vontade. H, pois, o carter irrecorrvel do assujeitamento e a possvel resistncia do sujeito

    aos modos pelos quais o Estado o individualiza.

    Esses dois momentos do processo no esto separados de modo estanque, mas so

    distintos. E a pergunta que nos fazemos : pode o sujeito, ao resistir aos processos de sua

    individualizao afetar a forma-histrica do sujeito e por a chegar at mesmo a atingir seu

    modo de interpelao?Ou dito de maneira talvez menos indireta: como a reiterao da

    resistncia do sujeito ao Estado pode afetar a forma-sujeito histrica? No estaria a posta a

    questo da contradio na constituio do sujeito?

    Para responder a estas questes vou dar dois exemplos, um em que com toda clareza

    h submisso do sujeito ao modo como o Estado o individualiza e outro exemplo em que

    parece haver um trabalho de resistncia ao Estado.

    A questo da lngua nacional uma questo que faz parte de qualquer Estado. Ter

    um Estado soberano poder representar na variedade concreta da lngua, uma unidade

    imaginria que d identidade aos sujeitos desse Estado. E em se tratando de formas de

    controle da subjetividade, a normalizao da linguagem, com toda a violncia contra o

    imaginrio que ela implica, tem um papel crucial. Em seu livro Querer Dizer, Poder

    Dizer (1992) Cl. Haroche atribui um lugar central histria da gramtica mostrando como

    a exigncia de determinao toma tal importncia que acaba por se confundir com o prprio

    projeto de gramtica, produzindo uma certa noo de sujeito.

    Em minhas anlises dos instrumentos lingsticos no Brasil em que tomo, por

    exemplo, o gramtico Eduardo Carlos Pereira e sua Gramtica expositiva tenho tido

    ocasio de apreender na anlise da forma da gramtica os efeitos de assujeitamento tal

    como se manifestam na ideologia, visando compreender a ambigidade inscrita na noo

    moderna de sujeito que ao mesmo tempo acolhe o individualismo (como possibilidade de

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    resistncia e revolta) e o mecanismo coercitivo de individuao, de isolamento, imposto

    pelo Estado ao indivduo. Gostaria de lembrar que a noo de sujeito de direito no

    equivalente a indivduo. O sujeito de direito o efeito de uma estrutura social bem

    determinada, a sociedade capitalista. Esta estrutura condiciona a possibilidade do contrato,

    da troca, da circulao. O assujeitamento ento interior (engaja a vontade), indispensvel

    para uma economia, segundo Haroche (idem) que precisa da livre circulao dos bens e dos

    indivduos.

    Aparece ento o humanismo como expresso da dominao progressiva do sistema

    jurdico sobre a ordem religiosa mas tambm como conseqncia das crises sucessivas que

    enfraqueceram a ordem religiosa. O humanismo da reforma, pela insistncia no papel do

    sujeito, j anuncia o individualismo burgus do sculo XIX. Com esse sujeito, do

    individualismo burgus, no se trata de questionar mas de entender para se submeter.. H

    dois plos que se desenham:o da objetividade (caracterizada pelo rigor) disjunto do plo da

    subjetividade (caracterizado pela indeterminao e o inefvel).

    Portanto, em relao Gramtica, no em seu contedo mas no modo como se

    estrutura seu discurso em funo de um sujeito de conhecimento que se encontra a marca

    da interpelao. A de um sujeito que deve se relacionar com o saber a lngua. Sujeito em

    que a caracterstica forte do individualismo e do humanismo esto presentes. Lngua de que

    a gramtica pode prover o conhecimento e, desta forma, o domnio. A esto pois expressas

    as caractersticas do sujeito da gramtica: o sujeito pragmtico. Da a forma de

    representao da lngua. Da seu modo de funcionar como norma acessvel pelo ensino no

    modo de funcionamento da sociedade burguesa capitalista.

    Assim, podemos dizer, agora de modo geral, que a gramtica em seu processo de

    produo faz muito mais do que ser um lugar de conhecimento ou norma. Ela a forma da

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    relao da lngua com a sociedade na histria. No presente caso, esse um sujeito

    pragmtico. E esse sujeito, esta posio sujeito que somos convidados (aprendemos) a

    ocupar quando aprendemos a lngua.

    Ora, esse sujeito no pode resistir lngua sem ser marginalizado ao cair fora da

    norma. Para entendermos como se resiste e como se cai fora da legitimidade vamos usar

    o exemplo da pichao e vamos caracteriz-la como lugar de resistncia. Nosso objetivo

    aprofundar na compreenso do segundo movimento, o da individualizao pelo Estado, e

    da possvel contradio que permite uma desconstruo da forma histrica do sujeito

    afetando sua interpelao. Mas para isso precisamos entender algo do processo social e para

    tal lanamos mo do que nos diz Schaller (2001).

    Segundo este autor, a questo do sculo XXI viver juntos ao mesmo tempo iguais

    e diferentes. A idia da sociedade como uma totalidade, um conjunto coerente, no mais se

    sustenta atualmente, com seu princpio de organizao sendo a estrutura das relaes de

    classe, o sistema de instituies, a empresa da cultura. Assim, o projeto de chegar a uma

    representao de conjunto da vida social a partir de algumas noes unitrias e centrais se

    desfaz(F. Duber e D. Martucelli) Concomitantemente h um despedaamento das

    perspectivas de anlise.

    Estamos na era ps-industrial. A anlise em termos de classes no permite mais, por

    si s, dar conta da organizao da sociedade e de seus conflitos. Com efeito, a

    desarticulao das relaes de produo e de reproduo gera novas desigualdades e novas

    formas de dominao que deslocam as linhas de clivagem. A lutte de classes (a luta de

    classes) d lugar lutte de places (a luta pelos lugares). Processo ligado a um processo

    profundo de des-institucionalizao. E ao desenvolvimento de uma cultura herica do

    sujeito que remete cada um construo e responsabilidade de seu prprio destino. As

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    relaes sociais so assim sentidas como uma srie de provas (ou provaes) individuais.

    Citando Touraine, A,1991), Schaller (idem) diz: Ontem ainda ns procurvamos definir,

    para compreender uma sociedade, suas relaes de produo, seus conflitos, seus mtodos

    de negociao; ns falvamos de dominao, de explorao, de reforma ou de revoluo.

    Ns, hoje, s falamos em globalizao ou em excluso, em distncia social crescente ou, ao

    contrrio, em concentrao do capital ou da capacidade de difundir mensagens e formas de

    consumo. Ns tnhamos o hbito de situarmo-nos uns em relao aos outros sobre escalas

    sociais, de qualificao, de salrio, de educao e de autoridade; ns substitumos esta viso

    vertical por uma viso horizontal: ns estamos no centro ou na periferia, dentro ou fora, na

    luz ou na sombra.

    Nesse esquema o indivduo que est fora no tem mais, como no caso de uma

    sociedade de integrao piramidal, a possibilidade de imaginar que ele pode subir os

    degraus de uma escala, que ele pode progredir, que ele pode sair de sua situao. O fosso

    aparece como quase intransponvel e o medo difundido cair do lado ruim. Segundo

    Touraine (idem) ns estvamos numa sociedade de descriminao, ns nos tornamos uma

    sociedade de segregao.

    A produo substituda pelo consumo. Esse consumo no tanto aquele de

    produtos manufaturados mas de produtos culturais que modelizam nossas personalidades.

    Participar dessa sociedade em construo tem assim a ver com a participao do fluxo de

    intercmbio de informaes, dos sinais de pertencimento. Decorre disso um

    desenvolvimento do individualismo a ttulo de dever ser considerado. preciso fazer o

    prprio lugar para ser reconhecido, tornar-se o vendedor da prpria vida. Para existir, para

    ser reconhecido, preciso ser til e produtivo. Enquanto luta solitria de cada indivduo

    face sociedade para se fazer aceitar, para existir, isto para viver e se fazer reconhecer

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    como cidado por inteiro. Pessoas em dificuldade so definidas por uma falta, que se torna

    o elemento principal de sua identidade social. A questo , ento, apreender as foras

    sociais e culturais que podem contribuir para a recomposio desse mundo dualizado.

    preciso pois inverter esta percepo do funcionamento social em termos de falta de

    integrao social, para , ao contrrio, colocar no centro uma perspectiva de conflitos sociais

    necessrios e apelar para a renovao dos processos democrticos. Isto significa que atrs

    da descrio dos processos de integrao-excluso, a violncia da dominao deve ser

    desmascarada. No se deve pois s pensar as conseqncias individuais que produzem

    suas dificuldades mas tambm os fatores de produo de suas condies sociais.

    Pois bem, nessa perspectiva que tomamos, como exemplo do sujeito

    contemporneo, a anlise do sujeito da pichao e o modo como ele enfrenta sua

    dificuldade atravs da simbolizao. Vejamos.

    Nosso quadro de referncia o espao urbano e, nele, a escrita. Espao em que a

    mdia, as novas tecnologias de linguagem e as novas formas de se

    escrever/grafar/inscrever-se no smbolo fazem parte do modo como a cidade se significa,

    ou seja, de como o social se constitui, na medida em que, no mundo contemporneo, o

    social significado predominantemente pelo imaginrio urbano. Nesse espao situo o

    sujeito e seus modos de significar(-se).

    Refletimos pois sobre a escrita, pensando o desenho atual do espao urbano com os

    loteamentos fechados e condomnios que tm redistribudo o espao da cidade, rarefazendo

    a prtica da sociabilidade, redesenhando o que pblico em bolses e corredores,

    redefinindo os territrios que se tornam muito raros e muito cheios.

    Fazer um muro que separa um conjunto de casas das outras um gesto que significa

    socialmente, instituindo uma diviso (re-significando o que pblico e o que privado),

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    estabelecendo assim uma interpretao em relao ao que se considera como pertencente

    (ou no) a este espao social delimitado, entre o que est dentro e o que est fora dela.

    No se pode pensar a linguagem como se ela estivesse separada do seu meio

    material, das suas condies, da conjuntura em que aparece. Ora, se a cidade um espao

    social politicamente dividido, um espao em que o pblico est rarefeito, isto estar

    presente tambm nas manifestaes de linguagem que este espao suporta. Sendo a

    linguagem um fato social, a prpria escrita, a organizao da linguagem tem a ver com o

    modo como, materialmente, este espao de significao se organiza. Tambm falamos da

    escrita urbana pensando a relao da populao com a Escola (lugar de institucionalizao

    da escrita), com os instrumentos lingsticos, com a forma como a publicidade administra a

    visibilidade grfica no espao da cidade etc.

    Critica-se a aparncia descuidada da cidade, com o lixo que se acumula ao p das

    esculturas, restos do churrasquinho dos vendedores ambulantes, com nuvens de fumaa

    envolvendo os monumentos, estes cobertos de pichaes, inscries indecifrveis.

    Indecifrveis. E este nosso objeto de compreenso: o indecifrvel, o ininteligvel que faz

    sentido. E s faz sentido em uma sociedade como a nossa em que os sujeitos precisam

    pichar para tentar fazer algum sentido. Indecifrvel.

    Nos anos 60 ramos pichadores alfabetizados. Nossas reivindicaes se faziam com

    letras tradicionais de uma escrita (que se queria) bem legvel:Fora a Ditadura!.Hoje a

    pichao j nos sinais indecifrveis para muitos, a prpria manifestao da reivindicao

    e da contestao poltica e, mais claramente, social. A pichao de 60 e a atual no so a

    mesma formao discursiva.No so o mesmo recorte da ideologia ainda que sejam

    igualmente contestatrias. Isso a histria e o poltico. Na pichao de hoje no algum

    contedo transmitido por uma mensagem que contm a reivindicao. sua forma

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    mesma de estabelecer-se como letra outra: como, onde, quem. O sujeito pichador de hoje

    no manda mensagens, ele se significa na criao de sua letra. No reconhece/no se

    reconhece no regime da alfabetizao, das letras distribudas pela escola, na ortografia do

    certo/errado. O pichador elabora seu sistema e no se submete ao parmetro do

    certo/errado, da norma escolar. Ele resiste com sua letra indecifrvel, fazendo deslizar sua

    escritura, produzindo um efeito metafrico da letra, produzindo um sistema de escrita

    urbano. Sua ilegitimidade ento construda em outro lugar: o direito de usar (sujar) ou no

    os muros.

    Quando as condies so favorveis, os sujeitos tm sua pgina em branco, na

    Escola, no modo como o Estado os individualiza como sujeitos capitalistas de direitos e

    deveres, sujeitos do conhecimento, letrados. Na sua falta, esses sujeitos tm no muro recm

    pintado, a pgina em branco onde inscrever-se simbolicamente, onde escrever, com seus

    sinais grficos, elaborados, sentidos como produo simblica, ligando-os em sua

    necessidade de vnculo social sociedade de que fazem parte, ainda que tentando um

    lugar, esse lugar, de fora para dentro, de outro lugar, de l, do bairro, da favela, da

    periferia (que os profissionais do espao ensinaram a chamar de comunidade).

    Esses sinais indecifrveis para grande parte da populao, no so indecifrveis para

    todos. Entre eles h regras, h alianas, eles se comunicam largamente. H uma ordem

    significante e h sujeitos que significam. Com este gesto, o de inscrever a letra, eles

    irrompem no social significativamente.

    Eu sou periferia me diz um deles. Ele no disse Eu sou da periferia, em que

    periferia seria apenas uma localizao. Em eu sou periferia, o sujeito e a periferia se

    confundem. Identificao de um e outro (outros). O lugar (no-lugar social), o ser, a coisa.

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    E essa assero tem a fora de uma definio. Com todas as conseqncias que a sociedade

    evita ver. Ininteligvel? Indecifrvel?

    C. Revuz (1997) ao falar sobre o desempregado e seus modos de significar-se,

    considera que a questo de ter (dinheiro, emprego) definidora em uma sociedade como

    a nossa. Revuz mostra como as variaes de salrio, a ameaa de perd-lo reativam

    fortemente a questo do lugar. Podemos a incluir a fragilidade social do lugar que o do

    pichador marginal. Ter um emprego (colocao) ter seu lugar entre os outros e encontrar-

    se assim intimado a elaborar uma maneira de ser com os outros. Isso essencial quando

    pensamos essa necessidade de vnculo que estrutura a sociabilidade para alm e para quem

    do jurdico que o que sustenta nossa forma sujeito histrica, a do capitalismo.

    Se observarmos o sujeito, para alm de sua adaptao a comportamento e a sistemas

    de representao j dados na realidade social, preciso perguntar como esses elementos do

    mundo social (individualizao pelo Estado) existem para o sujeito enquanto

    representaes psquicas inconscientes, ideolgicas, e como podem ser objetos de

    identificao, no sentido discursivo do termo. preciso ento atentar para a desigualdade

    que existe segundo o lugar a que pertencemos com sua visibilidade social. Essa

    visibilidade jogando sobre os outros mas sobretudo sobre o prprio sujeito, em seus

    processos de identificao, e em termos de retorno da imagem sobre a pessoa: que retorno

    acolhe aquele que enuncia eu sou periferia? Como podemos ver, h uma relao

    complexa ideologicamente na identificao, que afasta e que aproxima. Que cria distncia e

    que cria vnculo. So esses processos que vemos mobilizados na pichao. Nas metforas

    das letras. Escrita. Grafismo. H no gesto da pichao um desejo, uma necessidade que vai

    alm. H um gesto que se (o) vincula. Que se engata na relao com um outro. So sinais

    elaborados. No so sujeira como querem os que esto do outro lado do muro, da

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    sociedade, da histria e que aceitam a publicidade, o cartaz, o outdoor e que tm espao

    para escrever seus textos sejam de que qualidade for.

    O gesto da pichao representa esse sujeito mais fundamente na sua vontade social:

    o do que sai do silncio (que lhe nega a pgina em branco do caderno na escola, ou um

    lugar social onde se coloque profissionalmente, ou um espao cultural que o acolha em

    suas manifestaes prprias). O sinal grfico que o pe em contato, antes de tudo, consigo

    mesmo (a forma da grafia, a assinatura etc) e com os seus (as alianas) s vezes aceitas

    outras no, pela gente do bairro, o primeiro gesto que o coloca em cena. No modo como

    foi individualizado para ser da massa informe do povo, ele irrompe, individualizando-se

    pelo sinalinterpretado como hostilidade socialque ele inscreve no espao pblico. So

    manifestaes polticas que denunciam a segregao social. As pessoas esto ali

    estampando o que sentem em relao ao convvio urbano e elas mesmas, postas na

    periferia, em meio ao lixo e ao esgoto. Euexisto, Eu estou aqui. Significam isso nos

    muros, nos monumentos histricos, onde suas histrias entram como rabiscos indecifrveis

    mas presentes. Denncia. Nesses rabiscos, inteligveis s para iniciados, nos monumentos,

    eles inscrevem/contam sua histria, em cidades que esto tornando o espao rarefeito e

    fechando espaos sociais.

    Em um movimento que contraria a relao de mo nica com que o Estado o

    individualiza enquanto forma sujeito histrica, a do capitalismo, atado com seu corpo ao

    corpo social, sem lhe dar condies de realizar vnculos, o sujeito pichador

    contraditoriamente produz um gesto social. Ele irrompe no social com seu gesto, no

    desejado mas possvel, pelo trao, pelo signo, pela grafia. E produz as condies de um

    vnculo no espao nem sempre permitido, no resduo, na beirada, no muro. Isso o tira do

    silncio a que ele est votado. A isso que chamam rudo na comunicao chamo palavras

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    desorganizadas. As que se encontram um sentido que desorganiza o que a sociedade, ao

    organizar-se, silencia. E este gesto ecoa na nossa histria em sentidos mais longnquos em

    que era o brasileiro como tal que era silenciado, dito pelas palavras de outros, em uma

    lngua que ele falava mas que lhe era negada no colonialismo lingstico imposto pela

    poltica. Mas agora, entre brasileiros e brasileiros, so as nossas instituies que segregam,

    que pem para fora, para o no-lugar social. De onde esse sujeito resiste.

    Essa uma forma de resistncia entre outras. E nossa questo, como colocamos

    mais acima, : at que ponto essas formas de resistncia so capazes de afetar a forma

    histrica do sujeito?

    Certamente esse gesto em si pode apenas afetar a forma de individualizao do

    sujeito e no atingir a forma histrica do sujeito. Para isso preciso que ecoe na histria e

    deixe de ser apenas uma repetio para ser uma ruptura.

    O que diz Joel Birman sobre o sujeito desejante contemporneo, em sua

    participao no II SEAD, pode ser elucidativo. Falando da impossibilidade muitas vezes

    encontrada por esse sujeito em sua relao com o real, ele diz que o sujeito no consegue

    produzir um corte metafrico, sucumbindo metonimizao, repetio do mesmo, no

    chegando a simbolizar.

    Sem dvida, quando pensamos o sujeito da pichao em que a quantidade

    desempenha um papel importante esse um risco que ele corre. Mas um risco que s

    existe porque ele resiste ao no-sentido e busca a simbolizao. De outro modo ele no

    corre risco algum pois j est segregado.

    No por acaso que neste texto procuro dialogar com a psicanlise na citao de

    Revuz e de Birman. Como diz M. Pcheux, sempre disposto a organizar situaes tericas

    em que nos confrontamos com misturas de prticas que transportam cada uma sua marca

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    a poeira dos arquivos, o giz dos quadros-negros, e o suor dos divs , embora o encontro

    (entre historiadores, lingistas e psicanalistas) possvel, nada nos pode autorizar a

    considerar, em um certo nvel de generalidade, que falamos da mesma coisa. Isto porque

    as circulaes discursivas no so jamais aleatrias porque o no-importa-o que no

    jamais no-importa-o que. Os efeitos discursivos derivam de uma materialidade

    especfica. Mas chegar-se a articular o verdadeiro a propsito das materialidades

    discursivas acompanha-se de deslocamentos de fronteiras entre as disciplinas, afetando

    profundamente seu regime de verdade, enquanto elas (as disciplinas) so provocadas por

    suas margens, ou em suas margens (M.Pcheux,1981).

    So estas margens que roamos o tempo todo quando trabalhamos com discurso. E

    como diz M. Pcheux (idem) tocar este triplo real da lngua, da histria, do inconsciente,

    sem pressupor uma teoria mais ou menos geral do objeto discurso, exige explorar a rede de

    questes que a circulam: nossos terrenos de encontros problemticos. Para a anlise de

    discurso fica o encargo de trabalhar com a noo de ideologia que o vestgio desse

    encontro de terrenos problemticos. E com a ideologia que, na anlise de discurso,

    tratamos de questes como a falta e o resto (o a-mais, o que excede), ambos derivando do

    fato de que h verses, de que a diferena faz sentido na repetio, de que no existe uma

    separao estanque e inequvoca entre parfrase e polissemia. Da pensarmos o sujeito, a

    linguagem, a histria, em seu movimento, em suas rupturas e em seus deslocamentos.

    Bibliografia

    F. Mazire (2005)LAnalyse du Discours, P.U.F., Paris.

    M. Pcheux (1981)Matrialits Discursives , P.U.L, Lille.

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    J-J Schaller (2001) Construire un vivre ensemble dans une dmocratie renouvele,

    comunicao apresentada na USP.

    Touraine, A (1998)Igualdade e Diversidade o Sujeito Democrtico, Edusc, SP.

    C. Haroche (1992) Querer Dizer, Poder Dizer, Hucitec, So Paulo.

    Auroux, S, Orlandi, E e Mazire F (1998) LHyperlangue Brsilienne, Langages 130,

    Larousse, Paris.

    E. Orlandi (2004)A Cidade dos Sentidos, Pontes eds, Campinas.