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CARTAENCÍCLICA DEUS CARITAS EST DOSUMOPONTÍFICE BENTO XVI AOSBISPOS AOSPRESBÍTEROSEAOSDIÁCONOS ÀSPESSOASCONSAGRADAS EATODOSOSFIÉISLEIGOS SOBREOAMORCRISTÃO INTRODUÇÃO 1.«Deuséamor,equempermanecenoamorpermaneceemDeuseDeusnele»(1Jo 4, 16).Estaspalavrasda I Carta de João exprimem,comsingularclareza,ocentrodafécristã: aimagemcristãdeDeusetambémaconsequenteimagemdohomemedoseucaminho. Alémdisso,nomesmoversículo,Joãooferece-nos,porassimdizer,umafórmulasintéticada existênciacristã:«NósconhecemosecremosnoamorqueDeusnostem». Nós cremos no amor de Deus —destemodopodeocristãoexprimiraopçãofundamentalda suavida.Aoiníciodosercristão,nãoháumadecisãoéticaouumagrandeideia,maso encontrocomumacontecimento,comumaPessoaquedáàvidaumnovohorizontee,desta forma,orumodecisivo.NoseuEvangelho,Joãotinhaexpressadoesteacontecimentocomas palavrasseguintes:«DeusamoudetalmodoomundoquelhedeuoseuFilhoúnicopara quetodooquen'Elecrer(...)tenhaavidaeterna»(3,16).Comacentralidadedoamor,afé cristãacolheuonúcleodafédeIsraele,aomesmotempo,deuaestenúcleoumanova profundidadeeamplitude.Ocrenteisraelita,defacto,rezatodososdiascomaspalavrasdo Livro do Deuteronómio,nasquaissabequeestácontidoocentrodasuaexistência:«Escuta, óIsrael!OSenhor,nossoDeus,éoúnicoSenhor!AmarásaoSenhor,teuDeus,comtodoo teucoração,comtodaatuaalmaecomtodasastuasforças»(6,4-5).Jesusuniu—fazendo delesumúnicopreceito—omandamentodoamoraDeuscomodoamoraopróximo, contidono Livro do Levítico:«Amarásoteupróximocomoatimesmo»(19,18;cf. Mc 12, 29-31).DadoqueDeusfoioprimeiroaamar-nos(cf. 1Jo 4,10),agoraoamorjánãoé apenasum«mandamento»,maséarespostaaodomdoamorcomqueDeusvemaonosso encontro. NummundoemqueaonomedeDeusseassociaàsvezesavingançaoumesmoodeverdo ódioedaviolência,estaéumamensagemdegrandeactualidadeedesignificadomuito concreto.Porisso,naminhaprimeiraEncíclica,desejofalardoamorcomqueDeusnos cumulaequedevesercomunicadoaosoutrospornós.Estãoassimindicadasasduasgrandes partesquecompõemestaCarta,profundamenteconexasentreelas.Aprimeirateráuma índolemaisespeculativa,poisdesejo—aoiníciodomeuPontificado—especificarnela algunsdadosessenciaissobreoamorqueDeusoferecedemodomisteriosoegratuitoao homem,juntamentecomonexointrínsecodaqueleAmorcomarealidadedoamorhumano. Asegundaparteteráumcaráctermaisconcreto,porquetratarádapráticaeclesialdo Página 1 de 26 DeusCaritasEst - CartaEncíclica,BentoXVI 03/01/2012 http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_...

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  • CARTA ENCCLICADEUS CARITAS ESTDO SUMO PONTFICE

    BENTO XVIAOS BISPOS

    AOS PRESBTEROS E AOS DICONOSS PESSOAS CONSAGRADASE A TODOS OS FIIS LEIGOSSOBRE O AMOR CRISTO

    INTRODUO

    1. Deus amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele (1 Jo 4, 16). Estas palavras da I Carta de Joo exprimem, com singular clareza, o centro da f crist: a imagem crist de Deus e tambm a consequente imagem do homem e do seu caminho. Alm disso, no mesmo versculo, Joo oferece-nos, por assim dizer, uma frmula sinttica da existncia crist: Ns conhecemos e cremos no amor que Deus nos tem .

    Ns cremos no amor de Deus deste modo pode o cristo exprimir a opo fundamental da sua vida. Ao incio do ser cristo, no h uma deciso tica ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que d vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. No seu Evangelho, Joo tinha expressado este acontecimento com as palavras seguintes: Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho nico para que todo o que n'Ele crer (...) tenha a vida eterna (3, 16). Com a centralidade do amor, a f crist acolheu o ncleo da f de Israel e, ao mesmo tempo, deu a este ncleo uma nova profundidade e amplitude. O crente israelita, de facto, reza todos os dias com as palavras doLivro do Deuteronmio, nas quais sabe que est contido o centro da sua existncia: Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, o nico Senhor! Amars ao Senhor, teu Deus, com todo o teu corao, com toda a tua alma e com todas as tuas foras (6, 4-5). Jesus uniu fazendo deles um nico preceito o mandamento do amor a Deus com o do amor ao prximo, contido no Livro do Levtico: Amars o teu prximo como a ti mesmo (19, 18; cf. Mc 12, 29-31). Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor j no apenas um mandamento , mas a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro.

    Num mundo em que ao nome de Deus se associa s vezes a vingana ou mesmo o dever do dio e da violncia, esta uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto. Por isso, na minha primeira Encclica, desejo falar do amor com que Deus nos cumula e que deve ser comunicado aos outros por ns. Esto assim indicadas as duas grandes partes que compem esta Carta, profundamente conexas entre elas. A primeira ter uma ndole mais especulativa, pois desejo ao incio do meu Pontificado especificar nela alguns dados essenciais sobre o amor que Deus oferece de modo misterioso e gratuito ao homem, juntamente com o nexo intrnseco daquele Amor com a realidade do amor humano. A segunda parte ter um carcter mais concreto, porque tratar da prtica eclesial do

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  • mandamento do amor ao prximo. O argumento aparece demasiado amplo; uma longa explanao, porm, no entra no objectivo da presente Encclica. O meu desejo insistir sobre alguns elementos fundamentais, para deste modo suscitar no mundo um renovado dinamismo de empenhamento na resposta humana ao amor divino.

    I PARTE

    A UNIDADE DO AMORNA CRIAO

    E NA HISTRIA DA SALVAO

    Um problema de linguagem

    2. O amor de Deus por ns questo fundamental para a vida e coloca questes decisivas sobre quem Deus e quem somos ns. A tal propsito, o primeiro obstculo que encontramos um problema de linguagem. O termo amor tornou-se hoje uma das palavras mais usadas e mesmo abusadas, qual associamos significados completamente diferentes. Embora o tema desta Encclica se concentre sobre a questo da compreenso e da prtica do amor na Sagrada Escritura e na Tradio da Igreja, no podemos prescindir pura e simplesmente do significado que esta palavra tem nas vrias culturas e na linguagem actual.

    Em primeiro lugar, recordemos o vasto campo semntico da palavra amor : fala-se de amor da ptria, amor profisso, amor entre amigos, amor ao trabalho, amor entre pais e filhos, entre irmos e familiares, amor ao prximo e amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porm, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistvel, sobressai como arqutipo de amor por excelncia, de tal modo que, comparados com ele, primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge ento a questo: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestaes, em ltima instncia um s, ou, ao contrrio, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?

    Eros e agape diferena e unidade

    3. Ao amor entre homem e mulher, que no nasce da inteligncia e da vontade mas de certa forma impe-se ao ser humano, a Grcia antiga deu o nome de eros. Diga-se desde j que o Antigo Testamento grego usa s duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa: das trs palavras gregas relacionadas com o amor eros, philia (amor de amizade) e agape os escritos neo-testamentrios privilegiam a ltima, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), este retomado com um significado mais profundo no Evangelho de Joo para exprimir a relao entre Jesus e os seus discpulos. A marginalizao da palavra eros, juntamente com a nova viso do amor que se exprime atravs da palavra agape, denota sem dvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e prprio relativamente compreenso do amor. Na crtica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado veneno a beber ao eros, que, embora no tivesse morrido, da teria recebido o impulso para degenerar em vcio. [1] Este filsofo alemo exprimia assim uma sensao muito generalizada: com os seus mandamentos e proibies, a Igreja no nos torna porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura no assinala ela proibies precisamente onde a alegria, preparada para ns pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir

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  • algo do Divino?

    4. Mas, ser mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente o eros? Vejamos o mundo pr-cristo. Os gregos alis de forma anloga a outras culturas viram no erossobretudo o inebriamento, a subjugao da razo por parte duma loucura divina que arranca o homem das limitaes da sua existncia e, neste estado de transtorno por uma fora divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. Deste modo, todas as outras foras quer no cu quer na terra resultam de importncia secundria: Omnia vincit amor o amor tudo vence , afirma Virglio nas Buclicas e acrescenta: et nos cedamus amori rendamo-nos tambm ns ao amor . [2] Nas religies, esta posio traduziu-se nos cultos da fertilidade, aos quais pertence a prostituio sagrada que prosperava em muitos templos. O eros foi, pois, celebrado como fora divina, como comunho com o Divino.

    A esta forma de religio, que contrasta como uma fortssima tentao com a f no nico Deus, o Antigo Testamento ops-se com a maior firmeza, combatendo-a como perverso da religiosidade. Ao faz-lo, porm, no rejeitou de modo algum o eros enquanto tal, mas declarou guerra sua subverso devastadora, porque a falsa divinizao do eros, como a se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De facto, no templo, as prostitutas, que devem dar o inebriamento do Divino, no so tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a loucura divina : na realidade, no so deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado no subida, xtase at ao Divino, mas queda, degradao do homem. Fica assim claro que o eros necessita de disciplina, de purificao para dar ao homem, no o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vrtice da existncia, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser.

    5. Dois dados resultam claramente desta rpida viso sobre a concepo do eros na histria e na actualidade. O primeiro que entre o amor e o Divino existe qualquer relao: o amor promete infinito, eternidade uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existncia. E o segundo que o caminho para tal meta no consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. So necessrias purificaes e amadurecimentos, que passam tambm pela estrada da renncia. Isto no rejeio do eros, no o seu envenenamento , mas a cura em ordem sua verdadeira grandeza.

    Isto depende primariamente da constituio do ser humano, que composto de corpo e alma. O homem torna-se realmente ele mesmo, quando corpo e alma se encontram em ntima unidade; o desafio do eros pode considerar-se verdadeiramente superado, quando se consegue esta unificao. Se o homem aspira a ser somente esprito e quer rejeitar a carne como uma herana apenas animalesca, ento esprito e corpo perdem a sua dignidade. E se ele, por outro lado, renega o esprito e consequentemente considera a matria, o corpo, como realidade exclusiva, perde igualmente a sua grandeza. O epicurista Gassendi, gracejando, cumprimentava Descartes com a saudao: Alma! . E Descartes replicava dizendo: Carne! . [3] Mas, nem o esprito ama sozinho, nem o corpo: o homem, a pessoa, que ama como criatura unitria, de que fazem parte o corpo e a alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente numa unidade, que o homem se torna plenamente ele prprio. S deste modo que o amor o eros pode amadurecer at sua verdadeira grandeza.

    Hoje no raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido adversrio da corporeidade; a realidade que sempre houve tendncias neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, enganador. O eros degradado a puro sexo torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma coisa que se pode comprar e vender; antes, o

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  • prprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto no constitui propriamente uma grande afirmao do seu corpo. Pelo contrrio, agora considera o corpo e a sexualidade como a parte meramente material de si mesmo a usar e explorar com proveito. Uma parte, alis, que ele no v como um mbito da sua liberdade, mas antes como algo que, a seu modo, procura tornar simultaneamente agradvel e incuo. Na verdade, encontramo-nos diante duma degradao do corpo humano, que deixa de estar integrado no conjunto da liberdade da nossa existncia, deixa de ser expresso viva da totalidade do nosso ser, acabando como que relegado para o campo puramente biolgico. A aparente exaltao do corpo pode bem depressa converter-se em dio corporeidade. Ao contrrio, a f crist sempre considerou o homem como um ser uni-dual, em que esprito e matria se compenetram mutuamente, experimentando ambos precisamente desta forma uma nova nobreza. Sim, o eros quer-nos elevar em xtase para o Divino, conduzir-nos para alm de ns prprios, mas por isso mesmo requer um caminho de ascese, renncias, purificaes e saneamentos.

    6. Concretamente, como se deve configurar este caminho de ascese e purificao? Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Uma primeira indicao importante, podemos encontr-la no Cntico dos Cnticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos msticos. Segundo a interpretao hoje predominante, as poesias contidas neste livro so originalmente cnticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de npcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal. Neste contexto, muito elucidativo o facto de, ao longo do livro, se encontrarem duas palavras distintas para designar o amor . Primeiro, aparece a palavra dodim , um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situao de procura indeterminada. Depois, esta palavra substituda por ahab , que, na verso grega do Antigo Testamento, traduzida pelo termo de som semelhante agape , que se tornou, como vimos, o termo caracterstico para a concepo bblica do amor. Em contraposio ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocbulo exprime a experincia do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o carcter egosta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. J no se busca a si prprio, no busca a imerso no inebriamento da felicidade; procura, ao invs, o bem do amado: torna-se renncia, est disposto ao sacrifcio, antes procura-o.

    Faz parte da evoluo do amor para nveis mais altos, para as suas ntimas purificaes, que ele procure agora o carcter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade apenas esta nica pessoa e no sentido de ser para sempre . O amor compreende a totalidade da existncia em toda a sua dimenso, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. Sim, o amor xtase ; xtase, no no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como xodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertao no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus: Quem procurar salvaguardar a vida, perd-la-, e quem a perder, conserv-la- (Lc 17, 33) disse Jesus; afirmao esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes (cf. Mt 10, 39; 16, 25; Mc 8, 35; Lc 9, 24; Jo 12, 25). Assim descreve Jesus o seu caminho pessoal, que O conduz, atravs da cruz, ressurreio: o caminho do gro de trigo que cai na terra e morre e assim d muito fruto. Partindo do centro do seu sacrifcio pessoal e do amor que a alcana a sua plenitude, Ele, com tais palavras, descreve tambm a essncia do amor e da existncia humana em geral.

    7. Inicialmente mais filosficas, as nossas reflexes sobre a essncia do amor conduziram-nos agora, pela sua dinmica interior, f bblica. Ao princpio, colocou-se o problema de

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  • saber se os vrios, ou melhor opostos, significados da palavra amor subentenderiam no fundo uma certa unidade entre eles ou se deveriam ficar desligados um ao lado do outro. Mas, acima de tudo, surgiu a questo seguinte: se a mensagem sobre o amor, que nos anunciada pela Bblia e pela Tradio da Igreja, teria algo a ver com a experincia humana comum do amor ou se, pelo contrrio, se opusesse a ela. A este respeito, fomos dar com duas palavras fundamentais: eros como termo para significar o amor mundano e agape como expresso do amor fundado sobre a f e por ela plasmado. As duas concepes aparecem frequentemente contrapostas como amor ascendente e amor descendente . Existem outras classificaes afins como, por exemplo, a distino entre amor possessivo e amor oblativo (amor concupiscenti amor benevolenti), qual, s vezes, se acrescenta ainda o amor que procura o prprio interesse.

    No debate filosfico e teolgico, estas distines foram muitas vezes radicalizadas at ao ponto de as colocar em contraposio: tipicamente cristo seria o amor descendente, oblativo, ou seja, a agape; ao invs, a cultura no crist, especialmente a grega, caracterizar-se-ia pelo amor ascendente, ambicioso e possessivo, ou seja, pelo eros. Se se quisesse levar ao extremo esta anttese, a essncia do cristianismo terminaria desarticulada das relaes bsicas e vitais da existncia humana e constituiria um mundo independente, considerado talvez admirvel, mas decididamente separado do conjunto da existncia humana. Na realidade, eros e agape amor ascendente e amor descendente nunca se deixam separar completamente um do outro. Quanto mais os dois encontrarem a justa unidade, embora em distintas dimenses, na nica realidade do amor, tanto mais se realiza a verdadeira natureza do amor em geral. Embora o eros seja inicialmente sobretudo ambicioso, ascendente fascinao pela grande promessa de felicidade depois, medida que se aproxima do outro, far-se- cada vez menos perguntas sobre si prprio, procurar sempre mais a felicidade do outro, preocupar-se- cada vez mais dele, doar-se- e desejar existir para o outro. Assim se insere nele o momento da agape; caso contrrio, o eros decai e perde mesmo a sua prpria natureza. Por outro lado, o homem tambm no pode viver exclusivamente no amor oblativo, descendente. No pode limitar-se sempre a dar, deve tambm receber. Quem quer dar amor, deve ele mesmo receb-lo em dom. Certamente, o homem pode como nos diz o Senhor tornar-se uma fonte donde correm rios de gua viva (cf. Jo 7, 37-38); mas, para se tornar semelhante fonte, deve ele mesmo beber incessantemente da fonte primeira e originria que Jesus Cristo, de cujo corao trespassado brota o amor de Deus (cf. Jo 19, 34).

    Os Padres viram simbolizada de vrias maneiras, na narrao da escada de Jacob, esta conexo indivisvel entre subida e descida, entre o eros que procura Deus e a agape que transmite o dom recebido. Naquele texto bblico refere-se que o patriarca Jacob num sonho viu, assente na pedra que lhe servia de travesseiro, uma escada que chegava at ao cu, pela qual subiam e desciam os anjos de Deus (cf. Gn 28, 12; Jo 1, 51). Particularmente interessante a interpretao que d o Papa Gregrio Magno desta viso, na sua Regra pastoral. O bom pastor diz ele deve estar radicado na contemplao. De facto, s assim lhe ser possvel acolher de tal modo no seu ntimo as necessidades dos outros, que estas se tornem suas: per pietatis viscera in se infirmitatem cterorum transferat . [4]Neste contexto, So Gregrio alude a So Paulo que foi arrebatado para as alturas at aos maiores mistrios de Deus e precisamente desta forma, quando desce, capaz de fazer-se tudo para todos (cf. 2 Cor 12, 2-4; 1 Cor 9, 22). Alm disso, indica o exemplo de Moiss que repetidamente entra na tenda sagrada, permanecendo em dilogo com Deus para poder assim, a partir de Deus, estar disposio do seu povo. Dentro [da tenda] arrebatado at s alturas mediante a contemplao, fora [da tenda] deixa-se encalar pelo peso dos que sofrem: Intus in contemplationem rapitur, foris infirmantium negotiis urgetur . [5]

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  • 8. Encontramos, assim, uma primeira resposta, ainda bastante genrica, para as duas questes atrs expostas: no fundo, o amor uma nica realidade, embora com distintas dimenses; caso a caso, pode uma ou outra dimenso sobressair mais. Mas, quando as duas dimenses se separam completamente uma da outra, surge uma caricatura ou, de qualquer modo, uma forma redutiva do amor. E vimos sinteticamente tambm que a f bblica no constri um mundo paralelo ou um mundo contraposto quele fenmeno humano originrio que o amor, mas aceita o homem por inteiro intervindo na sua busca de amor para purific-la, desvendando-lhe ao mesmo tempo novas dimenses. Esta novidade da f bblica manifesta-se sobretudo em dois pontos que merecem ser sublinhados: a imagem de Deus e a imagem do homem.

    A novidade da f bblica

    9. Antes de mais nada, temos a nova imagem de Deus. Nas culturas que circundam o mundo da Bblia, a imagem de deus e dos deuses permanece, tudo somado, pouco clara e em si mesma contraditria. No itinerrio da f bblica, ao invs, vai-se tornando cada vez mais

    claro e unvoco aquilo que a orao fundamental de Israel, o Shema, resume nestas palavras: Escuta, Israel! O Senhor, nosso Deus, o nico Senhor! (Dt 6, 4). Existe um nico Deus, que o Criador do cu e da terra, e por isso tambm o Deus de todos os homens. Dois factos se singularizam neste esclarecimento: que verdadeiramente todos os outros deuses no so Deus e que toda a realidade onde vivemos se deve a Deus, criada por Ele. Certamente a ideia de uma criao existe tambm alhures, mas s aqui aparece perfeitamente claro que no um deus qualquer, mas o nico Deus verdadeiro, Ele mesmo, o autor de toda a realidade; esta provm da fora da sua Palavra criadora. Isto significa que esta sua criatura Lhe querida, precisamente porque foi desejada por Ele mesmo, foi feita por Ele. E assim aparece agora o segundo elemento importante: este Deus ama o homem. A fora divina que Aristteles, no auge da filosofia grega, procurou individuar mediante a reflexo, certamente para cada ser objecto do desejo e do amor como realidade amada esta divindade move o mundo [6] , mas ela mesma no necessita de nada e no ama, somente amada. Ao contrrio, o nico Deus em que Israel cr, ama pessoalmente. Alm disso, o seu amor um amor de eleio: entre todos os povos, Ele escolhe Israel e ama-o mas com a finalidade de curar, precisamente deste modo, a humanidade inteira. Ele ama, e este seu amor pode ser qualificado sem dvida como eros, que no entanto totalmente agape tambm. [7]

    Sobretudo os profetas Oseias e Ezequiel descreveram esta paixo de Deus pelo seu povo, com arrojadas imagens erticas. A relao de Deus com Israel ilustrada atravs das metforas do noivado e do matrimnio; consequentemente, a idolatria adultrio e prostituio. Assim, se alude concretamente como vimos aos cultos da fertilidade com o seu abuso do eros, mas ao mesmo tempo descrita tambm a relao de fidelidade entre Israel e o seu Deus. A histria de amor de Deus com Israel consiste, na sua profundidade, no facto de que Ele d a Torah, isto , abre os olhos a Israel sobre a verdadeira natureza do homem e indica-lhe a estrada do verdadeiro humanismo. Por seu lado, o homem, vivendo na fidelidade ao nico Deus, sente-se a si prprio como aquele que amado por Deus e descobre a alegria na verdade, na justia a alegria em Deus que Se torna a sua felicidade essencial: Quem terei eu nos cus? Alm de Vs, nada mais anseio sobre a terra (...). O meu bem estar perto de Deus (Sal 73/72, 25.28).

    10. O eros de Deus pelo homem como dissemos ao mesmo tempo totalmente agape. E no s porque dado de maneira totalmente gratuita, sem mrito algum precedente, mas tambm porque amor que perdoa. Sobretudo Oseias mostra-nos a dimenso da agape no amor de Deus pelo homem, que supera largamente o aspecto da gratuidade. Israel cometeu

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  • adultrio , rompeu a Aliana; Deus deveria julg-lo e repudi-lo. Mas precisamente aqui se revela que Deus Deus, e no homem: Como te abandonarei, Efraim? Entregar-te-ei, Israel? O meu corao d voltas dentro de mim, comove-se a minha compaixo. No desafogarei o furor da minha clera, no destruirei Efraim; porque sou Deus e no um homem, sou Santo no meio de ti (Os 11, 8-9). O amor apaixonado de Deus pelo seu povo pelo homem ao mesmo tempo um amor que perdoa. E to grande, que chega a virar Deus contra Si prprio, o seu amor contra a sua justia. Nisto, o cristo v j esboar-se veladamente o mistrio da Cruz: Deus ama tanto o homem que, tendo-Se feito Ele prprio homem, segue-o at morte e, deste modo, reconcilia justia e amor.

    O aspecto filosfico e histrico-religioso saliente nesta viso da Bblia o facto de, por um lado, nos encontrarmos diante de uma imagem estritamente metafsica de Deus: Deus absolutamente a fonte originria de todo o ser; mas este princpio criador de todas as coisas o Logos, a razo primordial , ao mesmo tempo, um amante com toda a paixo de um verdadeiro amor. Deste modo, o eros enobrecido ao mximo, mas simultaneamente to purificado que se funde com a agape. Daqui podemos compreender por que a recepo doCntico dos Cnticos no cnone da Sagrada Escritura tenha sido bem cedo explicada no sentido de que aqueles cnticos de amor, no fundo, descreviam a relao de Deus com o homem e do homem com Deus. E, assim, o referido livro tornou-se, tanto na literatura crist como na judaica, uma fonte de conhecimento e de experincia mstica em que se exprime a essncia da f bblica: na verdade, existe uma unificao do homem com Deus o sonho originrio do homem , mas esta unificao no confundir-se, um afundar no oceano annimo do Divino; unidade que cria amor, na qual ambos Deus e o homem permanecem eles mesmos mas tornando-se plenamente uma coisa s: Aquele, porm, que se une ao Senhor constitui, com Ele, um s esprito diz So Paulo (1 Cor 6, 17).

    11. Como vimos, a primeira novidade da f bblica consiste na imagem de Deus; a segunda, essencialmente ligada a ela, encontramo-la na imagem do homem. A narrao bblica da criao fala da solido do primeiro homem, Ado, querendo Deus pr a seu lado um auxlio. Dentre todas as criaturas, nenhuma pde ser para o homem aquela ajuda de que necessita, apesar de ter dado um nome a todos os animais selvagens e a todas as aves, integrando-os assim no contexto da sua vida. Ento, de uma costela do homem, Deus plasma a mulher. Agora Ado encontra a ajuda de que necessita: Esta , realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne (Gn 2, 23). Na base desta narrao, possvel entrever concepes semelhantes s que aparecem, por exemplo, no mito referido por Plato, segundo o qual o homem originariamente era esfrico, porque completo em si mesmo e auto-suficiente. Mas, como punio pela sua soberba, foi dividido ao meio por Zeus, de tal modo que agora sempre anseia pela outra sua metade e caminha para ela a fim de reencontrar a sua globalidade. [8]Na narrao bblica, no se fala de punio; porm, a ideia de que o homem de algum modo esteja incompleto, constitutivamente a caminho a fim de encontrar no outro a parte que falta para a sua totalidade, isto , a ideia de que, s na comunho com o outro sexo, possa tornar-se completo , est sem dvida presente. E, deste modo, a narrao bblica conclui com uma profecia sobre Ado: Por este motivo, o homem deixar o pai e a me para se unir sua mulher; e os dois sero uma s carne (Gn 2, 24).

    Aqui h dois aspectos importantes: primeiro, o eros est de certo modo enraizado na prpria natureza do homem; Ado anda procura e deixa o pai e a me para encontrar a mulher; s no seu conjunto que representam a totalidade humana, tornam-se uma s carne . No menos importante o segundo aspecto: numa orientao baseada na criao, o eros impele o homem ao matrimnio, a uma ligao caracterizada pela unicidade e para sempre; deste modo, e somente assim, que se realiza a sua finalidade ntima. imagem do Deus

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  • monotesta corresponde o matrimnio monogmico. O matrimnio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o cone do relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor humano. Esta estreita ligao entre eros e matrimnio na Bblia quase no encontra paralelos literrios fora da mesma.

    Jesus Cristo o amor encarnado de Deus

    12. Apesar de termos falado at agora prevalentemente do Antigo Testamento, j se deixou clara a ntima compenetrao dos dois Testamentos como nica Escritura da f crist. A verdadeira novidade do Novo Testamento no reside em novas ideias, mas na prpria figura de Cristo, que d carne e sangue aos conceitos um incrvel realismo. J no Antigo Testamento a novidade bblica no consistia simplesmente em noes abstratas, mas na aco imprevisvel e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta aco de Deus ganha agora a sua forma dramtica devido ao facto de que, em Jesus Cristo, o prprio Deus vai atrs da ovelha perdida , a humanidade sofredora e transviada. Quando Jesus fala, nas suas parbolas, do pastor que vai atrs da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho prdigo e o abraa, no se trata apenas de palavras, mas constituem a explicao do seu prprio ser e agir. Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si prprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salv-lo o amor na sua forma mais radical. O olhar fixo no lado trespassado de Cristo, de que fala Joo (cf. 19, 37), compreende o que serviu de ponto de partida a esta Carta Encclica: Deus amor (1 Jo 4, 8). l que esta verdade pode ser contemplada. E comeando de l, pretende-se agora definir em que consiste o amor. A partir daquele olhar, o cristo encontra o caminho do seu viver e amar.

    13. Jesus deu a este acto de oferta uma presena duradoura atravs da instituio da Eucaristia durante a ltima Ceia. Antecipa a sua morte e ressurreio entregando-Se j naquela hora aos seus discpulos, no po e no vinho, a Si prprio, ao seu corpo e sangue como novo man (cf. Jo 6, 31-33). Se o mundo antigo tinha sonhado que, no fundo, o verdadeiro alimento do homem aquilo de que este vive enquanto homem era o Logos, a sabedoria eterna, agora este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para ns como amor. A Eucaristia arrasta-nos no acto oblativo de Jesus. No s de modo esttico que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinmica da sua doao. A imagem do matrimnio entre Deus e Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebvel: o que era um estar na presena de Deus torna-se agora, atravs da participao na doao de Jesus, comunho no seu corpo e sangue, torna-se unio. A mstica do Sacramento, que se funda no abaixamento de Deus at ns, de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mstica elevao do homem poderia realizar.

    14. Temos agora de prestar ateno a outro aspecto: a mstica do Sacramento tem um carcter social, porque, na comunho sacramental, eu fico unido ao Senhor como todos os demais comungantes: Uma vez que h um s po, ns, embora sendo muitos, formamos um s corpo, porque todos participamos do mesmo po diz So Paulo (1 Cor 10, 17). A unio com Cristo , ao mesmo tempo, unio com todos os outros aos quais Ele Se entrega. Eu no posso ter Cristo s para mim; posso pertencer-Lhe somente unido a todos aqueles que se tornaram ou tornaro Seus. A comunho tira-me para fora de mim mesmo projectando-me para Ele e, deste modo, tambm para a unio com todos os cristos. Tornamo-nos um s corpo , fundidos todos numa nica existncia. O amor a Deus e o amor ao prximo esto agora verdadeiramente juntos: o Deus encarnado atrai-nos todos a Si. Assim se compreende por que o termo agape se tenha tornado tambm um nome da Eucaristia: nesta a agape de Deus vem corporalmente a ns, para continuar a sua aco em ns e atravs de ns. S a

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  • partir desta fundamentao cristolgico-sacramental que se pode entender correctamente o ensinamento de Jesus sobre o amor. A passagem que Ele faz realizar da Lei e dos Profetas ao duplo mandamento do amor a Deus e ao prximo, a derivao de toda a vida de f da centralidade deste preceito no uma simples moral que possa, depois, subsistir autonomamente ao lado da f em Cristo e da sua re-actualizao no Sacramento: f, culto eethos compenetram-se mutuamente como uma nica realidade que se configura no encontro com a agape de Deus. Aqui, a habitual contraposio entre culto e tica simplesmente desaparece. No prprio culto , na comunho eucarstica, est contido o ser amado e o amar, por sua vez, os outros. Uma Eucaristia que no se traduza em amor concretamente vivido, em si mesma fragmentria. Por outro lado como adiante havemos de considerar de modo mais detalhado o mandamento do amor s se torna possvel porque no mera exigncia: o amor pode ser mandado , porque antes nos dado.

    15. a partir deste princpio que devem ser entendidas tambm as grandes parbolas de Jesus. O rico avarento (cf. Lc 16, 19-31) implora, do lugar do suplcio, que os seus irmos sejam informados sobre o que acontece a quem levianamente ignorou o pobre que passava necessidade. Jesus recolhe, por assim dizer, aquele grito de socorro e repete-o para nos acautelar e reconduzir ao bom caminho. A parbola do bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37) leva a dois esclarecimentos importantes. Enquanto o conceito de prximo , at ento, se referia essencialmente aos concidados e aos estrangeiros que se tinham estabelecido na terra de Israel, ou seja, comunidade solidria de um pas e de um povo, agora este limite abolido. Qualquer um que necessite de mim e eu possa ajud-lo, o meu prximo. O conceito de prximo fica universalizado, sem deixar todavia de ser concreto. Apesar da sua extenso a todos os homens, no se reduz expresso de um amor genrico e abstracto, em si mesmo pouco comprometedor, mas requer o meu empenho prtico aqui e agora. Continua a ser tarefa da Igreja interpretar sempre de novo esta ligao entre distante e prximo na vida prtica dos seus membros. preciso, enfim, recordar de modo particular a grande parbola do Juzo final (cf. Mt 25, 31-46), onde o amor se torna o critrio para a deciso definitiva sobre o valor ou a inutilidade duma vida humana. Jesus identifica-Se com os necessitados: famintos, sedentos, forasteiros, nus, enfermos, encarcerados. Sempre que fizestes isto a um destes meus irmos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes (Mt 25, 40). Amor a Deus e amor ao prximo fundem-se num todo: no mais pequenino, encontramos o prprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus.

    Amor a Deus e amor ao prximo

    16. Depois de termos reflectido sobre a essncia do amor e o seu significado na f bblica, resta uma dupla pergunta a propsito do nosso comportamento. A primeira: realmente possvel amar a Deus, mesmo sem O ver? E a outra: o amor pode ser mandado? Contra o duplo mandamento do amor, existe uma dupla objeco que se faz sentir nestas perguntas: ningum jamais viu a Deus como poderemos am-Lo? Mais: o amor no pode ser mandado; , em definitivo, um sentimento que pode existir ou no, mas no pode ser criado pela vontade. A Escritura parece dar o seu aval primeira objeco, quando afirma: Se algum disser: "Eu amo a Deus", mas odiar a seu irmo, mentiroso, pois quem no ama a seu irmo ao qual v, como pode amar a Deus, que no v? (1 Jo 4, 20). Este texto, porm, no exclui de modo algum o amor de Deus como algo impossvel; pelo contrrio, em todo o contexto da I Carta de Joo agora citada, tal amor explicitamente requerido. Nela se destaca o nexo indivisvel entre o amor a Deus e o amor ao prximo: um exige to estreitamente o outro que a afirmao do amor a Deus se torna uma mentira, se o homem se fechar ao prximo ou, inclusive, o odiar. O citado versculo joanino deve, antes, ser interpretado no sentido de que o amor ao prximo uma estrada para encontrar tambm a

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  • Deus, e que o fechar os olhos diante do prximo torna cegos tambm diante de Deus.

    17. Com efeito, ningum jamais viu a Deus tal como Ele em Si mesmo. E, contudo, Deus no nos totalmente invisvel, no se deixou ficar pura e simplesmente inacessvel a ns. Deus amou-nos primeiro diz a Carta de Joo citada (cf. 4, 10) e este amor de Deus apareceu no meio de ns, fez-se visvel quando Ele enviou o seu Filho unignito ao mundo, para que, por Ele, vivamos (1 Jo 4, 9). Deus fez-Se visvel: em Jesus, podemos ver o Pai (cf. Jo 14, 9). Existe, com efeito, uma mltipla visibilidade de Deus. Na histria de amor que a Bblia nos narra, Ele vem ao nosso encontro, procura conquistar-nos at ltima Ceia, at ao Corao trespassado na cruz, at s aparies do Ressuscitado e s grandes obras pelas quais Ele, atravs da aco dos Apstolos, guiou o caminho da Igreja nascente. Tambm na sucessiva histria da Igreja, o Senhor no esteve ausente: incessantemente vem ao nosso encontro, atravs de homens nos quais Ele Se revela; atravs da sua Palavra, nos Sacramentos, especialmente na Eucaristia. Na liturgia da Igreja, na sua orao, na comunidade viva dos crentes, ns experimentamos o amor de Deus, sentimos a sua presena e aprendemos deste modo tambm a reconhec-la na nossa vida quotidiana. Ele amou-nos primeiro, e continua a ser o primeiro a amar-nos; por isso, tambm ns podemos responder com o amor. Deus no nos ordena um sentimento que no possamos suscitar em ns prprios. Ele ama-nos, faz-nos ver e experimentar o seu amor, e desta antecipao de Deus pode, como resposta, despontar tambm em ns o amor.

    No desenrolar deste encontro, revela-se com clareza que o amor no apenas um sentimento. Os sentimentos vo e vm. O sentimento pode ser uma maravilhosa centelha inicial, mas no a totalidade do amor. Ao incio, falmos do processo das purificaes e amadurecimentos, pelos quais o eros se torna plenamente ele mesmo, se torna amor no significado cabal da palavra. prprio da maturidade do amor abranger todas as potencialidades do homem e incluir, por assim dizer, o homem na sua totalidade. O encontro com as manifestaes visveis do amor de Deus pode suscitar em ns o sentimento da alegria, que nasce da experincia de ser amados. Tal encontro, porm, chama em causa tambm a nossa vontade e o nosso intelecto. O reconhecimento do Deus vivo um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade d'Ele une intelecto, vontade e sentimento no acto globalizante do amor. Mas isto um processo que permanece continuamente em caminho: o amor nunca est concludo e completado; transforma-se ao longo da vida, amadurece e, por isso mesmo, permanece fiel a si prprio. Idem velle atque idem nolle [9] querer a mesma coisa e rejeitar a mesma coisa , segundo os antigos, o autntico contedo do amor: um tornar-se semelhante ao outro, que leva unio do querer e do pensar. A histria do amor entre Deus e o homem consiste precisamente no facto de que esta comunho de vontade cresce em comunho de pensamento e de sentimento e, assim, o nosso querer e a vontade de Deus coincidem cada vez mais: a vontade de Deus deixa de ser para mim uma vontade estranha que me impem de fora os mandamentos, mas a minha prpria vontade, baseada na experincia de que realmente Deus mais ntimo a mim mesmo de quanto o seja eu prprio.[10] Cresce ento o abandono em Deus, e Deus torna-Se a nossa alegria (cf. Sal 73/72, 23-28).

    18. Revela-se, assim, como possvel o amor ao prximo no sentido enunciado por Jesus, na Bblia. Consiste precisamente no facto de que eu amo, em Deus e com Deus, a pessoa que no me agrada ou que nem conheo sequer. Isto s possvel realizar-se a partir do encontro ntimo com Deus, um encontro que se tornou comunho de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Ento aprendo a ver aquela pessoa j no somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo. O seu amigo meu amigo. Para alm do aspecto exterior do outro, dou-me conta da sua expectativa interior de um gesto de

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  • amor, de ateno, que eu no lhe fao chegar somente atravs das organizaes que disso se ocupam, aceitando-o talvez por necessidade poltica. Eu vejo com os olhos de Cristo e posso dar ao outro muito mais do que as coisas externamente necessrias: posso dar-lhe o olhar de amor de que ele precisa. Aqui se v a interaco que necessria entre o amor a Deus e o amor ao prximo, de que fala com tanta insistncia a I Carta de Joo. Se na minha vida falta totalmente o contacto com Deus, posso ver no outro sempre e apenas o outro e no consigo reconhecer nele a imagem divina. Mas, se na minha vida negligencio completamente a ateno ao outro, importando-me apenas com ser piedoso e cumprir os meus deveres religiosos , ento definha tambm a relao com Deus. Neste caso, trata-se duma relao correcta , mas sem amor. S a minha disponibilidade para ir ao encontro do prximo e demonstrar-lhe amor que me torna sensvel tambm diante de Deus. S o servio ao prximo que abre os meus olhos para aquilo que Deus faz por mim e para o modo como Ele me ama. Os Santos pensemos, por exemplo, na Beata Teresa de Calcut hauriram a sua capacidade de amar o prximo, de modo sempre renovado, do seu encontro com o Senhor eucarstico e, vice-versa, este encontro ganhou o seu realismo e profundidade precisamente no servio deles aos outros. Amor a Deus e amor ao prximo so inseparveis, constituem um nico mandamento. Mas, ambos vivem do amor preveniente com que Deus nos amou primeiro. Deste modo, j no se trata de um mandamento que do exterior nos impe o impossvel, mas de uma experincia do amor proporcionada do interior, um amor que, por sua natureza, deve ser ulteriormente comunicado aos outros. O amor cresce atravs do amor. O amor divino , porque vem de Deus e nos une a Deus, e, atravs deste processo unificador, transforma-nos em um Ns, que supera as nossas divises e nos faz ser um s, at que, no fim, Deus seja tudo em todos (1 Cor 15, 28).

    II PARTE

    CARITAS A PRTICA DO AMORPELA IGREJA

    ENQUANTO COMUNIDADE DE AMOR

    A caridade da Igreja como manifestao do amor trinitrio

    19. Se vs a caridade, vs a Trindade escrevia Santo Agostinho. [11] Ao longo das reflexes anteriores, pudemos fixar o nosso olhar no Trespassado (cf. Jo 19, 37; Zc 12, 10), reconhecendo o desgnio do Pai que, movido pelo amor (cf. Jo 3, 16), enviou o Filho unignito ao mundo para redimir o homem. Quando morreu na cruz, Jesus como indica o evangelista entregou o Esprito (cf. Jo 19, 30), preldio daquele dom do Esprito Santo que Ele havia de realizar depois da ressurreio (cf. Jo 20, 22). Desde modo, se actuaria a promessa dos rios de gua viva que, graas efuso do Esprito, haviam de emanar do corao dos crentes (cf. Jo 7, 38-39). De facto, o Esprito aquela fora interior que harmoniza seus coraes com o corao de Cristo e leva-os a amar os irmos como Ele os amou, quando Se inclinou para lavar os ps dos discpulos (cf. Jo 13, 1-13) e sobretudo quando deu a sua vida por todos (cf. Jo 13, 1; 15, 13).

    O Esprito tambm fora que transforma o corao da comunidade eclesial, para ser, no mundo, testemunha do amor do Pai, que quer fazer da humanidade uma nica famlia, em seu Filho. Toda a actividade da Igreja manifestao dum amor que procura o bem integral do homem: procura a sua evangelizao por meio da Palavra e dos Sacramentos, empreendimento este muitas vezes herico nas suas realizaes histricas; e procura a sua promoo nos vrios mbitos da vida e da actividade humana. Portanto, amor o servio que a Igreja exerce para acorrer constantemente aos sofrimentos e s necessidades, mesmo

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  • materiais, dos homens. sobre este aspecto, sobre este servio da caridade, que desejo deter-me nesta segunda parte da Encclica.

    A caridade como dever da Igreja

    20. O amor do prximo, radicado no amor de Deus, um dever antes de mais para cada um dos fiis, mas -o tambm para a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os seus nveis: desde a comunidade local passando pela Igreja particular at Igreja universal na sua globalidade. A Igreja tambm enquanto comunidade deve praticar o amor. Consequncia disto que o amor tem necessidade tambm de organizao enquanto pressuposto para um servio comunitrio ordenado. A conscincia de tal dever teve relevncia constitutiva na Igreja desde os seus incios: Todos os crentes viviam unidos e possuam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuam o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um (Act 2, 44-45). Lucas conta-nos isto no quadro duma espcie de definio da Igreja, entre cujos elementos constitutivos enumera a adeso ao ensino dos Apstolos , comunho (koinonia), fraco do po e s oraes (cf. Act 2, 42). O elemento da comunho (koinonia), que aqui ao incio no especificado, aparece depois concretizado nos versculos anteriormente citados: consiste precisamente no facto de os crentes terem tudo em comum, pelo que, no seu meio, j no subsiste a diferena entre ricos e pobres (cf. tambm Act 4, 32-37). Com o crescimento da Igreja, esta forma radical de comunho material verdade se diga no pde ser mantida. Mas o ncleo essencial ficou: no seio da comunidade dos crentes no deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a algum os bens necessrios para uma vida condigna.

    21. Um passo decisivo na difcil busca de solues para realizar este princpio eclesial fundamental torna-se patente naquela escolha de sete homens que foi o incio do ofcio diaconal (cf. Act 6, 5-6). De facto, na Igreja primitiva tinha-se gerado, na distribuio quotidiana s vivas, uma disparidade entre a parte de lngua hebraica e a de lngua grega. Os Apstolos, a quem estavam confiados antes de mais a orao (Eucaristia e Liturgia) e o servio da Palavra , sentiram-se excessivamente carregados pelo servio das mesas ; decidiram, por isso, reservar para eles o ministrio principal e criar para a outra manso, tambm ela necessria na Igreja, um organismo de sete pessoas. Mas este grupo no devia realizar um servio meramente tcnico de distribuio: deviam ser homens cheios do Esprito Santo e de sabedoria (cf. Act 6, 1-6). Quer dizer que o servio social que tinham de cumprir era concreto sem dvida alguma, mas ao mesmo tempo era tambm um servio espiritual; tratava-se, na verdade, de um ofcio verdadeiramente espiritual, que realizava um dever essencial da Igreja, o do amor bem ordenado ao prximo. Com a formao deste organismo dos Sete, a diaconia o servio do amor ao prximo exercido comunitariamente e de modo ordenado ficara instaurada na estrutura fundamental da prpria Igreja.

    22. Com o passar dos anos e a progressiva difuso da Igreja, a prtica da caridade confirmou-se como um dos seus mbitos essenciais, juntamente com a administrao dos Sacramentos e o anncio da Palavra: praticar o amor para com as vivas e os rfos, os presos, os doentes e necessitados de qualquer gnero pertence tanto sua essncia como o servio dos Sacramentos e o anncio do Evangelho. A Igreja no pode descurar o servio da caridade, tal como no pode negligenciar os Sacramentos nem a Palavra. Para o demonstrar, bastam alguns exemplos. O mrtir Justino ( por 155), no contexto da celebrao dominical dos cristos, descreve tambm a sua actividade caritativa relacionada com a Eucaristia enquanto tal. As pessoas abastadas fazem a sua oferta na medida das suas possibilidades, cada uma o que quer; o Bispo serve-se disso para sustentar os rfos, as vivas e aqueles que por doena

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  • ou outros motivos passam necessidade, e tambm os presos e os forasteiros. [12] O grande escritor cristo Tertuliano ( depois de 220) conta como a solicitude dos cristos pelos necessitados de qualquer gnero suscitava a admirao dos pagos. [13] E, quando Incio de Antioquia ( por 117) designa a Igreja de Roma como aquela que preside caridade (agape) , [14] pode-se supor que ele quisesse, com tal definio, exprimir de qualquer modo tambm a sua actividade caritativa concreta.

    23. Neste contexto, pode revelar-se til uma referncia s estruturas jurdicas primitivas que tinham a ver com o servio da caridade na Igreja. A meados do sculo IV ganha forma no Egipto a chamada diaconia , que , nos diversos mosteiros, a instituio responsvel pelo conjunto das actividades assistenciais, pelo servio precisamente da caridade. A partir destes incios, desenvolve-se at ao sculo VI no Egipto uma corporao com plena capacidade jurdica, qual as autoridades civis confiam mesmo uma parte do trigo para a distribuio pblica. No Egipto, no s cada mosteiro mas tambm cada diocese acabou por ter a suadiaconia uma instituio que se expande depois quer no Oriente quer no Ocidente. O Papa Gregrio Magno ( 604) fala da diaconia de Npoles. Relativamente a Roma, as diaconiasso documentadas a partir dos sculos VII e VIII; mas naturalmente j antes, e logo desde os primrdios, a actividade assistencial aos pobres e doentes, segundo os princpios da vida crist expostos nos Actos dos Apstolos, era parte essencial da Igreja de Roma. Este dever encontra uma sua viva expresso na figura do dicono Loureno ( 258). A dramtica descrio do seu martrio era j conhecida por Santo Ambrsio ( 397) e, no seu ncleo, mostra-nos seguramente a figura autntica do Santo. Aps a priso dos seus irmos na f e do Papa, a ele, como responsvel pelo cuidado dos pobres de Roma, fora concedido mais algum tempo de liberdade, para recolher os tesouros da Igreja e entreg-los s autoridades civis. Loureno distribuiu o dinheiro disponvel pelos pobres e, depois, apresentou estes s autoridades como sendo o verdadeiro tesouro da Igreja. [15] Independentemente da credibilidade histrica que se queira atribuir a tais particulares, Loureno ficou presente na memria da Igreja como grande expoente da caridade eclesial.

    24. Uma aluso merece a figura do imperador Juliano o Apstata ( 363), porque demonstra uma vez mais quo essencial era para a Igreja dos primeiros sculos a caridade organizada e praticada. Criana de seis anos, Juliano assistira ao assassnio de seu pai, de seu irmo e doutros familiares pelas guardas do palcio imperial; esta brutalidade atribuiu-a ele com razo ou sem ela ao imperador Constncio, que se fazia passar por um grande cristo. Em consequncia disso, a f crist acabou desacreditada a seus olhos uma vez por todas. Feito imperador, decide restaurar o paganismo, a antiga religio romana, mas ao mesmo tempo reform-lo para se tornar realmente a fora propulsora do imprio. Para isso, inspirou-se largamente no cristianismo. Instaurou uma hierarquia de metropolitas e sacerdotes. Estes deviam promover o amor a Deus e ao prximo. Numa das suas cartas, [16] escrevera que o nico aspecto do cristianismo que o maravilhava era a actividade caritativa da Igreja. Por isso, considerou determinante para o seu novo paganismo fazer surgir, a par do sistema de caridade da Igreja, uma actividade equivalente na sua religio. Os Galileus dizia ele tinham conquistado assim a sua popularidade. Havia que imit-los, seno mesmo super-los. Deste modo, o imperador confirmava que a caridade era uma caracterstica decisiva da comunidade crist, da Igreja.

    25. Chegados aqui, registemos dois dados essenciais tirados das reflexes feitas:

    a) A natureza ntima da Igreja exprime-se num trplice dever: anncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebrao dos Sacramentos (leiturgia), servio da caridade (diakonia). So deveres que se reclamam mutuamente, no podendo um ser separado dos outros. Para a

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  • Igreja, a caridade no uma espcie de actividade de assistncia social que se poderia mesmo deixar a outros, mas pertence sua natureza, expresso irrenuncivel da sua prpria essncia. [17]

    b) A Igreja a famlia de Deus no mundo. Nesta famlia, no deve haver ningum que sofra por falta do necessrio. Ao mesmo tempo, porm, a caritas-agape estende-se para alm das fronteiras da Igreja; a parbola do bom Samaritano permanece como critrio de medida, impondo a universalidade do amor que se inclina para o necessitado encontrado por acaso (cf. Lc 10, 31), seja ele quem for. Mas, ressalvada esta universalidade do mandamento do amor, existe tambm uma exigncia especificamente eclesial precisamente a exigncia de que, na prpria Igreja enquanto famlia, nenhum membro sofra porque passa necessidade. Neste sentido se pronuncia a Carta aos Glatas: Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos, mas principalmente para com os irmos na f (6, 10).

    Justia e caridade

    26. Desde o Oitocentos, vemos levantar-se contra a actividade caritativa da Igreja uma objeco, explanada depois com insistncia sobretudo pelo pensamento marxista. Os pobres diz-se no teriam necessidade de obras de caridade, mas de justia. As obras de caridade as esmolas seriam na realidade, para os ricos, uma forma de subtrarem-se instaurao da justia e tranquilizarem a conscincia, mantendo as suas posies e defraudando os pobres nos seus direitos. Em vez de contribuir com as diversas obras de caridade para a manuteno das condies existentes, seria necessrio criar uma ordem justa, na qual todos receberiam a sua respectiva parte de bens da terra e, por conseguinte, j no teriam necessidade das obras de caridade. Algo de verdade existe devemos reconhec-lo nesta argumentao, mas h tambm, e no pouco, de errado. verdade que a norma fundamental do Estado deve ser a prossecuo da justia e que a finalidade de uma justa ordem social garantir a cada um, no respeito do princpio da subsidiariedade, a prpria parte nos bens comuns. Isto mesmo sempre o tm sublinhado a doutrina crist sobre o Estado e a doutrina social da Igreja. Do ponto de vista histrico, a questo da justa ordem da colectividade entrou numa nova situao com a formao da sociedade industrial no Oitocentos. A apario da indstria moderna dissolveu as antigas estruturas sociais e provocou, com a massa dos assalariados, uma mudana radical na composio da sociedade, no seio da qual a relao entre capital e trabalho se tornou a questo decisiva questo que, sob esta forma, era desconhecida antes. As estruturas de produo e o capital tornaram-se o novo poder que, colocado nas mos de poucos, comportava para as massas operrias uma privao de direitos, contra a qual era preciso revoltar-se.

    27. Foroso admitir que os representantes da Igreja s lentamente se foram dando conta de que se colocava em moldes novos o problema da justa estrutura da sociedade. No faltaram pioneiros: um deles, por exemplo, foi o Bispo Ketteler de Mogncia ( 1877). Como resposta s necessidades concretas, surgiram tambm crculos, associaes, unies, federaes e sobretudo novas congregaes religiosas que, no Oitocentos, desceram em campo contra a pobreza, as doenas e as situaes de carncia no sector educativo. Em 1891, entrou em cena o magistrio pontifcio com a Encclica Rerum novarum de Leo XIII. Seguiu-se-lhe a Encclica de Pio XI Quadragesimo anno, em 1931. O Beato Papa Joo XXIII publicou, em 1961, a EncclicaMater et Magistra, enquanto Paulo VI, na Encclica Populorum progressio(1967) e na Carta Apostlica Octogesima adveniens (1971), analisou com afinco a problemtica social, que entretanto se tinha agravado sobretudo na Amrica Latina. O meu grande predecessor Joo Paulo II deixou-nos uma trilogia de Encclicas sociais: Laborem exercens (1981), Sollicitudo rei socialis (1987) e, por ltimo, Centesimus annus (1991).

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  • Deste modo, ao enfrentar situaes e problemas sempre novos, foi-se desenvolvendo uma doutrina social catlica, que em 2004 foi apresentada de modo orgnico no Compndio da doutrina social da Igreja, redigido pelo Pontifcio Conselho Justia e Paz . O marxismo tinha indicado, na revoluo mundial e na sua preparao, a panaceia para a problemtica social: atravs da revoluo e consequente colectivizao dos meios de produo asseverava-se em tal doutrina devia dum momento para o outro caminhar tudo de modo diverso e melhor. Este sonho desvaneceu-se. Na difcil situao em que hoje nos encontramos por causa tambm da globalizao da economia, a doutrina social da Igreja tornou-se uma indicao fundamental, que prope vlidas orientaes muito para alm das fronteiras eclesiais: tais orientaes face ao progresso em acto devem ser analisadas em dilogo com todos aqueles que se preocupam seriamente do homem e do seu mundo.

    28. Para definir com maior cuidado a relao entre o necessrio empenho em prol da justia e o servio da caridade, preciso anotar duas situaes de facto que so fundamentais:

    a) A justa ordem da sociedade e do Estado dever central da poltica. Um Estado, que no se regesse segundo a justia, reduzir-se-ia a uma grande banda de ladres, como disse Agostinho uma vez: Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia? . [18]Pertence estrutura fundamental do cristianismo a distino entre o que de Csar e o que de Deus (cf. Mt 22, 21), isto , a distino entre Estado e Igreja ou, como diz o Conclio Vaticano II, a autonomia das realidades temporais. [19] O Estado no pode impor a religio, mas deve garantir a liberdade da mesma e a paz entre os aderentes das diversas religies; por sua vez, a Igreja como expresso social da f crist tem a sua independncia e vive, assente na f, a sua forma comunitria, que o Estado deve respeitar. As duas esferas so distintas, mas sempre em recproca relao.

    A justia o objectivo e, consequentemente, tambm a medida intrnseca de toda a poltica. A poltica mais do que uma simples tcnica para a definio dos ordenamentos pblicos: a sua origem e o seu objectivo esto precisamente na justia, e esta de natureza tica. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questo: como realizar a justia aqui e agora? Mas esta pergunta pressupe outra mais radical: o que a justia? Isto um problema que diz respeito razo prtica; mas, para poder operar rectamente, a razo deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira tica, derivada da prevalncia do interesse e do poder que a deslumbram, um perigo nunca totalmente eliminado.

    Neste ponto, poltica e f tocam-se. A f tem, sem dvida, a sua natureza especfica de encontro com o Deus vivo um encontro que nos abre novos horizontes muito para alm do mbito prprio da razo. Ao mesmo tempo, porm, ela serve de fora purificadora para a prpria razo. Partindo da perspectiva de Deus, liberta-a de suas cegueiras e, consequentemente, ajuda-a a ser mais ela mesma. A f consente razo de realizar melhor a sua misso e ver mais claramente o que lhe prprio. aqui que se coloca a doutrina social catlica: esta no pretende conferir Igreja poder sobre o Estado; nem quer impor, queles que no compartilham a f, perspectivas e formas de comportamento que pertencem a esta. Deseja simplesmente contribuir para a purificao da razo e prestar a prpria ajuda para fazer com que aquilo que justo possa, aqui e agora, ser reconhecido e, depois, tambm realizado.

    A doutrina social da Igreja discorre a partir da razo e do direito natural, isto , a partir daquilo que conforme natureza de todo o ser humano. E sabe que no tarefa da Igreja fazer ela prpria valer politicamente esta doutrina: quer servir a formao da conscincia na poltica e ajudar a crescer a percepo das verdadeiras exigncias da justia e,

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  • simultaneamente, a disponibilidade para agir com base nas mesmas, ainda que tal colidisse com situaes de interesse pessoal. Isto significa que a construo de um ordenamento social e estatal justo, pelo qual seja dado a cada um o que lhe compete, um dever fundamental que deve enfrentar de novo cada gerao. Tratando-se de uma tarefa poltica, no pode ser encargo imediato da Igreja. Mas, como ao mesmo tempo uma tarefa humana primria, a Igreja tem o dever de oferecer, por meio da purificao da razo e atravs da formao tica, a sua contribuio especfica para que as exigncias da justia se tornem compreensveis e politicamente realizveis.

    A Igreja no pode nem deve tomar nas suas prprias mos a batalha poltica para realizar a sociedade mais justa possvel. No pode nem deve colocar-se no lugar do Estado. Mas tambm no pode nem deve ficar margem na luta pela justia. Deve inserir-se nela pela via da argumentao racional e deve despertar as foras espirituais, sem as quais a justia, que sempre requer renncias tambm, no poder afirmar-se nem prosperar. A sociedade justa no pode ser obra da Igreja; deve ser realizada pela poltica. Mas toca Igreja, e profundamente, o empenhar-se pela justia trabalhando para a abertura da inteligncia e da vontade s exigncias do bem.

    b) O amor caritas ser sempre necessrio, mesmo na sociedade mais justa. No h qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar suprfluo o servio do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haver sofrimento que necessita de consolao e ajuda. Haver sempre solido. Existiro sempre tambm situaes de necessidade material, para as quais indispensvel uma ajuda na linha de um amor concreto ao prximo. [20] Um Estado, que queira prover a tudo e tudo aambarque, torna-se no fim de contas uma instncia burocrtica, que no pode assegurar o essencial de que o homem sofredor todo o homem tem necessidade: a amorosa dedicao pessoal. No precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconhea e apoie, segundo o princpio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas foras sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda. A Igreja uma destas foras vivas: nela pulsa a dinmica do amor suscitado pelo Esprito de Cristo. Este amor no oferece aos homens apenas uma ajuda material, mas tambm refrigrio e cuidado para a alma ajuda esta muitas vezes mais necessria que o apoio material. A afirmao de que as estruturas justas tornariam suprfluas as obras de caridade esconde, de facto, uma concepo materialista do homem: o preconceito segundo o qual o homem viveria s de po (Mt 4, 4; cf. Dt 8, 3) convico que humilha o homem e ignora precisamente aquilo que mais especificamente humano.

    29. Deste modo, podemos determinar agora mais concretamente, na vida da Igreja, a relao entre o empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade, por um lado, e a actividade caritativa organizada, por outro. Viu-se que a formao de estruturas justas no imediatamente um dever da Igreja, mas pertence esfera da poltica, isto , ao mbito da razo auto-responsvel. Nisto, o dever da Igreja mediato, enquanto lhe compete contribuir para a purificao da razo e o despertar das foras morais, sem as quais no se constroem estruturas justas, nem estas permanecem operativas por muito tempo.

    Entretanto, o dever imediato de trabalhar por uma ordem justa na sociedade prprio dos fiis leigos. Estes, como cidados do Estado, so chamados a participar pessoalmente na vida pblica. No podem, pois, abdicar da mltipla e variada aco econmica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgnica e institucionalmente o bem comum . [21] Por conseguinte, misso dos fiis leigos configurar rectamente a vida social, respeitando a sua legtima autonomia e cooperando, segundo a respectiva

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  • competncia e sob prpria responsabilidade, com os outros cidados. [22] Embora as manifestaes especficas da caridade eclesial nunca possam confundir-se com a actividade do Estado, no entanto a verdade que a caridade deve animar a existncia inteira dos fiis leigos e, consequentemente, tambm a sua actividade poltica vivida como caridade social . [23]

    Caso diverso so as organizaes caritativas da Igreja, que constituem um seu opus proprium, um dever que lhe congnito, no qual ela no se limita a colaborar colateralmente, mas actua como sujeito directamente responsvel, realizando o que corresponde sua natureza. A Igreja nunca poder ser dispensada da prtica da caridade enquanto actividade organizada dos crentes, como alis nunca haver uma situao onde no seja precisa a caridade de cada um dos indivduos cristos, porque o homem, alm da justia, tem e ter sempre necessidade do amor.

    As mltiplas estruturas de servio caritativo

    no actual contexto social

    30. Antes ainda de tentar uma definio do perfil especfico das actividades eclesiais ao servio do homem, quero considerar a situao geral do empenho pela justia e o amor no mundo actual.

    a) Os meios de comunicao de massa tornaram hoje o nosso planeta mais pequeno, aproximando rapidamente homens e culturas profundamente diversos. Se, s vezes, este estar juntos suscita incompreenses e tenses, o facto, porm, de agora se chegar de forma muito mais imediata ao conhecimento das necessidades dos homens constitui sobretudo um apelo a partilhar a sua situao e as suas dificuldades. Cada dia vamo-nos tornando conscientes de quanto se sofre no mundo, apesar dos grandes progressos em campo cientfico e tcnico, por causa de uma misria multiforme, tanto material como espiritual. Por isso, este nosso tempo requer uma nova disponibilidade para socorrer o prximo necessitado. Sublinhou-o j o Conclio Vaticano II com palavras muito claras: No nosso tempo, em que os meios de comunicao so mais rpidos, em que quase se venceu a distncia entre os homens, (...) a actividade caritativa pode e deve atingir as necessidades de todos os homens . [24]

    Por outro lado e trata-se de um aspecto provocatrio e ao mesmo tempo encorajador do processo de globalizao , o presente pe nossa disposio inumerveis instrumentos para prestar ajuda humanitria aos irmos necessitados, no sendo os menos notveis entre eles os sistemas modernos para a distribuio de alimento e vesturio, e tambm para a oferta de habitao e acolhimento. Superando as fronteiras das comunidades nacionais, a solicitude pelo prximo tende, assim, a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro. Justamente o ps em relevo o Conclio Vaticano II: Entre os sinais do nosso tempo, digno de especial meno o crescente e inelutvel sentido de solidariedade entre todos os povos . [25] Os entes do Estado e as associaes humanitrias apadrinham iniciativas com tal finalidade, fazendo-o na maior parte dos casos atravs de subsdios ou descontos fiscais, os primeiros, e pondo disposio verbas considerveis, as segundas. E assim a solidariedade expressa pela sociedade civil supera significativamente a dos indivduos.

    b) Nesta situao, nasceram e desenvolveram-se numerosas formas de colaborao entre as estruturas estatais e as eclesiais, que se revelaram frutuosas. As estruturas eclesiais, com a transparncia da sua aco e a fidelidade ao dever de testemunhar o amor, podero animar de maneira crist tambm as estruturas civis, favorecendo uma recproca coordenao que no

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  • deixar de potenciar a eficcia do servio caritativo. [26] Neste contexto, formaram-se tambm muitas organizaes com fins caritativos ou filantrpicos, que procuram, face aos problemas sociais e polticos existentes, alcanar solues satisfatrias sob o aspecto humanitrio. Um fenmeno importante do nosso tempo a apario e difuso de diversas formas de voluntariado, que se ocupam duma pluralidade de servios. [27] Desejo aqui deixar uma palavra de particular apreo e gratido a todos aqueles que participam, de diversas formas, nestas actividades. Tal empenho generalizado constitui, para os jovens, uma escola de vida que educa para a solidariedade e a disponibilidade a darem no simplesmente qualquer coisa, mas darem-se a si prprios. anti-cultura da morte, que se exprime por exemplo na droga, contrape-se deste modo o amor que no procura o prprio interesse, mas que, precisamente na disponibilidade a perder-se a si mesmo pelo outro (cf. Lc 17, 33 e paralelos), se revela como cultura da vida.

    Na Igreja Catlica e noutras Igrejas e Comunidades eclesiais, tambm apareceram novas formas de actividade caritativa e ressurgiram antigas com zelo renovado. So formas nas quais se consegue muitas vezes estabelecer uma feliz ligao entre evangelizao e obras de caridade. Desejo aqui confirmar explicitamente aquilo que o meu grande predecessor Joo Paulo II escreveu na sua Encclica Sollicitudo rei socialis, [28] quando declarou a disponibilidade da Igreja Catlica para colaborar com as organizaes caritativas destas Igrejas e Comunidades, uma vez que todos ns somos movidos pela mesma motivao fundamental e temos diante dos olhos idntico objectivo: um verdadeiro humanismo, que reconhece no homem a imagem de Deus e quer ajud-lo a levar uma vida conforme a esta dignidade. Depois, a Encclica Ut unum sint voltou a sublinhar que, para o progresso rumo a um mundo melhor, necessria a voz comum dos cristos, o seu empenho em fazer triunfar o respeito pelos direitos e necessidades de todos, especialmente dos pobres, humilhados e desprotegidos . [29] Quero exprimir aqui a minha alegria pelo facto de este desejo ter encontrado um vasto eco por todo o mundo em numerosas iniciativas.

    O perfil especfico da actividade caritativa da Igreja

    31. O aumento de organizaes diversificadas, que se dedicam ao homem em suas vrias necessidades, explica-se fundamentalmente pelo facto de o imperativo do amor ao prximo ter sido inscrito pelo Criador na prpria natureza do homem. Mas, o referido aumento efeito tambm da presena, no mundo, do cristianismo, que no cessa de despertar e tornar eficaz este imperativo, muitas vezes profundamente obscurecido no decurso da histria. A reforma do paganismo, tentada pelo imperador Juliano o Apstata, apenas um exemplo incipiente de tal eficcia. Neste sentido, a fora do cristianismo propaga-se muito para alm das fronteiras da f crist. Por isso, muito importante que a actividade caritativa da Igreja mantenha todo o seu esplendor e no se dissolva na organizao assistencial comum, tornando-se uma simples variante da mesma. Mas, ento quais so os elementos constitutivos que formam a essncia da caridade crist e eclesial?

    a) Segundo o modelo oferecido pela parbola do bom Samaritano, a caridade crist , em primeiro lugar, simplesmente a resposta quilo que, numa determinada situao, constitui a necessidade imediata: os famintos devem ser saciados, os nus vestidos, os doentes tratados para se curarem, os presos visitados, etc. As organizaes caritativas da Igreja, a comear pela Critas (diocesana, nacional e internacional), devem fazer o possvel para colocar disposio os correlativos meios e sobretudo os homens e mulheres que assumam tais tarefas. Relativamente ao servio que as pessoas realizam em favor dos doentes, requer-se antes de mais a competncia profissional: os socorristas devem ser formados de tal modo que saibam fazer a coisa justa de modo justo, assumindo tambm o compromisso de continuar o

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  • tratamento. A competncia profissional uma primeira e fundamental necessidade, mas por si s no basta. que se trata de seres humanos, e estes necessitam sempre de algo mais que um tratamento apenas tecnicamente correcto: tm necessidade de humanidade, precisam da ateno do corao. Todos os que trabalham nas instituies caritativas da Igreja devem distinguir-se pelo facto de que no se limitam a executar habilidosamente a aco conveniente naquele momento, mas dedicam-se ao outro com as atenes sugeridas pelo corao, de modo que ele sinta a sua riqueza de humanidade. Por isso, para tais agentes, alm da preparao profissional, requer-se tambm e sobretudo a formao do corao : preciso lev-los quele encontro com Deus em Cristo que neles suscite o amor e abra o seu ntimo ao outro de tal modo que, para eles, o amor do prximo j no seja um mandamento por assim dizer imposto de fora, mas uma consequncia resultante da sua f que se torna operativa pelo amor (cf. Gal 5, 6).

    b) A actividade caritativa crist deve ser independente de partidos e ideologias. No um meio para mudar o mundo de maneira ideolgica, nem est ao servio de estratgias mundanas, mas actualizao aqui e agora daquele amor de que o homem sempre tem necessidade. O tempo moderno, sobretudo a partir do Oitocentos, aparece dominado por diversas variantes duma filosofia do progresso, cuja forma mais radical o marxismo. Uma parte da estratgia marxista a teoria do empobrecimento: esta defende que, numa situao de poder injusto, quem ajuda o homem com iniciativas de caridade, coloca-se de facto ao servio daquele sistema de injustia, fazendo-o resultar, pelo menos at certo ponto, suportvel. Deste modo fica refreado o potencial revolucionrio e, consequentemente, bloqueada a reviravolta para um mundo melhor. Por isso, se contesta e ataca a caridade como sistema de conservao do status quo. Na realidade, esta uma filosofia desumana. O homem que vive no presente sacrificado ao moloch do futuro um futuro cuja efectiva realizao permanece pelo menos duvidosa. Na verdade, a humanizao do mundo no pode ser promovida renunciando, de momento, a comportar-se de modo humano. S se contribui para um mundo melhor, fazendo o bem agora e pessoalmente, com paixo e em todo o lado onde for possvel, independentemente de estratgias e programas de partido. O programa do cristo o programa do bom Samaritano, o programa de Jesus um corao que v . Este corao v onde h necessidade de amor, e actua em consequncia. Obviamente, quando a actividade caritativa assumida pela Igreja como iniciativa comunitria, espontaneidade do indivduo h que acrescentar tambm a programao, a previdncia, a colaborao com outras instituies idnticas.

    c) Alm disso, a caridade no deve ser um meio em funo daquilo que hoje indicado como proselitismo. O amor gratuito; no realizado para alcanar outros fins. [30] Isto, porm, no significa que a aco caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre est em jogo o homem todo. Muitas vezes precisamente a ausncia de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome da Igreja, nunca procurar impor aos outros a f da Igreja. Sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar. O cristo sabe quando tempo de falar de Deus e quando justo no o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus amor (cf. 1 Jo 4, 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a no ser amar. Sabe voltando s questes anteriores que o vilipndio do amor vilipndio de Deus e do homem, a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor. dever das organizaes caritativas da Igreja reforar de tal modo esta conscincia em seus membros, que estes, atravs do seu agir como tambm do seu falar, do seu silncio, do seu exemplo , se tornem testemunhas credveis de Cristo.

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  • Os responsveis da aco caritativa da Igreja

    32. Por ltimo, devemos ainda fixar a nossa ateno sobre os responsveis pela aco caritativa da Igreja, a que j aludimos. Das reflexes feitas anteriormente, resulta claramente que o verdadeiro sujeito das vrias organizaes catlicas que realizam um servio de caridade a prpria Igreja e isto a todos os nveis, a comear das parquias passando pelas Igrejas particulares at chegar Igreja universal. Por isso, foi muito oportuna a instituio do Pontifcio Conselho Cor Unum, feita pelo meu venerado predecessor Paulo VI, como instncia da Santa S responsvel pela orientao e coordenao entre as organizaes e as actividades caritativas promovidas pela Igreja Catlica. Depois, cnsono estrutura episcopal da Igreja o facto de, nas Igrejas particulares, caber aos Bispos enquanto sucessores dos Apstolos a primeira responsabilidade pela realizao, mesmo actualmente, do programa indicado nos Actos dos Apstolos (cf. 2, 42-44): a Igreja enquanto famlia de Deus deve ser, hoje como ontem, um espao de ajuda recproca e simultaneamente um espao de disponibilidade para servir mesmo aqueles que, fora dela, tm necessidade de ajuda. No rito de Ordenao Episcopal, o acto verdadeiro e prprio de consagrao precedido por algumas perguntas ao candidato, nas quais se exprimem os elementos essenciais do seu ofcio e so-lhe lembrados os deveres do seu futuro ministrio. Neste contexto, o Ordenando promete expressamente que ser, em nome do Senhor, bondoso e compassivo com os pobres e todos os necessitados de conforto e ajuda. [31] O Cdigo de Direito Cannico, nos cnones relativos ao ministrio episcopal, no trata explicitamente da caridade como mbito especfico da actividade episcopal, falando apenas em geral do dever que tem o Bispo de coordenar as diversas obras de apostolado no respeito da ndole prpria de cada uma. [32]Recentemente, porm, o Directrio para o ministrio pastoral dos Bispos aprofundou, de forma mais concreta, o dever da caridade como tarefa intrnseca da Igreja inteira e do Bispo na sua diocese, [33] sublinhando que a prtica da caridade um acto da Igreja enquanto tal e que tambm ela, tal como o servio da Palavra e dos Sacramentos, faz parte da essncia da sua misso originria. [34]

    33. No que diz respeito aos colaboradores que realizam, a nvel prtico, o trabalho caritativo na Igreja, foi dito j o essencial: eles no se devem inspirar nas ideologias do melhoramento do mundo, mas deixarem-se guiar pela f que actua pelo amor (cf. Gal 5, 6). Por isso, devem ser pessoas movidas antes de mais nada pelo amor de Cristo, pessoas cujo corao Cristo conquistou com o seu amor, nele despertando o amor ao prximo. O critrio inspirador da sua aco deveria ser a afirmao presente na II Carta aos Corntios: O amor de Cristo nos constrange (5, 14). A conscincia de que, n'Ele, o prprio Deus Se entregou por ns at morte, deve induzir-nos a viver, no mais para ns mesmos, mas para Ele e, com Ele, para os outros. Quem ama Cristo, ama a Igreja e quer que esta seja cada vez mais expresso e instrumento do amor que d'Ele dimana. O colaborador de qualquer organizao caritativa catlica quer trabalhar com a Igreja, e consequentemente com o Bispo, para que o amor de Deus se espalhe no mundo. Com a sua participao na prtica eclesial do amor, quer ser testemunha de Deus e de Cristo e, por isso mesmo, quer fazer bem aos homens gratuitamente.

    34. A abertura interior dimenso catlica da Igreja no poder deixar de predispor o colaborador a sintonizar-se com as outras organizaes que esto ao servio das vrias formas de necessidade; mas isso dever verificar-se no respeito do perfil especfico do servio requerido por Cristo aos seus discpulos. No seu hino caridade (cf. 1 Cor 13), So Paulo ensina-nos que a caridade sempre algo mais do que mera actividade: Ainda que distribua todos os meus bens em esmolas e entregue o meu corpo a fim de ser queimado, se no tiver caridade, de nada me aproveita (v. 3). Este hino deve ser a Magna Carta de todo

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  • o servio eclesial; nele se encontram resumidas todas as reflexes que fiz sobre o amor, ao longo desta Carta Encclica. A aco prtica resulta insuficiente se no for palpvel nela o amor pelo homem, um amor que se nutre do encontro com Cristo. A ntima participao pessoal nas necessidades e no sofrimento do outro torna-se assim um dar-se-lhe a mim mesmo: para que o dom no humilhe o outro, devo no apenas dar-lhe qualquer coisa minha, mas dar-me a mim mesmo, devo estar presente no dom como pessoa.

    35. Este modo justo de servir torna humilde o agente. Este no assume uma posio de superioridade face ao outro, por mais miservel que possa ser de momento a sua situao. Cristo ocupou o ltimo lugar no mundo a cruz e, precisamente com esta humildade radical, nos redimiu e ajuda sem cessar. Quem se acha em condies de ajudar h-de reconhecer que, precisamente deste modo, ajudado ele prprio tambm; no mrito seu nem ttulo de glria o facto de poder ajudar. Esta tarefa graa. Quanto mais algum trabalhar pelos outros, tanto melhor compreender e assumir como prpria esta palavra de Cristo: Somos servos inteis (Lc 17, 10). Na realidade, ele reconhece que age, no em virtude de uma superioridade ou uma maior eficincia pessoal, mas porque o Senhor lhe concedeu este dom. s vezes, a excessiva vastido das necessidades e as limitaes do prprio agir podero exp-lo tentao do desnimo. Mas precisamente ento que lhe serve de ajuda saber que, em ltima instncia, ele no passa de um instrumento nas mos do Senhor; libertar-se- assim da presuno de dever realizar, pessoalmente e sozinho, o necessrio melhoramento do mundo. Com humildade, far o que lhe for possvel realizar e, com humildade, confiar o resto ao Senhor. Deus quem governa o mundo, no ns. Prestamos-Lhe apenas o nosso servio por quanto podemos e at onde Ele nos d a fora. Mas, fazer tudo o que nos for possvel e com a fora de que dispomos, tal o dever que mantm o servo bom de Cristo sempre em movimento: O amor de Cristo nos constrange (2 Cor 5, 14).

    36. A experincia da incomensurabilidade das necessidades pode, por um lado, fazer-nos cair na ideologia que pretende realizar agora aquilo que o governo do mundo por parte de Deus, pelos vistos, no consegue: a soluo universal de todo o problema. Por outro lado, aquela pode tornar-se uma tentao para a inrcia a partir da impresso de que, seja como for, nunca se levaria nada a termo. Nesta situao, o contacto vivo com Cristo a ajuda decisiva para prosseguir pela justa estrada: nem cair numa soberba que despreza o homem e, na realidade, nada constri, antes at destri; nem abandonar-se resignao que impediria de deixar-se guiar pelo amor e, deste modo, servir o homem. A orao, como meio para haurir continuamente fora de Cristo, torna-se aqui uma urgncia inteiramente concreta. Quem reza no desperdia o seu tempo, mesmo quando a situao apresenta todas as caractersticas duma emergncia e parece impelir unicamente para a aco. A piedade no afrouxa a luta contra a pobreza ou mesmo contra a misria do prximo. A Beata Teresa de Calcut um exemplo evidentssimo do facto que o tempo dedicado a Deus na orao no s no lesa a eficcia nem a operosidade do amor ao prximo, mas realmente a sua fonte inexaurvel. Na sua carta para a Quaresma de 1996, esta Beata escrevia aos seus colaboradores leigos: Ns precisamos desta unio ntima com Deus na nossa vida quotidiana. E como poderemos obt-la? Atravs da orao .

    37. Chegou o momento de reafirmar a importncia da orao face ao activismo e ao secularismo que ameaa muitos cristos empenhados no trabalho caritativo. Obviamente o cristo que reza, no pretende mudar os planos de Deus nem corrigir o que Deus previu; procura, antes, o encontro com o Pai de Jesus Cristo, pedindo-Lhe que esteja presente, com o conforto do seu Esprito, nele e na sua obra. A familiaridade com o Deus pessoal e o abandono sua vontade impedem a degradao do homem, salvam-no da priso de doutrinas

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  • fanticas e terroristas. Um comportamento autenticamente religioso evita que o homem se arvore em juiz de Deus, acusando-O de permitir a misria sem sentir compaixo pelas suas criaturas. Mas, quem pretender lutar contra Deus tomando como ponto de apoio o interesse do homem, sobre quem poder contar quando a aco humana se demonstrar impotente?

    38. certo que Job pde lamentar-se com Deus pelo sofrimento, incompreensvel e aparentemente injustificado, presente no mundo. Assim se exprime ele na sua dor: Oh! Se pudesse encontr-Lo e chegar at ao seu prprio trono! (...) Saberia o que Ele iria responder-me e ouviria o que Ele teria para me dizer. Oporia Ele contra mim o seu grande poder? (...) Por isso, a sua presena me atemoriza; contemplo-O e tremo diante d'Ele. Deus enervou o meu corao, o Omnipotente encheu-me de terror (23, 3.5-6. 15-16). Muitas vezes no nos concedido saber o motivo pelo qual Deus retm o seu brao, em vez de intervir. Alis Ele no nos impede sequer de gritar, como Jesus na cruz: Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste? (Mt 27, 46). Num dilogo orante, havemos de lanar-Lhe em rosto esta pergunta: At quando esperars, Senhor, Tu que s santo e verdadeiro? (Ap 6, 10). Santo Agostinho d a este nosso sofrimento a resposta da f: Si comprehendis, non est Deus se O compreendesses, no seria Deus . [35] O nosso protesto no quer desafiar a Deus, nem insinuar n'Ele a presena de erro, fraqueza ou indiferena. Para o crente, no possvel pensar que Ele seja impotente, ou ento que esteja a dormir (cf. 1 Re 18, 27). Antes, a verdade que at mesmo o nosso clamor constitui, como na boca de Jesus na cruz, o modo extremo e mais profundo de afirmar a nossa f no seu poder soberano. Na realidade, os cristos continuam a crer, no obstante todas as incompreenses e confuses do mundo circunstante, na bondade de Deus e no seu amor pelos homens (Tt 3, 4). Apesar de estarem imersos como os outros homens na complexidade dramtica das vicissitudes da histria, eles permanecem inabalveis na certeza de que Deus Pai e nos ama, ainda que o seu silncio seja incompreensvel para ns.

    39. A f, a esperana e a caridade caminham juntas. A esperana manifesta-se praticamente nas virtudes da pacincia, que no esmorece no bem nem sequer diante de um aparente insucesso, e da humildade, que aceita o mistrio de Deus e confia n'Ele mesmo na escurido. A f mostra-nos o Deus que entregou o seu Filho por ns e assim gera em ns a certeza vitoriosa de que isto mesmo verdade: Deus amor! Deste modo, ela transforma a nossa impacincia e as nossas dvidas em esperana segura de que Deus tem o mundo nas suas mos e que, no obstante todas as trevas, Ele vence, como revela de forma esplendorosa o Apocalipse, no final, com as suas imagens impressionantes. A f, que toma conscincia do amor de Deus revelado no corao trespassado de Jesus na cruz, suscita por sua vez o amor. Aquele amor divino a luz fundamentalmente, a nica que ilumina incessantemente um mundo s escuras e nos d a coragem de viver e agir. O amor possvel, e ns somos capazes de o praticar porque criados imagem de Deus. Viver o amor e, deste modo, fazer entrar a luz de Deus no mundo: tal o convite que vos queria deixar com a presente Encclica.

    CONCLUSO

    40. Por fim, olhemos os Santos, aqueles que praticaram de forma exemplar a caridade. Penso, de modo especial, em Martinho de Tours ( 397), primeiro soldado, depois monge e Bispo: como se fosse um cone, ele mostra o valor insubstituvel do testemunho individual da caridade. s portas de Amiens, Martinho partilhara metade do seu manto com um pobre; durante a noite, aparece-lhe num sonho o prprio Jesus trazendo vestido aquele manto, para confirmar a perene validade da sentena evanglica: Estava nu e destes-Me de vestir (...). Sempre que fizestes isto a um destes meus irmos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes

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  • (Mt 25, 36.40). [36] Mas, na histria da Igreja, quantos outros testemunhos de caridade podem ser citados! Em particular, todo o movimento monstico, logo desde os seus incios com Santo Anto Abade ( 356), exprime um imenso servio de caridade para com o prximo. No encontro face a face com aquele Deus que Amor, o monge sente a impelente exigncia de transformar toda a sua vida em servio do prximo, alm do de Deus naturalmente. Assim se explicam as grandes estruturas de acolhimento, internamento e tratamento que surgiram ao lado dos mosteiros. De igual modo se explicam as extraordinrias iniciativas de promoo humana e de formao crist, destinadas primariamente aos mais pobres, de que se ocuparam primeiro as ordens monsticas e mendicantes e, depois, os vrios institutos religiosos masculinos e femininos ao longo de toda a histria da Igreja. Figuras de Santos como Francisco de Assis, Incio de Loyola, Joo de Deus, Camilo de Lllis, Vicente de Paulo, Lusa de Marillac, Jos B. Cottolengo, Joo Bosco, Lus Orione, Teresa de Calcut para citar apenas alguns nomes permanecem modelos insignes de caridade social para todos os homens de boa vontade. Os Santos so os verdadeiros portadores de luz dentro da histria, porque so homens e mulheres de f, esperana e caridade.

    41. Entre os Santos, sobressai Maria, Me do Senhor e espelho de toda a santidade. NoEvangelho de Lucas, encontramo-La empenhada num servio de caridade prima Isabel, junto da qual permanece cerca de trs meses (1, 56) assistindo-a na ltima fase da gravidez. Magnificat anima mea Dominum A minha alma engrandece o Senhor (Lc 1, 46), disse Ela por ocasio de tal visita, exprimindo assim todo o programa da sua vida: no colocar-Se a Si mesma ao centro, mas dar espao ao Deus que encontra tanto na orao como no servio ao prximo s ento o mundo se torna bom. Maria grande, precisamente porque no quer fazer-Se grande a Si mesma, mas engrandecer a Deus. Ela humilde: no deseja ser mais nada seno a serva do Senhor (cf. Lc 1, 38.48). Sabe que contribui para a salvao do mundo, no realizando uma sua obra, mas apenas colocando-Se totalmente disposio das iniciativas de Deus. uma mulher de esperana: s porque cr nas promessas de Deus e espera a salv