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das Literaturasde Língua Portuguesa

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Edição realizadasob o patrocínio da

SOCIEDADE CIENTÍFICADA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

Direcção[osê AUGUSTO CARDOSO BERNARDES

(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

ANÍBAL PINTO DE CASTRO(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

MARIA DE LOURDES A. FERRAZ(da Faculdade de Letras - Universidade Clássica de Lisboa)

GLADSTONECHAVESDE MELO(da Faculdade de Letras - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

MARIA APARECIDARmEIRO(da Faculdade de Letras - Universidade de Coimbra)

Secretaria-Geral

A cargo doDepartamento de Enciclopédias da Editorial Verbo

sob a direcção de João Bigotte Chorão

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DOLCE STIL NOVOExpressão que Dante, no Purgatorio,

põe na boca do poeta Bonagiunta Orbic-ciani, ,,"O frate, issa vegg' io" diss' elli "ilnodo/che il Notaro e Guittone e me riten-ne/di qua dal dolce stil novo ch'i' odo?-(XXIV 55-57), retomada por De Sanctispara designar o grupo de poetas, activosentre finais do séc. XIII e inícios do se-guinte, onde avultam, no dizer deste cri-tico oitocentista, as personalidades lite-rárias de Guido Guinizzelli, o precursor,Guido Cavalcanti, o poeta, e Dante, amais clarividente consciência artística.Nos nossos dias, muitos mais nomes lhesão associados, tais como Cino da Pis-roia, Lapo Gianni, Gianni Alfani, DinoFrescobaldi, ou o anónimo «amigo deDanre», entre outros.

Interpretada a partir do seu contextooriginal, a expressão concede especial re-levo às características inovadoras da no-va maneira de poetar, que não encontraprecedentes nem no magistério do notá-rio ]acopo da Lentini, poeta da primeirametade do séc. XTIl que pertencia à cortesiciliana do imperador Frederico lI, nemem Guittone d'Arezzo (que Dante olhacom uma distância polémica, crítico co-mo é em relação ao seu moralismo sen-tencioso e à sua linguagem «plebeia»),nem no próprio Bonagiunta, principaisrepresentantes da chamada corrente sí-culo-toscana, através da qual a poesia cor-tês siciliana é transferi da para o terrenocultural centro-italiano. O novo canto to-ma por grande tema o sentimento amo-roso, modulado com uma doçura quedecorre quer de um apurado gosto for-malizante, quer de uma operação de de-puração lexical mercê da qual todos osvocábulos dialectais tidos por excêntri-cos são excluídos.

Para além desta plataforma genérica,ficam as intrincadas questões suscitadaspelo esclarecimento da acepção dantestade dolce stil novo, que têm vindo a darazo, nos últimos anos, a um vivo debate,cujo teor não seria oportuno relatar por-menorizadamente neste lugar. Em causa,oscilações não só entre o seu alcancepessoal ou de conjunto, como tambémentre a pertinência do uso da forma lexi-

cal trecentista novo ou da actualizadanuovo. Não encerrando a fórmula ne-nhuma definição de programa ou mani-festo de escola, muitos foram os críticosa interpretá-la como alusão à poéticapessoal de J"Dante, tanto mais sendo-lheassociada uma referência à canção da Vi-ta nuova que, no âmbito da organizaçãoestrutural desta obra, marca o repúdiodo amor paixão, em prol de uma novaconcepção do sentimento amoroso, elei-to meio de conhecimento que eleva espi-ritualmente: «Donne ch' avete intellettod' amore» (v. 51). Mas Dante fala comtanta humildade acerca de si mesmo, aoapresentar-se como um entre muitos,,,1'0 mi son un» (v. 52), que se poderásupor que seja visado todo um conjuntode poetas. E há quem vá mais longe, aoafirmar que uma definição da poéticaalheia não poderia deixar de auferir vali-dade no plano individual. Assim, se al-guns estudiosos propõem o uso da ex-pressão dolce stil novo em sentidoestritamente dantesco, e da stil novo paradesignar uma tendência de grupo, já ou-tras vozes advogam o uso indiferenciadode cada uma destas etiquetas, o que emnada serve o rigor crítico. Mantendo-se aquestão hermenêutica dantesca em aber-to, a fórmula não poderá ser considera-da, rigorosamente, senão como projectode definição, pelo que, em nosso enten-der, é mais ponderado e preciso utilizar anomenclatura stilnouo para designar estatendência literária na sua globalidade,conforme é hoje corrente.

Para além da fisionomia literária pró-pria de cada um dos poetas stilnovistas,esboçam-se algumas características geraiscomuns ao grupo. O stilnouo floresceem área centro-emiliana, paralelamenteao desenvolvimento de uma burguesiacomercial muito activa ligada ao poder,à qual, sob o ponto de vista sociológico,é geralmente associado, enquanto tenta-tiva de criar uma tradição literária autó-noma tanto em relação à Igreja, comoem relação aos baluartes feudais. Dante eCavalcanti contam-se de entre os poetasque participaram activamente no gover-no comunal. O amor converte-se emsentimento susceptível de conciliar oprestígio do universo cortês com a espi-

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rirualidade católica, e a nobreza de san-gue com a nobreza de alma, i. é, a corte-sia, que não se obtém por herança, pois éapanágio de todos aqueles que se distin-guem e elevam por palavras ou acções.Então o sentimento amoroso deixa deser exclusivo de uma elite fechada, parase converter em vivência superior que seatinge por mérito próprio, como o sinte-tiza a canção de Guinizzelli Al cor gentilrempaira sempre arnore.

Na poesia stilnouista é reservado umlugar central à mulher, descrita como serespirirualizado. A sua lauda assenta numprocesso de desrnaterializaçâo que visaabolir qualquer laivo de sensualidade,afastanto-se, neste sentido, da poesia pro-vençal, mas sem que dela se encontremausentes referências concretas - no sone-to «lo voglio dei ver la mia donna lauda-re», Guinizzelli compara-a à rosa, ao lírioe às estrelas. Intermediária entre Deus eo homem, esta mulher-anjo concede aopoeta o saluto susceptível de o guiar atra-vés de um itinerário de salvação, conformeo emblematiza a figura de Beatriz. En-quanto vivência interior de contacto comum absoluto supra-sensível, a experiênciaamorosa processa-se primordialmenteatravés da visão, ancestralmente associa-da à experiência religiosa. Assim sendo,o poeta não deseja mais do que contem-plar a amada, o que o relega para umaatitude passiva que em nada favorece aperscrutação analítica do seu mundo in-terior, conforme virá depois a ser levadaa cabo por /'Petrarca, mas a partir de ou-tras bases conceptuais.

Se estes poetas ganharam a fama de fi-lósofos, não foi pelo facto de terem ela-borado qualquer sistema filosófico origi-nal, mas porque, personalidades de vastacultura como o eram, ao reflectirem so-bre a essência do fenómeno amoroso,manejaram muitos conceitos próprios dotornismo e do franciscanismo agostinia-no. Neste âmbito, lugar à parte cabe aCavalcanti, pela influência do pensamen-to averroísta que os seus versos deno-tam. O amor é considerado processo deintelecrualização mediante o qual o dese-jo irracional que obnubila a razão e ossentidos se converte em ânsia de con-templação e de verdade. O célebre pessi-mismo cavalcantiano decorre das dúvi-

das suscitadas pela capacidade da razãoem alcançar o vértice do conhecimentosupremo.

Não se esqueça também que a paródiade certos temas stilnouistas não partiuapenas da corrente realista dita jocosa,pois também poetas como Guinizzelli,Cavalcanti, Cino ou Lapo, entre outros,escreveram, ocasionalmente, composi-ções em que troçam das concepçõesamorosas stilnouistas.

Nunca será excessivo insistir no carácterautónomo de que o stilnovo se reveste, jáque, não raro, opiniões menos informadastendem a identificá-lo arbitrariamentequer com a poesia trovadoresca, que oprecedeu, quer com o lirismo petrarquis-ta, que se lhe seguiu no tempo. O fundointirnista do /' petrarquismo acabará porsuperar o gosto elucubrativo característi-co do stilnouo, que encontra na Florençados Médicis, em consonância com a voganeoplatónica, o seu último período áu-reo. É provável que a poesia stilnouistativesse sido conhecida em Portugal, as-sunto a requerer uma pesquisa exaustiva.À parte o caso de Dante, cuja obra nãotardou a chegar até nós, lembre-se queCino da Pistoia é citado por Sá de Mi-randa, numa carta a Jorge de Montemor(a obra jurídica de Cino fazia parte,aliás, da culrura dos homens de leis por-tugueses). Se é absolutamente abusiva acomum asserção que faz de Sá de Miran-da o introdu tOr do stilnouo nas letrasportuguesas, é possível individuar ele-mentos stilnovistas em algumas das suascomposições.BIBLIOGRAFIA: G. Manuppella, Dantesca Luso--Brasileira, Universidade de Coimbra, 1966; M.Marti, Storia dello stil nuoua, Lecce, 1973; G. Fava-ri, lnchiesta sul dolce stil nuouo, Florença, 1975; E.Pasquini e A. E. Quaglio, Lo stil novo e la poesiareligiosa, Bari, '1981; J. V. de Pina Martins, .Sá deMiranda and the reception of a revived do ice stilnuouo», in Portuguese Studies, 1, 1985.

Rita Marnoto

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