ENCONTRANDO A ESCOLA- A ESCRITA E A IMAGEM NA … · Como diz Larrosa (1994): "É contando...

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"ENCONTRANDO A ESCOLA"- A ESCRITA E A IMAGEM NA FORMAÇÃO DOCENTE Marise Basso Amaral - Universidade Federal Fluminense Aí, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia e deu à ela, uma por uma, cada coisa da cesta. "Que criança adorável que me traz essas coisas maravilhosas", pensou Dona Antônia. Então ela começou a lembrar.... (Fox, 2005) Começo esse texto com um trecho de uma história que sempre conto aos alunos no início da disciplina de Pesquisa e Prática de Ensino II (PPEII), do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas/UFF. Essa disciplina é a primeira do curso em que eles irão para a escola realizando apenas observações, sem assumir nenhuma atividade de regência. No caso, irão acompanhar ao longo de um semestre uma turma, escolhida por eles, ou pela coordenação. Mas voltando à história inicial ... Guilherme Augusto Araújo Fernandes era vizinho de um asilo de velhos, todos seus amigos, mas era da Dona Antonia Maria Diniz Cordeiro, que como ele tinha 4 nomes, de quem ele mais gostava. Quando descobre que sua amiga mais querida havia perdido a memória, quis saber o que isso significava e sai perguntando aos seus pais e seus amigos do asilo. Ele aprende que memória é algo de que você se lembre, bem antigo, que faz rir, faz chorar, vale ouro e é algo quente. Então com essas explicações ele sai a cata de objetos que, para ele, provoquem tais sensações. Ele reúne todos eles numa cesta e a entrega à Dona Antônia, como um presente. Ela começa a mexer naqueles objetos maravilhosos (conchas, marionete, medalha, bola de futebol e um ovo de galinha ainda bem quentinho) e cada um deles traz de volta histórias suas, antes esquecidas. O livro termina dizendo que toda a memória perdida por Dona Antônia foi encontrada por um menino que nem era tão velho assim. Essa história é contada aos alunos e alunas no primeiro dia de aula. Uma contação de história para colocar em movimento a memória. No caso, memórias escolares. A partir dela peço aos alunos para trazerem para aula um objeto da sua época da escola e a partir dele

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"ENCONTRANDO A ESCOLA"- A ESCRITA E A IMAGEM

NA FORMAÇÃO DOCENTE

Marise Basso Amaral - Universidade Federal Fluminense

Aí, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia

e deu à ela, uma por uma, cada coisa da cesta.

"– Que criança adorável que me traz essas coisas

maravilhosas", pensou Dona Antônia.

Então ela começou a lembrar....

(Fox, 2005)

Começo esse texto com um trecho de uma história que sempre conto aos alunos no

início da disciplina de Pesquisa e Prática de Ensino II (PPEII), do curso de Licenciatura em

Ciências Biológicas/UFF. Essa disciplina é a primeira do curso em que eles irão para a escola

realizando apenas observações, sem assumir nenhuma atividade de regência. No caso, irão

acompanhar ao longo de um semestre uma turma, escolhida por eles, ou pela coordenação.

Mas voltando à história inicial ... Guilherme Augusto Araújo Fernandes era vizinho de um

asilo de velhos, todos seus amigos, mas era da Dona Antonia Maria Diniz Cordeiro, que como

ele tinha 4 nomes, de quem ele mais gostava. Quando descobre que sua amiga mais querida

havia perdido a memória, quis saber o que isso significava e sai perguntando aos seus pais e

seus amigos do asilo. Ele aprende que memória é algo de que você se lembre, bem antigo, que

faz rir, faz chorar, vale ouro e é algo quente. Então com essas explicações ele sai a cata de

objetos que, para ele, provoquem tais sensações. Ele reúne todos eles numa cesta e a entrega à

Dona Antônia, como um presente. Ela começa a mexer naqueles objetos maravilhosos

(conchas, marionete, medalha, bola de futebol e um ovo de galinha ainda bem quentinho) e

cada um deles traz de volta histórias suas, antes esquecidas. O livro termina dizendo que toda

a memória perdida por Dona Antônia foi encontrada por um menino que nem era tão velho

assim.

Essa história é contada aos alunos e alunas no primeiro dia de aula. Uma contação de

história para colocar em movimento a memória. No caso, memórias escolares. A partir dela

peço aos alunos para trazerem para aula um objeto da sua época da escola e a partir dele

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solicito que cada um narre seu tempo na escola. Conto uma história para colocar outras em

movimento. Como diz Larrosa (1994): "É contando histórias, nossas próprias histórias, o que

nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a nós próprios uma

identidade no tempo"(p.66). Assim, aposto que para a formação dos futuros professores,

resgatar, recontar e mesmo reinventar suas memórias escolares é uma ação significativa para

sua formação. Também acredito que criar possibilidades de vários exercícios de escrita nesse

processo de ir se aproximando da escola, dos alunos, dos professores, do currículo ao longo

da disciplina, é uma prática formativa importante aos futuros docentes.

Cabe ainda outra contextualização para as discussões e escolhas que trago nesse texto.

Essa diz respeito à articulação estabelecida entre as atividades realizadas ao longo de um

semestre da disciplina de PPEII (citada no início desse texto) e as leituras realizadas no grupo

de pesquisa CDC (Currículo, Docência e Cultura), que focalizaram, ao longo de 2016, o tema

"Memória, Narrativas e Experiências na formação docente", exploradas na linha de pesquisa

Pedagogias Culturais e Linguagens. Tal espaço criado permitiu ensaiar um exercício reflexivo

sobre as atividades construídas ao longo da disciplina. Tais atividades partiram de um

entendimento que prioriza, na formação de futuros professores de ciências e biologia, a

invenção de outras possibilidades narrativas ao longo do estágio supervisionado.

Como professora das disciplinas de estágio docente, orientando licenciandos e

licenciandas em suas experiências em sala de aula, tenho sistematicamente me preocupado

com a escrita desses mesmos ao produzirem seus registros e ao construírem seus relatórios

finais de estágio. Também tenho me questionado como este processo de escrita, encerrado e

muitas vezes engessado nas disciplinas, pode dialogar, potencializar e inspirar a "criação de

outras narrativas sobre o que se ensina, sobre o mundo, sobre a nossa relação com o mundo,

cultivando um olhar inventivo e menos conformado pelo que já está dado, pelo que já se sabe,

pelo que ‘tem que ser’” (Sampaio&Amaral, 2015). Neste sentido tenho ensaiando com os

alunos outras possibilidades de escrever sobre a experiência, outras formas de contar o que se

passou com eles, no seu tempo de estágio. Tomo aqui o conceito de experiência

principalmente a partir de Larrosa (2002, 2015). Se antes o enfoque era tentar que, através do

tempo e espaços narrativos oportunizados pela escrita ao longo da disciplina, os alunos

pudessem decantar esta experiência, agora, tenho enfatizado, também, em como eles podem

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subvertê-la, desviarem-se dela, entrar em contradição, desdizerem-se e perder um pouco o

rumo. Enfim, inspirada em trabalhos como Amorim (2014) e Guimarães (2014), tenho

tentando pensar a escrita na formação docente oportunizando um deslocamento das linhas do

caderno em direção às margens. E, nesse percurso, de certo modo, encontrar nas bordas um

lugar de potência, de exercício de liberdade, de pequenos e cotidianos protagonismos. Assim,

mais numa perspectiva ensaística, na dimensão de ir "tateando" caminhos e também

desencontros, esse trabalho se debruça sobre os movimentos de escrita feitos pelos

licenciandos e licenciandas em seu "primeiro" contanto, como estagiários e estagiárias, com

as escolas. Tais "exercícios" envolveram a produção de diários de campo, fotografias, cartas e

uma avaliação do estágio com perguntas que tentaram permitir pensar sobre esse tempo

vivido na escola a partir de outras cenas e artefatos, tais como: imagens, filmes, letras de

música, literatura. Neste breve trabalho irei me debruçar mais detidamente numa das

atividades realizadas, envolvendo a produção de imagens da escola e narrativas sobre as

mesmas.

Percursos, mapas, itinerários e exercícios de formação

Muito das discussões e acordos feitos em PPEII tiveram como inspiração os próprios

textos lidos na e para a disciplina. Um deles, que já foi objeto de estudos mais intensos em

outros semestres, mas que seguiu inspirando o trabalho realizado ao longo de 2016, foi o livro

"Encontrar Escola - o ato educativo e a experiência da pesquisa em educação". Este trata de

colocar em movimento "a força de uma experiência educativa nascida da escola skholé, de

caminhar e escrever, de pensar e imaginar, de investigar e investigar-se e da impossibilidade

de manter uma clara separação entre teoria e prática" ( Kohan&Martins, 2014, p.8). Assim, a

ideia é fazer com que os alunos e as alunas de PPEII se lancem nessa aventura de retorno à

escola, voltem a habitar um espaço e tempo escolares definidos, uma turma do Ensino

Fundamental II ou Ensino Médio e possam, a partir desse território, criar formas de narrar,

registrar, contar, investigar e viver intensamente essa experiência.

Para tanto, os alunos e as alunas recebem no início do semestre um caderno de

presente. Esse caderno é customizado por eles, organizado segundo suas necessidades de

escrita e transformado em um diário de campo. Nele serão registradas as aulas, os encontros,

os embates, as histórias, os silêncios, as entrevistas, os diálogos, os desenhos capturados e

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produzidos nesse tempo acompanhando distintas turmas em distintas escolas. Também os

exercícios de escrita solicitados ao longo da disciplina, bem como as anotações dos alunos e

reflexões sobre os textos lidos podem habitar as páginas do caderno. Neles, geralmente a

escrita aparece ora como descrição, ora como interrogação ou indignação. Nas páginas dos

cadernos também encontramos perplexidades, divagações e reflexões sobre os dias passados

ao longo do estágio.

Em 2016, pedi pela primeira vez a uma turma com 17 alunos que fotografassem a

escola, no sentido de acessar, através dessas imagens, suas experiências de estágio. Solicitei

que cada um fizesse três imagens e escrevesse uma legenda para cada uma delas. Depois

escolhesse uma das fotografias feitas para, a partir dela, escrever um pouco mais. Tudo me foi

enviado e aquelas fotos escolhidas pelos alunos como as mais significativas (sobre a qual

deveriam escrever um pouco mais) foram impressas em papel fotográfico em tamanho 13x15.

Numa aula seguinte, levei as fotos dos alunos, que foram expostas com suas legendas, num

painel onde a turma pode observá-las. Nesse momento não coloquei os pequenos textos feitos

por cada um sobre a foto escolhida, pois muitos ainda não haviam me entregado essa parte da

atividade. Depois de um tempo olhando e comentando as fotos, pedi que todos retornassem a

seus lugares e fui entregando a cada um uma das fotos expostas, a condição nesse momento

foi que ninguém ficaria com uma foto sua. Aí distribuí para cada um uma folha de papel com

linha e solicitei que escrevessem com aquelas imagens sobre a escola e sobre seus estágios. A

ideia, tal como foi proposto em relação aos textos de cada um sobre suas próprias fotografias,

não era descrever o que estava na imagem fotográfica, mas o que - com a imagem, contra ela,

a partir dela ou apesar dela - eles poderiam passar a dizer sobre a escola (Larrosa, 1998).

Inspirada no trabalho de Guimarães (2013), meu desejo ao organizar esse trabalho era

olhar imagens produzidas por alunos em formação sobre a escola e seus estágios e pensar,

com eles, modos de leitura dessas imagens fora da tradicional submissão das mesmas à

narrativa, ou vice-versa. Como diz esse autor, transformar esse trabalho com as imagens num

exercício de investigação para pensar "o que se potencializa ver na sala de aula em cena,

quando, na leitura de imagem, tiramos do foco seu caráter de registro, de ilustração de uma

prática pedagógica"(p.113). Tentei com meus alunos, nesse exercício pensar mais do que a

imagem nos conta, o que ela nos leva a pensar, o que podemos narrar, ficcionalizar para além

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dela. E nesse trabalho de pensar o estágio com as imagens autorais e com as imagens feitas

por outros e outras, achar um espaço para também narrar a experiência. E aqui, mais uma

vez, experiência é entendida a partir de Larrosa, (2002, 2014) como aquilo que nos toca, nos

passa, nos acontece. Lembrando também, como diz o mesmo autor, em outro texto, que "a

constituição narrativa da experiência de si não é algo que se produza em um solilóquio, em

um diálogo íntimo do eu consigo mesmo, mas em um diálogo entre narrativas, entre textos"

(Larrosa, 1998, p.67).

Passo então a apresentar aqui três imagens e as narrativas produzidas com e sobre elas.

A cidadania

A foto feita retrata uma parede descascada e desbotada, divida em duas cores. Na parte

superior uma faixa horizontal branca, na parte inferior, a faixa mais larga que cobre de azul

escuro a maior parte da parede. No limite entre o azul e o branco, a palavra CIDADANIA

estampada com letras coloridas e em estilo grafite ocupa o centro da imagem e da parede.

"O que preciso para ser um bom cidadão?

O autor dessa imagem, ao escrever sobre ela, compõe uma narrativa bem organizada,

que vai dialogando com o leitor, encaminhando perguntas e construindo um entendimento

linear e progressivo sobre o assunto. Seria quase o que poderíamos chamar de uma narrativa

"escolar" que se ocupa em contextualizar e explicar a palavra cidadania e em estabelecer a

ligação entre ela e a escola. "Entre vários grafites na parede da escola, a palavra cidadania é

grifada... Mas o que ela faz ali?!!" A pergunta feita no texto, mais do que um estranhamento,

quer criar um recurso para apresentar o que o texto afirma sobre o papel da escola em relação

à cidadania, bem como um determinado sentido de cidadania (direitos e deveres). A resposta

dada no texto explica a cidadania como uma construção da escola com seus alunos,

"...iniciando um longo caminho que será percorrido por toda a nossa vida...". Marcando

também que é na escola que os alunos têm o primeiro contato com os deveres e direitos. Ao

final, uma última pergunta é feita no texto: " O que preciso pra ser um bom cidadão?".

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"...mil possibilidades de ser..."

O segundo texto produzido sobre essa mesma imagem foi feito, tal como marcado

anteriormente, por alguém que recebeu essa imagem aleatoriamente e foi solicitado a escrever

sobre ela em aula. E nesse caso, esse segundo texto foi marcado por um tom fortemente

reflexivo. É um texto que parece escrever para dentro de si, mas ao mesmo tempo é também

um texto afirmativo, que estabelece resoluções pessoais, quase um manifesto. Através da

narrativa, esse sujeito que escreve se coloca em exposição, "em aberto" ( Larrosa, 2002) nas

linhas do papel. Frases como "É isso que me move" , ou "Essa vontade louca de ser o meu

melhor, para mim e para os outros", vão marcando um ritmo e uma presença na escrita. Outro

fato muito interessante é que, mesmo sem ter lido nada do texto anterior, esse texto

"conversa" com o mesmo de modo muito próximo. É quase uma resposta, mas ampliando

muito seus sentidos. Traz uma dimensão de construção da cidadania como individual e

coletiva, cotidiana e árdua, diz o texto: "A cidadania está muito longe da realidade do

brasileiro, pois a conquista dos direitos políticos, sociais e civis não consegue ocultar a

miséria, o analfabetismo, o desemprego, a violência, o descaso, o desamor...". Esses dois

últimos, inscritos de forma contundente nos descascados da parede escolar. Aqui a autora no

ato de escrever transforma a si mesma. Redefine um pouco seus contornos e assume posições,

"Por isso eu vou caminhando e descobrindo as mil possibilidades de ser: mulher, bióloga,

licencianda, indivíduo, cidadã do mundo".

Pensando no que foi dito anteriormente nesse trabalho, na forma como podemos falar

com as imagens, me chamou a atenção nessa primeira fotogafia, essa cidadania leve, jovem,

brincalhona e feliz materializada na parede da escola. Afirmando-se e resistindo sobre uma

parede descascada pelo descaso e pelo tempo. Ali, em cores, a cidadania vibra sendo

reivindicada até que novas tintas a apaguem. Não sabemos as histórias dessa inscrição na

parede, quem foram seus autores, seus artistas, um ou muitos, trabalho coletivo ou de poucos,

com ou sem orientação. Não sabemos também de quem é a voz ou são as vozes que gritam

cidadania na parede. Não sabemos bem... mas podemos imaginar, podemos ficcionar e

sabemos que ela reverbera. Chama minha atenção que o autor dessa imagem, nesse pequeno

exercício de escrita praticamente se retira do texto. Sua cena do estágio, nesse recorte

específico, não lhe permite olhar para si mesmo. A pergunta ao seu final, mesmo sendo feita

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na primeira pessoa, não parece uma reflexão, mas antes, uma pergunta 'didática' que abriria ou

antecederia uma lista de atributos e atitudes. É um texto que foca a escola e seus papéis.

Através da imagem escolhida, elege a escola como o local de iniciação de um longo e

continuo aprendizado sobre cidadania, visão muito próxima de escola tal como concebida na

modernidade, e de certa forma como vivida e experimentada ainda, por muitos de nós.

O segundo texto sobre a imagem 1, por sua vez, parece ter maior liberdade de

significação. A imagem em mãos, que permitiu/provocou a escrita do texto não é uma

imagem autoral assim como a cena fotografada diz respeito àquela escola em particular.

Enfim, é uma imagem feita por outra pessoa, por um colega, que conta sobre outra escola.

Fico me questionando se ao escrever a partir da imagem de outro, é possível fugir mais

facilmente da convenção de "explicar" bem aquilo que se escolheu olhar na escola, por

exemplo. Tal liberdade, talvez pudesse permitir escapar melhor das armadilhas da imagem, e

de seu uso como retrato/cena/representação de uma experiência educativa. Assim, a escrita do

segundo texto é muita mais reflexiva, fluída, autoral e poética. A narrativa do segundo texto

permite ir além do que a imagem diz, e outras coisas ganham visibilidade nessa dimensão. Ao

mesmo tempo, no segundo texto é a dimensão da escola que desaparece, é ela quem é retirada

da narrativa feita. Cidadania não é algo que só se adquire na escola, através da aprendizagem

dos direitos e deveres. Cidadania, no segundo texto, diz respeito a nossa humanidade

individual e coletiva, seus limites e experimentações, num ir e vir constante atravessado por

muitos interesses e pelas "...mil possibilidades de ser...".

O muro

A segunda foto foi feita de dentro do pátio da escola, focalizando o muro da escola.

Sentados neste muro estão três jovens que o acessaram pelo lado de fora, vindos da rua. Sabe-

se isso com certeza, porque o muro na parte interna da escola é muito alto, não podendo ser

escalado a partir do seu pátio interno. Na foto percebe-se que o muro sobe ainda bastante em

relação a tabela de basquete da quadra de esportes. Os três adolescentes estão sentados na

parte do muro que é sombreada pela copa de uma árvore da rua, ficando desse modo, um

pouco camuflados. Deste local eles observam a quadra de esportes da escola.

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"Eles, ex-alunos, gostariam de estar ali."

Ao escrever sobre sua imagem, o autor constrói um texto muito bem organizado,

segmentado em quatro pequenos parágrafos, praticamente respeitando uma construção básica

com introdução, desenvolvimento e uma conclusão ao final. "As crianças vivem dizendo que

não querem ir para a escola. Que é chato estudar e estar lá. Porque aprender envolve dor, de

forma evidenciada nos textos de Larrosa...", assim ele inicia sua narrativa. O texto parece ter

vida própria, independente da imagem, não há preocupação nem em explicar, nem em citar a

foto. è possível dizer que em grande parte a narrativa prescinde da imagem. O autor ao longo

do texto, mais do que conversar com a ela, conversa com outros textos lidos e com discussões

feitas em aula: "...no texto 'Vim aqui para os 'comigos' de mim' mostra sobre a importância

da formação de memórias na escola. Memórias ruins, que fazem parte de nós tanto quanto as

boas, de forma que tirá-las é tirar uma parte de nós". Porém, ao final ele marca que escreve a

partir do que o momento congelado na fotografia lhe provocou e reconhece a dificuldade de

transformar sentimentos em palavras: "No mais, esse sentimento me deixou em estado de dor

passional. Certamente busquei os motivos lógicos para tal, mas não há como transcrever".

Em sua última frase uma afirmação importante sobre a sua fotografia, mas também , sobre a

escola, sobre os alunos e sobre aqueles sujeitos, em cima do muro: "Eles, ex-alunos,

gostariam de estar ali".

"Sentamos aqui para você entender.."

O texto produzido com essa imagem, por outra colega da disciplina, fugiu à regra da

maioria dos textos feitos. Ele se distanciou dos outros na escolha da forma e também do

conteúdo. A autora nos escreve um poema. Em algumas estrofes há versos que lembram uma

música, com ritmo e cadência. Embora o poema, não precise da imagem para fazer sentido, a

imagem se dissolve no mesmo, se faz presente o tempo todo. E é também um manifesto, no

poema os jovens em cima do muro podem falar. "Queremos ser vistos porque

existimos.Sentamos aqui para você entender." Ainda o poema estabelece um diálogo entre os

sujeitos de fora da escola e de dentro dela:

"Queremos ser vistos como seres humanos

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Afinal de contas todos somos

Portanto, ao delimitar onde posso ir

Cuidado

Para não limitar a minha visão

Sobre mim ao me perguntar:

Quem você acha que será na vida se não

sentar nesta carteira, prestar a atenção e estudar"

Aqui a escola não é apenas um lugar onde se gostaria de estar, tal como no texto

anterior. É também um território de disputa, de luta. Um local que também condiciona e

assujeita alunos e alunas e limita seus horizontes. No poema, do alto do muro os atores da

imagem narram sua condição e também, sua potência: "Pois eu já sou sujeito muito antes de

te conhecer (...) esse indivíduo que tem tantas dificuldades quanto sonhos e que apesar dos

muros eu posso ver, lá de cima, um futuro que eu possa conquistar, mesmo quando o mundo

não crê". Com sua narrativa poética, a autora confere ao muro novos contornos. Mais do que

apenas uma fronteira ente dois mundos, um limite material e simbólico, é também dele que se

pode olhar e enxergar um futuro. Aqui, os jovens no muro podem ou não ser alunos ou ex-

alunos da escola, não importa. O que importa ao e no poema é o que eles podem dizer, a partir

desse local, sobre a escola e sobre eles mesmos.

A imagem nessa fotografia é mesmo muito potente. O autor da foto, conseguiu com

ela e com seu texto traduzir os sentimentos que se colocaram para ele mais fortemente: a

escola como lugar de memória e de desejo. É importante registrar que o autor da foto sabe que

aqueles jovens em cima do muro foram alunos daquela escola. Seu texto apresenta a mesma

como um lugar onde coisas boas e ruins acontecem, a escola como espaço de vida. Mas cabe

dizer que algo na cena também escapa à apreensão em palavras. Ao finalizar, ao dizer que

algo se passou com ele, nesse instante entre olhar e fotografar, o autor também fala da

impossibilidade de narrar a experiência quando ela acontece, e traduz a mesma como um

padecimento, como uma dor passional. Como diz Larrosa (2014):

A experiência não é uma realidade, uma coisa, um fato,

não é fácil de definir, nem de identificar, não pode ser

objetivada, não pode ser produzida. E tampouco é um

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conceito, uma ideia clara e distinta. A experiência é algo

que (nos) acontece e que às vezes treme ou vibra, algo

que nos faz pensar, algo que nos faz sofrer ou gozar, algo

que luta pela expressão, e que às vezes, algumas vezes,

quando cai em mãos de alguém capaz de dar forma a esse

tremor, somente então, se converte em canto.(p.10)

O segundo texto consegue, me parece, se aproximar daquilo que Arfuch apud

Guimarães (2013) fala sobre a potência da imagem, como "o que permite 'ver o mundo de

outra maneira' - aceitando que não há 'um modo' imediato, direto, que não mediado pelo

simbólico", de acessar o cotidiano (p.115). A mesma autora segue argumentando que "não é

somente o que (...) a imagem nos oferece a ver, mas também o que nos pede" que é colocado

em jogo na nossa relação com as imagens. Assim, diante da pergunta feita em sala de aula,

sobre o que as imagens produzidas pelo grupo da disciplina demandam e fazem pensar sobre a

escola e sobre o estágio, a resposta dada no segundo texto movimenta outras possibilidades

estéticas. Para isso constrói uma outra forma de escrever, portanto, de narrar e significar a

experiência. Um movimento de escrita colocado em ação por uma imagem. Talvez esse

segundo texto seja o canto, que no primeiro texto vibrou intensamente.

A sala de aula

A terceira foto é feita do fundo de uma sala de aula. Ela captura o professor em frente

a um grupo de estudantes que parecem representar a maior parte da turma, mas não se pode

ver nem o quadro negro nem a porta de entrada da sala. A imagem é literalmente iluminada

por uma faixa de luz que entra pelas janelas (essas também não aparecem na foto), atingindo

vários alunos, e também o professor. A sala tem um pé direito alto e as paredes dividem as

cores branca e azul. No canto da parede estão dois ventiladores, entre eles um pequeno cartaz

indicando o cantinho da leitura. Os alunos estão de costas para quem olha a foto, a maioria

deles parece concentrada olhando para seus cadernos, talvez copiando algo, alguns também

olham para o professor que no momento da foto parece estar muito à vontade falando com

seus alunos.

"Trata-se de uma cena de respeito.."

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O autor da fotografia inicia seu texto falando sobre o desrespeito com professores e

elenca esse como "um dos fatos mais presenciados e talvez um dos mais preocupantes nos

últimos tempos observados em sala de aula". Ele também diz que isso é condicionado por

uma série de fatores (professores, escola, métodos utilizados, estrutura da escola), mas ao

escolher sua imagem, ele quer justamente registrar o oposto a essa situação, como ele mesmo

afirma no texto: "... trata-se de uma cena de respeito dos alunos para com o professor". Um

texto direto, que conversa o tempo todo com a cena. A imagem é a razão de existir do texto, é

o que dá ao texto suporte e significado. O texto todo explica o que é retratado na imagem. O

autor de ambos, imagem e texto ressalta que até poderiam ser olhadas outra coisa na imagem,

mas que ele atenta para a "demonstração de respeito encontrada e observada na cena". A

imagem é a materialidade do que ele viu acontecer em aula. O texto também apresenta o

professor, como alguém que é "extremamente respeitado em toda a escola", atribuindo ao

mesmo algumas características: extrovertido, engraçado é compreensivo. Afirma ainda que é

um professor que respeita a individualidade dos alunos. Mais adiante no texto esclarece que a

"a imagem mostra um método que é usado pelo professor (...). É um método oral, conhecido

como ditado, onde o professor, em momento algum, utiliza a lousa, mas apenas palavras

fazendo com que os alunos tenham rápida capacidade de compreensão e habilidade para

escrever...". O respeito se materializa justamente no fato de que mesmo os alunos não

concordando com esse 'método', permanecerem em silêncio enquanto o professor fala. E

segundo o autor, esse "é um total fato para reflexão...".

"Pode ser que esse fato seja constante, ou foi somente um momento oportuno..."

O segundo texto sobre essa imagem é construído quase como uma breve resposta ao

que a imagem diz. Como o autor desse texto não estava lá, na cena, ele constrói hipóteses para

explicar a mesma: "um dos principais aspectos representados nesta imagem (...) é a maneira

com que o professor consegue cativar a turma e prender a atenção dos alunos para

determinado assunto". Para tal fato ele imagina algumas justificativas, segundo ele o

professor possui " algum tipo de didática ou trabalha o conteúdo de forma que faz com que os

alunos copiem a matéria". Também interroga-se se isso é assim de fato, ou foi "só um

momento oportuno em que a foto foi tirada".Aponta também que essa cena não conversa com

sua experiência de estágio, afirmando que os alunos lá estariam em outra faixa etária. Porém,

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consegue estabelecer pontos em comum no que diz respeito a uma preocupação que atravessa

as diferentes salas de aula; como trabalhar o conteúdo "e ao mesmo tempo preservar a

atenção dos alunos e evitar a distração".

Essa imagem traz um sala de aula comum, como tantas outras. Estão lá o professor,

alunos e alunas uniformizados num ambiente que demonstra tranquilidade e concentração. A

luz de fora invade a sala, aquecendo o ambiente. Parece mesmo uma cena harmoniosa,

acolhedora, parece que estão todos capturados pelas palavras do professor. Embora seja uma

cena que represente ações supostamente comuns à escola, como falar, explicar, ditar, copiar e

prestar atenção, ela ganha, nos dois textos, uma dimensão especial, quase mágica. E os dois

textos buscam explicar esse encantamento, ou quem sabe, estranhamento. O primeiro atribui

ao respeito entre professor e os alunos a razão para que todos copiem. O segundo diz que "tem

que ter algum tipo de didática", ou uma proposta de trabalho que faça com que os alunos

copiem a matéria. As narrativas sobre essa imagem ficam capturadas na dimensão didático-

pedagógica. Quando se olha a sala de aula, parece mais difícil ver outros sentidos e outras

possibilidades. Ainda em relação a isso, também são feitas algumas pressuposições no

primeiro texto, como se o fato de copiar o que estava sendo ditado pelo professor

automaticamente significasse entender, por parte dos alunos, o que está sendo copiado. No

outro texto é possível observar uma certa ansiedade em saber, ou melhor, em dominar essa

"didática", entendida como uma "técnica" que "consegue cativar a turma e prender a atenção

dos alunos". Assim, parece que tudo depende desse professor "iluminado" que consegue

sozinho e individualmente construir essa cena. E aos estagiários, o domínio desse enredo,

dessas habilidades especiais que permitem que a cena assim aconteça é ainda um grande

mistério.

Pontas soltas e costuras

Compartilhei nesse texto um breve exercício analítico ensaiado a partir das práticas

narrativas construídas ao longo da disciplina Pesquisa e Prática de Ensino. Ao propor tais

atividades, minha ideia era colocar em movimento textos, imagens, narrativas, sentidos sobre

a escola, sobre o estágio docente, sobre a formação, sobre nossos encontros semanais e

discussões. Pude perceber que os textos por eles produzidos são atravessados por vários

outros, ora se aproximando mais das discussões dos autores trabalhados ao longo do semestre,

Page 13: ENCONTRANDO A ESCOLA- A ESCRITA E A IMAGEM NA … · Como diz Larrosa (1994): "É contando histórias, nossas próprias histórias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que

ora se distanciando completamente dos mesmos, mostrando a complexidade das teias de

sentido através das quais os alunos vão compondo seus roteiros.

Referências Bibliográficas

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