Encontro com o Pintor Benjamin Marques · Ora, o que tem de interessante Paris é que, para além...

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64 n° 18 - septembre 2003 LATITUDES etc. Se não sai de Portugal, conhe- cerá somente por ouvir dizer, por reprodução. Ora, o que tem de interessante Paris é que, para além de ser um teste- munho de uma rara riqueza da arte do passado (aquela que não foi ela- borada em França, foi roubada e tra- zida para cá), é o lugar onde toda a ideia louca, de toda a Europa, (os iluminados que têm uma ideia qual- quer em que o seu país não acredi- ta e considera loucos, peneirentos, ou presumidos) vêm até Paris. A riqueza da dinâmica de Paris, no domínio das ideias, é essa mestiça- gem de todas as latitudes, desses poetas, pintores, escultores, escri- tores, filósofos, pesquisadores fugin- do a progroms, stalags, goulags , campos de concentração do passa- do, ou escapando ao escárnio, à toli- ce satisfeita e se encontram em Paris. Os Dali, Picasso, de Stael, Chagall, Modigliani, Foujita, Zao Wou-Ki, Souza-Cardoso ou Vieira da Silva são a semente da célebre cultura francesa! Já percebem, pois, porque vim para Paris. Esta é a segunda razão. Quase sempre, os jornalistas que me inter- rogam começam ou terminam por me perguntar com um sorriso fino: “Ó Benjamim então e as suas raízes?” Claro que as minhas raízes são por- tuguesas, mas tão ou mais impor- tante que elas são o tronco, os ramos, as flores e, sobretudo, os fru- tos. Já viram uma árvore só com raízes? Nós precisamos é de frutos. Se um país está convencido que quantos mais partirem para fora, mais lugares livres restam para os Latitudes — Porque motivo vieste para França? Benjamin Marques — Vim defini- tivamente para França em 58, tinha dezanove anos e havia terminado a Escola de Artes Decorativas António Arroio com o grau de mestre cera- mista. Devia então entrar nas Belas Artes mas decorria a grande greve universitária de 1958 que durou um ano... Estava livre de todo o serviço militar, por insuficiência física (de facto era magro como um prego e via-se que não tinha espírito mili- tar). Deve ter sido o último ano em que isso foi possível, visto que desde o ano seguinte começaram oficial- mente as guerras coloniais. Consegui a bolsa da Gulbenkian para vir para Paris estudar nas Belas Artes sob direcção de Vieira da Silva gra- ças ao Almada Negreiros, que, já muito velhinho mas lúcido e genero- so, (tenho uma grande dívida em relação a ele) me disse: “Se a minha assinatura lhe serve para ir para Paris, assino já.” E assinou a carta que o Artur Portela-Filho escreveu a pedir a bolsa para mim. Deram-na logo. Agarrei num avião e vim a toda a velocidade para Paris e foi um alívio. Finalmente estava livre do Portugal de Salazar! Em 1958, Lisboa era uma cidade estreitamente acanhada, pro- vinciana, alheia e longe de toda a vida cultural, política, social e económica de todo o resto da Europa; atrasada pelo menos qua- renta anos. País esmagado de sol, de fado, de futebol; encurralado contra o mar, com o peso esmaga- dor da Espanha (de Franco) nas costas. Lisboa ignorante de tudo o que se passava no mundo; mantida de joelhos diante do altar de N. Sra. de Fátima pela força dos 46 % de analfabetismo e a omnia presença da Pide, reinando graças à denúncia das cartas anónimas. Eu nem respi- rar podia em Portugal. Vim para Paris por estar farto de Portugal. Paris está situado, geogra- ficamente, numa situação central na Europa (que sorte para a França!). Todas as correntes do pensamento humano, toda a criação, todas as iniciativas, todos os acontecimentos culturais, filosóficos, económicos, políticos, sociais; todas as revolu- ções, novidades, etc. passam ou rea- lizam-se forçosamente por e em Paris. Portugal está lá no fundo da Europa. O país não tem culpa; é um país lindo, belas montanhas, colinas, vales risonhos, rios, planícies, falé- sias, praias, golfos, baías, etc. Tudo isso é belo (os pôr-do-Sol no ocea- no são uma atracção turística!). O pior é a sua situação em relação à Europa. Nunca nada lá chega a não ser de propósito, e porque o poder não encoraja a criação artística, cul- tural ou filosófica, a não ser as igre- jas, conventos ou palácios ... Os nos- sos museus não têm uma só pintura importante (fora um Bosch, um Van Dyck e os painéis de S. Vicente); não temos sequer um Da Vinci, Rafael, Veronese, Botticelli, ou Miguel Ângelo; nem um Vermeer, Brueghel, Rembrandt, etc. O mesmo sucede com a escultura, a música, com tudo o resto.O estudante por- tuguês precisa vir ver de visu a Paris, ao Louvre, a Orsay, a Marmottan, Encontro com o Pintor Benjamin Marques entrevista de Daniel Lacerda e Manuel Madeira Regressado há vários anos à pintura (depois de se ter envolvido no movimen- to surrealista), onde afirma uma forte personalidade artística, Benjamin Marques revela-nos nesta conversa as suas fontes de inspiração, os seus métodos de trabalho; faz-nos descobrir o seu envolvimento como encenador de teatro engagé nos bidonvilles e em Nanterre, a sua intervenção em Lisboa no pós 25 de Abril e, depois, a violenta ruptura com o mundo empresarial da informática para recuperar a liberdade do artista. Eis as revelações que gen- tilmente confiou aos leitores de Latitudes.

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etc. Se não sai de Portugal, conhe-cerá somente por ouvir dizer, porreprodução. Ora, o que tem de interessante Parisé que, para além de ser um teste-munho de uma rara riqueza da artedo passado (aquela que não foi ela-borada em França, foi roubada e tra-zida para cá), é o lugar onde toda aideia louca, de toda a Europa, (osiluminados que têm uma ideia qual-quer em que o seu país não acredi-ta e considera loucos, peneirentos,ou presumidos) vêm até Paris. Ariqueza da dinâmica de Paris, nodomínio das ideias, é essa mestiça-gem de todas as latitudes, dessespoetas, pintores, escultores, escri-tores, filósofos, pesquisadores fugin-do a progroms, stalags, goulags,campos de concentração do passa-do, ou escapando ao escárnio, à toli-ce satisfeita e se encontram em Paris.Os Dali, Picasso, de Stael, Chagall,Modigliani, Foujita, Zao Wou-Ki,Souza-Cardoso ou Vieira da Silvasão a semente da célebre culturafrancesa! Já percebem, pois, porque vim paraParis. Esta é a segunda razão. Quasesempre, os jornalistas que me inter-rogam começam ou terminam porme perguntar com um sorriso fino:“Ó Benjamim então e as suas raízes?”Claro que as minhas raízes são por-tuguesas, mas tão ou mais impor-tante que elas são o tronco, osramos, as flores e, sobretudo, os fru-tos. Já viram uma árvore só comraízes? Nós precisamos é de frutos. Se um país está convencido quequantos mais partirem para fora,mais lugares livres restam para os

Latitudes — Porque motivo viestepara França?Benjamin Marques — Vim defini-tivamente para França em 58, tinhadezanove anos e havia terminado aEscola de Artes Decorativas AntónioArroio com o grau de mestre cera-mista. Devia então entrar nas BelasArtes mas decorria a grande greveuniversitária de 1958 que durou umano... Estava livre de todo o serviçomilitar, por insuficiência física (defacto era magro como um prego evia-se que não tinha espírito mili-tar). Deve ter sido o último ano emque isso foi possível, visto que desdeo ano seguinte começaram oficial-mente as guerras coloniais. Consegui a bolsa da Gulbenkian paravir para Paris estudar nas Belas Artessob direcção de Vieira da Silva gra-ças ao Almada Negreiros, que, jámuito velhinho mas lúcido e genero-so, (tenho uma grande dívida emrelação a ele) me disse: “Se a minhaassinatura lhe serve para ir para Paris,assino já.” E assinou a carta que oArtur Portela-Filho escreveu a pedira bolsa para mim. Deram-na logo.Agarrei num avião e vim a toda avelocidade para Paris e foi um alívio. Finalmente estava livre do Portugalde Salazar! Em 1958, Lisboa era umacidade estreitamente acanhada, pro-vinciana, alheia e longe de toda avida cultural, política, social eeconómica de todo o resto daEuropa; atrasada pelo menos qua-renta anos. País esmagado de sol,de fado, de futebol; encurraladocontra o mar, com o peso esmaga-dor da Espanha (de Franco) nascostas. Lisboa ignorante de tudo o

que se passava no mundo; mantidade joelhos diante do altar de N. Sra.de Fátima pela força dos 46 % deanalfabetismo e a omnia presençada Pide, reinando graças à denúnciadas cartas anónimas. Eu nem respi-rar podia em Portugal.Vim para Paris por estar farto dePortugal. Paris está situado, geogra-ficamente, numa situação central naEuropa (que sorte para a França!).Todas as correntes do pensamentohumano, toda a criação, todas asiniciativas, todos os acontecimentosculturais, filosóficos, económicos,políticos, sociais; todas as revolu-ções, novidades, etc. passam ou rea-lizam-se forçosamente por e emParis. Portugal está lá no fundo da Europa.O país não tem culpa; é um paíslindo, belas montanhas, colinas,vales risonhos, rios, planícies, falé-sias, praias, golfos, baías, etc. Tudoisso é belo (os pôr-do-Sol no ocea-no são uma atracção turística!). Opior é a sua situação em relação àEuropa. Nunca nada lá chega a nãoser de propósito, e porque o podernão encoraja a criação artística, cul-tural ou filosófica, a não ser as igre-jas, conventos ou palácios ... Os nos-sos museus não têm uma só pinturaimportante (fora um Bosch, um VanDyck e os painéis de S. Vicente);não temos sequer um Da Vinci,Rafael, Veronese, Botticelli, ouMiguel Ângelo; nem um Vermeer,Brueghel, Rembrandt, etc. O mesmosucede com a escultura, a música,com tudo o resto.O estudante por-tuguês precisa vir ver de visu a Paris,ao Louvre, a Orsay, a Marmottan,

Encontro com o Pintor Benjamin Marques

entrevista de Daniel Lacerda e Manuel Madeira

Regressado há vários anos à pintura (depois de se ter envolvido no movimen-to surrealista), onde afirma uma forte personalidade artística, BenjaminMarques revela-nos nesta conversa as suas fontes de inspiração, os seusmétodos de trabalho; faz-nos descobrir o seu envolvimento como encenadorde teatro engagé nos bidonvilles e em Nanterre, a sua intervenção em Lisboano pós 25 de Abril e, depois, a violenta ruptura com o mundo empresarial dainformática para recuperar a liberdade do artista. Eis as revelações que gen-tilmente confiou aos leitores de Latitudes.

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que ficam, se não encorajam a maté-ria cinzenta, os cérebros criadores,estes vão para onde os encorajam erecebem de braços abertos. A ima-ginação, a criação, as ideias são umariqueza. Só os papalvos pensam ocontrário. Não se pense que o queimporta é o dinheiro das poupançasdepositado do estrangeiro paraPortugal. Dou um exemplo: A Vieirada Silva, portuguesa, veio para Paris,encontrou aqui o seu marido ArpadSzénes; casaram, o marido era judeu;durante a guerra, com a ocupaçãoda França, para fugir a Hitler quepretendia eliminar os judeus, refu-giaram-se ambos em Portugal. Era opaís dela. Chegaram lá, o Governo(Salazar) declara: “você já não éportuguesa; casou com um húnga-ro, é húngara; nós não a protege-mos; deixou de ser cidadã portu-guesa; tem oito dias para ir embora”.Era a Vieira da Silva, o maior pintorque Portugal teve, e o Arpad ! Umpaís (ou Governo) que recusa a cria-ção, a invenção, a imaginação, querecusa-se à ideia louca é um gover-no de velhos, morto... Hoje, já mor-tos, as personalidades oficiais vêmfazer homenagens à Vieira da Silva,mas em vida é que era preciso. Ossurrealistas, através das suas iniciati-vas, escritos e obras, não diziamoutra coisa mas com muito sentidode humor.

Latitudes — Quais eram os elemen-tos surrealistas que frequentavas noCafé Gelo de Lisboa; que preocupa-ções manifestavam e que actividadesdesenvolviam?B. M. — O Café Gelo era o únicosítio onde se podia ainda respirarum pouco. Tratava-se do sítio ondeos surrealistas dissidentes do gruposurrealista de Lisboa se reuniam,sobretudo, com Mário Cesariny deVasconcelos.

Latitudes — Como se poderia defi-nir essa ideia louca?B. M. — Para mim, é simplesmentepintar, pintar a minha pintura e nãocopiar a pintura dos outros. EmPortugal pediam-me: faça-me aí umboneco à la Picasso, modernaço,para dar a isto um ar moderno! Euestava farto de fazer à la Picasso equeria fazer à la Marques...

Latitudes —: Antes de vires, destecolaboração a jornais...B. M. — Comecei a publicar os pri-meiros desenhos aos doze anos! NoDiário de Notícias havia o suple-mento A Terra, para os agricultorese aí comecei por publicar uma ilus-tração para um conto de TrumanCapote. Quando do jornal me envia-ram o cheque de pagamento, nãopude encaixá-lo por ainda nãodispor de conta. A partir daí, todasas semanas publicava. Depois foino Diário de Lisboa, no SuplementoLiterário, onde cheguei a executarum desenho a cinco colunas, ondecomentava um acontecimento dasemana. Este desenho do grupo doCafé Gelo (mostra-nos a reprodu-ção), dos surrealistas dissidentes, é

de 1958, o único grupo onde sepodia respirar.Ainda fui do tempo do Raúl Leal, jávelho; do Helder Macedo, HerbertoHelder, do José Escada, do GonçaloDuarte, D’Assumpção, Manuel deCastro, Saldanha da Gama, o JoãoVieira. Este, com o Escada, fez partedo KWY. O João Rodrigues, já fale-cido, que tinha um sentido dehumor corrosivo, que destruía tudo,esteve cá comigo, quando vimtomar a temperatura de auto-stop,antes de 1958.Saí de Portugal com um diploma decerâmica da António Arroio. AsBelas Artes em Portugal estavamfechadas depois da grande greve de58. Com a bolsa venho para Paris,faço exame de admissão às Belas

Benjamin Marques pendant un débat avec le public portugais après le spectacle en langueportugaise “L’exception et la règle” de Bertold Brecht, Maison de la Culture de Nanterre,

octobre 1974.

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Artes e sou aceite. Ao mesmo tempofaço História da Arte na Escola doLouvre e inscrevo-me naUniversidade Internacional doTeatro das Nações, no antigo SarahBernardt onde estive quatro anos,pois interessava-me a parte ceno-gráfica.

Latitudes — Chegaste a praticarcerâmica?B. M. — Pouco; fiz dois painéis emFrança para municipalidades doVexin. E a pouco e pouco envere-dei para os cenários de teatro. ORogério Paulo também esteve comi-go os quatro anos na UniversidadeInternacional de Teatro, porque amaioria dos portugueses fazia umano e depois iam embora. Caso doDonato Bastos, actor, falecido há

cerca dum ano, do Luís, um mimo,que foi para o Canadá, com quemhabitei em Chaville. Este montouuma Petruska no teatro de Plaisance,hoje desaparecido.Depois comecei a trabalhar no tea-tro. Quem me lançou foi uma deco-radora brasileira que preparava apeça de Beckett, Comédia.Chegaram à antevéspera da estreiae o décor não se aguentava, caía.Então o director, o Jean-MarieSerreau, em desespero de causa,pediu-me para salvar a situação.Trabalhei dia e noite mas ficou pron-to; eram as célebres jarras, que pas-sou a ser o cenário reposto por todoo lado, na Suécia, em Nova York,etc. Naquela altura não registei osdireitos. É uma história com três per-sonagens, muito complicada, locali-

zada num no man’s land. É teatrodo absurdo segundo o princípio doteatro japonês. Os mesmos diálo-gos reaparecem, praticamente osmesmos, por três vezes deslocando-se dum personagem para outro.Cada qual tem a sua verdade dosfactos...O Jean-Marie Serreau estava a orga-nizar um festival Internacional deteatro de avant-garde no Museu doLouvre, no pavilhão de Marsain adecorrer durante o Verão. Era oFestival Estival de Paris e obtevegrande sucesso. Era contínuo, o tea-tro desembocava na música(Luciano Bério), que continuava nadicção dum texto de Garcia Marquez(Michel Piccoli), depois um filme,no canto, numa peça em espanhol,encenada pelo Víctor Garcia (ElRetabillo de Don Cristóbal de GarciaLorca), e assim sucessivamente.Estava sempre cheio mas as entra-das não chegavam para pagar tudo,porque os participantes eram de pri-meiro nível. Para mim, foi sobretu-do uma escola extraordináriaenquanto cenógrafo e director téc-nico da sala. Conheci aí muitas pessoas. Emseguida, como cenógrafo, trabalheipara Jean Anouilh, Antoine Vitez,Pierre Débauche, Víctor Garcia,Jérôme Savary, Samuel Beckett,Eugène Ionesco, AntoineBourseiller, Jorge Lavelly, etc.O Pierre Débauche estava a abrir aCasa da Cultura de Nanterre, a pri-meira mais importante, desse movi-mento criado por Malraux com afinalidade de fomentar núcleos decriação na província, para contrariara centralização de Paris. Depois tran-formaram-se nos actuais CentrosDramáticos Nacionais. Nessa altura, em Nanterre não exis-tia nada, no actual local do Théâtredes Amandiers, havia um bidonvillecom sete mil portugueses, queviviam na lama. Era o momento emque chegavam todos os dias dePortugal e estavam ali precariamen-te, numa situação dramática.O Débauche, quanto vai paraNanterre, leva-me com ele porquediz: o público de Nanterre é tam-bém o emigrante, os Portugueses,os Árabes e os Espanhóis, que jáestavam integrados na sociedadeBenjamin Marques avec le poète Louis Aragon, Argenteuil, 1978.

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francesa que eram oriundos da guer-ra de Espanha. Vou fazer teatro paraessa gente. Devia fazê-lo em línguaportuguesa, e programar exposiçõesde pintura. Na altura fazia decoresde teatro e daí passei à encenação.Começo a montar peças em portu-guês, primeiro uma série de farsasda Idade Média, porque os portu-gueses nunca tinham ido ao teatro,para eles era uma festa, um baile.Nós íamos destribuir os prospectosao bidonville, fazia frio e eles, muitodesconfiados, mas, como falávamosportuguês, convidavam-nos a tomarvinho do Porto e, a pouco e pouco,alguns passaram a vir à sala. Masqueriam teatro que fosse como umafesta. Então trabalhámos o texto des-sas comédias, levantando proble-mas quotidianos dos portugueses: aexploração do homem pelo homem;a relação ao patrão, à falta de docu-mentos oficiais. O José ManuelSimões participou na adaptaçãodesses textos.

Latitudes — Qual era o contexto dosemigrantes políticos dessa época?B. M. — Os que conheci estavamnos cafés do Quartier Latin a fazer

a revolução ou o programa a apli-car depois da revolução. Cada cafétinha a sua cor política: os comunis-tas, os sociais democratas, os MDP,e os marxistas-leninistas (os pró-chi-neses) e andavam todos à porrada,passavam o tempo a criar movimen-tos e a dividir-se entre si, em dissi-dências e cada vez mais pequenos...Era isto cerca de 63/64. Esses nãofaziam nada. Diziam: “estás a fazerteatro para os portugueses? Eles nãopercebem”. Confundiam a falta decultura com a estupidez. A inteli-gência não tem nada a ver com acultura. Pode ter-se muita cultura eser-se completamente burro, idiota.Eles confundiam isso.

Latitudes — E conseguiram atrairalgum desse público?B. M. — Alguns a pouco e pouco.Eles não iam às salas de teatro, que,de resto não existia ainda. Débauchefoi obrigado a criar uma sala novaporque não havia em Nanterre.Primeiramente, instalámo-nos numatenda de circo e transformou-o emplataformas modeladas que prefigu-rava as salas polivalentes, com acolaboração do célebre cenógrafo

Sérgio Guernstein, um argentino,com quem trabalhei. De forma quea sala mudava de um dia para ooutro conforme as peças; enquantoo Débauche montava a Judith eHoloferme, nós montávamos os nos-sos espectáculos. Mas a anulaçãodo barulho exterior e o aquecimen-to punham problemas insolúveis.Chegámos a integrar o ruído dumavião que passava invariavelmenteàs 20 h 15 na vertical da tenda. Haviagrande cumplicidade com o públi-co. Mas os portugueses não vinham.A única maneira que tínhamos eralevar o teatro ao local onde elesviviam. Instalávamos lá uma outratenda e era lá que fazíamos o tea-tro. Como era em português e era acasa portuguesa, os portugueses iame passaram a estar à vontade. Edepois passaram também a ir aochapiteau, particularmente nocélebre ano em que fizemos o Trevode Quatro Folhas, em 1963, em qua-tro línguas simultâneas. Foi a pri-meira e última vez no mundo quese fez tal coisa, com quatro nacio-nalidades reunidas na mesma sala.Havia quatro actores de nacionali-dades diferentes que se davam a

Benjamin Marques dans son atelier, Paris 2002 - Photo S. Filipe

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réplica na sua própria língua, o por-tuguês em português, o árabe emárabe, o espanhol em espanhol e ofrancês em francês. E toda a gentepercebia a peça, porque havia umartifício de encenação: as palavraschave eram sublinhadas em francês.Fiz dezasseis encenações diferentessegundo o mesmo processo. Foi umêxito extraordinário! A Televisãoveio filmar. Eles ignoravam comple-tamente que existia um público por-tuguês! Os portugueses, então, eramuns braves types, pedreiros. Naquelaaltura apenas havia a presença nobidonville do Socorro Popular, doispadres operários de TémoignageChrétien e nós. E nós deslocávamosao bidonville de Champigny e deVilliers-sur-Marne. Era um teatroprofissional feito sob contrato desti-nado ao público emigrante, mas umtrabalho militante muito fatigante,enfim, Maio 68 estava já em forma-ção...

Latitudes — Essa animação é des-conhecida... Quais eram os outrosactores desse teatro dito em portu-guês?B. M. — Eram jovens como oDonato Bastos, a Teresa Mota,alguns amadores, que estudavamteatro, como o Carlos César, oAntónio Waldemar, o Alexandre deSousa, o Víctor, o Antóniod’Assumpção (um extraordinárioactor); depois a Lia Gama, masigualmente a Manuela Margarido, oarquitecto Norberto Fagundes, etc.Alguns deixavam os cafés e vinham,como o José Manuel Simões, poeta,que acaba de falecer. Ele chegou afrequentar o Café Gelo e depoisficou cá e foi sobretudo tradutor naRuedo Ibérico e vai ter um papelprincipal, mais tarde, na peça quetraduzimos do Peter Weiss, O Cantodo Fantoche Lusitano. Que vai dar-me a terrível honra de me retirarema nacionalidade portuguesa. Ele tra-duziu-o aqui em França sob opseudónimo (tinha de ser) de MárioGamboa, que era ele e o FernandoGil. Traduziram a peça para eu mon-tar em português. Mas intitularam-na O Canto do Papão Lusitano. E,depois da revolução de 1974, issovai dar lugar a uma complicação dedireitos em Portugal. Quando chego

a Portugal em 1974, dizem-me quenão tenho os direitos da peça,porque na minha montagem chama-se Fantoche e, na tradução, o Zé pôsPapão Lusitano. Como tinha dito, em França, nin-guém me dá nada mas ninguém metira nada! Em Portugal não te deixamrealizar a tua loucura, mas há genteque se apropria da tua loucura,gente que está nos bons lugares, noschorudos, nos lugares de controle. Tenho lá as dez melhores pessoasdo mundo, generosos, cultos, inteli-gentes, honestos, francos, amigos,criativos, que são grandes! Mastodos os outros são os piores domundo... e são muita gente! Gostomuito de Portugal, mas o lado inve-joso (mesmo dentro da revolução egente de esquerda, democrata, genteconceituada) muita dessa gente aúnica coisa que lhes interessava eradefender os interesses pessoais e doseu pequeno grupo. Era um pontode vista egoísta: “eu safo-me, osoutros que se lixem”. Depois do 25de Abril não havia um só fascista;todos eram (ou foram) sempredemocratas, felizmente ! (Não consi-go perceber é como Salazar seaguentou 50 anos, sem ninguémcom ele, enfim, milagres de Fátima,sem dúvida!)

Latitudes — A peça do Peter Weissteve sucesso aqui?B. M. — Entre as que montei, foi aque teve maior sucesso, juntamentecom o Auto da Barca do Inferno deGil Vicente. O Canto foi superior;tanto em França, como na Suíça ena Alemanha foi representada, pelosmenos mais de sessenta vezes. Apeça foi montada várias vezes,porque os actores desapareciam;eram estudantes.

Latitudes — Vocês estabeleceramalgum contacto com o Peter Weiss?B. M. — Sim, o Peter Weiss veio aParis e esteve comigo e com oQuehec, que estava a preparar amontagem em francês. O Quehecmontou-a justamente emGoussainville, onde foi financiadopela municipalidade. Nessa alturaPeter Weiss vem a Paris e diz aambos que gostaria que a encena-ção portuguesa fosse a primeira, mas

eu estava mais atrasado (ainda nãome tinham retirado a nacionalida-de!). O Quehec esteve de acordodizendo que atrasava a montagem,para dar a possibilidade de a versãoportuguesa ser a primeira, já que oPeter Weiss achava que era impor-tante que a estreia mundial do textofosse em português. Ficou assimcombinado. Isto passa-se no antigoapartamento da Amélia Padez, narua de Seine. E, dois ou três diasdepois, tiram-me a nacionalidade enão posso receber a subvenção doMinistério da Cultura francês,porque deixo de existir. Pelo que eufico sem dinheiro para montar apeça. Falo logo a seguir com oManuel Alegre. E ele diz: “Não tensproblema nenhum, nós assegura-mos o dinheiro para montares apeça, até um limite. Assim, osComités de Ajuda à Luta do PovoPortuguês vão lançar em França umacolecta pública (naquela altura haviauma certa politização) e nós vamosreceber dinheiro em pequenosenvelopes vindos de todo o lado(Bordéus, Pau, Lille, etc.). Por vezesnuma carta, como se tratasse de miú-dos, e com pequenas mensagens:“coragem, amigo, continue”, “nãose deixe desencorajar”... Isso atra-sou-me e a estreia mundial veio aser na Suécia, depois em Genebrae, finalmente, em Goussainville, emlíngua francesa.

Latitudes — Sabes como é que emPeter Weiss surgiu a ideia de criar apeça sobre Portugal?B. M. — O Peter Weiss vivia nessaaltura na Suécia, estava relacionadocom os partidos de esquerda esobretudo com o MovimentoMundial da Paz. Esteve no Vietname, logo a seguir, na zona libertadada Guiné portuguesa vindo a inte-ressar-se muito pelo colonialismoportuguês. Quando regressou àSuécia, recolheu imensos dados,incluindo emanados do PartidoComunista Português e do futuroPartido Socialista.A peça é extraordinária, não somen-te porque está bem construída,como um canto, numa linguagemrítmica que dá prazer a dizer. Sãooito cantos como a Divina Comédiade Dante, em que se inspira. É quase

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só poesia, duma extraordináriamusicalidade. E é absolutamenteexacta nos números e dados quesão referidos: o cobre, os diamantes,os nomes das companhias (DeBeers, Shell); impossível de negar.São números internacionalmenteconhecidos. De modo que a peça éum brûlot terrível, frontalmente anti-colonialista. E, naquela altura, ogoverno português não podia supor-tar aquilo. Não podiam meter-mena prisão, por estar em França, peloque cortaram-me a nacionalidade(1).Julgavam eles que ia pedir o passa-porte para regressar, porque, nessecaso, davam-mo! e metiam-me emCaxias...

Latitudes — Como é que as autori-dades portuguesas te comunicarama destituição da nacionalidade?B. M. — Não há uma palavra escri-ta, é tudo oral, isto é eclesiástico... éa hipocrisia eclesiástica de Salazar.O cônsul convocou-me, mandou-me sentar na sua poltrona, deu-meum café e com o seu ar paternalistadisse: “ó Sr. Marques, é lamentável,eu estou profundamente, dolorosa-mente impressionado para dizer-lheque a partir de agora deixa de ser

Benjamin Marques, “Deneb en cygne”, Galaxiales, Paris, 2002.

português; oficialmente, nós não oreconhecemos como estando emFrança. Fui obrigado a riscar a suainscrição no Consulado, donde, seme pedir uma certidão qualquer eunão lha dou; não o reconheço comoexistente. Porque recebi a ordem deLisboa, por telefone. Sabe, eu com-preendo-o”. E a célebre D. Cacildatambém andava ali. Esta, mais tarde,depois da revolução, quando, emnome do MDP, vou ao Consuladopara tomar a sua posse é a D.Cacilda que me faz uma grandefesta... quando ela passou o tempoa perseguir-me. Felizmente que eu conhecia pes-soas. Fui ao Ministério da Culturaonde me disseram ter recebido umacarta dizendo que tinha perdido anacionalidade, pelo que não podiamdar-me o dinheiro. Ora sem a sub-venção não podia pagar nada. NaUnesco, conhecia a senhora O. Lunaque se tornou uma cliente de pintu-ra. Eles propuseram-me pedir anacionalidade francesa: “Olhe dirija-se ao Ministério do Interior, fale como Sr. tal da minha parte”. Lá fui eem menos de três meses fui natura-lizado francês. Foi o governoMessmer que, por decreto, me trans-

formou em francês!Ora, gosto muito de Portugal etenho lá amigos, mas nunca maisperdoo-o a Portugal e aos portu-gueses de me tirarem a nacionalida-de. Em 1974, deram-ma de novo;não são os mesmos. O erro foi repa-rado. No mês de Janeiro último, fizuma exposição importante noConsulado Geral de Paris. O pró-prio presidente da República,homem de excepção, inteligente,culto, discreto, digno, humano, temum quadro meu. Mas estive dezas-seis anos sem ir a Portugal! Nãopude assistir à morte de meu pai.Mesmo se me pedirem desculpa ... Entretanto a emigração é diferente.Não sei onde estavam os realiza-dores de cinema que não fizeramainda um filme sobre esse extraor-dinário êxodo que é a história deum povo, que nós vivemos. Porquese não faz o filme sobre a verdadei-ra história de uma miséria profundaque foi a da força dinâmica dumpaís, do melhor dum país? Porqueos emigrantes não perceberam e ospolíticos ainda menos. Ainda nin-guém disse dos emigrantes que elessão o melhor, pois foram os quetiveram a força e a coragem de recu-

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sar uma fatalidade. E sem meios,sem saber ler nem escrever, semnada conhecerem dos países paraonde iam, tiveram a coragem de ir;viveram o diabo da breca e volta-ram para lá, modificando o seu pró-prio país; são a sua força activa. Nãodevíamos ter vergonha deles, devía-mos enaltecê-los. Eu não sou emi-grante. Vim para cá com dinheiro;pertenço a uma família burguesa; tiveacesso à cultura; sou um intelectual,um criador. Mas estou de todo o cora-ção com essa parte viva do país, sebem que saiba, que há ciúmes, inve-jas, interesses egoístas, estupidez nomeio disto tudo, mesmo depois do25 de Abril, ainda assim é o melhorque há em Portugal.

Latitudes — A actividade de profes-sor trouxe-te alguma contribuição àvida artística? Que fazias enquantográfico em electrónica?B. M. — Eu passei do teatro à ceno-grafia e daqui à encenação e anima-ção. Nanterre transforma-se datenda de circo em teatro em duro.Ajudo a construir o teatro actual, jáa emigração deixou o bidonville eestá integrada. O sítio onde viveramos portugueses transforma-se noParc André Malraux e a Casa deCultura, no Centre DramatiqueNational. Nessa altura era coordena-dor geral de animação no teatro. Nacâmara de Nanterre forma-se umcentro cultural que herda tudo o que

Benjamin Marques, “Próxima in Centaure”, Galaxiales, Paris 2002.

é animação. Eu, estando encarrega-do das exposições, paralelamenteao teatro em português, passo a serencarregado das artes plásticas nonovo Centro e deixo o teatro. É aíque monto grandes exposições:Fernand Léger (Os construtores),Arte Viva (47 pintores da Escola deParis), o festival sobre a BandaDesenhada, Arte Cinética, a LongaMarcha de Dewasne, etc. É nessa altura que perco a naciona-lidade com a montagem do Cantodo Fantoche Lusitano. Já tinha ter-minado a segunda montagem e esta-va a fazer a terceira, para a montarem Angola e na Guiné, nas zonaslibertadas, quando se dá aRevolução dos Cravos. Mas a peçaestava pronta e então arranquei coma peça e fomos para Portugal comela. O Rogério Paulo recebe-me naantiga FNAT, no Inatel, e designa-me membro da comissão de restru-turação. Dá-me quinze dias para vira Paris arrumar os meus assuntos e,quando regresso, estava nomeadopelo Manuel Alegre, então secretá-rio de Estado da Cultura, para oTeatro da Trindade. Fiquei em Portugal pouco menos dedois anos. Alterámos o funciona-mento do Teatro da Trindade emLisboa, que deixou a ópera populare passou ter uma programação geral.Organizaram-se outras actividades:exposições, concertos, conferências,etc. Depois fui montar a Casa da

Cultura da Margem Sul do Tejo. Maseu tinha mais gosto em fazer do queem dirigir. Sucediam-se os projectosque me lançavam, sem dispor decolaboradores formados: era o FAOJ,depois foi o Serviço Cívico.Acumularam-se os cargos que meatribuíam. Era muita coisa, não haviatempo para pensar, não conhecia aspessoas, entre incapazes, oportunis-tas, talvez fascistas ...No Serviço Cívico, os estudantes uni-versitários que foram para as aldeiasdo Norte, resolveram falar de liber-dade e de igualdade sexual e aca-baram corridos pelos padres queandavam ainda de saias... Havia umirrealismo muito grande da parte demuita gente. A minha mulher nãoresistiu mais de seis meses ! E depoishouve a tentativa de Spínola... Hojetudo é diferente, é a democracia...No regresso a França, valeu-me odinheiro dum filme onde havia cola-borado e que fala da emigração, LaGlu de Hayem que tinha ganho umprémio na Bélgica. Arranjei empre-go como director do Serviço deInformação de Argenteuil, onde ficoquatro anos. Era chato; o meu papelconsistia em pôr em relevo o maire.Então inventei outras coisas, comoum camião com rectroprojecção demontagens audio-visuais, juntamen-te com um chileno meu colabora-dor, fotógrafo notável. Era o filmedo pobre: temas sobre o trabalho eos tempos livres. Entretanto, fiz umamontagem inspirada no livro deBruno Bettelheim sobre os contosde fadas, acerca de Branca de Nevee dos Sete Anões, numa leitura psica-nalítica, dirigida aos pais, para abiblioteca de Argenteuil. O director,Claude Granberg, é o actual direc-tor da Biblioteca de Alexandria(Egipto) e anteriormente dirigiu ainformática na Biblioteca de França.Nós dávamo-nos muito bem. Nessaaltura, Beaubourg fez uma exposi-ção sobre o Carrefour da informa-ção municipal e resolveram apre-sentar aí essa montagem sobre apsicanálise dos contos de fadas. Então, telefonam-me da agênciaHavas. Indo ao encontro na sede daagência, o PDG (presidente-direc-tor-geral) propõe-me um contrato.Oferece-me três vezes o valor domeu salário para trabalhar com uma

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máquina electrónica e inventar.Dizia ele que “precisava de genteesquisita, um pouco maluca, quequeira mudar as coisas.” Inventar oquê? A máquina que me mostrou foiinventada para, com meios informá-ticos, fazer facturas. O Abraham,desenhador que foi apanhado àentrada do Centro Beaubourg, já láestava a bater na máquina. Deviafazer desenhos informáticos; era atelemática nascente, o minitel. Haviaseis pontos e cinco cores e com issofaziam-se desenhos ... Já lá fiqueinaquele dia até à uma da manhã,mas era desesperante, porque osdesenhos desapareciam sem se darpor isso, quando me preparava paragravar ! Era de rebentar pelos cabe-los ! E continuei a ir lá todas asnoites, ao sair de Argenteuil.Ganhava um dinheirão e tinha umprazer terrível porque havia anosque não desenhava. Pois, com tantotrabalho, durante vinte e cinco anos,tinha abandonado totalmente a pin-tura. Comecei a fazer esses desenhos parao minitel, que tinham mais piada doque a fotografia ao maire, e, sendo

Benjamin Marques dans son atelier, Paris, 2002 - Photo S. Filipe

essencialmente pelo dinheiro, foipor aí que recomecei a pintar!Abandono Argenteuil; trabalho free-lance na agência Havas, onde fui,precisamente, um designer free-lance télématique, durante onzeanos, tendo efectuado programaspara toda a gente: Société Générale,SNCF, Crédit Lyonnais, Air France,Aéroports de Paris. Transformámosas facturas em desenhos, é o princí-pio do web. A pouco e pouco recomecei a dese-nhar e a pintar em casa. E chego aos45 anos estava farto de serdesignere das pessoas com quem trabalhava(não dos criadores, como o Riaubet,hoje produtor na TV de Culture Pubou do Abraham). Interrogando-me,fiquei completamente épouvanté!Concluo que perdi um tempo imen-so, porque o que era mais impor-tante, a pintura, há vinte cinco anosque a não tinha praticado. E, então,decidi acabar com a vida que leva-va e voltar à pintura. Divorciei. Foi muito difícil passarduma situação a outra. Os três pri-meiros anos foram muito difíceis.Consegui um lugar de professor de

Iniciação às Artes Plásticas(Universidade de Nanterre), de ins-crição voluntária, e com apoio daCâmara. Era um atelier livre, que meproporcionou uma base para asprincipais despesas. Mas recomeçara pintar aos 45 anos não é evidente.Levei 3 a 4 anos antes de encontraro meu estilo, a minha marca.

Latitudes — Ao fim de quanto tempofizeste a primeira exposição ?B. M. — Ao fim de três anos. A pri-meira foi na galeria Lucrèce de Paris,onde comecei a vender a pessoasconhecidas. Um sucesso de estimamas que ajuda, porque quanto maisés reconhecido mais longe vais.

Latitudes — Foste feliz com a sériede quadros que concebeste por oca-sião da Expo 98 de Lisboa, cujatemática oceânica estava, suponho,talhada para te inspirar?B. M. — Foi uma data importante.Fui representar a França, e o únicopintor escolhido para o seupavilhão. Foi um acaso por o seucomissário ter visto a minha exposi-ção em galeria. Ele achava que devia

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aludir ao mar (aos Oceanos, temada Expo 98) e as minhas telas cor-respondiam, já que se tratava dasérie baseada nas Cartas de Vascoda Gama ao rei D. Manuel, que idea-lizei a partir do Diário da viagem doGama. Isso foi o mais importante. Apartir daí passo a ter o prémio daAcademia francesa das Belas Artes.Agora, em relação à dezena decoleccionadores que compram asminhas obras, sinto a obrigação defazer mais e melhor. Quero deixarqualquer coisa.

Latitudes — Qual é a tua percepçãoda arte actual?B. M. — É uma confusão, tal comona política e tudo o resto.

Ultimamente a grande moda é uminglês que trás mortos da morgue eque corta, tira a pele, corta os mús-culos, mete um verniz por cima etransforma o morto numa obra dearte! E tem um sucesso extraordiná-rio. Outro, que está no Museu deArte Moderna do Centro Beaubourg(em filme), cortou o pirilau. É umaobra de arte! A Orlan, minha conhe-cida, começou por dar “o beijo doartista” numa barraca; agora temfeito cornos; fez uma operação plás-tica e implantou uns cornos de plás-tico inseridos na carne... Estouconvencido que o homem é assimfeito, tem necessidade de arte, depintura, que o Marcel Duchamp meperdoe!

Latitudes — Como se explicaessa necessidade de deixarqualquer coisa?B. M. — Ainda sou de forma-ção clássica. Preciso ter prazerem pintar. Para mim, pintar épartir em viagem. Continuo aacreditar que nasci com umamissão, de que tinha de meaperfeiçoar e estar pronto pararesponder a um momentodeterminado da minha vidapara conseguir coisas quefizessem avançar a sociedade,o género humano, ao qual per-tenço. Daí gostar de ler a vidados grandes homens que sedistinguiram, à força de cora-gem, de esforço, de organiza-ção, saber e inteligência(Galilei, Einstein, Amudsen,Rembrandt, Germi e tantosoutros). Esses homens são osmeus pais espirituais. A pessoaque mais admiro ao mundo éImnotep, o criador dasPirâmides, que viveu há 4500anos! Ele fez o impossível, apedido do faraó. Ele não tinhanada nas mãos, excepto pedrae areia e descobre a solução, àforça de querer! Tenho umrespeito profundo por umhomem destes.Não sou Imnotep, longe disso,mas faço o que posso e voutentar deixar qualquer coisa,que, depois de morto, haja umrapaz ou rapariga que diga:“Que interessante!” Hoje é ridí-culo dizer estas coisas, mas pre-

ciso dessa osmose, porque sei quevou morrer e quero continuar a dizeràs pessoas: olhe o que eu vivi, queeu senti! É como ir ao Louvre e, dian-te dum Leonardo Da Vinci, Botticelli,Rafael, dum Dela Robia, sentir queme estão a falar; não me comparo aeles. É um grande orgulho, é egon-centrismo e, sem ser místico, pelomaterialismo toco o misticismo. Faceao fascismo, foi preciso tomar posi-ção, isso ajudou a formar-me, assimcomo as pessoas que conheci e osprofessores de Belas Artes.

Latitudes — Na pintura foste buscarraízes junto de quem?B. M. — A minha preocupação estáem não me parecer com ninguém;

Benjamin Marques, “Dilatation de l’espace” ou “L’univers en expansion”, série Galaxiales, Paris, 2002.

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é, evidentemente, impossívelporque todos sofremos influências.Diante de Nicolas de Staël sinto-metocado, mas de Chagall também enão têm nada a ver um com o outro.A Vieira da Silva aprendeu-me imen-sa coisa, ela e Senjier foram os doisque me marcaram profundamente.De facto, de quem estou mais próxi-mo, sem querer, é dum Zao Wou-Ki, que é um dos maiores pintoresvivos, ou de Olivier Debré (primode Debré antigo primeiro ministro),que admiro muito. Se isto é verda-de, estou bem acompanhado.

Latitudes — Tens organizado a tuapintura à volta de séries, ora detemas históricos (as Cartas de Vascoda Gama, a Descoberta do Brasil),ora de natureza espacial(Galaxiales). Como explicas essainterligação?B. M. — A minha pintura é uma pin-tura em camadas sobrepostas; cadacamada de cor é enriquecida emodificada pela camada seguinte; éo que se chama en glacis, sem traçode pincel, como os estratos sucessi-vos aglomerados na natureza: coal-ho, sedimentos (não é por acaso quecomecei por ser mestre ceramista).É uma pintura rica emcor, em largas manchasque se opõem entre elas,ou se equilibram, secompletam. Durante lar-gos anos as minhasférias foram ir visitar osdesertos. É no desertoque me sinto eu-mesmo.Quem não dormiu numbivouac à luz das estre-las, no deserto, não sabeo que é a respiração donosso planeta; o silênciono deserto é como umatextura física. Assim fiz o Sul Sahara (aSul de Tamanrasset, noTassili Tin Rehrob, cor-rendo ao longo daFronteira do Niger), oSul Marrocos (djebels eoásis), a Mauritânia(Adrar), o Tchad (massi-vo de Ennedi), masigualmente o Saharatunisino, o Egipto, noSudão (a antiga Núbia),

o Sinaï, a Jordânia (Petra), etc. Sedeixei de ir ao deserto é porque,actualmente, há perigo por causado islão integrista.Ora, as paisagens das rochas (grés),dos silicatos aglomerados e petrifi-cados são de uma riqueza cromáticaextremamente rica. Cada veia tem asua cor, a sua textura, tensões telú-ricas das quais testemunham. Pelotraço actual dos seus ritmos, sãouma proposição de pintura. Eisporque comecei por fazer uma sériede pinturas que se chamavamGeologias. Eram como que a memó-ria do planeta, testemunho colossaldesta nossa nave sideral, na qualnascemos, e que há milhares deanos nos transporta na noite geladado espaço cósmico, nos protege,nos alimenta, e nos acolhe quandoa morte nos faz terminar a nossapequena história pessoal - testemun-hos eloquentes de que o nossomaravilhoso calhau sideral, a quechamamos Terra, está vivo, se modi-fica, se transforma. Assim as Geologias Brancas e depoisas Azuis procuram testemunhar daimportância que transcendia os nos-sas mesquinhos e ridículos proble-mas humanos, para chamar a aten-

ção para as grandes razões essen-ciais. A essa memória geológica, semque eu o quisesse, se juntou, incons-cientemente, a minha própriamemória. Queria falar da memóriadas glebas, das elevações magmáti-cas que formam as montanhas, dasforças esmagadoras que laboram osdjebels, os canyons, os vales, os abis-mos abissais e, sem querer, apare-ciam músculos, seios, doces curvasfemininas da minha libido, memóriaimperecível da minha vida sexual. Aos poucos, essas Geologias Azuisterminaram por evocar os abismosmarítimos. Em Paris faltava-me omar, pelo que eu reiventava o marno meu atelier, sobre os telhados deParis. Daí contar o gesto da desco-berta das rotas marítimas que trouxe-ram o conhecimento moderno doplaneta: a prova de que a África eracontornável, etc. Depois, as IlhasMíticas, que nunca existiram senãona imaginação dos homens, mitolo-gia que corresponde à lenta matura-ção humana.Finalmente, as Galaxiais, que desdesempre subjaceram em filigrana, erepresentam o que de facto me inter-essa comunicar ao meu semelhante.Nós, os homens, não somos grande

Benjamin Marques, “Titan”, Galaxiales, Paris, 2002

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coisa. Somos uma raça de animais,comovente na sua vontade absolutaem nos colocarmos no poder totalsobre o planeta. Somos uma raçaperigosa de predadores; fazemoscorrer o perigo de destruir esta nossamaravilhosa nave sideral e, sem ela,nós nos suicidamos enquanto raça.A totalidade é a nossa única possi-bilidade de vida nesta viagem que onosso planeta executa, juntamentecom a marcha da galáxia, a ViaLáctea, à qual pertencemos, situa-dos bem na sua periferia. Esse seurespirar me interessa como pintor.O que tento pintar é essa monumen-tal confluência de forças planetáriasnesta nossa viagem sideral. Daí otítulo de Galáxias, triste mas colos-

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sal crónica ilustrativa da memóriaparalela de uma pobre e inconscien-te raça de macacos idiotas, que sechama humanidade e a que infeliz-mente pertenço.

Latitudes — A designação de abs-traccionismo fantástico e poético, emteu parecer, quadra bem para carac-terizar a tua pintura? Quais sãoactualmente os teus projectos?B. M. — Abstraccionismo fantásticoe poético? É interessante, sim. Souum pintor com uma formação para-lela, científica e sobretudo literária,poética. Muitas vezes me falam depoesia em relação à minha pintura.Mas o importante é essa história depintura que cada obra narra. E como

ela evolui de quadro em quadro, desérie em série, essa é a tal viagemque eu, indivíduo, realizo, ao mesmotempo em que o planeta executa asua.Projectos: fazer uma exposiçãoimportante com a nova sérieGaláxias II - Planetas. Desta vezestou trabalhando sobre o planetaMarte. Gostaria igualmente de fazeruma exposição em Portugal, emLisboa. Fala-se na Mãe d’Água.Aguardo a programação de outra emMacau, a realizar o ano que vem.Está programada para o Luxemburgodesde já uma exposição minha, jun-tamente com o Costa Camelo e DaRocha. Fala-se de outra em Aveiroou na Figueira da Foz com pintoresportugueses do estrangeiro.Enfim, o grande projecto é continuara viagem até ao fim �

1 Nota da Redacção: O nosso entrevista-do interpretou as medidas tomadaspelas autoridades salazaristas portu-guesas como uma “perda da nacionali-dade”, pois assim funcionou na práti-ca. Mas, de jure, a destituição não foiaccionada. Os diplomatas colocadosao serviço do governo de Salazar-Caetano exerciam pressão sobre osexilados e expatriados através da armaem seu poder que era a concessão dedocumentos. A polícia secreta, Pide-DGS, sob ordem do Estado possuíaum serviço de informação sobre asactividades dos antifascistas residentesem França, cuja acção por agora restamal conhecida. A um número impor-tante destes a mesma polícia constituíadossiers onde acumulava correspon-dência apreendida e outras informa-ções sobre os cidadãos portuguesesescapados ao seu controle directo nopaís, de modo a desencadear acçõesrepressivas contra os mesmos. Para maior informação sobre a pinturae o curriculum artístico do pintorpode consultar-se o site: www. benja-min-marques.com

Benjamin Marques, “Voiles de cygnes”, Galaxiales, Paris, 2003.