Enders, Armelle. Les Lieux de Mémoire, Dez Anos Depois - Crítica Sobre Os Lugares de Memória de...

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 Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, p. 128-137 1  LES LIEUX DE MÉMOIRE, DEZ ANOS DEPOIS  Armelle Enders O lançamento dos três volumes intitulados  Les France  põe um ponto final na ambiciosa obra  Les l ieux de mémoire, cuja publicação foi iniciada há quase uma década pela Gallimard sob a direção de Pierre Nora. 1  Participaram na construção desse 'jogo de armar gigante" 2  cerca de 130 historiadores oriundos dos mais diferentes planetas da galáxia institucional que alimenta a pesquisa histórica na França: Collège de France, universidades, École des Hautes Études en Sciences Sociales - E.H.E.S.S., institutos de estudos políticos, Centre National de la Recherche Scientifique - C.N.R.S. e museus nacionais associaram suas competências para dar à luz uma obra que desde o lançamento foi considerada capital pelos círculos intelectuais franceses. 3   Les lieux de mémoire é importante sob todos os aspectos: pela dimensão material da obra (em torno de 6.000 páginas), pela duração do trabalho (dez anos),  pela qualidade e pela diversidade dos historiadores envolvidos, pelo conteúdo inovador (não somente no que diz respeito ao projeto global mas também a um bom número de artigos isoladamente), enfim, pela reflexão que suscita sobre a Nação francesa. Por tudo isso, compreende-se o quão difícil e redutora é a tarefa de dar conta, em poucas páginas, de tal edifício. A primeira dificuldade reside na duplicidade de  Les li eux de mémoire: de um lado há de fato um projeto global, apresentado e copiosamente comentado por Pierre Nora, o feliz criador da expressão e arquiteto da obra. De outro, há ao menos uma centena de contribuições que podem ser lidas separada e independentem ente do todo, e um número igual de autores que  podem muito bem não se identificar com os esquemas cada vez mais complexos formulados  por Pierra Nora. O perigo de se restringir  Les lieux de mémoire à expressão do ponto de vista do seu coordenador é real, tendo em vista que poucos leitores (sobretudo fora da França) terão realmente lido os artigos, contentando-se em associar os textos da apresentação e da conclusão com uma breve passada de olhos sobre o sumário. É preciso, pois, insistir que  Les lieux de mémoire é uma coleção de trabalhos singulares que, ao mesmo tempo, servem de  base à uma tentativa de conceitualização por parte de Pierre Nora. Um segundo fator que torna difícil uma abordagem sintética de  Les l ieux de mémoire diz respeito à evolução sofrida pelo projeto entre 1984 e 1993, bem como aos avanços da historiografia francesa durante esse período. O consenso formado em torno de  Les lieux de mémoire mostrou que a obra estava em perfeita sintonia com a atmosfera intelectual do seu tempo, mas também a expôs ao risco de uma rápida banalização, que de fato aconteceu. O sucesso da coleção ultrapassou os limites da comunidade científica. A expressão "lugar de memória" tornou-se uma figura do discurso político, um argumento turístico, enfim, um lugar comum. Em 1988, Jack Lang, então ministro da Cultura, chegou mesmo a integrar a categoria  1  O plano geral de Les lieux de mémoire, acompanhado da cronologia da publicação, é o seguinte: I - La Republique  - 1984. II -  La Nation - 1986. Estava prevista a publicação de dois volumes, mas acabaram saindo três: vol. l -  Héritages, historiographie, pay sages. vo1. 2 -Le territoire, L'Etat, le patrimoine. vo1. 3 - La gloire, les mots. O projeto devia terminar aí, mas decidiu-se dar continuidade à seqüência inicialmente (e vagamente) prevista. III - Les France  - 1993. vol. l - Conflits et partages  vol.2 - Traditions  vol.3 - De l'archive à l'emblè me. 2  "Meccano géant": esta é a definição dada por Pierre Nora nas primeiras linhas de sua apresentação de Les  France, 1, Paris, Gallimard, 1993, p. 11. 3  Pierre Nora foi convidado a comparecer a todos os programas culturais da televisão e do rádio. Os grandes  jornais abriram suas colunas e os colegas cobriram a obra de elogios: Jean-Pierre Rioux afirmou na revista de vulgarização  L'Histoire , n° 165, abril 1993, que estávamos entrando na "era dos lugares de memória".

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    LES LIEUX DE MMOIRE, DEZ ANOS DEPOIS

    Armelle Enders

    O lanamento dos trs volumes intitulados Les France pe um ponto final naambiciosa obra Les lieux de mmoire, cuja publicao foi iniciada h quase uma dcada pelaGallimard sob a direo de Pierre Nora.1 Participaram na construo desse 'jogo de armargigante"2 cerca de 130 historiadores oriundos dos mais diferentes planetas da galxiainstitucional que alimenta a pesquisa histrica na Frana: Collge de France, universidades,cole des Hautes tudes en Sciences Sociales - E.H.E.S.S., institutos de estudos polticos,Centre National de la Recherche Scientifique - C.N.R.S. e museus nacionais associaram suascompetncias para dar luz uma obra que desde o lanamento foi considerada capital peloscrculos intelectuais franceses.3 Les lieux de mmoire importante sob todos os aspectos: peladimenso material da obra (em torno de 6.000 pginas), pela durao do trabalho (dez anos),pela qualidade e pela diversidade dos historiadores envolvidos, pelo contedo inovador (nosomente no que diz respeito ao projeto global mas tambm a um bom nmero de artigosisoladamente), enfim, pela reflexo que suscita sobre a Nao francesa. Por tudo isso,compreende-se o quo difcil e redutora a tarefa de dar conta, em poucas pginas, de taledifcio.

    A primeira dificuldade reside na duplicidade de Les lieux de mmoire: de um lado hde fato um projeto global, apresentado e copiosamente comentado por Pierre Nora, o felizcriador da expresso e arquiteto da obra. De outro, h ao menos uma centena de contribuiesque podem ser lidas separada e independentemente do todo, e um nmero igual de autores quepodem muito bem no se identificar com os esquemas cada vez mais complexos formuladospor Pierra Nora. O perigo de se restringir Les lieux de mmoire expresso do ponto de vistado seu coordenador real, tendo em vista que poucos leitores (sobretudo fora da Frana) terorealmente lido os artigos, contentando-se em associar os textos da apresentao e daconcluso com uma breve passada de olhos sobre o sumrio. preciso, pois, insistir que Leslieux de mmoire uma coleo de trabalhos singulares que, ao mesmo tempo, servem debase uma tentativa de conceitualizao por parte de Pierre Nora.

    Um segundo fator que torna difcil uma abordagem sinttica de Les lieux de mmoirediz respeito evoluo sofrida pelo projeto entre 1984 e 1993, bem como aos avanos dahistoriografia francesa durante esse perodo. O consenso formado em torno de Les lieux demmoire mostrou que a obra estava em perfeita sintonia com a atmosfera intelectual do seutempo, mas tambm a exps ao risco de uma rpida banalizao, que de fato aconteceu. Osucesso da coleo ultrapassou os limites da comunidade cientfica. A expresso "lugar dememria" tornou-se uma figura do discurso poltico, um argumento turstico, enfim, um lugarcomum. Em 1988, Jack Lang, ento ministro da Cultura, chegou mesmo a integrar a categoria

    1 O plano geral de Les lieux de mmoire, acompanhado da cronologia da publicao, o seguinte:I - La Republique - 1984.II - La Nation - 1986. Estava prevista a publicao de dois volumes, mas acabaram saindo trs: vol. l -Hritages, historiographie, paysages. vo1. 2 -Le territoire, L'Etat, le patrimoine. vo1. 3 - La gloire, les mots.O projeto devia terminar a, mas decidiu-se dar continuidade seqncia inicialmente (e vagamente) prevista.III - Les France - 1993. vol. l - Conflits et partages vol.2 - Traditions vol.3 - De l'archive l'emblme.2 "Meccano gant": esta a definio dada por Pierre Nora nas primeiras linhas de sua apresentao de LesFrance, 1, Paris, Gallimard, 1993, p. 11.3 Pierre Nora foi convidado a comparecer a todos os programas culturais da televiso e do rdio. Os grandesjornais abriram suas colunas e os colegas cobriram a obra de elogios: Jean-Pierre Rioux afirmou na revista devulgarizao L'Histoire, n 165, abril 1993, que estvamos entrando na "era dos lugares de memria".

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    de "lugar de memria" nomenclatura do Patrimnio Nacional, a fim de conservar edifciosou paisagens desprovidos de valor esttico relevante mas carregados de forte valorsentimental. Assim, os especuladores imobilirios de Paris tiveram que recuar diante dafachada leprosa do Htel du Nord, que inspirara a Marcel Carn o cenrio do filme do mesmonome e as rplicas mais famosas da histria do cinema francs.4 Pierre Nora viu a um desviodo sentido da expresso, que acabou, diluindose, por servir para dizer tudo e no fundo nodizer nada. Esta foi uma das razes que motivaram a execuo do projeto Les France, que em1986 s existia como algo muito incerto. Les France constituem assim uma forma dereapropriao da idia de "lugar de memria" por seu prprio autor, em nome da comunidadedos historiadores e em detrimento da vulgarizao. Por isso mesmo o lanamento dosvolumes foi acompanhado de um grande esforo de definio e de teorizao de modo aconfinar a noo de "lugar de memria" dentro de um campo determinado.

    Parece portanto pertinente nos determos na finalidade epistemolgia que Pierre Noraatribui ao "lugar de memria", j promovido por ele a "nova categoria de inteligibilidadehistrica contempornea",5 em seguida examinarmos as variaes sobre o tema dos "lugaresde memria" a que se consagraram diversos autores, para enfim avaliarmos a contribuio deLes lieux de mmoire historiografia francesa e, em particular, o que os volumes de LesFrance vm acrescentar aos de La Rpublique e La Nation.

    Para abordar a noo de "lugar de memria", dispomos da impressionante srie detextos e declaraes nos quais Pierre Nora se esfora para precisar o que quer dizer com isso.Ele afirma haver tomado emprestada a Ccero, em seu De oratore, a figura retrica do locusmemorie, na qual se associa a um lugar, uma idia, transformando-o em um smbolo. Estelocus pertence claramente ao domnio do ideal e por isso errado reduzi-lo a um passeionostlgico entre monumentos e vestgios materiais do passado. O "lugar de memria" podeser concebido como um ponto em torno do qual se cristaliza uma parte da memria nacional.Na apresentao de Les France Pierre Nora oferece uma definio: "lugar de memria: todaunidade significativa, de ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalhodo tempo fez um elemento simblico do patrimnio da memria de uma comunidadequalquer".6 Tratava-se, ento, desde os primeiros volumes, de proceder ao inventriosimblico da Frana. Esta abordagem sob o ngulo da memria parece convir, segundo PierreNora, lenta e profunda mutao do sentimento nacional no perodo que vai da PrimeiraGuerra Mundial Guerra da Arglia.7 Para Nora, o nacionalismo francs clssico, fosse ele detradio jacobina ou reacionria, se caracterizava por seu messianismo, seu universalismo esua crena na potncia do Estado. Mas desse perodo em diante ele pareceria revelar suaatrao pelos particularismos e at por uma forma de hedonismo: "Antes afirmativo, osentimento nacional tornou-se interrogativo. Antes agressivo e militar, tornou-se competitivo,

    4 Era porm sabido que Hotel du Nord, filme cult dos anos 50 realizado pelo diretor de Les enfants du paradis,no tinha sido rodado no lugar verdadeiro, mas inteiramente em estdio!5 Pierre Nora, Les France, 1, p.16.6 Ibidem, p.207 Muitos historiadores, e no dos menores, expressaram o mesmo ponto de vista. Maurice Agulhon escreveu que"a Frana de antes de 1914 era quase que totalmente patritica (...) Este patriotismo permitiu ganhar a guerra em1918, mas tudo se passa como se ele tivesse sido ferido mortalmente por esta mesma vitria e pelo horrorprovocado pelo sofrimento necessrio para obt-la", citando como apoio o grande especialista do nacionalismofrancs, Raoul Girardet: "Aps bastante refletir, parece-me que a histria da Frana parou na sublime e absurdaaventura que foi a Primeira Guerra Mundial." Maurice Agulhon, La Rpublique de 1880 nos jours, Paris,Hachette, 1990, p. 491.

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    inteiramente investido no culto dos desempenhos industriais e dos recordes esportivos. Antessacrificial, fnebre e defensivo, fez-se prazeroso, curioso e, pode-se at dizer, turstico."8

    Pierre Nora nos convida assim a extrair as conseqncias historiogrficas da morte deuma certa idia de Frana; a romper com o modelo de narrao da histria nacional tal comofora definido por Ernest Lavisse no final do sculo XIX e mantido em suas linhas bsicas atos nossos dias - note-se de passagem como se salta alegremente sobre os Annales. O paraleloentre Les lieux de mmoire coordenado por Nora e L'Histoire de France dirigida por Lavisse9

    alternadamente reivindicado e refutado pelo diretor de estudos da E.H.E.S.S. A inteno desuceder ao grande mestre da histria republicana est explcita na estrutura geral de Les lieuxde mmoire. Sua construo cronolgica estilhaada e desamarrada se ope contudo narrao linear e unitria dos professores do tempo da Terceira Repblica. Alm do mais, oshistoriadores dos anos 1980 deram prova de sua iconoclastia com relao aos velhos mestrescolocando em p de igualdade o anedtico, o marginal e os temas "nobres", que seuspredecessores julgavam ser os nicos dignos de ficar na memria. "Le Tour de France"10

    (Georges Vigarello), "La galanterie" (Nomi Hepp), "La conversation" (Marc Fumaroli) sepostam ao lado daqueles temas que dizem respeito simbologia do Estado. Os autores de Leslieux de mmoire destruram enfim um dos pilares do credo da histria republicana, a qualtinha por misso decriptar o destino nacional e mostrar o caminho a ser seguido pela naofrancesa em direo a um regime ideal: a Repblica. As noes de "Nao", de "Frana" e de"Repblica" se confundiam em uma espcie de Trindade laica. Pierre Nora fez questo desepar-las e de trat-las em volumes cuidadosamente distintos.

    sem dvida neste ponto que a obra comea a perderem legibilidade. Se LaRpublique - limitada embora aos primeiros anos da Terceira Repblica no coloca nenhumproblema maior de definio e forma um conjunto coerente, as coisas se complicam quandose trata de desembaraar o que diz respeito a La Nation do que diz respeito a Les France. ANao, segundo a definio (impressionista) que escolhe Pierre Nora, presta-se de maneiraideal ao exerccio do "lugar de memria": " que a Nao inteiramente uma representao.Ela no nem um regime, nem uma poltica, nem uma doutrina, nem uma cultura, mas sim opalco de todas as expresses desses elementos, uma forma pura, uma frmula imutvel emutvel de nossa comunidade social, como, alis, de todas as comunidades sociaismodernas."11 Pierre Nora recorre a algumas prolas da imaginao para justificar, sete anosaps a edio de La Nation, a pertinncia de Les France. Julguemos por ns mesmos: "LaNation era o princpio reitor e diretor, o modelo e o padro sobre o qual se construra aFrana, o motor de sua continuidade. (...) Consultando o sumrio, vejo que nenhum dosassuntos dos trs volumes precedentes, tendo em vista a maneira como quisemos que fossemabordados, encontraria lugar neste Les France. Eles eram apenas os instrumentos daconstruo da Frana, os fundamentos enterrados de sua edificao. A Frana se encontrainteiramente do lado da realidade simblica; ela no tem outro sentido, atro vs dasmltiplas peripcias de sua histria e de suas formas de existncia, que no o simblico.Trata-se de um princpio de pertencimento. Se "Nao" e "Frana" puderam parecersinnimos e pertencer ao domnio de uma mesma abordagem unitria, isto no seno uma

    8 Pierre Nora, Les France, 1, p. 30.9 Ernest Lavisse recorreu igualmente aos melhores especialistas de sua poca: Vidal de La Blache, Coville,Marijols, Seignobos, Pariset, entre outros. Vale tambm notar que Pierre Nora o autor de dois artigos sobre"Lavisse, instituteur national" e "L'Histoire de France de Lavisse", em La Nation, 1.10 Esta corrida ciclista, realizada pela primeira vez em 1903, permanece um dos eventos esportivos maispopulares da Frana.11 Pierre Nora, La Nation, 1, p.x. Grifo nosso.

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    das particularidades da Frana, a encarnao do modelo nacional; e uma das virtudes dafrmula dos `lugares de memria" consiste justamente em permitir distingui-las."12

    Estes dois textos (o primeiro publicado em 1986, o segundo em 1993) no contribuempara clarear as intenes de Pierre Nora. Eles so, alm do mais, totalmente discutveis. AFrana considerada como o modelo do "Estado-Nao" e no como o "modelo nacional",frmula que, por sinal, no tem nenhum sentido. Quem sabe teria sido melhor distinguir aNao do Estado em vez de distingui-la da (ou das) Frana(s)? Esta confuso, que se traduzna arquitetura da obra sob a forma de um trompe-l'oeil, pode ser explicada, e perdoada, pelofato de que se decidiu tardiamente dar uma continuao aos primeiros volumes. E intilporm tentar fazer-nos crer que o plano geral de Les lieux de mmoire obedece a umanecessidade imperiosa. Ficamos assim pouco convencidos de que o artigo "Le dpartement"(Marcel Roncayolo)13 esteja melhor colocado em Les France do que estaria em La Nation.Inversamente, podemos nos perguntar se os "lugares de memria" do exrcito francs,excelentemente analisados por Jrme Hlie ("Les armes") no tendem mais para o lado deLa Nation do que para o lado de Les France...

    A impreciso que aureola a noo de "lugar de memria" ainda mais preocupante.0'lugar de memria", na pena de Pierre Nora, possui geometria varivel e designa ora objetos,ora um mtodo, ora a memria, ora o trabalho do historiador. Quando passa ao campo daprtica, o historiador Pierre Nora no mais lmpido que o terico Pierre Nora. Ao queparece, a moral que devemos guardar ao final de seu indigesto artigo sobre "gerao" que "agerao" um lugar de memria porque ela produz lugares de memria!

    Felizmente a maioria dos autores no seguiu o mesmo caminho. Nos sete volumes dacoleo, o 'lugar de memria" compreendido de maneira mais aberta como uma anlise daconstruo da memria. O conjunto das 130 contribuies pode ser dividido, grosso modo,segundo a seguinte tipologia:

    Em primeiro lugar vm as monografias consagradas aos smbolos nacionais e suafortuna crtica. Pode-se citar nesta categoria "La mairie" (Maurice Agulhon), "Reims, ville dusacre" (Jacques Le Goff), "Les chteaux de la Loire" (Jean-Pierre Babelon), entre muitosoutros.

    Em seguida h um grande nmero de textos dedicados histria das instituies dememria. O primeiro volume de La Nation praticamente reservado fabricao e administrao da memria (a historiografia, o patrimnio). O ltimo volume de Les Francevem complet-lo, desenvolvendo temas em torno das atividades de registro ("La gnalogie"de Andr Burguire, "Les archives" de Krzysztof Pomian).

    Por fim, h os estudos sobre o papel da memria na identidade e sobre a perenidadedos grupos. Os artigos sobre as minorias e as vtimas se integram nesta categoria: os judeus("Grgoire, Dreyfus, Drancy et Copernic" de Pierre Birnbaum), os jansenistas ("Port-Royal"de Catherine Maire), os protestantes ("Le muse du Dsert" de Philippe Joutard), os vendensde 1793 ("La Vende, rgion-mmoire" de JeanClment Martin), o movimento operrio ("LeMur des Fdrs" de Madeleine Wbrioux).

    Certos trabalhos combinam evidentemente estes trs aspectos.Se Les France oferece um florilgio daquilo que os historiadores franceses podem

    produzir de melhor, no chega no entanto a suscitar a mesma boa surpresa dos volumesanteriores. Depois de 1986, um grande nmero de publicaes veio enriquecer nossos"lugares de memria". O primeiro volume de Les France, intitulado Conflits et partages

    12 Pierre Nora, Les France, 1, p. 22. Grifo nosso.13 A Frana metropolitana foi dividida durante a Revoluo Francesa em "dpartements", que so hoje 95 e quepermanecem unidades administrativas essenciais.

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    (Conflitos e partilhas), no inova nada alm do que foi escrito em L'Etat et les conflits (OEstado e os conflitos, 1990)14 sobretudo por Jacques Julliard, Patrick Fridenson e EmmanuelLe Roy Ladurie, que por sinal colaboraram em Les lieux de mmoire. Pierre Nora confiou aPhilippe Burrin, alis eminente historiador, a misso impossvel de fornecer uma nova leiturado regime de Vichy, tema sobre o qual existe uma literatura abundante. Philippe Burrin noprocurou uma originalidade perigosa. De maneira honesta, limitou-se a fazer uma sntesehistoriogrfica dos problemas levantados pelo Estado francs, para em seguida retomar atrilha traada por Henry Rousso, autor de um livro exemplar sobre a memria de Vichy.15

    Fica comprovado, portanto, que o "lugar de memria" no uma "nova categoria deinteligibilidade", e que um nmero bastante grande de historiadores praticava e continuapraticando o "lugar de memria", da mesma maneira como Monsieur Jourdain fazia prosa, ouseja, sem saber. Um outro trabalho de Philippe Burrin sobre o simbolismo dos gestos polticosnos anos 1930, publicado na revista Vingtime sicle,16 estaria mais em sintonia com oesprito de Les France.

    Nada disso exclui o fato de que Les lieux de mmoire manifesta a vitalidade dadisciplina histrica na Frana e testemunha o prestgio de que ela desfruta. Hoje pode-secontar s dezenas os artigos dos primeiros volumes que se tornaram referncias clssicas. Noseria arriscado apostar que a reflexo de Alain Corbin sobre a oposio "Paris-province", ou ade Maurice Agulhon sobre "Le centre et Ia priphrie", e ainda muitas outras, conhecero embreve o mesmo renome.

    O sucesso internacional de Les lieux de mmoire prova uma vez mais que o maissingular e o mais especificamente cultural o que mais carrega valores universais.Dificilmente se poderia fazer algo mais "franco-francs"17 do que este trabalho coletivo deintrospeco nacional, nascido do sentimento de que uma pgina secular estava sendo virada,do desejo de desmontar o mecanismo da identidade nacional, da vontade de preservar umamemria que se tornou consciente.

    No entanto, permanece aberta a toda comunidade de historiadores a possibilidade deexplorar, com a mesma mistura de lucidez cientfica e de emoo, a enciclopdia sem fim desuas prticas sociais e culturais.

    Armelle Enders doutora em histria pela Universidade de Paris IV, Sorbonne, e matre deconfrences na mesma universidade.

    14 As ditions du Seuil publicam, sob a direo de Andr Burguire e Jacques Revel, uma Histoire de la Franceem quatro volumes temticos (e cronolgicos). O quarto est no prelo.15 Henry Rousso, Le syndrome de Vichy de 1944 nos jours, Paris, Le Seuil, 1987. O livro trabalha exatamentecom esse problema da memria.16 Philippe Burrin, "Poings levs et bras tendus: la contagion des symboles au temps du Front populaire",Vingtime sicle, Paris, F.N.S.P., n 11, juillet-septembre 1986, p.5-20.17 O pai desta expresso o historiador americano Stanley Hoffmann.