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Ene Pithon Samuel Nebkheperure PRIMEIRA EDIÇÃO São Paulo 2013

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Ene PithonSamuel Nebkheperure

PRIMEIRA EDIÇÃO

São Paulo

2013

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Ene PithonSamuel Nebkheperure

PRIMEIRA EDIÇÃO

São Paulo

2013

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Copyright © 2013, Ene Pithon/Samuel Nebkheperure

Roberto Nunes Bittencourtrevisão

Ranieli Santoscapa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Pithon, Ene Guerra pelo novo Éden : as profecias da ciência / Ene Pithon, Samuel Nebkheperure. -- 1. ed. -- São Paulo : PerSe, 2013. ISBN 978-85-8196-431-7 1. Ficção científica brasileira I. Nebkheperure, Samuel. II. Título.

13-10737 CDD-869.9308762

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção científica : Literatura brasileira 869.9308762

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E ouvireis de guerras e de rumores de guerras; olhai não vos assusteis, porque é mister que isso tudo aconteça, mas ainda não é o fim. Porquanto se levantará nação contra nação, e reino contra reino, e haverá fomes, e pestes e terremotos, em vários lugares.

Mateus 24: 6, 7.

PRIMEIRA PARTE

Two strong shrill whistles answered through the calm.

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James Joyce, Ulisses.

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capítulo um

A manhã estava fresca e indiferente. O céu, encoberto por nu-vens cor de chumbo, deixando uma solidão e angústia envolverem as pes-soas de Atenas. Kolonaki estava calmo, saboreando o resto da quietude da noite anterior. Não havia triveículos, considerados os melhores meios de transporte do mundo devido sua flexibilidade e fonte de energia. Imagine um meio de transporte cuja superfície externa captura CO² da atmosfera e transforma em energia para seu funcionamento, sendo capaz de trafegar na terra, em autovias, no ar, em aerovias e na água, em hidrovias, nem naves cruzando o espaço aéreo como acontecia rotineiramente.

Aléxis Palaionides encostou-se ao vidro translúcido da janela e contemplou a paisagem. No canto esquerdo, em contornos esverdeados, estava o menu de ferramentas do seu apartamento.

Onde foi parar o meu sol? Mas, que cidadezinha é esta? Talvez

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GUERRA PELO NOVO ÉDEN

dê tempo de ver algumas notícias antes de sair. Se bem que hoje meu âni-mo está abaixo da média. Droga de jornalista estúpido. Tinha de alarmar na Rede que o Ágora estava me recrutando para a conferência da CPU? Agora me tornei a notícia do momento. Extra! Extra! O primeiro jornalis-ta de trinta e dois anos a ocupar cargos tão importantes na mídia impres-sa, virtual e blablablá, pensou enquanto tocava com o indicador no ícone JORNAIS ONLINE. Imediatamente apareceram no painel azul-esver-deado os logotipos dos principais jornais online do planeta. Selecionou a opção ÁGORA. Inúmeras janelas abriram-se. Cada uma trazia as opções daquele dia. No centro, a edição matutina do Ágora Notícias da cidade de São Ivanesburgo, com uma lista de manchetes ao lado da imagem da âncora, a jornalista Branka Galiyeva, com quem tivera passado uma incrí-vel noite em Moscou na última convenção jornalística da qual participara.

Aléxis pensou em ativar seu dispositivo de inteligência artificial doméstico. Contudo, desistiu da ideia assim que se lembrou do perfil aborrecível daquele programa responsável pelo controle absoluto de sua residência digitalizada.

Essa era uma das vantagens de quem morava em uma casa ou apartamento convencional do século XXI. Não ter um governante como o Hermes deve ser uma das sete maravilhas do mundo contemporâneo! Mas, como eu vou conseguir ficar sem um robô desse tipo? Não consigo nem me lembrar de verificar a agenda todos os dias...

– Mas que merda! – esbravejou Aléxis correndo para o seu com-putador de bolso sobre a escrivaninha de madeira, instalada ao lado de sua cama. Sempre preferiu deixar suas ferramentas de trabalho à mão. Em dezenas de casos não tinha inspiração alguma para iniciar um artigo, fosse ele sobre a crise política na França ou na Alemanha, os ataques terroristas australianos ou os arrancos e solavancos do Reino Unido do Oriente e os Estados Anglo-Saxões, e deitava-se para dormir. O sono lar-gava-o esperando, e sua mente estabanada e visguenta começava a traba-lhar sofregamente. Levantava-se bruscamente, os dedos sobre o teclado, digitando um artigo tão denso, complexo e extenso que seu editor sempre resolvia transformá-lo em uma matéria especial e publicá-la em mídias di-ferentes da marca Ágora. Talvez por essas características tão particulares Aléxis fosse um jornalista tão talentoso. Talvez tivesse sido seus artigos

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e matérias os responsáveis pelas nomeações para cargos que nunca fo-ram conferidos a jornalistas de sua faixa etária antes. Recebera inúmeros prêmios jornalísticos nos últimos dois anos que o deixaram surpreso e aturdido. Costumava comentar, num tom brincalhão, entre os colegas de trabalho: “Acho que nos últimos tempos os julgadores dessas premia-ções estão meio perdidos ou completamente cegos no que concerne à análise de obras jornalísticas!” Como alguém tão irresponsável chegara tão longe em tão pouco tempo? Isso é um paradoxo. Seria um alarmante paradoxo afirmar que um premiado e prestigiado jornalista é irresponsá-vel. Entretanto, ele sabia que não era, não. Esquecia a todo o momento de cumprir rigorosamente a agenda de trabalho, deixava de atualizar seu blogue semanal na página virtual do Ágora e religiosamente não enviava suas matérias para a edição do jornal no fim da tarde, como era exigido, e sim na manhã, horas antes da publicação.

“Se qualquer dia desses a Rede der uma pane e eu não receber seus textos antes da publicação do jornal, Aléxis, eu te guilhotino”, dizia seu editor num tom entre o pilhérico e o admoestador.

Ali estava ele diante do computador de bolso procurando de-sesperado um prefácio enviado pelo famigerado escritor Hugh Skinner, o qual ele teria de ter revisado para a página do romancista e enviado na noite anterior.

Como pude me esquecer desse prefácio? Não acredito nisso! Seu imbecil... Aquela oriental no bilhar estava encantadora. Deixá-la com aqueles insensíveis pra revisar o prefácio de um escritorzinho que se acha digno do Nobel de Literatura não compensaria... Ai, o que está dizendo seu palerma. Ele é um ás na imprensa mundial. Se permitir que ele des-cubra o quanto você é irresponsável e espalhe por ai verá onde irá flertar! Agora quero ver como irá resolver isso, pensava enquanto procurava em seus arquivos o texto que lhe fora enviado por correio eletrônico uma semana antes.

Levou vinte longos minutos para encontrá-lo em uma pasta de textos enviados por amigos e colegas. Saiu para o living, rumo à cozinha. Deixou o aparelho sobre o balcão e retirou do refrigerador seu leite em-balado e supercalórico, fechou a porta e deu-se de cara com o termostato, onde uma sequência de números lhe indicava a hora. Haviam passado

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treze minutos do horário de início do seu expediente na revista Apolo, onde trabalhava como colunista.

Não havia alternativa agora: tinha de ligar Hermes. Ativou a interface de voz, dizendo:– Senha de acesso Palaionides. Executar governante virtual:

Hermes.– Bom dia, senhor Palaionides! – disse Hermes ao carregar suas

configurações.– Meu dia não começou nada bem, Hermes. Aliás, nada de con-

versa. Envie para o meu servidor pessoal o texto Entre estátuas e homens, está nalgum daquelas pastas de meu computador de bolso com os arqui-vos do pessoal que me envia aquele monte de lixo eletrônico todo dia.

– Não consegui localizar o arquivo solicitado. Suas informações foram impreci...

– Vê se cala a boca e faz o que mandei se não te deixo um mês de quarentena.

– Como se o senhor conseguisse ficar um dia sequer sem um auxiliar virtual como eu – respondeu o governante em tom displicente.

– O quê? Não acredito nisso. Faça logo o que eu disse. É um pre-fácio daquele escritor russo... o tal de... como é mesmo o nome daquele pateta?... – falava enquanto tentava vestir suas calças numa luta frenética por todo o apartamento.

– O texto está em seu servidor. Deseja que faça mais alguma coisa, senhor Palaionides? – perguntou Hermes.

– Sim, por favor, fique online em meu telecomunicador. Não me deixe quebrar mais nenhum compromisso hoje – respondeu Aléxis arru-mando às pressas sua pasta de trabalho.

Fez-se um breve silêncio enquanto Aléxis pegou seus últimos equipamentos e o cartão que dava acesso a seu triveículo. Dirigiu-se à porta de saída e completou:

– Tranque o apartamento e só dê acesso a alguém caso eu auto-rize.

– Sim, senhor. Falei que não conseguia ficar um dia sequer sem um dispositivo do meu calibre.

– Mais uma palavra e apago sua memória – concluiu Aléxis ao

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sair e fechar a porta.

A nave com o brasão do Estado de Israel, um escudo ostentando um menorá no centro, em cujos lados içam-se dois ramos de oliveira e na parte superior está grafado o nome Israel em hebraico, desceu lentamente para o hangar das novas instalações do Departamento de Tecnologia e Ciências Aplicadas do campus Givat Ram, da Universidade Hebraica de Jerusalém. Nela vinham os principais colaboradores da universidade e da Direção de Inteligência Militar, cujo trabalho em ciências como a Física, Química e Biologia contribuíam para o desenvolvimento de armas pode-rosíssimas a fim de assegurar a defesa da nação.

Desde que o novo departamento fora instalado a Força de Defesa de Israel resolveu criar um esquema de transporte especial para os cientis-tas que trabalhavam lá. O risco de qualquer atentado de nações inimigas ou sequestro dessas pessoas não permitia uma atitude cômoda por parte das autoridades israelenses. Daquele departamento saiam equipamentos e dispositivos de relevância para o Estado. FDA-01 Nesher, a nave que os transportava, a única capaz de se tornar completamente invisível aos radares, computadores e até satélites de reconhecimento, além de uma das inteligências artificiais mais sofisticadas do mundo, foi desenvolvida lá.

Yossef Agnon desceu da nave e parou diante da entrada do la-boratório.

A única coisa que não me agrada é esse lugar criar tantas ar-mas destrutivas. Como se já não tivéssemos o bastante. Contudo, como convencer meu primeiro-ministro de que não precisamos de armas mais sofisticadas se a todo o momento somos atacados por inimigos que as criam desenfreadamente? Como dizer a ele: “Ataque o leão com um ca-jado, não precisa forjar um machado pra isso?” A única coisa que posso fazer é continuar defendendo uma política mais tolerante e diplomática. Nesse inferno caótico que chamamos de mundo o homem só destrói sem pensar nas consequências... Se soubessem como nosso planeta é susce-tível à obliteração não seriam tão selvagens e irracionais, pensava Agnon enquanto fitava o sistema de identificação instalado na entrada do com-plexo.

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Eram três formas de confirmação de identidade: primeiro o re-conhecimento da voz através do sobrenome seguido do nome do cien-tista, em seguida as digitais e por último o escaneamento da pupila. Não havia demonstração maior do medo de infiltração que seu sistema de segurança. Como o complexo estava vinculado ao campus universitário ele estava constantemente sendo vigiado por três sistemas de inteligên-cia artificial que mantinham ligação direta com uma base subterrânea do exército localizada ao norte de Jerusalém. Qualquer falha na segurança e uma divisão de elite entraria em ação instantaneamente.

Além de tudo isso, todo o campus era rigorosamente revestido por um sistema de autodetenção, confirmado o rompimento de qualquer protocolo de segurança todo o lugar era trancado e armas com detectores de movimento acionadas por toda parte. Estudantes, professores, cien-tistas e demais inquilinos desse ambiente tinham de ficar, em situações como essas, dentro de um perímetro, estabelecido por holograma gerado pelo programa, e permanecerem inertes ou seriam vítimas do sistema de segurança mais eficaz e sanguinário do planeta.

A polêmica em torno desse dispositivo era agressiva e constante. O próprio Agnon, diretor do departamento, era absolutamente contra a utilização do mecanismo. Vez ou outra conseguiu junto a parlamentares a discussão acerca da matéria e a proposta de desativação do sistema, contudo grupos radicais de direita conseguiram a permissão de aplicação e aperfeiçoamento da arma que revestia o Givat Ram, e, a duplicação para que fosse instalado em outros locais importantes do Estado de Israel, como no próprio parlamento. Travava-se uma verdadeira guerra em tor-no dessa questão.

Como pacifista Agnon tentava não permitir que tais atitudes passassem despercebidas. Seus artigos para jornais de Jerusalém, Haifa e Tel Aviv eram incisivos e categóricos. Bradava com obstinado vigor contra essa política belicista do parlamento e do governo em si. Seu nome era sinônimo de influência intelectual e conscientização pública. Em seus discursos em conferências ou palestras era aplaudido de pé, com grande vigor, por simpatizantes de suas causas. Era um nome interna-cional de maior prestígio na comunidade científica. Nobel de Física e Prêmio Albert Einstein. Embaixador da CPU para diálogo intercientífico.

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Diretor do Departamento de Astrofísica do Technion e catedrático em Física Quântica pela Universidade de Tel Aviv, onde lecionava a matéria. Considerado um dos maiores gênios da história da humanidade pela co-munidade internacional. Yossef Agnon não era ouvido não por sua voz ser fraca, desprovida de força política, social ou científica, mas, por ser considerado um gênio, e, como gênio, um louco alienado.

Entrando em seu gabinete Agnon examinou-o investigando cada detalhe e comparando a imagem obtida com a armazenada em sua me-mória, registrada na última vez que estivera no recinto, no dia anterior.

O som do interfone, que o comunicava com sua secretária, cor-tou o silêncio cessando também seu meticuloso estudo.

– Senhor Agnon, o senhor Chaim deseja ter contigo... – ia dizen-do Ruth Krigsman com sua voz musical e polida de sempre.

– Peça-o para entrar, Srta. Krigsman – atalhou Agnon em tom impassível e aparentemente alienado.

Chaim entrou cumprimentando-o. Sentaram-se nos estofados de couro que guarneciam o gabinete, cuja decoração fora feita pelo próprio Yossef.

– Desculpe incomodá-lo no início de seu dia... – ia dizendo Chaim jovial.

– Chaim, por que você não acessa seu conteúdo restrito de seu computador pessoal ou de seu próprio gabinete? – interrompeu-o Agnon com leve repreensão na voz.

– É... De lá ficarão sabendo e aí não será mais restrito – disse gracejando.

Agnon franziu a sobrancelha como se esperasse a legítima ex-plicação do delito que Chaim cometera. Como ele permanecera quieto, calado e com um riso amarelo estampado na face, prosseguiu:

– Acho que você é um dos equipamentos defeituosos desse de-partamento que nunca serei capaz de consertar, sabia?

– É bom saber que você me ama também – riu e levantou-se var-rendo o local com seu olhar lento e preguiçoso. – Larguei um microchip aqui ontem. Preciso dele para começar minhas atividades.

Agnon dirigiu-se à estante de madeira onde ficava sua coleção de artefatos antigos, inclusive um toca-discos no qual costumava ouvir

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discos de Beethoven e Bach. – Sobre a mesa, detrás de minha fotografia retirada diante do

acelerador de partículas do Weizmann – disse para Chaim. – Esta sala nem precisa de filmadora ou qualquer aparelho de

vigilância, hein! Garanto que se sumisse um grão de pó pertencente a este local você seria capaz de notar e talvez tivesse pistas acerca do perfil do criminoso – disse Chaim pilhérico e jocoso.

– Não seja ridículo – disse Agnon ao correr o indicador sobre os títulos dos discos, no canto superior esquerdo da estante. – Aliás, eu não suporto todos esses instrumentos de segurança, sobretudo o desse campus.

– Deveria gostar. O criador dele é seu primo, o diretor do Technion. Ranon Grun, nosso maior engenheiro bélico – disse revirando estabanadamente a mesa de trabalho de Agnon à procura do microchip.

– Você sabe que repudio as armas. Tirou um disco cuja capa era inteiramente negra e no centro, em

letras brancas e pequenas, estava grafado o nome de Johann Sebastian Bach.

– Ah, sim, sim – replicou Chaim pegando o microchip encon-trado com tanto esforço a despeito de Agnon ter-lhe informado precisa-mente sua localização. Dirigiu-se a sua pasta, largada sobre o estofado. – Trouxe-lhe algo não muito animador. Para um pacifista você anda mui-to ligado a armas destrutivas.

Agnon expressou um amálgama de incompreensão e susto. Chaim fez uma pequena pausa. Retirou um jornal de sua pasta, e conti-nuou:

– É a edição impressa do jornal Folleto Europea. A manchete principal diz: “Equipe de cientista dos Estados Anglo-Saxões anunciam a fabricação iminente da primeira bomba de antimatéria.” Na sequência te-mos algumas considerações introdutórias de pouca relevância ao caso e... aqui temos: “O engenheiro bélico e físico George Clancy anunciou que o protótipo da primeira bomba de antimatéria estará pronto dentro de trin-ta dias. Explicou que o feito só foi possível devido aos recentes estudos do cientista israelense Yossef Agnon, publicados no livro Considerações sobre antimatéria, sobre a produção e armazenamento da antimatéria. ‘Sem

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as perspicazes anotações de Agnon esse invento não seria possível’, dis-se Clancy. Calcula-se que o artefato bélico terá um poder de destruição expressivamente superior à versão mais atual da temível bomba de fusão termonuclear. Devido essa estimativa a equipe responsável pelo dispositi-vo o batizou de bomba T, de Tanatos, deus da morte na mitologia grega. O fato foi...”

– Não poderiam ter escolhido um nome melhor para mais esse brinquedinho do irresponsável e pecaminoso ser humano. Uma bomba de antimatéria! – disse Agnon nitidamente exasperado. – Não posso acre-ditar que tiveram a coragem de fazer isso. É uma calamidade! Expliquei naquele estudo que a antimatéria é demasiadamente nociva para manu-seio. Armazená-la nas cápsulas de vácuo não é um método cem por cento seguro e eficaz. Um acidente com essa substância e adeus a nossa irracio-nalidade. Que o Eterno tenha misericórdia de nós! Quem aqueles ineptos pensam que são?! Não há como calcular as consequências da explosão de uma bomba desse calibre. Nem temos uma precisa noção da energia libe-rada pela antimatéria em contato com a matéria. Essa bomba pode... Pelo Eterno... Ela pode simplesmente transformar o planeta Terra em luz.

– Não seja tão dramático, meu caro – falou Chaim esboçando um sorriso brincalhão.

– Não estou sendo. Os efeitos dessa atitude são imprevisíveis. Nem em meus piores pesadelos pude conceber algo assim – volveu Agnon indo pra sua cadeira e deixando o disco em seu lugar.

Em sua mente vinham estimativas, cálculos, equações e hipó-teses num ritmo frenético e torturante. Sentiu um repentino mal-estar crescer dentro de si. Se soubesse que aqueles estudos seriam utilizados posteriormente para fins bélicos não os teria publicado. Como pôde ter sido tão ingênuo? Era somente isso o que esperavam os incentivadores das pesquisas. Para o homem só importa encontrar meios de estender seu poder e influência sobre o restante da humanidade.

Os governantes não estão preocupados tão somente na seguran-ça de suas nações, eles anseiam, com uma gana corrosiva, pôr as mãos em todos os estados-nações. Governarem um gigantesco e uniforme império. Serem soberanos universais e assim dizerem, com dissimulada benevo-lência: “Ora, para que todos os povos coexistam pacificamente somente

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debaixo de uma única e firme autoridade. A globalização consistiu no primeiro passo rumo à centralização do poder nas mãos de um único in-divíduo. A paz e a prosperidade só são viáveis em uma potência absoluta, implacável e inabalável.” Chegar a essas conclusões não requeria nenhum esforço intelectual sobre-humano. Não precisaria entrar para a lista dos maiores pensadores da história da humanidade. Era uma ideia que circu-lava sobre os olhares gananciosos de todos os governantes, presidentes, primeiros-ministros, reis.

Agnon era mesmo capaz de enxergar isso nos olhos azuis e in-trépidos do primeiro-ministro israelense. Entretanto, ele mesmo dera ao leão garras ainda mais afiadas e mortíferas para estraçalhar o cordeiro. Nessa metáfora onde o leão era o homem pecador e sórdido e o cordeiro a humanidade desprotegida e a criação, os resultados seriam cruéis.

– Não posso permitir que essa atitude fique impune. Essa ma-tula terá de assumir as consequências desse ato abominável – exclamou Agnon como se tivesse diante dum inimigo.

– Sei que não. Você é embaixador para diálogo intercientífico da CPU. Terá direito de protestar contra o que eles fizeram...

– Não será mais uma denúncia ou protesto ordinário, tenha ple-na certeza disso, caro Chaim – atalhou cerrando os punhos sobre a mesa. Sua expressão era de fúria e repúdio. Agnon estava visivelmente transfi-gurado. Era o mesmo gigante imponente que se erguia diante de todos com condescendência e mansidão. Agora, porém, estava sedento por uma batalha e exalava vigor de sua aparência insólita.

– Isso terá uma péssima reação em todo o mundo – disse Chaim preocupado.

– Sim, sim. Só que o livre-arbítrio, às vezes, coloca-nos em con-fronto direto contra o restante da humanidade. Eles tiveram liberdade para desenvolver a bomba e eu terei na mesma proporção a de criticar essa atitude – remendou Agnon espontaneamente.

– A Conferência Internacional da CPU será dentro de vinte dias, não é? – quis confirmar Chaim.

– Precisamente dezenove. Fui designado para falar sobre os avanços da ciência e abordar questões sobre desenvolvimento sustentá-vel, nossa utopia contemporânea, como Morus diria se estivesse vendo

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isso tudo acontecer. Vou aproveitar este ensejo pra dar uma sacudida, mais que merecida, devo acrescentar, nesta tropa de feras selvagens que estão trabalhando em prol de nossa extinção.

– Agora você deixou-me verdadeiramente preocupado. Nunca pensei bem a respeito da utilização de antimatéria. Na verdade, sequer conheço de perto a substância. Não fazia ideia de seu poder de destrui-ção – disse Chaim como se suplicasse em seu tom de voz uma palavra de conforto por parte de Agnon.

Era exatamente isso o que ele buscava. Sabia que a antimatéria libera imensa quantidade de energia em contato com a matéria. Contudo, Agnon, que havia trabalhado com a substância tanto tempo em laborató-rio a fim de destrinchá-la afirmou com todas as letras que não era possível determinar até onde iria essa liberação energética. Matéria-antimatéria são conceitos antagônicos. São matérias antagônicas que juntas se atracam mutuamente até restar somente o vácuo.

– Ninguém o faz. O que temos até hoje são hipóteses batizadas de teorias. Embora, depois das pesquisas que fiz com ela posso lhe afir-mar uma coisa: a antimatéria é de longe uma vilã como a energia nuclear. Não há nenhum item para compararmos com ela. Coloco a antimatéria como o Mal que se opõe ao Bem. Como Trevas e Luz. Como a Vida e a Morte – falou Agnon pausadamente, dando uma gravidade ao assunto que deixava Chaim cada vez mais inquieto.

Eterno, o que será de nós. Os Estados Anglo-Saxões com uma arma dessas. O mundo está perdido. E se a o Reino Unido do Oriente não reagir a essa iniciativa anglo-saxônica? E se ele reagir de forma muito ne-gativa? E se..., pensava Chaim num fluxo psicológico agitado e temeroso.

– Chaim? – disse Agnon trazendo-o de volta de seus pensamen-tos.

– Ah... Desculpe... Acabei indo longe em minhas reflexões – consultou o relógio de pulso mecanicamente para exprimir a percepção de que estava atrasado. – Estou atrasado, devo ir agora.

Se é que vou conseguir fazer alguma coisa hoje. Desde o Weizmann que tenho medo dessas fontes de energia agressivas. E agora isso...

Dirigiu-se até a porta, abriu-a e volveu para Agnon:

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– Agnon, o reitor quer saber por que você bloqueou o acesso de Yaakov ao seu gabinete? Ele não parece muito contente e está procuran-do o secretário da Força de Defesa responsável por essas instalações...

– Primeiro: não gostei nem um pouco de darem o nome de um dos nossos patriarcas àquele computador que dizem ser uma inteligência artificial, parece mais uma tolice artificial. Segundo: eu não preciso de ne-nhum aparelho para realizar tarefas para mim. Posso fazer isso sozinho e muito bem, obrigado. E finalmente: sentia-me sem privacidade com aque-le tal de Yaakov o tempo inteiro vendo, ouvindo e registrando tudo que se passava aqui – disse Agnon. E repentinamente completou com um riso singelo: – Ah, e tenho um amigo que precisa de privacidade para acessar de meu computador certo material: extraordinário e nocivo.

– Muito engraçadinho... – respondeu Chaim rindo. Volveu-se para sair e apertou no botão para que a porta abrisse.

– Chaim? Ele voltou-se para Agnon. – Por favor, mantenha-me informado.Como eu gostaria de nem estar a par disso agora. Se tivesse pen-

sando no assunto ao ler a manchete talvez nem tivesse chegado até aqui!– Não se preocupe, farei isso – disse saindo.

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capítulo dois

Sidney Tower, Austrália, fevereiro de 2177

O Sidney Tower, que até o ano de 2012 era um complexo comercial e turístico da grande metrópole australiana, tornou-se um templo para onde se conver-giam constantemente os olhares do mundo. A ONU se extinguiu, em maio de 2011, assim como a Liga das Nações, em abril de 1946, e em seu lugar nasceu a CPU, ou Confederação dos Povos Unidos, como parte de uma nova mentalidade onde a etnia estaria acima das divisões tradicionais, o globo dividido não mais em blocos territoriais e políticos, mas culturais e antropológicos. Sua sede fora construída nesse monumento australiano mundialmente conhecido. Além de manter a torre como um ponto de vi-sitação a CPU criou um departamento para recepção de manifestações pluriculturais no local. Nos arredores existiam embaixadas e departamentos políticos de diversos locais. Tanto o Reino Unido do Oriente, os Estados Anglo-Saxões quanto os Estados

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Latino-Americanos e os demais países do globo possuíam suas repartições públicas e agências de polícia instaladas nesse território diplomático, independente e cosmopolita, soberano e impassível das relações de poder entre os povos.

Nas ruas poderiam ser encontradas celebridades de qualquer canto a qual-quer hora. Artistas famosos, senadores, chefes de estado, cantores, cientistas, ativistas políticos e uma infinidade de pessoas. Os bulevares de Sidney já não eram os mesmos. Era uma espécie de Roma, Alexandria, Nova York, Constantinopla, Paris e tantas outras cidades badaladas em uma só. “Quem não é adepto de agitação e glamour”, di-ziam as elegantes senhoras que visitavam a cidade para jogar fora os excedentes lucros dos maridos, “não resolve tirar férias por aqui.”

Em situações normais, quando aconteciam as reuniões ordinárias da Confederação dos Povos Unidos, o local sofria de uma imensa e patológica agitação. Pessoas iam e vinham de todos os lados, entrando e saindo dos edifícios, naves e trive-ículos cortavam o céu, planadores chegavam e saiam, jornalistas de emissoras de TV, páginas da Rede, revistas e jornais impressos guarneciam aquele cenário tão polêmico e conflituoso. Além disso, a população das metrópoles adjacentes não perdia esse tipo de evento. Ali sempre estava repleto de sujeitos de vários âmbitos da sociedade. Era um ambiente por onde passavam indivíduos de todas as espécies. Interesses dos mais varia-dos, oportunidades impensadas e apetites sórdidos sendo saciados numa Alexandria dos tempos contemporâneos. Comércio, política, cultura, pecados e vícios. Este mais que aqueles. Assim era traçado o desenho da Sidney do século XXII. Um lugar bem distinto do visto em meados do século anterior.

Naquela manhã aconteceria uma importantíssima reunião na sede da CPU. Seria uma conferência internacional pautada na sustentabilidade. Mais precisamente acerca da relação do homem com o meio ambiente nos últimos anos. Um tema que remontava aos tumultuosos séculos XIX a XX. As pessoas sempre discutiam a res-peito e nunca chegavam a um consenso. Medidas efetivas não perduravam. Mudanças climáticas já tinham levado a extinção de preciosidades naturais em diversos cantos do globo. A cada ano a tensão em torno do assunto progredia.

Nessa conferência seriam publicados relevantes estudos, realizados por gru-pos de pesquisadores a pedido da CPU. Estariam presentes os principais representan-tes dos povos de todo o mundo. A proposta era chegar-se a um acordo quanto ao uso desmedido da tecnologia e, sobretudo, às pesquisas e desenvolvimento de armas de des-truição em massa. Além disso, seriam tratados assuntos semelhantes encontrados nas páginas dos principais jornais do mundo todos os dias e com os quais a população já

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estava habituada. Especulava-se na imprensa que havia uma conspiração por parte de alguns governos para que o evento não chegasse ao fim. Sociedades terrestres, numa ati-tude desesperada e imprudente, se manifestaram na Rede ameaçando uma invasão às capitais administrativas de cada povo. Tudo estava enleado em muita tensão e violên-cia. Personalidades ligadas a organizações de direitos humanos e entidades filantrópicas estavam preocupadas com os resultados dessa aglomeração. A Unipol seria responsável pela segurança junto com agências especiais privadas e públicas. Um esquema impene-trável fora montado com a ajuda até mesmo das forças armadas das maiores potências políticas e econômicas. Em virtude disso, os protestos nos meios de comunicação e nas ruas de grandes metrópoles aumentaram drasticamente. Nomes importantes foram relacionados à ideologias partidárias em divulgações largamente contestadas. Notas polêmicas e agressivas eram lançadas intensificando a repercussão do fato.

E no meio de toda essa balbúrdia estava eu, um jornalista grego não muito convencional.

A conferência estava marcada para dar-se início às oito horas local. Faltavam cerca de vinte minutos quando cheguei às proximidades da sede da CPU. Desci de meu triveículo apressadamente e dirigi-me a um café próximo. Estava famin-to. Saíra correndo do hotel onde estava hospedado e não tomara meu café da manhã. Estava atrasado para entrar no edifício do Sidney Tower. Fazia parte do grupo de jornalistas que foram credenciados para acompanhar a conferência de dentro do salão de reuniões da CPU.

Pedi a atendente um toast com geleia e café. Seria bom seguir a dieta aus-traliana enquanto estivesse ali em Sidney. Abri minha pasta para verificar se as ferra-mentas de trabalho estavam todas lá e prontas para a maratona que se aproximava. O computador de bolso e meu celular estavam descarregados.

– Senhorita onde posso recarregar um computador de bolso? – perguntei tentando acessar meu servidor pessoal pelo DIM, dispositivo multifuncional, a fim de consultar minha agenda. Ao menos ainda tinha um para acessar a Rede. Era um equipamento quase em desuso depois dos dispositivos unificadores como os Minicom. Não importava muito com isso. Sempre usava uma invenção até ela desaparecer do mercado. A tecnologia avançava rápido demais. Aquela ideia comum de seguir modis-mos não me agradava. Nunca me agradou, como um dia vim perceber. Pouco me im-portava se celular ou notebook sem IA era obsoleto ou não, caso servisse às minhas necessidades, continuava utilizando. Também não deixava de obter as invenções mais atuais. A funcionalidade de certos aparelhos criados recentemente me ajudava bastante

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em minhas ocupações. – Vire a esquerda da banca de jornal, lá tem uma conexão de Rede – foi a

resposta da moça de traços orientais que me atendeu. Um senhor de meia idade lendo o Ágora de Camberra soergueu seu olhar

pra mim. Fitou o jornal como se procurasse algo e novamente volveu para mim. Levantou-se de sua mesa e veio em minha direção, dizendo:

– Bom dia, meu jovem. Desculpe a intromissão, mas você não é Aléxis Palaionides?

– Sim, sou eu mesmo – respondi olhando de esguelha para meu interlocutor. – Posso ajudá-lo em algo?

– É, pode. Por que seu jornal não divulgou nada a respeito da conferência? A não ser essa nota do editor dizendo...

Se o edifício inteiro desabasse eu não ouviria, sentiria apenas os destroços pesarem sobre meu corpo. Não ouvia mais nada. Estático e sem fôlego, meus pulmões entraram em colapso. Podia sentir meu coração acelerando freneticamente. Na noite anterior enviara uma mensagem para a edição do Ágora. Junto a ela estava anexada minha matéria especial sobre a conferência. Seria a primeira de uma série que escre-veria como jornalista especial enviado a Sidney para cobrir o importantíssimo evento. Meu último prêmio de jornalismo, o Prêmio Dostoievski de Jornalismo, conferido pela Academia Oriental de Comunicação, me trouxera muitas conquistas. Fora indicado em janeiro ao Prêmio Gutenberg de Imprensa realizado pela própria CPU. Estava escalando rapidamente as muralhas do sucesso e do reconhecimento pelo meu trabalho.

No entanto, ainda me submetia aos meus vícios irresponsáveis e muitas vezes, como aquela, encontrava-me em situação cuja delicadeza e complexidade, sendo eufêmico, logicamente, me deixava imóvel de incredulidade. Como eu vou escapar dessa, perguntava-me nessas ocasiões com real preocupação. Nunca sabia como, embora sem-pre escapasse. Vez ou outra ainda como um herói digno de honrarias por ter feito algo ainda mais primoroso que o requerido. Se dessa vez eu conseguir me safar passarei a ser um crente em milagres, completei daquela feita.

Lembrei que na noite anterior tinha acabado de chegar a meu hotel depois de uma visita à cidade. Entrei para minha suíte, troquei de roupa e deixei o DIM enviando os arquivos da matéria sobre a conferência que escrevera para o Ágora. Estava com fome e não queria jantar no quarto. Desci até o restaurante do hotel. Aproximei-me do balcão para escolher uma garrafa de vinho que pudesse degustar antes da refeição. Tenho certo saber enológico e sempre que decidia tomar vinho fazia

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questão de escolhê-lo diretamente do fornecedor, discutindo, se possível, sobre a garrafa e a safra escolhida. Uma mulher balzaquiana estava recostada ao balcão. Seu corpo era sinuoso e leve como o de uma dançarina oriental. Cabelos longos e castanhos de uma vivacidade extremosa, usava um vestido longo em tafetá preto e um inigualável colar de lápis-lazúli com um pingente de safira. Sozinha. Ali bem diante de meus olhos. Logo me aproximei da desconhecida. Meus feromônios estavam completamente fora do controle. Respirava sexo naquele momento. Meus olhos faziam uma vistoria meticulosa daquela ninfa. Em minha mente arquitetei rapidamente algo a ser dito, algo que a cativasse. Com base em meus estudos, disse:

– Esperando o príncipe, bela princesa?Ela volveu-se para mim com um sorriso singelo. Sua voz suave e sedutora,

ainda mais que seu corpo, falou pausadamente: – De forma alguma. Os príncipes são sapos depois de uma mutação fajuta.

Prefiro um cavaleiro mesmo.– Que bom! Tenho experiência em justas. – Hum! Olha se não é um escudeiro tentando conquistar os favores de uma

dama. Espera mesmo que seja possível?– Sabe o que é?!... Tenho mais habilidade com as mulheres que meu amo.A conversa terminou por levar-nos ao outro lado da cidade, em um motel

no subsolo de uma loja de produtos esotéricos, para mais uma aventura dionisíaca. Esqueci-me completamente o que precisava ser feito naquela noite. Retornei para o hotel no dia seguinte. Eram sete horas. Precisava tomar um banho e me arrumar para o compromisso o mais rápido possível. Ainda precisava pegar o triveículo no hangar do hotel e abastecê-lo numa loja a quase quarenta e seis quilômetros dali. Sai da suíte às pressas. Recolhi todo o material sobre a escrivaninha sem ao menos ver o que tinha lá. Sabia apenas que o DIM estava entre os objetos e precisaria dele.

Se a matéria não estava publicada é porque ela não chegara ao destinatário. Decerto o DIM descarregara no meio do processo de envio da mensagem. Aquilo pare-cia um pesadelo. Lembrei-me de Hermes. Se o maldito IA estivesse online, tomando conta da tarefa, isso não teria acontecido. A culpa não era minha, era? Era. Devia ter-me encarregado da matéria antes de qualquer atividade pessoal.

Olhei para o senhor que fizera a pergunta sobre a matéria com um sorriso amarelo escancarado na face. Sentia-me um imbecil. Será que todos aqueles prêmios não passaram de um conto de fadas em formato de sonho o qual tivera, bem como a nomeação para a cobertura daquele importante evento internacional? Meu nome

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constava em uma seleta lista de trinta e cinco jornalistas que assistiriam à conferencia de dentro do salão de reuniões da CPU. A imprensa internacional fizera um escân-dalo quando fora anunciada a minha escolha. O fato fora considerado uma afronta. Nomes tradicionais do jornalismo foram deixados de fora. Exímio redator e colunista, repórter insuperável e editorialista excepcional. Sim. Aparentemente não se tratava de uma fábula, era a realidade mais tangível possível. A pergunta era: “Como eu, Aléxis Palanionides, conseguia ser tão competente sendo paradoxalmente tão incompetente?” Isso eu não era capaz de explicar. Ninguém seria. De uma hora pra outra minha incompetência se transmutava em magnânima exatidão profissional, isto é, em perfeita idoneidade.

– Desculpe-me senhor, preciso ir resolver isso. Aliás, o que saiu mesmo sobre a conferência no Ágora?

O pobre sujeito diante de meus olhos voltou suas pupilas castanhas para o jornal em suas mãos e novamente leu para mim. Será mesmo ele, deve ter-se questio-nado o senhor para si mesmo.

– Aqui diz que a conferência se realizará hoje, às oito horas, horário de Sidney... A mesma coisa da edição de ontem. Ou seja, não informa nada sobre esse megalítico aí fora! – irrompeu assombrosamente como se tivesse lido a informação pela primeira vez.

– Na verdade, é... – Aléxis esboçava em sua mente uma desculpa para o fato de não haver uma linha sequer escrita por ele, enviado especial incumbido de cobrir o evento para o Ágora. Até que finalmente veio-lhe algo. – É que estou preparando uma matéria especial para a edição vespertina, a impressa. Será um material magní-fico!

Se não o for mesmo o meu chefe me mata! Um frio correu por toda a minha coluna vertebral! Agora tinha um trabalho complicadíssimo pela frente. E minha car-reira estava inteiramente dependendo do resultado dessa obra. Essa fora uma situação a qual minha conduta descabida engendrara. Maldisse para mim mesmo essa face de minha personalidade.

Corri rapidamente ao guichê a fim de pagar a conta do café e rumei para a conexão de Rede. Esqueci que deixara o senhor curioso lá atrás, esqueci de tomar o próprio café o qual fizera o pedido, esqueci de ser cauteloso e cortês e sai esbarrando-me nos transeuntes.

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O senhor não tirou os olhos do jovem que encontrara. O con-fundira com o renomado jornalista Aléxis Palaionides, e chegou até mes-mo questioná-lo a respeito. Contudo, pareceu-lhe que o desconhecido estava semiperturbado, pois lhe respondera afirmativamente, para em seguida agir de forma tão estouvada. Haviam lhe dito que aquela cidade era demasiado tumultuosa. Achou que estivessem exagerando, como é do costume das pessoas, sempre hiperbólicas, embora depois de cinco dias ali estava convicto de que aquele não era o caso. Não mesmo. Sidney era um pandemônio e a conferência da CPU contribuiu para que o cenário sofresse uma profunda transformação. Negativa, óbvio.

Na entrada do Sidney Tower havia uma multidão agitada que caso não houvesse tamanha organização de forças armadas o clima hostil já teria evoluído para um verdadeiro confronto. Os membros do conse-lho que chegavam entravam escoltados por policiais da CPU e de suas devidas agências de segurança. Repórteres, jornalistas, curiosos, ativistas e uma imensa quantidade de indivíduos de vários outros setores avançavam assim que uma figura importante da comunidade internacional chegava.

O embaixador dos Emirados Árabes tinha acabado de entrar no edifício quando uma comitiva de oito naves pousou a poucos metros na entrada. Instantaneamente uma tropa armada desceu da primeira nave. Seus uniformes denunciavam a origem e quem possivelmente vinha ali. Era o brasão das forças armadas dos Estados Anglo-Saxões. Em questão de segundos foi montada uma barreira de soldados até o portal que dava acesso a sede da CPU. Quando a polícia da própria organização se aproxi-mou para auxiliar na segurança, um homem alto, robusto e de armadura, uma espécie de traje mecânico, chegou ao comandante das tropas e pediu que eles também mantivessem a distância das aeronaves.

– Desculpe, mas este espaço agora está sob custódia do governo dos Estados Anglo-Saxões – disse grosseiramente.

Duas outras naves sobrevoavam o espaço aéreo sobre a área in-terditada pelo esquema policial que acompanhava a comitiva dos Estados Anglo-Saxões. Já haviam começado a especular a respeito de quem viera ao evento. Teria sido o presidente John McEwan, seu vice, o ex-senador

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irlandês Gerald Seward, ou a secretária de Estado Elisabeth Fraser? Pelo esquema de segurança que fora montado tão rapidamente provavelmente teria sido uma dessas três figuras. Decerto não fora um mero embaixador ou senador influente em Washington ou Londres. Ninguém que traba-lhasse no parlamento anglo-saxão. As naves estavam alerta. Os policiais se organizaram segundo as instruções do comandante, o homem de ar-madura cuja tecnologia exibida estava além da conhecida pela massa e divulgada pela mídia.

A porta do veículo principal, uma nave capaz de navegar pelo espaço sideral, se abriu. Desceram três homens bem trajados. Aparentemente eram diplomatas ou parlamentares, porém um jornalista conseguiu os identificar. Eram assessores do presidente McEwan. Será que o chefe de estado estava ali? Amontoaram-se em torno da comiti-va. A agitação intensificou-se. Aquele mistério todo estava deixando os presentes ainda mais eufóricos e intranquilos. Assim que os três estavam no portal, alguns agentes vieram até eles. Outro grupo de engravatados desceu e no meio deles agentes do Departamento Nacional de Segurança dos Estados Anglo-Saxões, o famoso DNS, a mais coesa e aplicada força policial desenvolvida até então, entraram em ação. Rival em escala idênti-ca ao Serviço de Inteligência e Segurança, SIS, criado pelo Reino Unido do Oriente.

A ansiedade tomou conta de todos que assistiam à cena. Perguntavam-se quem era realmente aquelas pessoas e quem seria o re-presentante dos Estados na conferência. A cada segundo surgia um nome e um novo indício de quem estaria ali. E a cada novo sujeito que descia da nave, parecia que de lá sairia uma tropa inteira do exército em quantidade. A dúvida aumentava.

Finalmente desceu uma mulher de estatura mediana, corpo bem feito, traços firmes, face indômita. Gestos precisos e calculados. Postura convencional e adaptativa. Sem nenhum traço visível de sentimentalismo. Nenhuma insinuação na superfície. Sua máscara era a mais impassível que se podia contemplar. Tão enigmática quanto a esfinge. Demonstrava apenas uma faceta de seu caráter, isso era nítido. A polidez na maneira de encarar a multidão ávida por sua aparição, mesmo ignorando de quem se tratava, demonstrava o quão segura era de como deveria se portar diante

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do público ao qual se encontrava. Dentro de si uma ponta de temor, susto, nervosismo, qualquer coisa que não a deixava completamente disposta.

Isso é inteiramente normal. Basta recorrer ao passado..., disse a si mesma.

– Caramba! – disse o editor do jornal Sidney Notícias, ao ver a imagem daquela mulher na tela de onde acompanhava a cobertura, der-ramando o café de sua caneca sobre si. – Ninguém menos que o braço direito de McEwan, Elisabeth Fraser, sua secretária de Estado...

– Uma coisa é certa: nem o próprio McEwan seria capaz de se sair bem nessa conferência. Mas, ela... Ela fará com que os Estados Anglo-Saxões saiam ileso das acusações contra eles – completou seu assistente.

A nave que trouxera Yossef Agnon à conferência pertencia ao Estado de Israel e trazia uma verdadeira tropa de figurões. Nela vieram outros cientistas e representantes do governo israelense, bem como o primeiro-ministro. Os representantes de Estado foram para o salão de reuniões cumprimentarem formalmente os demais participantes do even-to e seus anfitriões. Enquanto isso, os pesquisadores, entre eles Agnon e Chaim, se dirigiram a outras salas onde membros da comunidade cientí-fica presentes se encontravam em animadas conversas antes do início do evento.

Agnon já estava familiarizado com o edifício do Sidney Tower. Era embaixador há algum tempo. Tinha participado recentemente de um encontro da comunidade de ciências biofarmacêuticas organizado pela CPU onde atuara mais uma vez como mediador nas discussões. Seu tra-balho como embaixador consistia exatamente em mediar diálogos na área científica, sobretudo quando os temas em pauta eram vinculados ao mau uso da ciência em questão. Quando envolvia bioética a situação era ainda mais delicada e a presença de Agnon era vital para eventos dessa enverga-dura. Assim, ele chegava a visitar Sidney a fim de comparecer a sessões da CPU diversas vezes em curtos períodos de tempo. Aquela era a terceira vez que comparecia ali naquele mês.

Entretanto, dessa vez estava levemente alterado. Houvera acom-panhado o desenvolvimento de uma série de avanços negativos na área

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científica realizados por cientistas anglo-saxões. O pior deles fora a cria-ção dos esboços para a construção da chamada bomba Tanatos, ou bom-ba T, como já estava amplamente conhecida. O artefato bélico feito com antimatéria era de uma periculosidade inconcebível. E, para que ele se sentisse ainda mais decepcionado e atormentado, as informações mais preciosas para a construção do dispositivo saíra de seu próprio punho, como fizeram questão de salientar os responsáveis pelo projeto.

Quando Agnon entrou na sala onde decidiu aguardar o início da conferência ficou surpreso. Havia lá outras personalidades familiares da sua comunidade, entre alguns desconhecidos, nitidamente à vontade, como se a harmonia e a prosperidade varressem o globo o transforman-do num Éden contemporâneo.

Seu amigo bioquímico Al Samir Fayed, do Irã, vencedor no Nobel da Paz do ano anterior, o recebeu com calorosos cumprimentos. O recinto era grande e rodeado de monitores translúcidos azul-anil que mudavam constantemente de cenário, ora mostrando a paisagem natural lá de fora, ora fazendo um tour pela Austrália e na sequência pelos jornais online do planeta. Guarnecido de estofados e plantas ornamentais arti-ficiais. O chão recoberto por um carpete de origem incerta, aparentava ser oriental, embora os motivos poderiam estar relacionados à cultura estrangeira e a peça ter sido produzida na província chinesa de Fujian, no Reino Unido do Oriente, a fábrica do gigantesco monumento político e econômico do oriente. Havia também um bar onde eram servidas bebidas e especialidades gastronômicas australianas.

Três grupos de pessoas ocupavam o ambiente. No canto direi-to Agnon pôde vislumbrar uma farmacêutica romena que conhecera em Estocolmo quando fora receber o Nobel junto com dois geógrafos de renome internacional. Um deles, se não estava enganado, era Laurence Hakim, que morava nos Estados Latino-Americanos e havia divulgando recentemente um relevante estudo sobre o degelo das calotas polares.

Há quanto tempo se fala sobre essa questão? Nem a ameaça de grandes centros urbanos costeiros se afundarem feito Atlântida e mais recentemente a Holanda convence o homem a tomar uma resolução sá-bia quanto a sua conduta desmedida, cogitou Agnon ao contemplar num instante a fisionomia envelhecida de Laurence. Sua pele sulcada e seus