enfarte agudo do miocárdio

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ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO Cristina Gavina* Teresa Pinho** O enfarte agudo do miocárdio, mais vulgarmente conhecido por “ataque cardíaco” resulta geralmente da lesão do músculo cardíaco subsequente à obstrução de uma artéria coronária. É actualmente uma das principais causas de morte nos países desenvolvidos e a sua incidência poderá ser significativamente diminuída se forem implementadas medidas preventivas, nomeadamente na mudança de estilos de vida.

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ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO Cristina Gavina* Teresa Pinho**

O enfarte agudo do miocárdio, mais vulgarmente conhecido por “ataque cardíaco” resulta geralmente da lesão do músculo cardíaco subsequente à obstrução de uma artéria coronária. É actualmente uma das principais causas de morte nos países desenvolvidos e a sua incidência poderá ser significativamente diminuída se forem implementadas medidas preventivas, nomeadamente na mudança de estilos de vida.

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I. O CORAÇÃO E AS ARTÉRIAS CORONÁRIAS Para melhor compreender este processo, o seu tratamento e a sua prevenção temos que conhecer como funciona o coração. De uma forma resumida podemos descrever o coração como um órgão composto maioritariamente por tecido muscular, com quatro cavidades no seu interior, duas aurículas que funcionam como reservatórios, recebendo sangue que entra no coração, e dois ventrículos que funcionam como bombas propulsoras, enviando o sangue do coração para outros órgãos.

Legenda: O coração e grandes vasos O par aurícula/ventrículo constitui uma unidade funcional que recebe e bombeia sangue. Quando o coração relaxa enche-se de sangue e quando se contrai esvazia-se. À direita, a aurícula e o ventrículo recebem sangue de todo o corpo e enviam-no para os pulmões para ser oxigenado. À esquerda, o mesmo par recebe o sangue já oxigenado dos pulmões e envia-o para todo o corpo. O sangue circula sempre na mesma direcção porque existe um sistema de 4 válvulas que asseguram que o sangue, depois de passar num sentido, não volte para trás.

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Legenda: Circulação pulmonar e circulação sistémica. AD- aurícula direita; VD- ventrículo direito; AE- aurícula esquerda; VE- ventrículo esquerdo O músculo cardíaco, também chamado miocárdio, tal como as células do resto do nosso organismo, necessita de oxigénio e nutrientes para exercer as suas funções. Embora as câmaras do coração se encontrem cheias de sangue, o músculo cardíaco não consegue extrair daí o oxigénio, possuindo para tal, um sistema próprio de vasos sanguíneos designados como artérias coronárias. Estas artérias distribuem-se como os ramos de uma árvore na superfície do coração, sendo os seus troncos principais o tronco comum ou artéria coronária esquerda que se divide em dois ramos importantes (as artérias descendente anterior e circunflexa) e a artéria coronária direita. Estes, por sua vez, ramificam-se em artérias cada vez mais finas e mais profundas no músculo cardíaco.

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Legenda: Coração e artérias coronárias

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II. FACTORES DE RISCO CARDIOVASCULAR E ESPECTRO DA DOENÇA CORONÁRIA As artérias coronárias sem doença têm paredes finas e extensíveis e características que facilitam o fluxo sanguíneo. Com o passar dos anos a parede destas artérias torna-se mais espessa por deposição de colesterol (um dos tipos de gordura presente no sangue) e outros componentes, formando as chamadas placas de ateroma num processo designado por aterosclerose.

Legenda: Progressão da placa de ateroma A doença aterosclerótica é um processo generalizado e não se limita às artérias coronárias. Outros territórios frequentemente afectados são os das artérias da circulação cerebral e dos membros inferiores, sendo a sua manifestação clínica, respectivamente, o acidente vascular cerebral (AVC) e a claudicação intermitente (dor na barriga das pernas que ocorre com a marcha e se deve a insuficiente irrigação dos músculos).

Legenda: Doença aterosclerótica- manifestações clínicas segundo o território arterial afectado

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Existem vários factores que contribuem para que este processo se dê de forma mais acelerada e que são, portanto, considerados como factores de risco. Alguns destes são constitucionais e não podem ser modificados como o sexo masculino, a idade (o risco aumenta em homens com mais de 45 anos e mulheres com mais de 55 anos ou após a menopausa) e a história familiar (o risco aumenta se há história de uma manifestação de doença coronária no pai ou um irmão antes dos 55 anos ou na mãe ou uma irmã antes dos 65 anos). Outros são modificáveis e podem sofrer intervenção, quer por mudança de estilos de vida quer por intervenção farmacológica, com uso de medicações específicas. Os exemplos mais conhecidos dos factores de risco cardiovascular modificáveis são o tabagismo, a hipertensão arterial, a diabetes, o colesterol elevado, a obesidade, o sedentarismo e o stress.

Legendas: Factores de risco cardiovascular Quando estas placas se formam nas artérias coronárias dizemos estar na presença de doença coronária. Podem ocorrer dois tipos de evolução: as placas de ateroma podem continuar a crescer ou podem tornar-se instáveis e romper. Quando as placas crescem, o espaço existente dentro da artéria para a circulação de sangue (lúmen) começa a diminuir. Quando a obstrução do lúmen ultrapassa 70% do diâmetro da artéria, o fluxo de sangue para o coração reduz-se de forma significativa, particularmente quando ao coração é exigido mais oxigénio como acontece durante o exercício e as emoções. Nessas alturas o músculo cardíaco entra em sofrimento ou isquemia, sendo o sinal de alerta o aparecimento de dor no peito designada por angina, o qual geralmente desaparece com o repouso. Muitas vezes estas placas, embora possam até não provocar grande obstrução no lúmen da artéria, tornam-se instáveis e rompem expondo o seu conteúdo aos componentes circulantes do sangue. Tal como acontece numa ferida na pele, as células sanguíneas, nomeadamente as plaquetas, e os factores da coagulação tentam cobrir a zona “ferida” da placa formando coágulos que interrompem o fluxo sanguíneo e provocam sinais de alarme de sofrimento miocárdico. Se a oclusão da artéria durar pouco tempo o músculo cardíaco poderá ainda recuperar, sendo esta situação correspondente a uma angina instável.

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Caso dure mais de 30 minutos a lesão cardíaca torna-se irreversível e surge o enfarte miocárdico ou “ataque cardíaco”.

Legenda: Artéria coronária com obstrução ao fluxo de sangue por ruptura da placa de gordura e formação de coágulo

Legenda: Artéria coronária com placa de gordura que diminui o espaço livre para a circulação do sangue

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III. SINAIS DE ALERTA Alguns enfartes agudos do miocárdio (EAM) são súbitos e acompanhados de dor intensa no peito mas noutros os sintomas surgem de forma progressiva e a dor ou desconforto não são muito intensas, levando o doente a desvalorizar as suas queixas. Os sinais que devem levantar a suspeita de se tratar de um EAM são: - desconforto ou dor torácica: geralmente surge no meio do peito, sobre a zona do esterno, e pode ser sentido como aperto, pressão, ardência ou peso, geralmente durando mais de 30 minutos; - desconforto noutras áreas do tronco como um ou ambos os braços, pescoço, mandíbula, entre as omoplatas ou imediatamente abaixo do esterno (zona do estômago); - falta de ar, que geralmente também se associa a mal-estar torácico; - outros sinais e sintomas como hipersudorese (“suores frios”), náuseas e vómitos, que geralmente surgem em associação aos anteriores, mas que podem surgir isoladamente, principalmente nos doentes idosos ou nos diabéticos.

Legenda: localização da dor da angina de peito e enfarte do miocárdio

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NA PRESENÇA DESTES SINTOMAS DE ALERTA DEVE CONTACTAR O INSTITUTO NACIONAL DE EMERGÊNCIA MÉDICA (INEM) pelo número de telefone 112 para que profissionais de saúde treinados possam determinar a probabilidade de se tratar realmente de um enfarte miocárdico e lhe prestem os cuidados necessários. NÃO DEVE CONDUZIR ATÉ AO HOSPITAL OU UTILIZAR VIATURAS NÃO MEDICALIZADAS. O tempo que julga poupar ao recorrer por meios próprios ao hospital pode custar-lhe a vida. Na assistência ao enfarte o INEM disponibiliza VIAS VERDES que permitem atempada assistência e orientação destes casos para os hospitais mais diferenciados no tratamento deste tipo de doença. Podem ainda surgir arritmias que conduzem a paragem cardíaca que só as equipas médicas e paramédicas estão aptas a resolver. Estas arritmias são na verdade a principal causa de morte dos doentes com EAM antes de chegarem ao hospital. Quando há uma paragem cardiorespiratória é crucial o início de manobras de suporte básico de vida (respiração boca a boca e massagem cardíaca) e o uso de cardiodesfibrilhadores que administram choques capazes de reverter as arritmias. Actualmente existem já em alguns locais públicos desfibrilhadores automáticos externos (AEDs) para uso por pessoas sem formação médica, já que estes aparelhos são capazes de, sozinhos, identificar o ritmo cardíaco e decidir se é adequado chocar. Julga-se que a rápida implementação destas medidas e a formação das populações possam contribuir para a redução da mortalidade pré-hospitalar do enfarte do miocárdio.

Legenda: Manobras de suporte básico de vida na paragem cardiorespiratória O diagnóstico de EAM é feito com base nos sinais de alerta já referidos e em exames complementares como o electrocardiograma (ECG) e análises sanguíneas para determinar os marcadores de necrose miocárdica (MNM), isto é, componentes do músculo cardíaco que são libertados para a circulação quando há lesão das células cardíacas. Estes exames ajudam a determinar se se trata efectivamente de um EAM e, caso este diagnóstico seja confirmado, qual o tipo de abordagem mais adequado.

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Outro exame importante para a doença coronária é o cateterismo cardíaco. Este é um exame invasivo que usa os raios X para avaliar o coração e as artérias coronárias, podendo no caso do EAM ajudar a determinar a localização da obstrução. O exame, também designado angiografia coronária, consiste na passagem de um tubo fino e flexível (catéter) através de uma artéria do braço ou da virilha, com o doente acordado e usando apenas anestesia local. Este cateter vai progredir ao longo da artéria picada até ao local das artérias coronárias as quais, após a injecção de um produto de contraste para os raios X, são visualizadas podendo analisar-se a localização e a gravidade das obstruções.

Legenda: Localização do cateter usado no cateterismo cardíaco quando a abordagem é feita através da virilha (artéria femoral). Quando estas obstruções são significativas existe a possibilidade de se efectuar um procedimento de dilatação da artéria com um balão de forma a restaurar o fluxo sanguíneo. Este processo designa-se por angioplastia. Na maioria das vezes a angioplastia é complementada pela colocação de uma malha metálica, o stent, que previne que o vaso volte a obstruir.

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Legenda: Artéria coronária obstruída

Legenda: Angioplastia com balão

Legenda: Angioplastia com stent

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IV. TRATAMENTO DO ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO Como já foi referido, o enfarte miocárdico ocorre quando uma artéria coronária fica ocluída, geralmente por um coágulo, com morte da área do músculo cardíaco por ela irrigado. Esta zona fica irreversivelmente impossibilitada de exercer a sua função contráctil e é geralmente substituída por tecido de cicatriz.

O electrocardiograma é um exame complementar muito útil para orientação do tratamento já que as alterações encontradas têm boa correlação com a persistência de oclusão da artéria. Assim, quando existem determinadas alterações supõe-se existir oclusão da artéria e a situação exige intervenção imediata para repor o fluxo sanguíneo - EAM com supradesnivelamento do segmento ST. Caso estas alterações não estejam presentes então o fluxo sanguíneo já foi naturalmente restabelecido e a abordagem será no sentido de impedir a formação de um coágulo obstrutivo numa primeira fase, e tratamento da placa numa segunda fase - EAM sem supradesnivelamento do segmento ST.

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A B

Legenda: Electrocardiograma de um enfarte sem supradesnivelamento de ST (A) e de um enfarte com supradesnivelamento de ST (B)

Legenda: Evolução da obstrução coronária no enfarte com e sem supradesnivelamento de ST O EAM com supradesnivelamento de ST corresponde ao que em geral se designa por “ataque cardíaco”. O tratamento precoce pode limitar ou mesmo prevenir a lesão do músculo cardíaco. No EAM com supradesnivelamento do segmento ST, como a artéria está ocluída e o miocárdio está em

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sofrimento, é urgente remover o coágulo para permitir o fluxo sanguíneo. Portanto devemos lembrar que NO ENFARTE AGUDO DO MIOCÁRDIO QUANTO MENOS TEMPO DEMORAR A PROCURAR AJUDA MAIS MÚSCULO CARDÍACO POUPA! Alguns tratamentos devem ser iniciados imediatamente quando se suspeita de um enfarte miocárdico, mesmo antes do diagnóstico ser confirmado. Estes incluem: - oxigénio, embora a sua utilização nem sempre seja necessária; - aspirina (250 mg mastigados, o que equivale a metade de um comprimido de Aspirina®), importante para prevenir a formação de mais coágulos, conseguindo reduzir a mortalidade no enfarte; - nitratos (nitroglicerina ou dinitrato de isossorbido, sublingual, até 3 comprimidos com espaço de 5 minutos entre eles) para reduzir o trabalho cardíaco e melhorar o fluxo sanguíneo; - morfina (endovenosa) para tratar a dor e reduzir a ansiedade associada ao enfarte.

Legenda: Tratamento imediato na suspeita de enfarte agudo do miocárdio: aspirina, morfina, oxigénio e nitroglicerina sublingual. A nitroglicerina, fármaco pertencente ao grupo dos nitratos, não dever ser utilizada nos doentes medicados com tratamentos para a impotência como o sildenafil (Viagra®) ou tadalafil (Cialis®), dado o risco de hipotensão arterial grave. Para além destes tratamentos existem outras medidas que devem ser tomadas de imediato como a monitorização do ritmo cardíaco e a colocação de cateteres nas veias para poder administrar rapidamente medicação. Estas são da responsabilidade das equipas de socorro do INEM, treinadas para o efeito, e que devem ser contactadas através do 112 quando estão presentes os sinais de alarme já referidos. Uma vez confirmado o diagnóstico de EAM, o tratamento passa a ser dirigido ao restabelecimento precoce do fluxo sanguíneo. Existem duas formas possíveis de remover o coágulo, cada uma com vantagens e desvantagens: a trombólise (tratamento com fármacos intravenosos) e a angioplastia (tratamento que usa meios mecânicos). A trombólise consiste na administração intravenosa de um medicamento chamado trombolítico que tem como função dissolver os componentes do coágulo para permitir que o sangue volte a circular. Foi o primeiro tratamento eficaz do EAM e mudou radicalmente o prognóstico sombrio da fase inicial desta doença. Esta opção tem como vantagens estar disponível na maioria dos

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hospitais e ser de fácil e rápida administração. No entanto, não consegue remover o coágulo em cerca de 30% dos casos, estando a sua eficácia dependente da precocidade do seu uso, sendo mais útil nas primeiras 6 horas após o início dos sintomas. A principal desvantagem é o risco aumentado de hemorragia, em particular de hemorragia intracraniana potencialmente fatal que ocorre em 0,5% dos casos e é mais frequente em mulheres e na presença de baixo peso e hipertensão. Outras hemorragias podem também ocorrer como as gastrointestinais e as dos locais de punção. O outro problema associado a este tipo de tratamento é a elevada taxa de reoclusão da artéria que ronda os 10% ainda durante o internamento e os 30% aos 3 meses após o enfarte. Isto acontece porque, apesar de resolvido o coágulo, a placa de ateroma continua presente. Para resolver este problema é muitas vezes necessário realizar uma angiografia coronária para identificar o problema e tentar reparar a zona de obstrução. A reperfusão também pode ser conseguida através da angioplastia, um método mecânico que usa a passagem de um cateter para tentar repor a circulação coronária (ver acima). Com este processo é possível fazer passar um balão através da área de estreitamento, o qual é insuflado na zona da placa de forma a diminuir o seu tamanho, aumentando o diâmetro da artéria. Este método pode resolver o aperto ou estenose da artéria na fase aguda mas, a longo prazo, na grande maioria dos casos a placa volta a crescer (restenose) e as complicações surgem. Assim, esta técnica evoluiu para o uso de cateteres com balões que têm na sua superfície um tubo constituído por uma rede metálica, o stent. Quando o balão é insuflado, o stent adere à parede da artéria, ficando nesta localização após as desinsuflação e retirada do balão, para garantir que a placa não volte a aumentar de tamanho. Esta técnica conseguiu reduzir a ocorrência de restenose, embora esta possa ainda acontecer em cerca de 20% dos casos, particularmente nos primeiros 6 meses após o procedimento. Na última década foram desenvolvidos stents revestidos com substâncias que atrasam o crescimento da placa conseguindo-se taxas de restenose inferiores a 10% aos 6 meses.

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Legenda: A- obstrução grave numa artéria coronária B- a mesma artéria após ser efectuada uma angioplastia com colocação de um stent.

A B Legenda: oclusão de uma artéria coronária num doente com enfarte agudo do miocárdio (A) e esultado final após realização de uma angioplastia com stent (B) r

A grande desvantagem da angioplastia comparativamente à trombólise relaciona-se com a necessidade de se ter um laboratório de hemodinâmica (sala com equipamento específico para os cateterismos) e uma equipa multidisciplinar experiente constituída por médicos e enfermeiros, disponível 24 horas. Compreende-se que estes meios tenham de ser concentrados em

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determinados hospitais de referência, o que coloca o problema da acessibilidade a populações distantes destes centros, dada a importância do tempo para limitar a área de enfarte.

Legenda: exemplos de laboratórios de hemodinâmica onde se realizam os cateterismos cardíacos Os ensaios clínicos que compararam estas duas estratégias de abertura da artéria têm sido mais favoráveis à angioplastia, principalmente pela redução das complicações, como as hemorragias e o reenfarte. Para tentar ultrapassar o problema da acessibilidade e do tempo foram criadas redes de referenciação - a via verde coronária - para tentar proporcionar a todos o melhor tratamento possível. A diferença temporal entre fazer a trombólise num hospital próximo ou fazer angioplastia noutro mais distante não pode ultrapassar uma hora, sob pena de se perder o benefício adicional da angioplastia sobre a trombólise. Em alguns doentes, mesmo após se identificarem as obstruções na angiografia coronária, pode não ser tecnicamente possível realizar uma angioplastia. Nesse caso, o tratamento pode passar apenas pelo uso de medicamentos específicos para a prevenção do enfarte e suas complicações, ou por uma cirurgia coronária para criar caminhos alternativos à passagem de sangue (ver adiante cirurgia de revascularização miocárdica ou de bypass coronário). Existem fármacos cujo início deve ser o mais precoce possível na ausência de contra-indicações dado o seu impacto sobre a mortalidade e complicações. Estes incluem: - os antiagregantes plaquetários: aspirina e clopidogrel, são essenciais para prevenir a formação de novos trombos; - os bloqueadores beta: diminuem o trabalho cardíaco reduzindo a frequência cardíaca e a tensão arterial, e diminuem a taxa de reenfarte, as arritmias e a mortalidade; - os inibidores da enzima da conversão da angiotensina (IECA): são importantes para impedir a progressão da insuficiência cardíaca após o enfarte, mostram prevenir a progressão da doença aterosclerótica, reduzindo o reenfarte e a mortalidade; - as estatinas: são medicamentos que diminuem o colesterol e atrasam a progressão da aterosclerose. No EAM mostraram diminuir a mortalidade e reenfarte quando usados precocemente, independentemente dos valores de colesterol.

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V. INTERNAMENTO E COMPLICAÇÕES A introdução nos anos 70 das Unidades Coronárias, com possibilidade de monitorização contínua do ritmo cardíaco e da tensão arterial, bem como equipas médicas e de enfermagem especializadas para a detecção e tratamento das complicações do enfarte, contribuiu de forma significativa para a redução da mortalidade intra-hospitalar. Em resultado destes cuidados e das novas intervenções farmacológicas e estratégias de reperfusão a mortalidade hospitalar ronda agora os 5 a 7%. Actualmente o tempo médio de internamento para um enfarte não complicado é de 5 a 7 dias. Este período é importante porque é durante esta fase que mais frequentemente ocorrem as complicações cujo tratamento eficaz é apenas conseguido em ambiente hospitalar. As complicações mais frequentes são as arritmias e a insuficiência cardíaca, resultantes da lesão do músculo cardíaco e da sua substituição por cicatriz. Chamamos arritmia à alteração da velocidade, da regularidade ou da origem dos batimentos cardíacos. As arritmias com origem nas aurículas geralmente não têm risco de vida, embora possam causar muitos sintomas como palpitações, dor no peito e falta de ar. Algumas delas, como a fibrilhação e o flutter auricular, têm risco de formação de coágulos e exigem o uso de medicação específica. As arritmias com origem nos ventrículos são mais graves porque os batimentos cardíacos nestes casos são ineficazes e podem conduzir à morte se não forem corrigidas. As arritmias mais frequentes no pós-enfarte são a fibrilhação auricular e as arritmias ventriculares (taquicardia e fibrilhação ventricular). Estas últimas são mais frequentes nas primeiras 48 horas após o enfarte, e são potencialmente fatais. São a principal causa de morte pré-hospitalar. Por isso é fundamental que o doente com suspeita de enfarte agudo do miocárdio recorra o mais rapidamente possível aos cuidados hospitalares. Quando acompanhadas de paragem cardíaca, têm de ser tratadas rapidamente com cardioversão eléctrica (choques aplicados no peito do doente). Quando acontecem depois das 48 horas são indicadores de mau prognóstico e motivam a implantação de dispositivos com capacidade de as reconhecer e reverter, os chamados cardiodesfibrilhadores implantados (CDI).

Legenda: Arritmia (fibrilhação ventricular) num doente com enfarte

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Legenda: Cardioversão eléctrica num doente com fibrilhação ventricular A insuficiência cardíaca manifesta-se como falta de ar e cansaço que se estabelecem após o enfarte, quando o músculo cardíaco tem uma cicatriz grande e perde grande parte da sua capacidade de contracção. Como o sangue é insuficientemente bombeado para fora do coração, acumula-se nos pulmões. A presença de liquido no espaço destinado à oxigenação do sangue leva a insuficiência respiratória que, se não for adequadamente tratada, pode levar à morte. Existem medicamentos que permitem alívio imediato como os nitratos e os diuréticos, embora seja necessário a utilização de outros medicamentos como os IECAs, os bloqueadores beta e os antagonistas da aldosterona para evitar a progressão deste processo e diminuir os internamentos e mortalidade que lhe estão associados. Por vezes pode acontecer que a bolsa que envolve o coração, o pericárdio, fique inflamada provocando uma dor de localização semelhante à do enfarte mas que, ao contrário desta, agrava com a inspiração e com a posição de deitado e não alivia com as medicações usadas para a dor da angina de peito. Esta situação designa-se como pericardite e pode ocorrer desde o primeiro dia até 6 semanas após o enfarte. Trata-se geralmente usando acido acetilsalicílico (Aspirina®) em doses anti-inflamatórias durante um período variável de tempo, dependendo da evolução clínica. Outras complicações são pouco frequentes, mas têm elevada mortalidade e podem mesmo exigir intervenção cirúrgica emergente (como a rotura do septo interventricular, a rotura cardíaca e a insuficiência mitral aguda por rotura de músculo papilar). Quando o músculo cardíaco entra em falência, geralmente em consequência de uma das complicações já referidas, e surgem sinais e sintomas como confusão ou perda da consciência, palidez, respiração rápida, pulso fraco e redução da produção de urina, dizemos que estamos na presença de choque cardiogénico. Esta situação é muito grave e leva à morte em cerca de 60% dos casos, apesar de tratamento adequado.

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VI. CIRURGIA DE REVASCULARIZAÇÃO MIOCÁRDICA A cirurgia de revascularização miocárdica, também designada por cirurgia de bypass das artérias coronárias, é utilizada para melhorar e restabelecer o fluxo sanguíneo do coração nos doentes com doença grave das artérias coronárias. Isso é conseguido através da utilização de uma artéria saudável, mais frequentemente a artéria mamária interna, que se localiza atrás do osso do peito, designado por esterno. Outras pontes podem ser construídas utilizando veias da perna (veias safenas) ou uma artéria do punho (artéria radial). Estas veias e artérias permitem estabelecer uma ponte, contornando o local de obstrução da artéria coronária, criando assim um novo trajecto que permita a chegada ao músculo do coração do sangue rico em oxigénio. Idealmente, e sempre que possível, opta-se por fazer bypass com artérias, porque têm maior taxa de sucesso.

Legenda: Exemplo dos diferentes tipos de bypass utilizados Este tipo de cirurgia é realizada por cirurgiões cardiotorácicos que trabalham com uma vasta equipa, que engloba cardiologistas, anestesistas, perfusionistas e enfermeiros. A indicação para este tipo de cirurgia depende da gravidade dos sintomas do doente, da localização e extensão da obstrução das artérias coronárias, da resposta ao tratamento médico, bem como da existência de outros problemas de saúde associados, nomeadamente a presença de diabetes. Alguns doentes que realizaram angioplastia no passado, poderão vir a necessitar no futuro de cirurgia de bypass coronário, devido à progressão da doença. Os resultados desta cirurgia são habitualmente excelentes, com melhoria significativa dos sintomas e redução do risco de mortalidade cardíaca.

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Esta cirurgia pode durar 3-5 horas, dependendo da complexidade de cada caso, e é realizada sobre anestesia geral. É colocado um tubo endotraqueal pela boca para assegurar a respiração e o normal funcionamento dos pulmões. É cortado o osso do peito (esterno) para permitir ter acesso à caixa torácica e ao coração. Depois desta fase, existem dois tipos de procedimento distintos. O mais utilizado é a cirurgia tradicional, na qual são administrados medicamentos que permitem parar a actividade do coração, e que utiliza uma máquina coração-pulmão, que assegura o movimento e oxigenação do sangue pelo resto do corpo durante a cirurgia. Isto permite ao cirurgião operar num coração completamente parado. Depois de realizadas as pontes coronárias, aplicam-se choques eléctricos de pequena intensidade, e o coração readquire a sua actividade. Existe um outro tipo de cirurgia, de utilização crescente, em que a actividade do coração não é interrompida (designada por cirurgia off-pump) e o coração continua a bater durante todo o tempo; neste caso não é utilizada a máquina coração-pulmão. Cabe ao cirurgião torácico a escolha do tipo mais adequado de cirurgia para cada caso em particular.

Legenda: Bypass de veia safena contornando a artéria coronária obstruída, permitindo a chegada do fluxo sanguíneo ao músculo do coração. Após a cirurgia o doente permanece 1 ou 2 dias numa unidade de cuidados intensivos se a evolução for favorável. O tubo endotraqueal é retirado, na maioria dos casos ao fim de algumas horas, e assim o doente volta a respirar sem ajuda do ventilador. São administrados medicamentos para aliviar a dor e é feita uma monitorização rigorosa do ritmo cardíaco, da tensão arterial, do débito urinário, entre outros. Nesta fase existem um ou mais tubos, que saem da parede torácica, que ajudam a drenar restos de sangue ou de líquido acumulado em torno do coração. Em muitos casos poderá ser necessário administrar uma transfusão de sangue. No fim do segundo dia pós-operatório muitos doente começam a deambular. A alta hospitalar ocorre na maioria dos casos ao fim de 5 a 7 dias após a cirurgia. A completa recuperação demora habitualmente 6 a 12 semanas.

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As complicações deste tipo de cirurgia são pouco frequentes, sendo a mais comum o aparecimento de uma arritmia, caracterizada pelo batimento rápido e irregular do coração (fibrilhação auricular). Na maioria dos casos é facilmente controlada com medicação. Outras complicações mais raras são o acidente vascular cerebral (1-2%) e a infecção da ferida do esterno (1-2%). É importante salientar que a cirurgia de revascularização miocárdica não é uma cura para a doença coronária. É, portanto, fundamental a adesão à medicação e a um plano de controle apertado dos factores de risco cardiovascular (diabetes, excesso de gorduras no sangue, consumo de tabaco, hipertensão arterial, excesso de peso e sedentarismo), para evitar a progressão da doença das artérias coronárias e o aparecimento de placas nas pontes colocadas.

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VII. MEDICAÇÃO CRÓNICA A mortalidade por doença coronária sofreu uma redução significativa desde os meados dos anos sessenta. Tal facto resultou da diminuição da taxa de mortalidade intra-hospitalar, que actualmente ronda os 5-7%, fruto da melhoria dos cuidados de saúde e da implementação das medidas terapêuticas descritas nos capítulos prévios. Para essa melhoria da sobrevida contribui de forma igualmente importante a estratificação de risco do doente após o enfarte de miocárdio, através da avaliação da extensão do compromisso da função do músculo cardíaco, dos episódios recorrentes de angina e das arritmias. Assume um contributo igualmente importante a difusão de medidas de prevenção secundária, que têm como objectivo modificar os factores de risco cardiovascular e a medicação após a alta hospitalar. A doença coronária, uma vez estabelecida, é um processo crónico, ou seja, para toda a vida. Após o enfarte de miocárdio, a angioplastia coronária ou a cirurgia de bypass coronário, é fundamental a adesão a um plano terapêutico, que visa reduzir o risco de novos eventos cardiovasculares e melhorar a condição de saúde geral do doente. Existem diversas classes de medicamentos com efeitos distintos no organismo, mas muitas vezes complementares, daí que seja de extrema importância o cumprimento rigoroso dessa medicação, mesmo quando o doente readquire a sensação de bem estar. Em seguida iremos abordar, de uma forma sucinta, os medicamentos mais frequentemente utilizados no tratamento do doente que sofreu um enfarte de miocárdio, na fase após a alta hospitalar.

VII. a. Terapêutica anti-plaquetária Esta classe de medicamentos tem como objectivo impedir a formação de coágulos na corrente sanguínea que, como vimos, podem ser particularmente perigosos na doença coronária. A aspirina é um medicamento utilizado há mais de 100 anos e constitui a base do tratamento da doença cardiovascular, seja ela a doença coronária, a doença cerebrovascular ou a doença das artérias periféricas, mais frequentemente dos membros inferiores. Nos doentes que tiveram um enfarte de miocárdio, que têm angina de peito ou que foram submetidos a angioplastia coronária ou a cirurgia de bypass coronário a toma diária de aspirina,

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numa dose variável entre os 75-325 mg, reduz de forma substancial o risco de um segundo enfarte de miocárdio e de vir a sofrer de um acidente vascular cerebral (AVC). O clopidogrel é um medicamento mais recente que interfere noutra das vias que levam à agregação das plaquetas e formação do coágulo sanguíneo. É utilizado na maioria das vezes em associação com a aspirina e a sua administração em doentes que tiveram um internamento por síndroma coronária aguda ou que foram submetidos a angioplastia coronária, permite a redução do risco de novos eventos vasculares. Existem alguns efeitos secundários relacionados com a toma dos medicamentos anti-plaquetários. Na maioria das vezes correspondem a pequenas hemorragias (pelo nariz ou pelas gengivas), a equimoses (“nódoas negras”) ou a intolerância gastrointestinal (dores de estômago), no caso da aspirina. A interrupção desta medicação, em particular nos doentes que efectuaram angioplastia coronária com implantação de stent, acarreta aumento do risco de obstrução (trombose) do stent, situação grave e potencialmente fatal. NÃO INTERROMPA NUNCA A TOMA DESTES MEDICAMENTOS SEM ACONSELHAMENTO PRÉVIO COM O SEU CARDIOLOGISTA ASSISTENTE. VII. b. Bloqueadores beta adrenérgicos Esta classe farmacológica é utilizada no tratamento de diversas doenças cardíacas, nomeadamente a hipertensão arterial, a angina de peito, as arritmias cardíacas, a insuficiência cardíaca e a miocardiopatia hipertrófica, esta última relacionada com aumento da espessura do músculo cardíaco. O seu mecanismo de acção baseia-se na redução das necessidades de consumo de oxigénio pelo miocárdio obtida através da diminuição da frequência dos batimentos cardíacos, da pressão arterial e da contractilidade. Nos doentes que sofreram um enfarte de miocárdio a toma continuada destes fármacos reduz o risco de arritmias, de morte e de um novo enfarte. Na maioria das vezes são medicamentos bem tolerados. Contudo, em determinadas situações (asma ou bronquite grave, hipotensão arterial, insuficiência cardíaca descompensada ou bradicardia) a toma destes medicamentos poderá estar contra-indicada. VII. c. Estatinas O mecanismo subjacente à doença coronária é, na esmagadora maioria dos casos, designado por aterosclerose, ou seja, um processo em que a parede das artérias coronárias se torna mais rígida, através da acumulação de placas de ateroma. Um dos principais factores de risco que contribui para o desenvolvimento destas placas é o colesterol elevado. O colesterol é uma gordura que circula no sangue e um dos componentes normais das células do nosso corpo, sendo essencial à vida. A maior parte do colesterol do organismo é produzida no fígado. Uma

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outra parcela provém da absorção ao nível do intestino dos alimentos que ingerimos, em particular os de origem animal, como seja a carne e os ovos.

Legenda: Fontes de colesterol do organismo: colesterol proveniente dos alimentos e produzido no fígado. O transporte do colesterol no sangue realiza-se através de pequenas partículas, chamadas lipoproteínas, que são classificadas de acordo com a sua densidade. O colesterol ligado às lipoproteínas de baixa densidade (colesterol LDL) é designado por “mau colesterol” uma vez que estas partículas promovem a acumulação do colesterol em vários órgão e tecidos. Assim, o aumento do colesterol LDL associa-se a um aumento de risco de doença coronária. Por outro lado, uma parte do colesterol circula ligado a lipoproteínas de densidade elevada (colesterol HDL), também designado por “bom colesterol”, uma vez que estas removem o excesso de colesterol das células e promovem o seu transporte para o fígado.

O tratamento do colesterol elevado (hipercolesterolémia) baseia-se na implementação de um plano alimentar equilibrado, no controle do excesso de peso, na prática regular de exercício físico e na toma de medicamentos. As estatinas são medicamentos que interferem principalmente na produção de colesterol ao nível do fígado. Diversos estudos demonstraram o benefício da toma prolongada destes medicamentos na redução das taxas de mortalidade e risco de eventos cardíacos ou cerebrovasculares. Estes medicamentos actuam principalmente à custa da diminuição dos níveis do “mau colesterol”, apresentando níveis de eficácia variáveis e dependentes da dosagem do fármaco, e que rondam uma redução de 20%-45% dos níveis de colesterol LDL. Os valores desejados de colesterol no sangue variam de acordo com o risco

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cardiovascular de uma pessoa. No doente com doença coronária estabelecida ou diabetes os níveis do colesterol LDL deverão situar-se abaixo dos 100 mg/dl e idealmente abaixo dos 70 mg/dl. O benefício destes medicamentos vai para além do conseguido através da redução dos valores de colesterol, contribuindo para a estabilização das placas de ateroma, evitando assim sua progressão. Sendo assim, nos casos de doença coronária a toma prolongada destes medicamentos é recomendada, mesmo depois de ter sido conseguida a normalização dos valores de colesterol no sangue. VII. d. Inibidores da enzima de conversão da angiotensina (IECA) Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina são medicamentos que bloqueiam a produção de angiotensina II no nosso organismo. Esta hormona circula no sangue e desempenha vários efeitos no aparelho cardiovascular. Salienta-se o seu papel na constrição dos vasos sanguíneos e no consequente aumento da pressão arterial, que leva por sua vez a um aumento do trabalho do coração para conseguir bombear o sangue. Contribui ainda para o aumento da espessura do músculo do coração e da parede das artérias coronárias. Após o enfarte de miocárdio a toma destes fármacos associa-se a melhoria do prognóstico, sobretudo nos doentes que desenvolveram insuficiência cardíaca.

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VIII. CUIDADOS ALIMENTARES E CONTROLE DO PESO Saber comer para bem viver… Não existem dietas ideais ou milagrosas. Uma alimentação saudável assenta nos seguintes pilares: diversidade, equilíbrio, qualidade e quantidade adequada dos alimentos. Existem diversos grupos de alimentos, nomeadamente os cereais e derivados, as frutas, os legumes e produtos hortícolas, os lacticínios, as leguminosas, o grupo da carne, peixe e ovos e, por fim, o grupo das gorduras. A quantidade recomendada varia de pessoa para pessoa, de acordo com as suas necessidades energéticas. Certamente que uma criança ou desportista necessita de um plano alimentar diferente do aconselhável para um adulto sedentário ou já com doença cardiovascular conhecida.

Legenda: A roda dos alimentos Após o enfarte de miocárdio é fundamental a implementação de um plano alimentar adequado, distribuído por 4 a 6 refeições diárias, privilegiando o consumo de frutas, verduras e produtos hortícolas.

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A sopa é um excelente alimento, pela sua riqueza em legumes, verduras e leguminosas, fornecendo vitaminas e fibras; estas últimas são fundamentais para o regular funcionamento do intestino e contribuem para a redução da absorção de gorduras a esse nível. A ingestão recomendada de 20 gr diários de fibras poderá ser conseguida de uma forma mais fácil adicionando uma pequena quantidade de aveia ou cereais no prato da sopa. As gorduras e os hidratos de carbono (provenientes sobretudo das massas e cereais) constituem as principais fontes de energia do organismo. Quando ingeridos em excesso estes nutrientes acumulam-se sobre a forma de gordura. Alguns alimentos como a manteiga, as natas, o queijo, a banha, a carne e a gema de ovo, são ricos em colesterol. O consumo diário de colesterol não deverá exceder os 300 mg/dia.

A ingestão de gorduras saturadas, abundantes nos fritos, massas folhadas, produtos de pastelaria, enchidos e produtos de fumeiro, carne de vaca e alimentos pré-cozinhados deverá ser evitada. O azeite é um alimento rico em gorduras monoinsaturadas sendo excelente para cozinhar e temperar, quando utilizado em doses adequadas. Os óleos de peixe e os peixes gordos são ricos em gorduras saudáveis (polinsaturadas, ricas em ómega-3), devendo a sua ingestão ser preferencial em relação às carnes vermelhas. É importante seleccionar produtos magros (leite, queijo, iogurtes…). A preparação adequada dos alimentos assume igual importância quanto a sua selecção. A cozinha caseira continua a ser a que oferece uma alimentação mais equilibrada. Após o enfarte de miocárdio a família deverá ajustar e corrigir alguns dos erros mais comuns na confecção dos alimentos, passando assim a usufruir em conjunto dos benefícios de uma alimentação mais saudável. Ficam alguns conselhos práticos: não compre aquilo que sabe não dever comer; retire o excesso de gorduras antes de confeccionar os alimentos; utilize quantidades mínimas de gordura para confeccionar os alimentos; evite os estrugidos e prepare os refogados e assados com “tudo em cru”. Diminua a quantidade de sal adicionada aos alimentos e prefira a utilização de ervas aromática e sumo de limão para temperar. Nas primeiras refeições poderá não achar muito apetitoso, mas com o tempo irá acabar por achar agradável; afinal, o paladar também se educa.

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Uma dieta equilibrada associada a um plano regular de exercício físico são os melhores aliados para ajudar a perder peso. O peso a mais resulta de acumulação de gordura no organismo. A gordura acumulada em torno dos intestinos e órgãos abdominais é conhecida como gordura visceral, sendo mais frequente nas pessoas do sexo masculino. Avalia-se através da medição do perímetro da cintura abdominal. Associa-se a um maior risco cardiovascular, superior ao do excesso de gordura dos nádegas, coxas e ancas, que é mais frequente nas mulheres.

O peso ideal para uma pessoa poderá ser obtido calculando o índice de massa corporal (IMC), obtido através de uma fórmula que relaciona o peso corporal com a altura. O ideal é termos um IMC entre 18,5-24,9 Kg/m2.

Existem várias tabelas que relacionam o peso com a altura e, que de uma forma rápida permitem classificar o peso da pessoa em peso normal, excesso de peso e obesidade. A obtenção de um peso adequado contribui para o controle da diabetes, da pressão arterial e dos níveis de colesterol, promovendo ainda os sentimentos de auto-estima e confiança.

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IX: CESSAÇÃO TABÁGICA O tabaco é a principal causa evitável de doença e morte prematura. O tabaco activa o sistema de coagulação do sangue, aumentado assim o risco de formação de coágulos e, portanto, o risco de enfarte e embolia. Por outro lado, existem componentes tóxicos no fumo, como por exemplo o alcatrão, que contribuem para um aumento significativo do risco de cancro em vários órgãos, salientando-se o cancro do pulmão. As doenças respiratórias crónicas (enfisema pulmonar e bronquite crónica) são muito frequentes nos fumadores e condicionam falta de ar e limitação significativa da qualidade de vida.

No que respeita às doenças cardiovasculares sabe-se que o tabaco é um factor independente, quer da morte súbita, quer do enfarte de miocárdio, sobretudo nos mais jovens. Os fumadores de cigarros têm 2-4 vezes mais probabilidades de desenvolverem doença das artérias coronárias do que os não fumadores. Deixar de fumar reduz de forma significativa o risco de doença coronária. Ao fim de 1 ano sem fumar o risco de doença coronária reduz-se em 50% e passados 15 anos é similar ao dos não fumadores. Nos doentes, já com doenças estabelecida das artérias coronárias deixar de fumar é um objectivo primordial dos programas de reabilitação cardiovascular, pois associa-se a uma redução do risco de recorrência de eventos e de morte.

De facto, ter um enfarte de miocárdio pode funcionar como um forte incentivo para deixar de fumar, pois corresponde a uma experiência potencialmente ameaçadora para a vida da pessoa.

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Apesar dos malefícios potenciais do consumo de tabaco serem relativamente bem conhecidos pelo público em geral, deixar de fumar pode parecer uma tarefa quase impossível para um fumador. E porquê? A nicotina é a uma substância que existe no tabaco (cigarro, charuto, cigarrilha ou cachimbo) e que condiciona uma resposta de dependência no organismo, tal como algumas drogas. Deixar de fumar pode associar-se à síndroma de abstinência à nicotina, resposta muito variável de pessoa para pessoa. Sentimentos de irritabilidade, tristeza, insónia, dificuldades de concentração e aumento do apetite são algumas das possíveis manifestações. Existem dois tipos fundamentais de terapia que podem ajudar na cessação tabágica: a psicoterapia e o tratamento com medicamentos. Neste processo é importante a motivação do doente, o apoio da família e do grupo de amigos e o aconselhamento médico. As recaídas são frequentes, mas não devem ser encaradas com pessimismo. Para superar a síndroma de abstinência tabágica o doente deve procurar mecanismos de compensação que contribuam para o seu bem-estar. O exercício físico ajuda no relaxamento e contribui para um controle mais adequado do peso. De facto um dos efeitos da nicotina é a inibição do apetite, daí que alguns doentes, em particular as mulheres, temam o ganho de alguns quilos quando deixam de fumar. Uma dieta equilibrada e um plano de exercício físico regular ajudarão a retomar o equilíbrio, complementando assim os inúmeros benefícios associados à cessação tabágica. O aconselhamento médico é fundamental e poderá ajudar a superar algumas das crises mais frequentes. Existem actualmente medicamentos (substitutos de nicotina, entre outros) que poderão ajudar no processo de desabituação tabágica. Tenha uma meta: deixar de fumar para toda a vida. Ainda que esse objectivo possa, por vezes ser quebrado, não desanime. A luta para vencer a dependência tabágica é altamente recompensadora para a sua saúde.

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X. SEXO E DOENÇA CORONÁRIA Desmistificar alguns mitos… Uma das dúvidas e angústias mais frequentes após um enfarte de miocárdio, ainda que muitas vezes não partilhada de forma aberta, diz respeito à capacidade para retomar uma actividade sexual normal. De uma forma geral, a maioria das pessoas retomam a actividade sexual dentro de algumas semanas após um enfarte de miocárdio ou cirurgia cardíaca. Contudo, algumas sentem-se menos activas, devido a sentimentos de ansiedade, depressão ou de medo. Durante o acto sexual ocorrem respostas fisiológicas normais, como seja a variação da frequência da respiração, dos batimentos cardíacos e da pressão arterial. Após o enfarte de miocárdio é frequente o doente ter uma maior percepção destas respostas fisiológicas, o que é perfeitamente normal e não deve, portanto, ser encarado com apreensão. A actividade sexual deverá ser reassumida de uma forma lenta e gradual. Os actos de tocar, abraçar e acarinhar não acarretam um gasto excessivo de energias e ajudam a adquirir os níveis de confiança e tranquilidade necessários. O acto sexual propriamente dito implica um gasto energético maior. O seu médico pode aconselhá-lo sobre a melhor altura para retomar a actividade sexual em pleno. De uma forma geral, a maioria das pessoas reiniciam o acto sexual 4 a 6 semanas após um enfarte de miocárdio. Os doentes que não tiveram complicações poderão começar a actividade sexual ainda mais cedo. O reinicio da actividade sexual deverá ser feito com o parceiro usual, uma vez que as relações extra matrimoniais ou com um parceiro novo estão associadas a maior stress.

Em caso de dúvida, o cardiologista poderá solicitar uma prova de esforço com o intuito de avaliar a capacidade funcional do doente e a resposta da pressão arterial e frequência cardíaca durante o esforço. Isto pode contribuir para melhorar os níveis de confiança do doente. Se durante a actividade sexual surgirem sintomas, tais como pressão ou dor no peito, braço ou mandíbula, falta de ar ou sensação do batimento cardíaco muito rápido ou irregular, o doente deve parar, repousar e partilhar essa ocorrência com o médico assistente. Os comprimidos de nitroglicerina tomados por via sublingual podem ajudar. No entanto, estes não devem ser utilizados se o doente tiver tomado Viagra® ou similares recentemente.

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Existem vários factores que podem contribuir para a diminuição da actividade e interesse sexual após o enfarte de miocárdio. Sentimentos de depressão, alteração do padrão de sono e do peso são frequentes na fase de recuperação e tendem a desaparecer ao fim de alguns meses. Alguns dos medicamentos utilizados no tratamento das doenças cardíacas podem, ocasionalmente, afectar o desejo e desempenho sexual. Na maioria das vezes existem vários factores contribuintes. É fundamental que o doente não interrompa a medicação e procure o conselho do médico assistente, que poderá ajustar a medicação e ajudar na resolução do problema em questão. Os problemas de disfunção sexual estão na sua grande maioria relacionados com factores psicológicos, em particular com a angústia de poder vir a sofre um novo enfarte. Contudo, em cerca de 10-15% dos casos há uma causa orgânica. Existem medicamentos, sendo o Viagra® o mais popular, que podem ser utilizados para o tratamento da impotência masculina de causa orgânica. Nos doentes com patologia cardíaca a utilização deste tipo de medicamentos não deve ser feita sem o aconselhamento prévio com o médico assistente. Em particular, os doentes medicados com nitratos correm risco de uma descida acentuada dos níveis de pressão arterial quando associam estes dois medicamentos.

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XI. REABILITAÇÃO CARDÍACA E ACTIVIDADE FÍSICA Nunca é tarde demais para começar a cuidar de si…

Os benefícios da prática regular de exercício físico são amplos e abrangentes. Ao nível do sistema cardiovascular ajuda a combater o excesso de peso, contribui para a redução da pressão arterial e da diabetes e exerce um efeito benéfico sobre as gorduras do sangue, através da redução do colesterol LDL (mau colesterol) e aumento dos níveis do colesterol HDL (bom colesterol). Previne a osteoporose, fortalece os músculos e as articulações e melhora a eficiência do sistema respiratório. Para além destes efeitos, a actividade física promove uma sensação de bem-estar. É um excelente antídoto contra o stress. Reduz os níveis de ansiedade, contribui para a normalização do perfil de sono e combate sentimentos de depressão. Existem dois tipos de exercícios, os aeróbios e os de resistência e, embora ambos tragam benefícios, os seus efeitos são distintos. Os exercícios aeróbios são aqueles que aumentam o consumo de oxigénio nos músculos, implicando a participação conjunta dos sistemas respiratório e cardiovascular. Os exercícios de resistência, pelo contrário, associam-se a esforços musculares de grande intensidade para vencer uma resistência. Podem provocar um aumento súbito da pressão arterial; alguns exemplos são: o levantamento de pesos, as flexões e os abdominais. Estão contra-indicados na maior parte dos doentes. O exercício físico aeróbio ajuda a reduzir o risco cardiovascular. Idealmente deverá ser praticado 5 ou mais vezes por semana, pelo menos 30 minutos em cada dia. Andar a pé, nadar, correr, andar de bicicleta, dançar e praticar ginástica aeróbica são alguns exemplos deste tipo de exercício. Uma das dúvidas colocadas frequentemente diz respeito à frequência cardíaca aconselhada durante o esforço físico. Em primeiro lugar há que conhecer o conceito de frequência cardíaca máxima (FCM), que se obtém subtraindo a idade de 220. Por exemplo, para um homem de 50 anos a frequência máxima é de 220-50=170 batimentos por minuto. Durante o exercício físico aeróbio o objectivo é obter, de uma forma sustentada, valores de frequência cardíaca entre os

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60% e 75% da frequência cardíaca máxima; ou seja, para um homem de 50 anos esse valor varia entre os 102 e os 127 batimentos por minuto.

Após os 40 anos de idade ou em pessoas com factores de risco cardiovascular é aconselhável a realização de uma avaliação médica antes do início de um programa de exercício físico. Após o enfarte de miocárdio é importante a adaptação do doente a uma vida normal, com o objectivo de retomar os níveis de actividade e de emprego prévios. Nos doentes de risco baixo, que não tiveram complicações durante o internamento, a retoma da actividade normal poderá realizar-se nas 2 semanas após a alta hospitalar, desde que sejam evitadas situações de stress excessivo. Nos doentes que tiveram uma evolução mais complicada as situações de stress físico ou emocional, assim como viagens de avião devem ser proteladas pelo menos 3 semanas após a resolução de todos os sintomas. O cardiologista assistente está à sua disposição para o aconselhar e esclarecer todas as dúvidas. A realização de uma prova de esforço após a alta hospitalar pode ajudar a objectivar a sua capacidade funcional, a orientar a intensidade da actividade física e a sua aptidão para o reinício da actividade laboral. Existem centros de reabilitação cardiovascular que oferecem programas de exercício físico integrados, supervisionados por uma equipa especializada, que têm como objectivos restaurar os níveis de confiança do doente, controlar os factores de risco cardiovascular, permitindo melhorar de uma forma mais eficiente os níveis de actividade física.

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XII. CONCLUSÃO O enfarte agudo do miocárdio é uma doença frequente e potencialmente grave. A identificação atempada dos sintomas de alerta e o recurso imediato aos cuidados de saúde hospitalares é essencial. O tratamento na fase aguda tem como objectivo restabelecer o mais rapidamente possível o fluxo na ateria coronária obstruída, para evitar a morte do músculo do coração. Isso pode ser conseguido através da administração de medicamentos ou do cateterismo cardíaco e angioplastia coronária. Estas intervenções permitem melhorar a sobrevida e o prognóstico destes doentes. Após a alta hospitalar é fundamental a adesão à medicação instituída, bem como a implementação de medidas de prevenção secundária, que visam um controle adequado dos factores de risco cardiovascular e a redução da taxa de eventos recorrentes. XIII. BIBLIOGRAFIA - Sex and Heart Disease, American Heart Association 2001 - Fuster V. La Ciencia de la Salud. Editorial Planeta 2006 - Crawford M, Di Marco J, Paulus W. Cardiology. Mosby; 2004; 397 - 411 - Rocha E. O tabaco e as doenças cardiovasculares. Revista Factores de Risco 2007; 5 : 25 - 29 - Mullany C J. Coronary artery bypass surgery. Circulation. 2003; 107: e21 - e22 - Gotto A M. Satins: powerful drugs for lowering cholesterol. Circulation. 2002; 105: 1514 - 1516 - Jorenby D E. Smoking cessation strategies for the 21st century. Circulation. 2001: 104: e51 - e52. - Harrington RA, Hodgson P, Larsen R. Antiplatelet therapy. Circulation. 2003; 108: 245 - e47 - Frishman W H. Beta-adrenergic blockers. Circulation. 2003; 107:e117 - e119 - Sweitzer N. What is an angiotensin converting enzyme inhibitor? Circulation. 2003; 108:e16-e18

*Coordenadora da Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia, Hospital de São João, Porto Assistente convidada da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto **Unidade de Cuidados Intensivos de Cardiologia Hospital de São João, Porto