ENFERMAGEM - 2015

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Apresentação O presente caderno possui a finalidade de promover a interação conteúdo-estudante para que exista uma melhor adequação daqueles que estão executando os primeiros passos no mundo da filosofia, da teologia e da vida acadêmica. O mesmo procura indicar os caminhos para uma melhor compreensão dos conceitos de cada teórico, desenvolvendo a capacitação adequada à área específica, bem como, ao mercado de trabalho. Ao largo de anos tenho notado que o corpo de alunos, em um significativo percentual, tem deixado a desejar no quesito leitura critica dos textos indicados. A deficiência adquirida em graus inferiores de ensino, ou o distanciamento da vida escolar, entre outros fatores, veem contribuindo negativamente para o bom aproveitamento da vida estudantil. O chamado analfabetismo funcional é uma realidade na grande maioria dos cursos de diversas instituições de ensino superior, incluindo as públicas. Esse drama nacional precisa ser combatido frontalmente, para que estudantes e futuros profissionais não perpetuem essa lacuna. É de responsabilidade conjunta dos professores e dos estudantes a observação cotidiana dos conteúdos, da fixação dos mesmos e da construção de novos saberes. Para isso ambos devem ser parceiros no campo de batalha, adquirindo experiências teóricas e práticas para que, agora e no futuro próximo construam uma sociedade mais sólida, com raízes profundas e dignificantes. Esse material não é a solução dos problemas, mas tem a função de apoio didático-pedagógico para que o conteúdo seja repassado de forma coesa, organizada e edificante. O projeto do caderno não é novo, porém sabemos que as ações são bem mais desafiadoras que as idéias. Decidido a colocar o ovo em pé selecionei os textos indicados na ementa, bem como, as aulas desenvolvidas ao longo de quase duas décadas de magistério, além de artigos de minha autoria que juntos compõem a totalidade do mesmo. Os textos de outros autores foram cuidadosamente selecionados e parcialmente inseridos no corpo do material. Todos são de domínio público ou se apresentam com menos de dez por cento da totalidade da obra. Desse modo o estudo desse livro de apoio não exime de nenhuma forma o (a) acadêmico (a) de consultar os referenciais na biblioteca. Assim, podendo ter mais intimidades com os temas, conceitos e teorias. Espero que todos os estudantes tenham um ótimo aproveitamento e que nossa disciplina possa ajudar a construir, primeiramente, seres humanos melhores, pois a academia é um lugar onde as excelências se combinam para que os pares possam ganhar com a vitória de cada um. A arte e a técnica de um profissional devem existir para servir com destreza à coletividade. Essa deve ser a missão de todos.

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Sumário

Apresentação ........................................................................................ 03

Aula 01 – O Mito e Suas Influências no Cotidiano Social ..................... 04

Aula 02 – Os Pré-Socráticos – O Nascimento da Com(ciência)............ 09

Aula 03 – Filosofia Platônica.................................................................. 10

Aula 04 – O Empirismo de Aristóteles................................................... 11

Aula 05 – Eu e Tu – Martin Buber.......................................................... 12

Aula 06 – Humanização – Enfermagem e Reflexões Filosóficas......... 14

Aula 07 – Humanização da Dor e do Sofrimento................................... 17

Aula 08 – Ética e Sofrimento humano................................................... 21

Aula 09 – Tratamento e Cura................................................................. 24

Aula 10 – Aspectos Filosóficos do Cuidar............................................. 26

Aula 11 – O Significado Religioso do Sofrimento.................................. 31

Aula 12 – Para a Morte Ser Vista com Naturalidade............................. 34

Aula 13 – A Concepção de Morte em Arthur Schopenhauer................. 36

Aula 14 – O Jogo Existencial e a Ritualização da Morte....................... 41

Anexo – Reflexões e Debates (Textos em Anexo)...................................... 45

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Aula 01 – O Mito e Suas Influências no Cotidiano Social

As Representações do Diabo no Imaginário Cristão e suas Influências no Neopentecostalismo (Texto parcial)

Pedro Cáceres

Resumo A presença do Diabo, como força maligna, esteve ligada ao imaginário das crenças orientais da

Antigüidade, bem como na literatura bíblica do Primeiro e Segundo Testamentos. O Mito do Eterno Combate remonta aos mais antigos símbolos, ritos e construções teológicas elaboradas e/ou inventadas pelas diversas tradições, comunidades e civilizações. É importante notar que o mal, quase sempre, era externo a visão de mundo de dada cultura. Ele constituía uma força estranha que deveria ser combatida e evitada a todo custo. Esses aspectos são utilizados hoje por igrejas como a Universal do Reino de Deus (IURD), que possui em suas diretrizes a luta contra o Diabo, como uma de suas principais missões.

A nascente religião cristã

É inegável que a Bíblia é um dos discursos imaginários, instauradores da ordem patriarcal, sob o selo da verdade, da autoridade, do inquestionável, estabelecendo um regime de circulação de enunciados ‘verdadeiros’, excludentes, criadores de uma certa ordem social. (SWAIN, 1993, p. 62).

Os contextos pertinentes ao surgimento de uma nova religião se misturam, muita das vezes,

com a própria história do líder carismático e fundador de tal fenômeno religioso. Não é diferente ao falarmos do núcleo embrionário da Religião Cristã, pois Jesus Cristo consiste em uma figura tão forte que perpassa, em muito, seu próprio contexto histórico.

A infância de Jesus é coberta por uma áurea nebulosa, pois vários são os relatos que procuram contar como foram os primeiros anos de vida de Jesus de Nazaré. Uma criança pobre, filha de judeus pobres, que fugiram, segundo o Canom, da terrível matança de crianças promovida por Herodes. “Então Herodes, vendo-se iludido pelos magos, foi acometido de grande fúria e mandou matar, em Belém e todo o seu território, todos os meninos de até dois anos” (Mateus, 2, 16).

Em Mateus há um grande salto entre o nascimento e a vida adulta1 de Jesus, em Lucas pode-se encontrar pequenos relatos de sua infância, apresentando uma criança diferenciada das demais, com características superiores e divinas. Mas não poderíamos analisar epistemologicamente a existência de tal líder carismático fora do dinamismo contextual, histórico e social do mesmo.

Os romanos, como nenhum outro povo até então, desenvolveram um sentido de

unidade da espécie sob uma lei universal. Este sentido da solidariedade do homem no Império criou um ambiente favorável à aceitação do Evangelho que proclamava a unidade de raça humana, baseada no fato de que todos os homens estavam sob a pena do pecado e

1 (...) Jesus de Nazaré aparece pela primeira vez no palco da história já como adulto: seu batismo por João. Tratou-se de um evento simples, despercebido na ocasião, que, no entanto, evoca uma série de perguntas. (Meier, 1996, p. 137).

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5 no fato de que a todos era oferecida a salvação que os integra num organismo universal, a Igreja Cristã, o Corpo de Cristo. (CAIRNS, 1995, p. 29).

Os arcabouços teológicos, filosóficos, sociais e intelectuais, que serviram de base para o novo

movimento religioso, se constituíram muitos anos antes do surgimento de Cristo. “(...) a contribuição romana foi ofuscada pelo ambiente intelectual criado pela mente grega. (...) o Evangelho universal precisava de uma língua universal para poder exercer um impacto real sobre o mundo”.(Cairns, 1995, p. 31). A Grécia foi dominada por Roma e essa pela primeira. Através da rica cultura grega o Império Romano elevou-se à situação de excelência intelectual, fertilizando o solo para as primeiras sementes do cristianismo. Nesse rico e dinâmico contexto brotou a história de um fenômeno religioso que mudou o mundo.

Segundo fontes teóricas e relatos bíblicos, a vida religiosa do fundador carismático cristão, não foi muito longa. Provavelmente Cristo2 teve pouquíssimos anos para propagar sua experiência religiosa. Para tal, “escolheu” alguns seguidores que certamente tiveram bons motivos para acreditar e acompanhar esse novo messias. Não discutiremos aqui esses motivos, mas possivelmente os indivíduos que tiveram fé e compraram a idéia do “Reino de Deus”, ambicionavam por dias melhores. É bastante comum numa terra massacrada e estripada por anos, os habitantes, principalmente os excluídos, clamarem por justiça social e mudanças no status quo. E qualquer um que possuísse uma oratória regular e arriscasse falar em nome de Deus, prometendo uma vida farta e repleta de bonança e felicidades eternas certamente obteria a atenção de, pelo menos, um pequeno grupo.

A seguir, percorrendo toda a Galiléia, ele ensinava em suas sinagogas, proclamava a

Boa Nova do Reino e curava toda doença e enfermidade entre o povo. (...) E grandes multidões o seguiram, vindas da Galiléia e da Decápole, de Jerusalém e da Judéia, e de além do Jordão. (Mt, 4, 23-25).

As citações sobre o Nazareno estão cobertas de mitos e para a construção de um mito bem

estruturado são necessários diversos relatos, mas o que se percebe é que quase todos vêm carregados de mistérios e obscuridades. Esses mistérios são necessários para que o mito se torne mais forte e carregado de significados a serem interpretados e reinterpretados. O mito de Jesus, nesse sentido, funciona dentro da analogia trabalhada por Górgias. Ele representa a análise do discurso, sendo que, o discurso só existe inserido no contexto da argumentação, a força do poder coercitivo e sedutor das palavras que se tornam fatos reais, assim como ocorreram na mais profunda das realidades. Nesse sentido, o Mito Cristão passa a contar uma história real, carregada de profundidade sagrada.

Assim como não vejo o som nem escuto as cores – cada sentido percebe o que lhe é

próprio -, não posso, pela palavra, dizer coisas; pela palavra digo palavras e não coisas. Portanto, mesmo que o Ser seja e possa ser pensado, não pode ser dito ou comunicado. Comunicamos opiniões sobre as coisas dadas pelos sentidos, não comunicamos coisas, seres. (GÓRGIAS apud CHAUÍ, 1994, p. 132).

Os mitos não apenas se estruturam de significações verdadeiras, eles apontam as diretrizes

(morais, éticas, comportamentais, sociais e religiosas – Ethos e Visão de Mundo), que estruturam diversas culturas, apesar de suas complexidades. A força real de um mito não necessita de provas para se manter, ela se impõe pelo simples fato da existência e aplicação natural de seus padrões e conceitos. Respiramos em nossa contemporaneidade o frescor, impregnante, das infinitas pétalas do Mito Cristão e sentimos o arrepio cortante dos espinhos mitológicos cravados em nossa carne. Como

2(...) Jesus esperava uma completa transformação do mundo no futuro muito próximo. Essa interpretação – que encontra firme apoio tanto em Marcos como em Q. (Cohn, 1996, p.255).

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6 diz SWAIN: “Ora, o imaginário que aflora nos mais diferentes tipos de discursos é um forjador de sentidos, de identidades, de (in)coerências”. (p. 48).

Para entendermos a complexidade de um mito nascente, devemos compreender as nuances de

seu contexto histórico. Na mesma época que surgiu a Seita de Jesus, diversos movimentos religiosos despontavam aos borbotões na medida, em que, a dinâmica do mundo se alterava. Grande quantidade de deuses, profetas, messias, iluminados e filho enviado por Deus enchiam as cidades da antiga e futura Terra-Santa. Sem falar no grande número de mercadores e transeuntes de várias partes do mundo que traziam, juntamente com suas multiplicidades de bugigangas, a diversidade cultural e religiosa de suas terras.

Mediante tamanha efervescência religiosa, uma questão deve ser levantada: Como uma pequena seita, composta de um líder carismático e de poucos seguidores, pôde ter vencido as tempestades culturais, os conflitos religiosos, os infinitos debates intelectuais, a complexidade de um imenso império (Império Romano), o desacordo de grande parte da “elite” judaica3, frente às mudanças de paradigmas? Não apenas venceu, no singelo significado da palavra, mas alcançou, em alguns séculos, o grau de Igreja4 Oficial do Império Romano, e com a queda deste (476 a.C.), assumiu o papel de unificadora entre o distante mundo bárbaro5, e as sólidas bases morais, comportamentais, e dogmáticas do já forte cristianismo. Podemos dizer que hoje o mundo ocidental possui como herança três sólidas pilastras oriundas da Antigüidade: A cultura greco-romana, o direito romano e a Religião Cristã.

É evidente que a essa altura tenha restado muito pouco da nascente seita fundada por um homem simples, mas que possuía uma forte mensagem religiosa. Sendo que, existe uma grande distância entre a experiência religiosa fundante e a re-significação dada pelos seguidores do líder carismático, após sua morte. Uma coisa é ter uma experiência religiosa, presenciá-la com toda sua força, entrar em contato com o Ser Sagrado, sentir sua força transcendental, experimentar a infinitude do numinoso (Otto), outra coisa é compartilhar essa experiência com outrem. Por mais que seja dito, por mais que o fundador carismático utilize mitos, símbolos e ritos para demonstrar seu contato com o transcendente, a ação nunca pode alcançar o mesmo efeito que alcançou no líder carismático, pois a experiência religiosa consiste em algo singular, portanto subjetivo e individual. Mas o universo do imaginário transborda essa sentença abarcando recôncavos íntimos das relações humanas.

O imaginário trabalha um horizonte psíquico habitado por representações e imagens

canalizadas de afetos, desejos, emoções, esperanças, emulações; o próprio tecido social é urdido pelo imaginário – suas cores, matizes, desenhos reproduzem a trama do fio que os engendrou. O imaginário seria condição de possibilidade de realidade instituída, solo sobre o qual se instaura o instrumento de sua transformação. (SWAIN, p. 48).

Com a morte do líder carismático, se constitui uma crise de sucessão, sendo que, a não

superação de tal crise levaria o novo movimento religioso ao desaparecimento6. Essa crise, inevitável, deve ser superada pelos seguidores e detentores dos meios de salvação que darão, conseqüentemente, um novo significado à experiência fundante. Essa re-significação do carisma puro está voltada à superação ideológica, conceitual, e pragmática do novo líder e grupo religioso, que

3 Embora ao longo dos séculos os judeus se mantivessem unidos em torno da devoção a Yahweh e da aceitação das obrigações inscritas na Torá, sua união limitava-se a isto. Até a queda de Jerusalém em 70 d.C. e o subseqüente conselho em Yavneh, não havia ortodoxia judaica: o judaísmo incluía inúmeros grupos e seitas. Os cristãos formavam uma delas, assim como os saduceus, os fariseus, os essênios (...). (Cohn, 1996, p.254). 4 A Igreja Cristã foi a única instituição romana que sobreviveu após a queda do Império do Ocidente. 5 Sabe-se que o cristianismo, anteriormente ao declínio de Roma, já havia influenciado diversos povos “bárbaros”. 6 É impossível contabilizar o número de movimentos religiosos que desapareceram em sua forma embrionária.

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7 fará sua hermenêutica mediante os contextos religiosos, sociais, políticos, culturais, visão de mundo e contexto histórico. Provavelmente a história que chega a nós é uma história forjada pelos possuidores e manipuladores do poder, que permeia todos os âmbitos das relações humanas.

A história era, antes de tudo, obra de justificação dos progressos da Fé ou da Razão,

do poder monárquico ou do poder burguês. Por isso, durante muito tempo ela se escreveu a partir do “centro”. Os papéis representados pelas elites do poder, da fortuna ou da cultura pareciam ser os únicos que contavam. A história dos povos se diluía na história dinástica, e a história religiosa na da Igreja e dos clérigos. (SCHMITT, p.261**).

Nesse sentido, não poderíamos dizer que existiu “milagre” no grande sucesso do Cristianismo

pelo mundo, “o mundo encontrava-se intelectualmente pronto para o cristianismo” (JOHNSON, 2001, p.16). Uma seita que nasce tímida, que sofre uma grande crise com a morte de seu líder carismático, passa por inúmeros processos de alteração do discurso original, configurasse nos interesses materiais e ideológicos dos novos líderes, cria-se um corpo teológico, doutrinário e burocrático, entra no campo dos profissionais da fé, isto é, segundo as palavras de Weber*: “se um fenômeno religioso não passar pelo processo de institucionalização morrerá”.

O cristianismo – com o passar dos anos – se alterou com o propósito de dar respostas que pudessem se encaixar na conturbada visão de mundo de um império (Romano) em decadência, na rica e estamental sociedade medieval e no nascente protestantismo. Com as grandes navegações ultramarinas ganhou novas casas e influências, até chegar ao gigantesco caleidoscópio da pós-modernidade. Mas nunca poderemos esquecer que paralelamente à institucionalização do fenômeno religioso, caminhou a rica religiosidade popular.

O eterno combate – Cristo e Lúcifer

O eterno combate entre as forças antagônicas estava presente, muito anteriormente às origens do cristianismo. Muitos textos do Novo Testamento falam de Jesus e sua luta contra esses seres. Algumas dessas passagens são clássicas e altamente difundidas. Na tentação do deserto, Cristo não ficou imune às avassaladoras seduções do mal.

Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo

diabo. Depois de ter jejuado quarenta dias e quarenta noites, acabou sentindo fome. O tentador aproximou-se e lhe disse: (...) “Tudo isso te darei, se, prostrando-te, me adorares. Então Jesus lhe diz: “Retira-te, Satanás! Pois está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto”. Então o diabo o deixou, e eis que se aproximaram anjos, e o serviam. (Mt, 4, 1-11).

Segundo Cohn, na tradição judaica, a tentação não era considerada sedução, mas uma prova

de força. Jesus trava uma terrível batalha com Belial (Diabo), as forças sagradas do bem e do mal estão novamente emparelhadas, prontas para mais um combate. Não presenciamos aqui um combate sangrento e destemperado, pelo contrário, se desenvolve uma luta intelectual, enriquecida por perguntas e respostas desafiantes. Belial quer vencer através da oratória, o discurso aparece carregado de investidas e inversões de idéias, mas Jesus consegue sair vitorioso.

Não podemos esquecer também que muitas das curas de Jesus estavam intimamente ligadas ao combate contra Satã e suas malignas obras. “Ao anoitecer, trouxeram-lhe numerosos endemoninhados. Ele expulsou os espíritos pela palavra e curou todos os doentes...” (Mateus, 8, 16-17). Como dissemos, no capítulo anterior, o contexto social vivido por Jesus era bastante paradoxal, também era paradoxal o contexto sagrado. Havia uma grande batalha pela frente, que além de incluir a luta pela igualdade social, centrava-se no dualismo escatológico.

** Jean-Claude Schmitt – A História dos Marginais. * Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, Ed. UNB, 1991.

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8 Jesus possuía os atributos, dados por Deus, para combater Satã e seu exército. Como sua

capacidade de enfrentá-los se encontrava limitada por possuir um corpo mortal, Jesus agia através dos exorcismos, sendo que, esses estavam ligados diretamente a diversas enfermidade: ataques mentais, distúrbios orgânicos e até a morte7. Os relatos encontrados em Gênesis 3, demonstram as causas que levaram o homem a cair nas garras de Satã. “Ora, a serpente8 era o mais astuto de todos os animais do campo” (Gênesis 3, 1), seduziu a mulher e a fez pecar, logo o homem também pecou e ambos foram expulsos do paraíso e de todos os privilégios. A morte e todos os sofrimentos passaram a existir devido às palavras sopradas pela suave e aquecida brisa sedutora do Diabo.

A missão cristã consistia em implantar o Reino de Deus, e para isso necessitava derrotar definitivamente as forças satânicas. Deveria preparar o terreno e os corações das pessoas, ou seja, Cristo através do dom da palavra anunciava a “boa nova”, comunicava a breve chegada de um novo mundo e o retorno do paraíso perdido.

O mesmo significado é atribuído à atividade de Jesus e seus discípulos enquanto

pregadores. Quando Jesus ordena a seus seguidores que preguem a vinda do reino, também os encarrega, ao mesmo tempo e como parte da mesma missão, de expulsar demônios, curar os enfermos e oferecer o perdão para seus pecados – três formas de dizer a mesma coisa, pois as palavras que significam “curar”, “expulsar demônios” e “perdoar os pecados” eram sinônimos intercambiáveis. O exorcismo, a cura e o anúncio da chegada do reino eram maneiras de libertar as pessoas do domínio de Satã. (COHN, 1996, p.257).

Levar a palavra de Deus às pessoas, exorcizar, curar gradativamente os enfermos, anunciar a

chegada do reino do bem eram formas de “higienizar” o mundo que o Diabo, juntamente com seu exército, havia dominado. Todos os reinos da terra estavam sobre o comando do Mal, sendo que, a vinda de Jesus abalou definitivamente as entranhas desse domínio. “Satã, antes senhor de todos os reinos da terra, está perdendo o poder, seu domínio chega ao fim, sua ruína é certa”. (Cohn, 1996, p.257).

Jesus trás boas notícias, promessas verdadeiras de reconquista do paraíso, extermínio de todas as doenças, derrota final e definitiva dos reinos satânicos sobre a terra. Finalmente a paz será restaurada e o filho de Deus poderá viver com todas as riquezas que é D’ele e um dia foi também do homem. Cristo perdoa todos os pecados, e o perdão é um chamamento para a volta ao reino de Deus. Nesse contexto a morte recebeu uma nova conotação, pois “é perdoando que se é perdoado, é amando que se é amado e é morrendo que se nasce para a vida eterna”. Cristo cumpriu seu papel de guerreiro, um messias destemido que combateu de frente as forças do mal. Mas o mito do combate ainda não cessou, o mal vive e assombra a paz do jardim.

Conclusão

Buscar esclarecimentos teóricos sobre as origens do cristianismo e suas relações com o Diabo, bem como as influências desses aspectos que desembocaram, milênios depois, no discurso da Universal do Reino de Deus, não poderiam se constituir em tarefa fácil. Ao levantar alguns pontos sobre o Cristianismo, o Diabo e a Universal, percebemos as implicações pertinentes a esses conceitos tão ricamente contextualizados pelo cotidiano de grupos humanos do passado e do presente. É evidente que os contextos se alteraram ao longo dos séculos. As visões de mundo foram ressemantizadas na medida que as formas de poder e os interesses necessitavam de outras respostas. Porém, não podemos atribuir apenas aos poderosos tamanhas mudanças dos discursos. Os grupos comuns, as pessoas simples, no seu dia-a-dia, também detêm o poder, é o que fala, em certa medida,

7 Inúmeras civilizações atribuem aos deuses do mal os sofrimentos enfrentados pelo homem. A morte era encarada como uma vitória dos deuses malignos. 8 O mal era simbolizado de várias formas na antiguidade oriental, as principais formas eram: a serpente e o dragão.

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9 Michel Foucault na Microfísica do Poder: “Nada mudará a sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, cotidiano, não forem modificados”. As percepções de mundo são reestruturadas, novas formas de olhar a realidade, a moral, a verdade, a religião, a política, a economia e a sociedade ganham significações que em um passado brevemente distante, não seria possível.

A impossibilidade de se manter os mesmos conceitos e visões se dá por vários fatores, um deles é a própria fragmentação da memória. Mesmo utilizando petrificações da mesma, o olhar já se alterou, o cenário ganhou outras características e os personagens outros papéis. Nesse sentido, o cristianismo, a fé no Diabo e as leituras que a Igreja Universal faz deles, são apenas interpretações, ou seja, vivemos cercados por hermenêuticas de uma fonte cuja água pura se perdeu em sua própria origem.

Referenciais CAIRNS, Earle E. O Cristianismo através dos séculos: uma história da Igreja cristã. São Paulo: ed. Vida Nova, 1995. COHN, Norman, Cosmos, caos e o mundo que virá: as origens das crenças no Apocalipse. São Paulo: Cia das Letras, 1996. JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001. SANFORD, John A. Mal, o lado sombrio da realidade. São Paulo: Paulus, 1988. SWAIN, Tânia Navarro (org.). Você disse imaginário? Brasília: UnB, 1993. TEB: BÍBLIA DE ESTUDOS TRADUÇÃO ECUMÊNICA. São Paulo: Loyola, 1994. WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília, Ed. UNB, 1991.

Aula 02 – Os Pré-Socráticos – O Nascimento da Com(ciência)

•Objeto: Phýsis (Natureza)

•A descoberta da cosmologia e da física

•Método: investigativo – busca da verdade racional e empírica

•Tales de Mileto: princípio (arché) – Água – determinado •Anaximandro: princípio – Ápeiron – indeterminado

•Anaxímenes: princípio – Ar – determinado

•Como nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo o cosmo sopro e ar o mantêm. Anaxímenes, citado por Aécio. Heráclito de Éfeso •Este mundo, o mesmo de todos os seres, nenhum deus, nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se e apagando-se conforme a medidas •A idéia mestra de Heráclito é o devir eterno, a transformação incessante, pela qual as coisas se constroem e se dissolvem em outras. •O mundo não é estático, mas um fluxo, uma mudança permanente de todas as coisas, um constante vir-a-ser. Nada permanece o mesmo, nem por um instante. O que é hoje, amanhã não mais será. •O sol é novo a cada dia. •Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos. Costumo não pré-marcar encontros com minha deusa Pánta Reî - Tudo Flui •Tudo flui, tudo passa, tudo se move sem cessar. A vida se transforma em morte, a morte em vida; o úmido seca, o seco umedece; a noite torna-se dia, o dia torna-se noite; à vigília cede ao sono, o sono

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10 cede à vigília; o jovem torna-se velho, o velho se faz criança. O mundo é um perpétuo renascer e morrer, rejuvenescer e envelhecer. Nada permanece idêntico a si mesmo. Assim, para Heráclito, a essência verdadeira está na transformação perpétua. Pólemos – A guerra dos opostos •A guerra é o pai e o rei de todas as coisas •Tudo no cosmo está em permanente guerra contra seu contrário. Os seres vivos morrem porque já trariam em si a morte, como que oculta. Conhecer qualquer coisa só é possível porque existe o seu contrário; sabemos o que é a alegria porque experimentamos a tristeza, o conhecimento da dor tem seu oposto - o prazer. O mesmo acontece com as qualidades de tudo que existe, sempre aos pares. Por exemplo: guerra-paz, quente-frio, dia-noite, vida-morte, bem-mal, amor-ódio, saúde-doença (Guerra das medidas). Díke – Justiça •O fogo primordial para Heráclito é o logos •Inserido na reflexão filosófica logos é a razão comum a todos os seres. Sentido transcendente e razão que governo o mundo e exprime “a ordem das coisas”. •Existem as medidas claras (fogo ardente): vida, luz, sol, calor, beleza, saúde, conhecimento. Medidas escuras (fogo apagado): morte, treva, doença, noite, frio, feiúra, ignorância. •O logos opera por medidas e nunca as excede e é isto sua justiça (díke). •“Más testemunhas para os homens são os olhos e os ouvidos, se eles tiverem a alma bárbara”. Anaxágoras •“Os helenos não têm uma opinião correta do nascimento e da destruição. Pois nada nasce ou perece, mas há mistura e separação das coisas que são. E, assim, deveriam chamar corretamente o nascimento de mistura e a destruição de separação.”

•“Há em cada coisa uma porção de cada coisa” ou “todas as coisas estão juntas”.

•Por minúscula que seja a porção de matéria, nela encontraremos mistura, pluralidade ou multiplicidade, isto é, nunca encontraremos qualidades separadas. Só há mistura.

•A parte e o todo possuem a mesmo mistura. “Tudo está em tudo”

•Se o pão e a água nutrir todo nosso corpo (cabelos, sangue, carne, nervos, ossos) é porque em ambos encontraremos os elementos ou sementes de todas as partes do corpo que podem ser por eles alimentadas.

•Todo o Universo está presente a menor das partículas – o uno está no múltiplo e o múltiplo no uno.

Aula 03 – Filosofia Platônica

“Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz”.

“Tente mover o mundo - o primeiro passo será mover a si mesmo”. “A parte que ignoramos é muito maior que tudo quanto sabemos”. Em linhas gerais, Platão desenvolveu a noção de que o homem está em contato permanente

com dois tipos de realidade: a inteligível e a sensível. A primeira, é a realidade, mais concreta, permanente, imutável, igual a si mesma. A segunda são todas as coisas que nos afetam os sentidos, são realidades dependentes, mutáveis e são imagens das realidades inteligíveis.

Tal concepção de Platão também é conhecida por Teoria das Idéias ou Teoria das Formas. Foi desenvolvida como hipótese no diálogo Fédon e constitui uma maneira de garantir a possibilidade do conhecimento e fornecer uma inteligibilidade relativa aos fenômenos.

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11 Para Platão, o mundo concreto percebido pelos sentidos é uma pálida reprodução do mundo

das Idéias. Cada objeto concreto que existe participa, junto com todos os outros objetos de sua categoria, de uma Idéia perfeita. Uma determinada caneta, por exemplo, terá determinados atributos (cor, formato, tamanho, etc). Outra caneta terá outros atributos, sendo ela também uma caneta, tanto quanto a outra. Aquilo que faz com que as duas sejam canetas é, para Platão, a Idéia de Caneta, perfeita, que esgota todas as possibilidades de ser caneta.

A ontologia de Platão diz, então, que algo é na medida em que participa da Idéia desse objeto. No caso da caneta é irrelevante, mas o foco de Platão são coisas como o ser humano, o bem ou a justiça, por exemplo.

O problema que Platão propõe-se a resolver é a tensão entre Heráclito e Parmênides: para o primeiro, o ser é a mudança, tudo está em constante movimento e é uma ilusão a estaticidade, ou a permanência de qualquer coisa; para o segundo, o movimento é que é uma ilusão, pois algo que é não pode deixar de ser e algo que não é não pode ser, assim, não há mudança.

Ou seja (por exemplo), o que faz com que determinada árvore seja ela mesma desde o estágio de semente até morrer, e o que faz com que ela seja tão árvore quanto outra de outra espécie, com características tão diferentes? Há aqui uma mudança, tanto da árvore em relação a si mesma (com o passar do tempo ela cresce) quanto da árvore em relação a outra. Para Heráclito, a árvore está sempre mudando e nunca é a mesma, e para Parmênides, ela nunca muda, é sempre a mesma e é uma ilusão sua mudança.

Platão resolve esse problema com sua Teoria das Idéias. O que há de permanente em um objeto é a Idéia, mais precisamente, a participação desse objeto na sua Idéia correspondente. E a mudança ocorre porque esse objeto não é uma Idéia, mas uma incompleta representação da Idéia desse objeto. No exemplo da árvore, o que faz com que ela seja ela mesma e seja uma árvore (e não outra coisa), a despeito de sua diferença daquilo que era quando mais jovem e de outras árvores de outras espécies (e mesmo das árvores da mesma espécie) é sua participação na Idéia de Árvore; e sua mudança deve-se ao fato de ser uma pálida representação da Idéia de Árvore.

Platão também elaborou uma teoria gnosiológica, ou seja, uma teoria que explica como se pode conhecer as coisas, ou ainda, uma teoria do conhecimento. Segundo ele, ao vermos um objeto repetidas vezes, uma pessoa lembra-se, aos poucos, da Idéia daquele objeto, que viu no mundo das Idéias. Para explicar como se dá isso, Platão recorre a um mito (ou uma metáfora) que diz que, antes de nascer, a alma de cada pessoa vivia em uma Estrela, onde localizam-se as Idéias. Quando uma pessoa nasce, sua alma é "jogada" para a Terra, e o impacto que ocorre faz com que esqueça o que viu na Estrela. Mas ao ver um objeto aparecer de diferentes formas (como as diferentes árvores que se pode ver), a alma recorda-se da Idéia daquele objeto que foi vista na Estrela. Tal recordação, em Platão, chama-se anamnesis. O Homem

O homem para Platão era dividido em corpo e alma. O corpo era a matéria e a alma era o imaterial e o divino que o homem possuía. Ao passo que o corpo sempre está em constante mudança de aparência, forma... A alma não muda nunca, a partir do momento em que nascemos temos a alma perfeita, porém não sabemos. As verdades essenciais estão escritas na alma eternamente, porém ao nascermos esquecemos, pois a alma é aprisionada no corpo. A alma é divida em 3 partes: 1=> raciona: região da cabeça; esta tem que controlar as outras duas partes. 2=> torax: irascível; parte dos sentimentos. 3=> abdômen: concupiscível; desejo, mesmo carnal (sexual), ligado à libido.

Aula 04 – O Empirismo de Aristóteles Essência e acidente A essência é algo sem o qual aquilo não pode ser o que é; é o que dá identidade a um ser, e sem a qual aquele ser não pode ser reconhecido como sendo ele mesmo (por exemplo: um livro sem nenhum tipo de letras não pode ser considerado um livro, pois o fato de ter letras é o que permite-o

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12 ser identificado como "livro" e não como "caderno" ou meramente "papel em branco").

O acidente é algo que pode ser inerente ou não ao ser, mas que, mesmo assim, não descaracteriza-se o ser por sua falta (o tamanho de uma flor, por exemplo, é um acidente, pois uma flor grande não deixará de ser flor por ser grande; a sua cor, também, pois, por mais que uma flor tenha que ter, necessariamente, alguma cor, ainda assim tal característica não faz de uma flor o que ela é).

Potência, ato e movimento

Todas as coisas são em potência e ato. Uma coisa em potência é uma coisa que tende a ser outra, como uma semente (uma árvore em potência). Uma coisa em ato é algo que já está realizado, como uma árvore (uma semente em ato). É interessante notar que todas as coisas, mesmo em ato, também são em potência (pois uma árvore - uma semente em ato - também é uma folha de papel ou uma mesa em potência). A única coisa totalmente em ato é o Ato Puro, que Aristóteles identifica com o Bem. Esse Ato não é nada em potência, nem é a realização de potência alguma. Ele é sempre igual a si mesmo, e não é um antecedente de coisa alguma. Desse conceito Tomás de Aquino derivou sua noção de Deus em que Deus seria "ato puro".

Um ser em potência só pode tornar-se um ser em ato mediante algum movimento. O movimento vai sempre da potência ao ato, da privação à posse. É por isso que o movimento pode ser definido como ato de um ser em potência enquanto está em potência.

Aula 05 – EU e TU – O ser humano na reflexão filosófica: aspectos fenomenológicos

Texto adaptado de: Buber, M. Eu e tu. São Paulo: Centauro, 2001, p.

3-13 O mundo é duplo para o homem, segundo a dualidade de sua atitude. A atitude do homem é dupla de acordo com a dualidade das palavras-princípio que ele pode proferir. As palavras-princípio não são vocábulos isolados mas pares de vocábulos. Uma palavra-princípio é o par EU-TU. A outra é o par EU-ISSO no qual, sem que seja alterada a palavra-princípio, pode-se substituir ISSO por ELE ou ELA. Deste modo, o EU do homem é também duplo. Pois, o EU da palavra-princípio EU-TU é diferente daquele da palavra-princípio EU-ISSO. As palavras-princípio não exprimem algo que pudesse existir fora delas, mas uma vez proferidas elas fundamentam uma existência. As palavras-princípio são proferidas pelo ser. Se se diz TU profere-se também o EU da palavra-princípio EU-TU. Se se diz ISSO, profere-se também o EU da palavra-princípio EU-ISSO. A palavra-princípio EU-TU só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. A palavra-princípio EU-ISSO não pode jamais ser proferida pelo ser em sua totalidade. Não há EU em si, mas apenas o EU da palavra-princípio EU-TU e o EU da palavra-princípio EU-ISSO. Quando o homem diz EU, ele quer dizer um dos dois, o EU ao qual ele se refere está presente quando ele diz EU. Do mesmo modo quando ele profere TU ou ISSO, o EU de uma ou outra palavra-princípio está presente. Ser EU, ou proferir a palavra EU, são uma só e mesma coisa. Proferir EU ou proferir uma das palavras-princípio são uma só ou a mesma coisa. Aquele que profere uma palavra-princípio penetra nela e aí permanece. A vida do ser humano não se restringe apenas ao âmbito dos verbos transitivos. Ela não se limita somente às atividades que têm algo por objeto. Eu percebo alguma coisa. Eu experimento alguma coisa, ou represento alguma coisa, eu quero alguma coisa, ou sinto alguma coisa, eu penso em alguma coisa. A vida do ser humano não consiste unicamente nisto ou em algo semelhante. Tudo isso e o que se assemelha a isso fundam o domínio do ISSO. O reino do TU tem, porém, outro fundamento. Aquele que diz TU não tem coisa alguma por objeto. Pois, onde há uma coisa há também outra coisa; cada ISSO é limitado por outro ISSO; o isso só existe na medida em que é limitado por outro ISSO. Na medida em que se profere o TU, coisa alguma existe, o TU não se confina a nada. Quem diz TU não possui coisa alguma, não possui nada. Ele permanece em relação.

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13 Afirma-se que o homem experiencia o seu mundo. O que isso significa? O homem explora a superfície das coisas e as experiencia. Ele adquire delas um saber sobre a sua natureza e sua constituição, isto é, uma experiência. Ele experiencia o que é próprio às coisas. Porém, o homem não se aproxima do mundo somente através de experiências. Estas lhe apresentam apenas um mundo constituído por ISSO, ISSO e ISSO, de Ele, Ele e Ela, de Ela e ISSO. O experimentador não participa do mundo: a experiência se realiza “nele” e não entre ele e o mundo. O mundo não toma parte da experiência. Ele se deixa experienciar, mas ele nada tem a ver com isso, pois, ele nada faz com isso e nada disso o atinge. O mundo como experiência diz respeito à palavra-princípio EU-ISSO. A palavra-princípio EU-TU fundamenta o mundo da relação. O mundo da relação se realiza em três esferas. A primeira é a vida com a natureza. Nesta esfera a relação realiza-se numa penumbra como que aquém da linguagem. As criaturas movem-se diante de nós sem possibilidade de vir até nós e o TU que lhes endereçamos depara-se com o limiar da palavra. A segunda é a vida com os homens. Nesta esfera a relação é manifesta e explícita: podemos endereçar e receber o TU. A terceira é a vida com os seres espirituais. Aí a relação, ainda que envolta em nuvens, se revela, silenciosa mas gerando a linguagem. Nós proferimos, de todo nosso ser, a palavra-princípio sem que nossos lábios possam pronunciá-la. Mas como podemos incluir o inefável no reino das palavras-princípio? Em cada uma das esferas, graças a tudo aquilo que se nos torna presente, nós vislumbramos a orla do TU eterno, nós sentimos em cada TU um sopro provindo dele, nós o invocamos à maneira própria de cada esfera. Eu considero uma árvore. Posso apreendê-la como uma imagem. Coluna rígida sob o impacto da luz ou o verdor resplandecente repleto de suavidade pelo azul prateado que lhe serve de fundo Posso senti-la como movimento: filamento fluente de vasos unidos a um núcleo palpitante, sucção de raízes, respiração das folhas, permuta incessante de terra e ar, e mesmo o próprio desenvolvimento obscuro. Eu posso classificá-la numa espécie e observá-la como exemplar de um tipo de estrutura e de vida. Eu posso dominar tão radicalmente sua presença e sua forma que não reconheço mais nela senão a expressão de uma lei — de leis segundo as quais um contínuo conflito de forças é sempre solucionado ou de leis que regem a composição e a decomposição das substâncias. Eu posso volatilizá-la e eternizá-la, tornando-a um número, uma mera relação numérica. A árvore permanece, em todas estas perspectivas, o meu objeto tem seu espaço e seu tempo, mantém sua natureza e sua composição. Entretanto pode acontecer que simultaneamente, por vontade própria e por uma graça, ao observar a árvore, eu seja levado a entrar em relação com ela; ela já não é mais um ISSO. A força de sua exclusividade apoderou-se de mim. Não devo renunciar a nenhum dos modos de minha consideração. De nada devo abstrair-me para vê-la, não há nenhum conhecimento do qual devo me esquecer. Ao contrário, imagem e movimento, espécie e exemplar, lei e número estão indissoluvelmente unidos nessa relação. Tudo o que pertence à árvore, sua forma, seu mecanismo, sua cor e suas substâncias químicas, sua “conversação” com os elementos do mundo e com as estrelas, tudo está incluído numa totalidade. A árvore não é uma impressão, um jogo de minha representação ou um valor emotivo. Ela se apresenta “em pessoa” diante de mim e tem algo a ver comigo e, eu, se bem que de modo diferente, tenho algo a ver com ela. Que ninguém tente debilitar o sentido da relação: relação é reciprocidade. Teria então a árvore uma consciência semelhante à nossa? Não posso experienciar isso. Mas quereis novamente decompor o indecomponível só porque a experiência parece ter sido bem sucedida convosco? Não é a alma da árvore que se apresenta a mim, é ela mesma. O homem não é uma coisa entre coisas ou formado por coisas quando, estando eu presente diante dele, que já é meu TU, endereço-lhe a palavra-princípio. Ele não é um simples ELE ou ELA limitado por outros ELES ou ELAS, um ponto inscrito na rede do universo de espaço e tempo. Ele não é uma qualidade, um modo de ser, experienciável, descritível, um feixe flácido: de qualidades definidas. Ele é TU, sem limites sem costuras, preenchendo todo o horizonte. Isto não significa que nada mais existe a não ser ele, mas que tudo o mais vive em sua luz. Assim como a melodia não se compõe de

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14 sons, nem os versos de vocábulos ou a estátua de linhas — a sua unidade só poderia ser reduzida a uma multiplicidade por um retalhamento ou um dilaceramento — assim também o homem a quem eu digo TU. Posso extrair a cor de seus cabelos, o matiz de suas palavras ou de sua bondade; devo fazer isso sem cessar, porém ele já não é mais meu TU. Assim como a prece não se situa no tempo, mas o tempo na prece, e assim como a oferta não se localiza no espaço, mas o espaço na oferta — e quem alterar essa relação suprimirá a atualidade , do mesmo modo o homem a quem digo TU não encontro em algum tempo ou lugar. Eu posso situá-lo, sou, aliás, obrigado a fazê-lo constantemente, mas então, ele não é mais um TU e sim um ELE ou ELA, um ISSO. Enquanto o universo do TU se desdobra sobre minha cabeça, os ventos da causalidade prostram-se a meus calcanhares e o turbilhão da fatalidade se coagula. Eu não experiencio o homem a quem digo TU. Eu entro em relação com ele no santuário da palavra-princípio. Somente quando saio daí posso experienciá-lo novamente. A experiência é distanciamento do TU. A relação pode perdurar mesmo quando o homem a quem digo TU não o percebe em sua experiência, pois o TU é mais do que aquilo de que o ISSO possa estar ciente. O TU é mais operante e acontece-lhe mais do que aquilo que o ISSO possa saber. Aí não há lugar para fraudes: aqui se encontra o berço da verdadeira vida. — Que experiência pode-se então ter do TU? — Nenhuma, pois não se pode experienciá-lo. — O que se sabe então a respeito do Tu? — Somente tudo, pois, não se sabe, a seu respeito, nada de parcial. Tu encontra-se comigo por graça; não é através de uma procura que é encontrado. Mas endereçar-lhe a palavra-princípio é um ato de meu ser, meu ato essencial. O TU encontra-se comigo. Mas sou eu quem entra em relação imediata como ele. Tal é a relação, o ser escolhido e o escolher, ao mesmo tempo ação e paixão. Com efeito, a ação do ser em sua totalidade como suspensão de todas as ações parciais, bem como dos sentimentos de ação, baseados em sua limitação — deve assemelhar-se a uma passividade. A palavra-princípio EU-TU só pode ser proferida pelo ser na sua totalidade. A união e a fusão em um ser total não pode ser realizada por mim e nem pode ser efetivada sem mim. O EU se realiza na relação com o TU; é tornando EU que digo TU. Toda vida atual é encontro. Martin Buber (Viena, 8 de Fevereiro de 1878 - Jerusalém, 13 de Junho de 1965) foi filósofo, escritor e pedagogo. Teve uma educação poliglota: em casa aprendeu ídiche e alemão, na escola hebraico, francês e polonês. Sua formação universitária se deu em Viena. Em suas publicações filosóficas, deu ênfase à idéia de que não há existência sem comunicação e diálogo e que objetos não existem sem a interação. O homem possui a capacidade de inter-relacionamento com seu semelhante, ou seja, a intersubjetividade. Intersubjetividade é a relação entre sujeito e sujeito e/ou sujeito e objeto. O relacionamento, segundo o filósofo Martin Buber, acontece entre o Eu e o Tu, e denomina-se relacionamento Eu-Tu. A inter-relação segundo Martin Buber, envolve o diálogo, o encontro e a responsabilidade, entre dois sujeitos e/ou a relação que existe entre o sujeito e o objeto.

Aula 06 – Humanização, enfermagem e reflexão filosófica – Considerações sobre o que é o Humano e o que é Humanizar

Jaime Betts O que é o humano? O humano é o efeito da combinação de três elementos: a materialidade do corpo, a imagem do corpo e a palavra que se inscreve no corpo. O que diferencia o ser humano da natureza e dos animais é que seu corpo biológico é capturado desde o início numa rede de imagens e palavras, apresentadas primeiro pela mãe, depois pelos familiares e em seguida pelo social. É esse banho de imagem e de linguagem que vai moldando o desenvolvimento do corpo biológico, transformando-o num ser humano, com um estilo de funcionamento e modo de ser singulares. O fato de sermos dotados de linguagem torna possível para nós a construção de redes de significados, que compartilhamos em maior ou menor medida com nossos semelhantes e que nos dão uma certa

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15 identidade cultural. Em função da dinâmica de combinação desses três elementos, somos capazes de transformar imagens em obras de arte, palavras em poesia e literatura e sons em fala e música, ignorância em saber e ciência. Somos capazes de produzir cultura e a partir dela, intervir e modificar a natureza. Por exemplo, transformando doença em saúde. Entretanto, acontece que a palavra pode fracassar e onde a palavra fracassa somos capazes também das maiores barbaridades. A destrutividade faz parte do humano e a história testemunha a que ponto somos capazes de chegar. O homem se torna lobo do homem. Passamos a utilizar tudo quanto sabemos em nome de destruir aos humanos que consideramos diferentes de nós e por isso mesmo achamos que constituem uma ameaça a ser eliminada. Essa destrutividade pode se manifestar em muitos níveis e intensidades, indo desde um não olhar no rosto e dar bom dia, até o ato de violência mais cruel e mortífero. Então, o que é humanizar? Entendido assim, humanizar é garantir à palavra a sua dignidade ética. Ou seja, o sofrimento humano, as percepções de dor ou de prazer no corpo, para serem humanizadas, precisam tanto que as palavras com que o sujeito as expressa sejam reconhecidas pelo outro, quanto esse sujeito precisa ouvir do outro palavras de seu reconhecimento. Pela linguagem fazemos as descobertas de meios pessoais de comunicação com o outro, sem o que nos desumanizamos reciprocamente. Isto é, sem comunicação não há humanização. A humanização depende de nossa capacidade de falar e ouvir, pois as coisas do mundo só se tornam humanas quando passam pelo diálogo com nossos semelhantes. O compromisso com a pessoa que sofre pode ter basicamente três, ou quatro, tipos de motivação. Pode resultar do sentimento de compaixão piedosa por quem sofre, ou da idéia de que assim contribuímos para o bem comum e para o bem-estar em geral. Pode resultar também da paixão pela investigação científica, que se funda sobre o ideal de uma pura “objetividade”, com a exclusão de tudo quanto lembre a subjetividade. Um quarto tipo de motivação de compromisso pode resultar da solidariedade genuína. Cada uma dessas motivações tem conseqüências distintas no que diz respeito à humanização. É interessante se observar que no transcurso do século XIX as três estratégias de políticas de assistência à saúde que predominaram são aquelas fundadas na ética da compaixão piedosa, no utilitarismo clássico e no discurso tecno-científico, sendo que existe uma complementaridade entre essas três estratégias. Juntas, elas compõem as modernas estratégias de biopoder, que interferem em nossa existência na medida em que propõe uma nova utopia, a da saúde perfeita num corpo conceitual biônico Essas estratégias passam a assistir nossas necessidades mais elementares e íntimas, vigiando nossos movimentos, discutindo nossa sexualidade e vigiando nossos movimentos em nome de cuidar de nossa saúde. A saúde passa a ser valorizada como um bem acima de qualquer discussão, justificando assim formas coercitivas de controle social em nome da utilidade e da felicidade do maior número, da piedade compassiva pelos que sofrem e do condicionamento de comportamentos considerados mais saudáveis pelo saber médico científico higienista do momento. Tudo isso sem qualquer tipo de questionamento a respeito do que as pessoas envolvidas pensam e tem a dizer sobre o assunto. É preciso ressaltar aqui que a capacidade de cuidar, assistir e aliviar o sofrimento em saúde pública não implica necessariamente que a assistência seja uma intromissão coercitiva. A utopia da saúde perfeita surge de forma clara na própria definição da saúde proposto pela OMS em 1948, como sendo o “estado de completo bem-estar físico, mental e social, não meramente a ausência de doença ou enfermidade.” Essa definição tem o mérito de ampliar o escopo de um modelo estritamente biomédico de saúde como presença/ausência da doença ou enfermidade enquanto desvio da normalidade causada por uma etiologia específica e única, tratada pela suposta neutralidade científica da ciência médica. O aspecto utópico está contido na idéia de um estado de completo bem-estar. Sabemos que um estado de completo bem-estar simplesmente não existe, a não ser na morte, como estado absoluto de ausência de tensão. Bem ao contrário do que a utopia da saúde perfeita propõe, a civilização moderna vem exigindo da humanidade cada vez mais renuncias às satisfações de seus impulsos e oferecendo cada vez menos referências simbólicas em nome das quais essas renuncias

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16 poderiam ser suportadas. A lógica da compaixão piedosa, por sua vez, compõe um jogo perverso e desumanizante, difícil de se evidenciar, pois é uma prática muito arraigada em nossa sociedade ocidental, tendo como figura principal no século passado a dama de caridade, que tinha um estatuto de benfeitora divina em função de seus atos de ofertar esmola e filantropia. A dama de caridade vem sendo progressivamente substituída pela enfermagem, herdeira maior dessa lógica que muitas vezes ainda motiva suas ações no ambiente hospitalar. O aspecto desumanizante da compaixão piedosa está no fato de que ela faz das diferenças o fundamento para relações dissimétricas que ela institui entre o benfeitor e o assistido. Essa lógica instaura um exercício de poder de coerção e submissão sob um discurso de humanismo desapaixonado e desinteressado, gerando, além da obediência e da dependência, uma sensação de dívida e gratidão eternas pela caridade recebida. No ato de compaixão existe uma sutil defesa de nós mesmos, no sentido de nos libertarmos de um sentimento de dor que é nosso, pois o contratempo sofrido pelo outro nos faz sentir impotência, caso não corramos em socorro da vítima, e o temor de que o infortúnio possa nos acontecer. Ou seja, no ato de compaixão não estamos sendo completamente generosos e desinteressados, pois estamos indo, na verdade e em primeiro lugar, em socorro de nós mesmos. Outro aspecto é que existe na compaixão um fundo de vingança disfarçada, de sadismo mesmo, pois é preciso que o infortúnio e a desgraça existam e aconteçam com o outro para que nós possamos nos aliviar de nossa própria angústia ao mesmo tempo que supomos que nos engrandecemos moralmente com nossa caridade. É por isso que no sentimento de compaixão a dor alheia é despojada do que ela tem de pessoal, de singular e irredutível, pois o compassivo julga o destino sem se preocupar em saber nada sobre as conseqüências e complicações interiores que o infortúnio tem para o outro. Ou seja, quando realizamos atos de caridade, agimos impulsionados pelo júbilo sádico provocado pelo espetáculo de uma situação, masoquista, oposta à nossa. O problema da compaixão, quando se amplia e passa a fundamentar políticas de assistência, é que ela permanece alheia ao diálogo e exclui a argumentação, pretendendo superar uma necessidade, que muitas vezes é urgente, pela força do imediatismo. Outra forma de motivação do compromisso com a pessoa que sofre é fornecida pelo utilitarismo, que faz da procura da maior felicidade para o maior número a medida para todos os atos. Ou seja, um ato é correto se produz as melhores conseqüências para o bem-estar humano. Acredita-se no utilitarismo que o prazer ou bem-estar de um sujeito pode ser medido e comparado com o de outro. Como na cultura do individualismo a felicidade coletiva só pode ser pensada como a soma das felicidades individuais, o problema passa a ser como fazer com que a procura da felicidade individual possa ser integrada nessa felicidade coletiva. A solução passou a ser criar instituições de controle capazes de controlar e regulamentar as condutas dos indivíduos e dentre estas instituições está o hospital, além dos reformatórios, presídios, asilos, etc. Nesse sentido, as instituições de assistência pública de saúde se fundamentam faz dois séculos pelos critérios de bem-estar geral, urgência social e de felicidade e interesse comuns. E suas ações, campanhas e programas partem das certezas de que sempre atuam em nome e pelo bem daqueles a quem pretendem ajudar, sendo que supõe conhecer esse bem de um modo claro e distinto, sem necessidade de consultar antes aos “beneficiados”. Uma política de assistência fundamentada sobre esses pressupostos prescinde de argumentos, exclui a palavra e emudece qualquer diálogo. Tanto a ética utilitarista, quanto a ética compassiva são, por si só, desumanizantes pelo fato de colocarem os princípios acima dos sujeitos envolvidos, banindo as decisões tomadas coletivamente com base no diálogo e argumentação, pois essas éticas consideram que os princípios religiosos ou de utilidade geral são os únicos que podem determinar de antemão o que dever ser levado em consideração e feito. Uma terceira motivação de compromisso com a pessoa que sofre é trazida pelo discurso tecno-científico e a paixão que a suposição de objetividade e neutralidade da ciência desperta no homem moderno. O desenvolvimento científico e tecnológico tem trazido uma série de benefícios, sem dúvida, mas tem como efeito colateral uma inadvertida promoção da desumanização. O preço que pagamos pela suposta objetividade da ciência é a eliminação da condição humana da palavra, da

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17 palavra que não pode ser reduzida à mera informação de anamnese, por exemplo. Quando preenchemos uma ficha de histórico clínico, não estamos escutando a palavra daquela pessoa e sim apenas recolhendo a informação necessária para o ato técnico. Indispensável, sem dúvida. Mas o lado humano ficou de fora. O ato técnico, por definição, elimina a dignidade ética da palavra, pois esta é necessariamente pessoal, subjetiva, e precisa do reconhecimento na palavra do outro. A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá, portanto, na medida em que ficamos reduzidos a objetos de nossa própria técnica e objetos despersonalizados de uma investigação que se propõe fria e objetiva. Um hospital pode ser nota 10 tecnologicamente e mesmo assim ser desumano no atendimento, por terminar tratando às pessoas como se fossem simples objetos de sua intervenção técnica, sem serem ouvidas em suas angústias, temores e expectativas (informação considerada desnecessária e perda de um tempo precioso) ou sequer informadas sobre o que está sendo feito com elas (o saber técnico supõe saber qual é o bem de seu paciente independentemente de sua opinião). Por outro lado, o problema em muitos locais é justamente a falta de condições técnicas, seja de capacitação, seja de materiais, e torna-se desumanizante pela má qualidade resultante no atendimento e sua baixa resolubilidade. Essa falta de condições técnicas e materiais também pode induzir à desumanização na medida em que profissionais e usuários se relacionem de forma desrespeitosa, impessoal e agressiva, piorando uma situação que já é precária. É importante lembrar, com o poeta, que mesmo em tempo ruim, "a gente ainda dá bom dia!". Sempre podemos nos questionar diante de circunstâncias adversas a respeito do que podemos fazer mesmo assim para melhorar. Uma quarta motivação para o compromisso com quem está em sofrimento é propiciada pela solidariedade. A solidariedade abre uma perspectiva de humanização, pois ela somente se realiza quando a dimensão ética da palavra está colocada. Nesse sentido a solidariedade implica uma preocupação por universalizar a dignidade humana, que precisa da mediação das palavras faladas e trocadas no diálogo com o outro para poder generalizar-se. Como uma relação autêntica com o outro implica um mínimo de alteridade e aceitação da pluralidade humana como algo irredutível, o laço social humanizante somente se constrói pela mediação da palavra. É somente pela mediação da palavra trocada com o outro que podemos tornar inteligíveis nossos próprios pensamentos, anseios, temores e sofrimentos. Nossos sentimentos e sensibilidades só tomam forma e expressão na relação simbólica com o outro. Enfim, as coisas do mundo se tornam humanas quando as discutimos com nossos semelhantes. Nesse sentido, humanizar a assistência à saúde implica dar lugar tanto à palavra do usuário quanto à palavra dos profissionais da saúde, de forma que possam fazer parte de uma rede de diálogo, que pense e promova as ações, campanhas, programas e políticas assistenciais a partir da dignidade ética da palavra, do respeito, do reconhecimento mútuo e da solidariedade.

Aula 07 – HUMANIZAÇÃO DA DOR E DO SOFRIMENTO HUMANO NO CONTEXTO HOSPITALAR

Léo Pessini Professor doutor em Teologia Moral; pós-graduado em Clinical Pastoral Education and Bioethics pelo St. Luke's Medical Center, em Milwaukee (EUA); membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética; superintendente da União Social Camiliana e vice-reitor do Centro Universitário São Camilo. "O sofrimento somente é intolerável quando ninguém cuida." (Dame Cicely Saunders) "Os corpos não sofrem, as pessoas sofrem." (Eric Cassel) "Não há riqueza maior que a saúde do corpo, nem contentamento maior que a alegria do coração. É melhor a morte do que uma vida amarga e o descanso eterno, mais que uma doença prolongada."(Eclesiástico 30, 16-17) Uma das situações críticas do cuidado da vida é quando esta é marcada por dor e sofrimento intoleráveis e sem perspectiva, provocados por determinada doença séria de características mortais.

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18 Este é um dos motivos pelos quais muitas vezes a opção pela eutanásia torna-se atrativa, no sentido de abreviar a vida intencionalmente por causa da dor e do sofrimento. É muito freqüente ouvir nas UTIs e corredores do hospital pacientes que verbalizam em alto e bom tom que não temem tanto a morte em si mesma, mas sim a dor e o sofrimento do processo do morrer. O cuidado da dor e do sofrimento é a chave para o resgate da dignidade do ser humano neste contexto crítico. A problemática da dor e do sofrimento não é pura e simplesmente uma questão técnica: estamos frente a uma das questões éticas contemporâneas de primeira grandeza e que precisa ser vista e enfrentada nas suas dimensões física, psíquica, social e espiritual. Existe muita dor não aliviada e a esperança está na intervenção nas escolas de formação dos profissionais da saúde, na reformulação curricular, que contemple esta visão antropológica, para além da formação tecnocientífica necessária e na implementação da filosofia dos cuidados paliativos, em nível institucional ou domiciliar, frente aquelas situações em que curar não é mais possível. Alguns dados sobre dor O que entender por dor? A palavra "dor" origina-se do latim dolor. Os dicionários costumam definila como impressão desagradável ou penosa, decorrente de alguma lesão ou contusão, ou de um estado anormal o organismo ou de parte dele. Segundo especialistas, existem basicamente dois tipos de dor: as agudas e as crônicas. A dor aguda geralmente está associada a algum tipo de lesão corporal e tende a desaparecer logo que esta melhora. A dor crônica é aquela que perdura por mais de seis meses. É aquela que persiste além do tempo razoável e esperado para a cura de uma lesão, ou que está associada a doenças crônicas, causadoras de dor contínua, ou que retorna em intervalos de meses ou anos. Estudos epidemiológicos sobre a ocorrência e etiologia dos quadros álgicos são poucos, e o conhecimento sobre o tema ainda é bastante primário no Brasil. Sabe-se, porém, que a dor é a razão principal pela qual 75%-80% das pessoas procuram o sistema primário de saúde. A dor crônica acomete parcela significativa da população brasileira e é apontada como sendo a principal causa de falta ao trabalho, licenças médicas, aposentadorias por doença, indenizações trabalhistas e baixa produtividade. No Brasil, 6 dos 11 medicamentos campeões de venda no ano de 1998 foram analgésicos e/ou antiinflamatórios. Estudos realizados nas unidades de cuidados paliativos e câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS) mostram que 4,5 milhões de pacientes em países em desenvolvimento e desenvolvidos morrem anualmente sem receber tratamento da dor e sem que lhes sejam considerados outros sintomas tão prevalecentes quanto a dor e que também causam sofrimento. Em suma, a dor ainda não recebe a atenção devida na assistência à saúde em nosso país. Necessitamos de programas de educação em relação a essa problemática para doentes, familiares, médicos, farmacêuticos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais. Estes programas de educação devem fundamentar-se em alguns princípios fundamentais, que assinalamos a seguir: 1) Visão da dor nas suas diferentes dimensões. A dor é uma experiência em que aspectos biológicos, emocionais e culturais estão ligados de modo indivisível e no seu ensino deve-se prover informação para que estes aspectos possam ser adequadamente considerados, investigados e abordados. As intervenções terapêuticas devem sempre que possível atuar na causa da dor, sendo desejáveis as terapias que interfiram pouco na fisiologia e no comportamento normal do indivíduo, que sejam pouco complexas, menos dispendiosas e com mínimo potencial de complicações e efeitos adversos; 2) Valores éticos e a importância da qualidade de vida. A valorização da qualidade de vida da pessoa frágil pela dor e sofrimento e que talvez esteja enfrentando o adeus à vida; o respeito pela dignidade do ser humano, bem como sensibilidade no processo de tomada de decisões terapêuticas, devem permear toda a atividade de ensino, pesquisa e assistência; 3) Presença de equipe multidisciplinar. A experiência assistencial representa a possibilidade de integração dos conceitos que envolvem o estudo da dor e seu manejo. O treinamento deve incluir o atendimento aos doentes com dor realizado

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19 por todos os profissionais de saúde de forma integrada. A dor e o sofrimento como problema técnico Vivemos numa sociedade dominada pela analgesia, em que fugir da dor é o caminho racional e normal. À medida que a dor e a morte são absorvidas pelas instituições de saúde, as capacidades de enfrentar a dor, de inseri-la no ser e de vivê-la são retiradas da pessoa. Ao ser tratada por drogas, a dor é vista medicamente como um barulho de disfuncionamento nos circuitos fisiológicos, sendo despojada de sua dimensão existencial subjetiva. Claro que esta mentalidade retira do sofrimento seu significado íntimo e pessoal e transforma a dor em problema técnico. Estamos numa sociedade secularizada em que o sofrer não tem sentido, e por isso somos incapazes de perceber o sentido do sofrimento. As culturas tradicionais tornam o homem responsável por seu comportamento sob o impacto da dor, sendo que hoje é a sociedade industrial que responde diante da pessoa que sofre, para livrá-la deste incômodo. Em meio medicalizado, a dor perturba e desnorteia a vítima, obrigando-a a entregar-se ao tratamento. Ela transforma em virtudes obsoletas a compaixão e a solidariedade, fonte de reconforto. Nenhuma intervenção pessoal pode mais aliviar o sofrimento. Só quando a faculdade de sofrer e de aceitar a dor foi enfraquecida é que a intervenção analgésica tem efeito previsto. Nesse sentido, a gerência da dor pressupõe a medicalização do sofrimento. A medicalização penetra fundo em nossas vidas e constitui um dos domínios em que o poder da técnica foi mais bem acolhido e menos contestado. Cada pessoa torna-se um hóspede potencial dos hospitais, um paciente quase certo de determinadas cirurgias, um freqüentador assíduo de consultórios e ambulatórios. Se antes freqüentar um hospital era sinal de pobreza (local de concentração de indigentes), hoje os hospitais e clínicas são indicadores de desenvolvimento econômico e social, lugares que as pessoas têm obrigação quase moral de freqüentar. A dor e o sofrimento humano no contexto clínico A doença destrói a integridade do corpo, e a dor e o sofrimento podem ser fatores de desintegração da unidade da pessoa. Enquanto hoje a medicina está até que bem aparelhada para combater a dor, no que tange ao lidar com o sofrimento encontra-se ainda num estágio bastante rudimentar. Ganha sempre mais importância e até uma certa popularidade nos meios científicos que lidam com pacientes terminais a distinção entre dor e sofrimento. Cassel afirma que "o sofrimento ocorre quando existe a possibilidade de uma destruição iminente da pessoa, continua até que a ameaça de desintegração passa ou até que a integridade da pessoa é restaurada novamente de outra maneira". Aponta que o "sentido e a transcendência" oferecem duas pistas de como o sofrimento associado com a destruição de uma parte da personalidade pode ser diminuído. Dar um significado à condição sofrida freqüentemente reduz ou mesmo elimina o sofrimento a ela associado. A transcendência é provavelmente a forma mais poderosa na qual alguém pode ter sua integridade restaurada, após ter sofrido a desintegração da personalidade. Por vezes, existe um momento na doença crítica em que os sentimentos de desesperança e impotência se tornam mais intoleráveis que a própria dor. Neste ponto, a diferença entre dor e sofrimento torna-se evidente. Nem sempre quem está sentindo dor está sofrendo. O sofrimento é uma questão subjetiva e está mais ligado aos valores da pessoa. Por exemplo, duas pessoas podem ter a mesma condição física, mas somente uma delas pode estar sofrendo com isso. A palavra dor deve ser usada para a percepção de um estímulo doloroso na periferia ou no sistema nervoso central associada a uma resposta efetiva. Nem toda dor leva ao sofrimento (a dor de um atleta vencedor de uma maratona leva ao prazer), e nem todo sofrimento requer a presença de dor física (a angústia de saber que um ente querido tem mal de Alzheimer, por exemplo). Daniel Callahan definiu sofrimento como sendo a experiência de impotência com o prospecto de dor não aliviada, situação de doença que leva a interpretar a vida vazia de sentido. Portanto, o sofrimento é mais global que a dor e, fundamentalmente, sinônimo de qualidade de vida diminuída - situações como as de doenças sérias e prolongadas que causam rupturas sociais na vida do paciente, juntamente com a crise familiar, preocupações financeiras, premonições de morte e preocupações que surgem da manifestação de novos sintomas e seus possíveis significados.

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20 Podemos dizer que a dor é fisiológica, enquanto o sofrimento é psicológico. O sofrimento é muito mais vasto, mais global, isto é, existencial. Ele inclui as dimensões psíquicas, psicológicas, sociais e espirituais. A dor é uma experiência somatopsíquica. A dor e o sofrimento se reforçam mutuamente: uma dor muito forte e persistente pode influir em todas as dimensões do sofrimento, e, inversamente, a ansiedade, a depressão, a solidão ou o sentimento do não-sentido da vida podem acentuar a dor. Passemos a algumas considerações a respeito das dimensões do sofrimento. Dimensão física É a facilmente observada quando presente. Surge de um ferimento, de uma doença ou da deterioração progressiva do corpo, no idoso e no doente terminal, impedindo o funcionamento físico e o relacionamento com os outros. No nível físico, a dor funciona como um alarme de que algo está errado no funcionamento do corpo. Contudo, como a dor física afeta a pessoa na sua globalidade de ser, ela pode facilmente ir além de sua função como um sinal de alarme. A dor severa pode levar a pessoa, por vezes, a pedir a própria morte. Dimensão psíquica É a dimensão do sofrimento que pode ter múltiplos fatores causais num capítulo de alta complexidade na área da saúde mental. Entre inúmeras situações críticas que podem desencadear sofrimento psíquico, lembramos o enfrentamento da própria morte. Brotam sentimentos caracterizados por mudança de humor, sentimentos de perda do controle sobre o processo de morrer, perda de esperanças e sonhos ou necessidade de redefinir-se perante o mundo. Dimensão social É a dimensão do sofrimento marcada pelo isolamento, criado justamente pela dificuldade de comunicação sentida no processo do morrer. A presença solidária é fundamental. A perda do papel social familiar é também muito cruel. Por exemplo, um pai doente torna-se dependente dos filhos e aceita ser cuidado por eles. Dimensão espiritual Surge da perda de significado, sentido e esperança. Apesar da aparente indiferença da sociedade em relação ao "mundo além deste", a dor espiritual está aí. É quando o doente confidencia ao seu conselheiro espiritual: "dói a alma". Necessitamos de um sentido e de uma razão para viver e para morrer. Em recentes pesquisas nos Estados Unidos, ficou evidenciado que o aconselhamento em questões espirituais situa-se entre as três necessidades mais solicitadas pelos que estão morrendo e seus familiares. Essas dimensões do sofrimento inter-relacionam-se e nem sempre é fácil distinguir umas das outras. Se os esforços para lidar com a dor enfocam somente um aspecto e negligenciam os demais, o paciente não experimentará alívio da dor e sofrerá mais. A dor não aliviada, como dissemos, pode causar não somente depressão, mas até levar a pessoa a pedir para morrer. O cuidado da dor e do sofrimento A dor física é geralmente a mais fácil de se controlar. Embora os textos médicos descrevam abordagens farmacológicas e não-farmacológicas para controlar a dor, existe muita dor física não aliviada. Peritos estimam que 75% dos pacientes com dor são tratados inadequadamente, e que de 60% a 90% dos que estão na fase terminal sentem dor de severa a moderada, suficiente para prejudicar as funções físicas, o humor e a interação social. Quase 25% dos pacientes de câncer morrem com dor severa e não aliviada. Na perspectiva do paciente, a dor pode aumentar a partir do medo, isolamento, insônia ou depressão. As respostas dos pacientes para os tratamentos de dor também podem variar. Um dos grandes problemas que os pacientes têm é encontrar uma linguagem adequada para expressar sua dor, de modo a que seja adequadamente identificada e cuidada. Muitos relutam em falar da dor, porque

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21 sentem que os outros os julgariam como fracos e que só sabem reclamar. Outro problema em cuidar da dor dos doentes é que alguns não cooperam com o programa terapêutico, talvez para evitar efeitos colaterais do tratamento que os impediriam de resolver questões pendentes, ou simplesmente como forma de garantir algum controle em face da perda da autodeterminação. Outros, negam a dor para manter o sentimento de que ainda estão no controle, apesar de evidências em contrário. Outros, usam sua dor para proteger-se de questões mais difíceis. Outros, numa perspectiva de fé, abraçam a dor, acreditando que tem um valor redentor que podem oferecer a Deus(32,33). Os médicos também falham em aliviar a dor dos pacientes. Alguns ignoram a natureza da dor. Outros não diagnosticam acuradamente a sua origem, ou falham em avaliar o paciente em intervalos regulares para detectar novos processos causadores de dor e que exigem novas terapias. Alguns simplesmente não acreditam na descrição da dor do paciente. Na verdade, há muito a ser feito nesta área do controle, administração e alívio da dor. O sofrimento sentido na fase terminal da doença é muito mais que físico. Ele afeta não somente o conceito de si próprio, mas também o senso global de sentir-se conectado com os outros e com o mundo. Este sofrimento psicossocioespiritual pode ser sentido como uma ameaça para o paciente em relação ao sentido de vida, perda de controle, enfraquecimento da relação com os outros, uma vez que o processo do morrer intensifica o isolamento e interrompe as formas ordinárias de contato com os demais. Os pacientes em estado terminal freqüentemente têm sentimentos de impotência, desesperança e isolamento. Assim, um plano adequado para lidar com este sofrimento psicossocioespiritual deve enfrentar esta realidade. Talvez o remédio mais eficaz em termos de cura seja a qualidade do relacionamento mantido entre o paciente e seus cuidadores, e entre o paciente e sua família. A qualidade curadora da relação terapêutica pode facilmente ser enfraquecida ou ameaçada quando reações emocionais (negação, raiva, culpa e medo) sentidas pelos pacientes, famílias ou cuidadores não são adequadamente trabalhadas. É claro que está no coração da relação terapêutica entre paciente e cuidadores o cuidado das necessidades de relação e sentido, bem como de uma comunicação honesta e verdadeira.

Aula 08 – Ética e Sofrimento humano

Ética em Aristóteles

Ótimo é aquele que de si mesmo conhece as coisas; Bom o que escuta os conselhos dos homens judiciosos. Mas o que por si não pensa, nem acolhe a sabedoria alheia, esse é, em verdade, um homem inteiramente inútil.

Aristóteles

“Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência moral, portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de várias maneiras, ao passo que só é possível acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isto que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.42)

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22 A virtude ética requer escolha, deliberação, discernimento; exatamente por se debruçar sobre coisas passíveis de variação; e, portanto, contingentes. Ao contrário de realidades expressas por princípios primeiros invariáveis, há uma parte dos objetos postos diante da razão humana para os quais pode haver cálculo e deliberação (SILVEIRA, 2001, p.48). Todavia, não é simples o cálculo; não é fácil a escolha. Pelo contrário: “às vezes, é difícil decidir o que devemos escolher e a que custo, e o que devemos suportar em troca de certo resultado, e ainda é mais difícil firmar-nos na escolha, pois em muitos dilemas deste gênero o mal esperado é penoso...” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.501). Para Aristóteles, mesmo nos casos difíceis, que envolvem o dilema da moralidade em seu limite máximo, o pior mal residiria na ação injusta, já que esta pressupõe a deficiência moral do agente. E, de qualquer modo, não se pode esquecer que, para Aristóteles, a felicidade, seja do Estado, seja do indivíduo, corresponde ao exercício continuado da prática da virtude e da prudência; sendo “o melhor governo aquele em que cada um melhor encontra aquilo de que necessita para ser feliz” (Aristóteles, Tratado da política, p.45). Se a ação humana, no plano dos valores, tem origem na escolha; e esta tem por fonte um raciocínio dirigido a um fim, seria possível ao homem possuir “a percepção da verdade e a impressão da falsidade” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.114), sendo inteligência prática apreender a verdade conforme o desejo correto. Ao deliberar sempre sobre um futuro necessariamente em aberto, o homem exercita a habilidade que, de potência, se transmuta em ato: o discernimento. Para refletir sobre essa faculdade, Aristóteles vale-se das características intrínsecas às pessoas dotadas do atributo de saber discernir; são – de modo geral – aquelas capazes de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesmas e para os outros em um sentido mais amplo. Tal habilidade possibilita o reconhecimento do universal na contingência da situação particular. Por ser assim, discernir é necessariamente deliberar sobre aspectos variáveis, cuja escolha permitirá sempre especular sobre outras opções preteridas e não acionadas. Discernir bem talvez seja, pelas palavras de Aristóteles, possuir e levar às últimas conseqüências intuições e pressentimentos de vida (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.118): Das considerações acima tecidas decorre, no parecer de Aristóteles, a dificuldade dos jovens em relação à prática do discernimento. “Não parece possível que um jovem seja dotado de discernimento” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.120), justamente pelo fato de esse tipo de sabedoria não se resumir ao conhecimento dos universais; sendo – pelo contrário – a familiaridade com os particulares; o que exige experiência; o que exige tempo de vida e de amadurecimento. Pode-se, assim, encontrar exímios jogadores de xadrez ainda adolescentes; existem jovens matemáticos brilhantes... Mas, para o caso da política - uma ciência prática - dificilmente poderiam ser encontrados notáveis jovens estadistas. Não correspondendo ao conhecimento científico dos universais, o discernimento estaria atado ao fato particular – para o qual a argúcia da percepção seria um predicado imprescindível. Capacidade de conjecturar, cálculo, rapidez de raciocínio para o estabelecimento de inferências pertinentes, e, sobretudo, correção na decisão. Para Aristóteles, em matéria de ética, há de lembrar que existem formas variadas de errar; uma só de acertar. Ética e Existencialismo em Sartre Para Sartre o ato de assumir o ser, caracteriza a realidade humana, existir é assumir o ser, portanto a realidade humana é sempre um eu que compreende a si próprio fazendo-se humano por tal característica. O princípio de Sartre é a não existência de Deus, o homem não tem ao que se apegar. Somos livres, sós e sem desculpas. Chega a conclusão de que nada justifica a existência, o tédio dos dias e das noites, caminhos obscuro e deserto, o cotidiano. Mas isso não o livra da liberdade e da responsabilidade, que são da essência do homem, uma liberdade sem conteúdo se torna amargura, náusea. Um conjunto de valores intermediários entre Deus e o homem que morreram para Sartre, e não "Deus que esta morto" como diz Nietzsche. Tudo é gratuito, o homem se encontra na consciência da liberdade, e na possibilidade de forjar nossa própria vida.

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23 Uma vez não tendo essência, a liberdade deve-se fazer, se criar. A consciência se lança no futuro se distanciando do passado. A necessidade de escolha deve sempre se impor, ou seja, deve sempre estar dentro dos meus projetos. O cumprimento, mas ao mesmo tempo o entrave à minha liberdade, é a existência do outro para quem me torno objeto. Sartre vê duas atitudes possíveis: A qualquer momento pode haver a paralisação do objeto pelo outro, surgindo o ódio, o conflito e luta, não há a tolerância da liberdade do outro, o que acontece é aniquilação do outro, mas isso não muda o fato de que um dia ele existiu e fez de mim objeto de meu projeto. Sartre considera que o materialismo aniquila o homem, o espírito se relaciona com a matéria, mas não o é. O trabalho dá sentido à matéria, a capacidade de imaginar que as coisas poderiam ser diferentes que torna o homem capaz de ir além da situação particular em que se encontra no momento. E aí que o indivíduo se torna objeto e contribui para a história. O papel do existencialismo é insistir na especificidade de cada acontecimento. Para Sartre o desespero significa que o homem se limita a contar com o que depende de sua vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam possível a ação. Agir sem esperança é agir sem contar com os outros homens, que além de desconhecidos, são livres, pois não há ‘natureza humana’ na qual seja possível agarrar-se. O ponto de partida do existencialismo sartriano é a subjetividade, o cogito cartesiano, que apreende a verdade absoluta da consciência na intuição de si mesma. Na subjetividade existencial, porém, o homem não atinge apenas a si mesmo, mas também aos outros homens, como condição de sua existência. O que o cogito revela é a intersubjetividade, na qual o homem decide o que é e o que são os outros. Não há natureza, mas condição humana. O homem é sempre "situado e datado", embora o conteúdo de sua situação varie no tempo e no espaço. A liberdade não se exerce no abstrato, mas na situação. Sartre também discute a questão da morte, diferente de Heidegger, ele acha que a morte tira o sentido da vida, ou seja, ela é a "nadificação dos nossos projetos, é a certeza de que um "nada" total nos espera". Sartre conclui: "se nos temos de morrer, a nossa vida não tem sentido porque os seus problemas não recebem qualquer solução e porque até a significação dos problemas permanece indeterminada”. O conceito de "náusea", usado no romance de mesmo nome, difere-se a esse sentimento experimentado diante do real, quando se toma a consciência de que ele e desprovido de razão de ser, absurdo. Roquetim, a personagem principal do romance, numa celebre passagem, ao olhar as raízes de um castanheiro, tem a impressão de existir à maneira de uma coisa, de um objeto, de estar aí, como as coisas são. Tudo lhe surge como pura contingência, sem sentido. O homem não é um "em si" ele é um "para si", que a rigor não é nada. A consciência não tem conteúdo e, portanto, não é coisa alguma. Esse vazio é a liberdade fundamental do "para si". É a liberdade, movendo-se, através das possibilidades, que poderá criar-lhe um conteúdo. Eis o que o homem, ao experimentar essa liberdade, ao sentir-se como um vazio, experimenta a angústia da escolha. Muitas pessoas não suportam essa angústia, fogem dela aninhando-se na má fé. A má fé é a atitude característica do homem que finge escolher, sem na verdade escolher. Imagina que seu destino está traçado, que os valores são dados; aceitando as verdades exteriores, "mente para si mesmo", que é o autor dos seus próprios atos. Não se trata propriamente de uma mentira, pois esta supõe os outros, para quem mentimos. A má fé se caracteriza pelo fato de o indivíduo dissimular para si mesmo, a fim de evitar fazer uma escolha, da qual possa se responsabilizar. Torna-se salaud (‘safado’, ‘sujo’). O homem que recusa a si mesmo aquilo que fundamentalmente o caracteriza como homem, ou seja, a liberdade. Nesse processo recusa a dimensão do "para si", torna-se um "em si", semelhante as coisas. Perde a transcendência, reduz-se a facticidade.

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24 Aula 09 – TRATAMENTO E CURA: AS ALTERNATIVAS DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE

Versão resumida e adapatada de: HELMAN, C.G. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994 (p. 70-80)

Na maior parte das sociedades, as pessoas que sofrem de algum desconforto físico ou abalo emocional têm várias maneiras de se auto-ajudar ou buscar ajuda de outros. Podem, por exemplo, decidir descansar ou tomar um remédio caseiro; ou se aconselhar com um amigo, parente ou vizinho; consultar um pastor local, curandeiro ou uma pessoa tida como “sábia” ; ou consultar um médico, se houver. Podem, também, passar por todas estas etapas, ou por uma ou duas delas, ou ainda segui-las em qualquer ordem. Quanto maior e mais complexa a sociedade na qual o indivíduo vive, maior a probabilidade da disponibilidade dessas alternativas terapêuticas, desde que o indivíduo possa pagar por elas. Nas sociedades modernas urbanizadas, ocidentais ou não, freqüentemente existe pluralismo médico. Nelas, há muitos grupos e indivíduos que oferecem ao paciente sua maneira particular de explicar, diagnosticar e tratar as doenças. Embora esses métodos terapêuticos coexistam, são geralmente baseados em premissas completamente distintas, podendo até ser originários de outras culturas, como no caso da Medicina ocidental na China, ou da acupuntura chinesa no mundo ocidental contemporâneo. Para o indivíduo doente, no entanto, a origem desses tratamentos importa menos do que sua eficácia em aliviar o sofrimento. Aspectos sociais e culturais de pluralismo médico Os antropólogos ressaltam que um sistema médico de uma sociede não pode ser estudado isoladarnente, sem a consideração de outros aspectos daquela sociedade, especialmente sua organizacão social, religiosa, política e econômica. O sistema médico está interligado com tais aspectos e fundamentado nas mesmas suposições, valores e visão de mundo. Um sistema médico possui dois aspectos inter-relacionados: um aspecto cultural, que inclui determinados conceitos básicos, teorias, práticas normativas e formas comuns de percepcão; e um aspecto social, incluindo sua organizacão em determinados papéis específicos (tais como o de “ médico “ e o de “paciente”) e princípios que regem as relações entre estes papéis em ambientes específicos (um hospital ou um consultário médico). Na maioria das sociedades, sempre há um método de atenção à saúde — como a Medicina científica no Ocidente — que predomina sobre os outros, e seus aspectos culturais e sociais são sustentados pela Lei. Além deste sistema médico “oficiaI” geralmente existem sistemas menores, alternativos, tais como a homeopatia, o herbalismo e a cura espiritual, que podem ser denominados de subculturas médicas. Cada uma possui suas maneiras próprias de explicar e tratar as doenças, e os curandeiros de cada grupo estão organizados em associações profissionais, com regras de admissão, códigos de conduta e formas de relacionamento com o paciente. As subculturas médicas podem ser nativas de uma sociedade ou importadas de outra região; em muitos casos, os imigrantes de uma sociedade trazem consigo seus curandeiros para tratar suas doenças com um método culturalmente familiar. As três alternativas da assistência à saúde Arthur Kleinman sugeriu que, analisando qualquer sociedade complexa, é possível identificar três alternativas de assistência à saúde, sobrepostas entre si: a informal, a popular e a profissional. Cada alternativa possui seus próprios meios de explicar e tratar as doenças, como também de definir quem cura e quem é o paciente, e especificar como ambos devem interagir em seu encontro terapêutico. 1. A alternativa informal É o campo leigo, não-profissional e não-especializado da sociedade, onde as doenças são, em primeiro lugar, reconhecidas e definidas, para depois serem iniciadas as atividades de tratamento.

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25 Inclui todas as alternativas terapêuticas a que as pessoas recorrem sem pagamento e sem consultar curandeiros tradicionais ou médicos. Dentre essas alternativas, estão: autotratamento ou auto-medicação; conselho ou tratamento recomendado por um parente, amigo, vizinho ou colega de trabalho; atividades de cura ou assistência mútua em igrejas, cultos ou grupos de auto-ajuda; ou consulta a outra pessoa leiga que tenha experiência específica em uma desordem particular, ou em um tratamento de determinado estado físico. Neste setor, a arena principal da assistência à saúde é a família; nestes casos, a maior parte das doenças é identificada, e então, tratada. A família é a sede primeira da assistência à saúde em qualquer sociedade. Lá os principais responsáveis pela assistência à saúde são as mulheres, geralmente as mães ou as avós, que diagnosticam as doenças mais comuns e tratam-nos com os recursos que tiverem à disposição. Há estimativas de que cerca de 70% a 90% dos tratamentos de saúde ocorrem neste setor, tanto nas sociedades ocidentais quanto nas não-ocidentais. As pessoas, quando “adoecem” , obedecem normalmente a uma “hierarquia de recursos”, que vai desde a automedicação até a consulta a outras pessoas. O autotratamento é baseado em crenças leigas sobre a estrutura e o funcionamento do corpo, e a origem e natureza das doenças. Tais crenças incluem diversas substâncias e tratamentos, tais como medicamentos industrializados, remédios tradicionais e dicas das “vovós”, além de mudanças na dieta e no comportamento. O alimento pode ser utilizado como uma forma de “medicação”, como, por exemplo, na América Latina, onde determinados alimentos são usados para neutralizar doenças “quentes” ou “frias” e para restaurar o equilíbrio do organismo. As mudanças de comportamento que acompanham as doenças variam desde preces especiais, rituais, confissões ou jejuns até o descanso numa cama quente para um resfriado ou gripe. A alternativa informal geralmente inclui um conjunto de crenças sobre a conservação da saúde. São, normalmente, uma série de normas, específicas para cada grupo cultural, sobre o comportamento “correto” preventivo de doenças em si e nos outros. As normas incluem crenças sobre a maneira “saudável” de comer, beber, dormir, vestir-se, trabalhar, rezar e conduzir a vida em geral. Em algumas sociedades, a manutenção da saúde inclui também o uso de feitiços, amuletos e medalhões religiosos para afastar a má sorte, inclusive uma doença inesperada, e para atrair a boa sorte e a boa saúde. A maioria dos tratamentos de saúde nesta alternativa ocorre entre pessoas ligadas uma à outra por laços de parentesco, amizade, residência comum ou de associações a organizações profissionais ou religiosas. Isto significa que o paciente e o curandeiro compartilham concepções semelhantes sobre saúde e doença, e que serão comparativamente raros os mal-entendidos entre ambos. A alternativa informal é constituida por uma série de relações de cura informais e não-pagas, de duração variável, que ocorrem na própria rede social do paciente, particularrnente na família. Os encontros terapêuticas acontecem sem regras determinadas de comportamento ou ambiente. Em outra ocasião os papéis podem ser invertidos: o paciente de bole poderá ser o curandeiro, amanhã. Há determinados indivíduos, contudo, que tendem a atuar como fontes de aconselhamento à saúde mais do que outros. São eles:

1. Aqueles com longa experiência em uma doença específica, ou num determinado tipo de tratamento. 2. Aqueles com larga experiência em acontecimentos da vida, como mulheres que criaram muitas crianças. 3. Os profissionais paramédicos (enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas ou recepcionistas de médicos), consultados informalmente a respeito de problemas de saúde. 4. Esposas ou maridos de médicos, que compartilham as experiências de seus cônjuges, às vezes até com algum treinamento na área. 5. Indivíduos tais como cabeleireiros, vendedores ou até gerentes de banco, que se relacionam com freqüência com o público e, algumas vezes, atuam como confidentes ou psicoterapeutas leigos. 6. Coordenadores de grupos de auto-ajuda. 7. Membros ou oficiantes de determinados cultos de cura ou igrejas.

Todos eles são considerados como recursos de aconselhamento e assistência sobre questões de saúde por amigos ou familiares. Suas credenciais são, principalmente, suas próprias experiências, mais do

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26 que instrução, status social ou poderes ocultos especiais. Uma mulher que já passou por várias gestações, por exemplo, pode aconselhar informalmente uma mulher mais jovem na primeira gravidez, falando a ela sobre os sintomas esperados e a forma de lidar com eles. Da mesma forma, uma pessoa com longa experiência com uma medicação específica poderá “emprestar” um pouco a um amigo com sintomas semelhantes. As experiências com doenças e sofrimento são também compartilhadas em cultos de cura e igrejas. Nas sociedades não-ocidentais, os grupos de auto-ajuda também têm um fundamento religioso. Os cultos de “possessão espiritual”, por exemplo, são comuns em regiões da Africa, especialmente entre as mulheres. Neles, as mulheres que foram “possuidas” ou ficaram doentes devido a um tipo de espírito em particular, formam o que Victor Turner denominou de “uma comunidade de sofrimento”, cujos membros diagnosticam e tratam ritualmente aqueles que sofreram a possessão por parte do mesmo espírito maligno. Todos os aspectos da alternativa informal (e das outras duas alternativas) podem ocasionalmente produzir efeitos negativos na saúde mental e física dos indivíduos. A família, por exemplo, poderá tanto facilitar quanto impedir a assistência à saúde. Em geral, as pessoas doentes transitam livremente entre a alternativa informal e as outras duas, podendo voltar à primeira, especialmente quando o tratamento em uma alternativa não proporciona alívio ao desconforto físico ou abalo emocional. 2. A alternativa popular Nesta alternativa, especialmente ampla nas sociedades não-ocidentais, determinados indivíduos tornam-se especialistas em métodos de cura, que podem ser sagrados, seculares ou uma combinação de ambos. Esses curandeiros não fazem parte do sistema médico “oficial”, e ocupam uma posição intermediária entre a alternativa informal e a profissional. Há diversos tipos de curandeiros populares em todas as sociedades, desde os puramente seculares até os experts em técnicas especiais, parteiras, extratores de dente ou herboristas, até curandeiros espirituais, clarividentes a shamans. Grande parte das comunidades possui curandeiros populares seculares e sagrados. Os curandeiros espirituais — que não atuam em templos, igrejas ou lojas de religião — são especialmente comuns, e tratam de doenças que julgam ser causadas por feitiçarias ou punição divina. As doenças seculares são tratadas por automedicação ou por “vovós” ou herboristas locais. Grande parte dos curandeiros populares compartilham os mesmos valores culturais básicos e visões de mundo das comunidades em que vivem, incluindo crenças sobre a origem, significado e tratamento de doenças. Nas sociedades em que as causas das doenças e outras formas de infortúnio são creditadas a forças sociais (bruxarias, feitiçarias, mau-olhado) ou sobrenaturais (deuses, espíritos ou fantasmas de ancestrais), os curandeiros populares sagrados são particularmente comuns. Sua abordagem é geralmente holística, pois trata de todos os aspectos da vida do paciente, inclusive seus relacionamentos com outras pessoas, com o meio ambiente natural e com poderes sobrenaturais, além de seus sintomas emocionais e físicos. Em muitas sociedades não-ocidentais, todos estes aspectos da vida fazem parte da definição de saúde, considerada fruto do equilíbrio entre o homem e seus meios social, natural e sobrenatural. Um distúrbio em qualquer um desses meios (comportamento imoral, conflitos familiares, ou falhas na observância das práticas religiosas) podem resultar em sintomas físicos ou emocionais, exigindo os serviços de um curandeiro popular sagrado. Curandeiros desse tipo, frente a uma doença, normalmente indagam sobre o comportamento do paciente antes de adoecer, e sobre eventuais conflitos com outras pessoas. Numa sociedade menor, o curandeiro pode até ter conhecimento em primeira mão das dificuldades familiares do paciente através de boatos, o que pode ser útil para alcançar um diagnóstico. Além de reunir dados sobre a história recente do paciente e seu background social, o curandeiro pode empregar um ritual de adivinhação. Há várias formas de adivinhação pelo mundo todo, incluindo o uso de cartas, ossos e pedras especiais (cuja disposição aleatória é interpretada pelo curandeiro), o exame das entranhas de certos mamíferos e aves, e a consulta direta a espíritos ou seres sobrenaturais através do estado de transe. Em cada caso, a adinhação visa descobrir a causa sobrenatural da doença (bruxaria ou retribuição divina) através de técnicas sobrenaturais.

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27 A adivinhação pelo transe é comum em sociedades não-industrializadas (mas também ocorre, no Ocidente, entre os médiuns). Este método é usado pelos shamans, que existem em várias culturas. Segundo a definição clássica, um shaman é “um homem ou uma mulher que domina os espíritos e é capaz de, segundo sua vontade, introduzi-los em seu próprio corpo”. A adivinhação acontece numa sessão espírita, na qual o curandeiro permite que os espíritos o penetrem e, através dele, diagnostiquem a doença e prescrevam o tratamento. Em alguns casos, ele só pode entrar em transe com o auxílio de drogas alucinógenas poderosas. Esta e outras formas de adivinhação ocorrem ocasionalmente na presença da família do paciente, seus amigos e conhecidos. Neste cenário público, o adivinho tem como objetivo trazer à tona os conflitos existentes na comunidade — e que podem ter levado à prática de feitiços ou bruxarias entre pessoas — e resolvê-los de forma ritual. Os curandeiros sagrados também fornecem explicações e tratamento para sentimentos subjetivos de culpa, vergonha ou raiva — quando prescrevem, por exemplo, rezas, arrependimento ou resolução de problemas interpessoais como tratamento. As mesmo tempo, podem recomendar tratamentos físicos ou remédios. A cura na alternativa popular oferece diversas vantagens a seus usuários, em comparação à Medicina científica moderna. Uma delas é o envolvimento freqüente da familia no diagnóstico e no tratamento. O foco de atenção não é somente o paciente (como acontece na Medicina ocidental), mas também a reação dos familiares e de outras pessoas à doença. O curandeiro é, geralmente, acompanhado de “ajudantes”, que participam da cerimônia dão explicações ao paciente e sua famiia e esclarecem qualquer dúvida. Sob uma perspectiva moderna, esse tipo de curandeiro, acompanhado de assistentes e dos familiares do paciente, forma uma equipe eficiente de atenção primária à saúde, especialmente por tratar também de problemas psicossociais. Em geral, há proximidade, afeto, informalidade e visões de mundo semelhantes nas consultas, além do uso de linguagem coloquial; a família e outros membros da comunidades são envolvidos no tratamento. O curandeiro pode influenciar a sociedade como um todo, em particular as relações sociais do paciente, é capaz de influenciar o comportamento futuro do paciente, ressaltando a importância de seus atos passados na doença atual. O tratamento acontece num ambiente familiar — a casa do paciente ou um santuário religioso. Uma vez que os curandeiros populares articulam e reforçam os valores culturais da comunidade em que vivem, eles estão em vantagem em relação aos médicos ocidentais. Estes últimos estão geraImente separados de seus pacientes por classe social, posição econômica, gênero, educação especializada e, algumas vezes, por background cultural. Os curandeiros são mais aptos a definir e tratar uma “doença” — isto é, as dimensões sociais, psicológicas e morais associadas com a mesma ou com outras formas de infortúnio. Eles também fornecem explicações culturalmente familiares das causas e duração da doença, e sua relação com os mundos social e sobrenatural. Em geral, os curandeiros populares possuem pouco treinamento formal, se comparados à escola médica ocidental. Eles adquirem determinadas habilidades através do aprendizado com um curandeiro mais velho, de experiências de determinadas técnicas e estados de saúde, ou de um ‘poder de cura’ adquirido ou nato. Há várias maneiras de um individuo transformar-se em curandeiro popular, tais como:

1. Herança — por ter nascido numa familia de curandeiros. 2. Posição dentro da família, como no caso do “sétimo filho do sétimo filho” na Irlanda. 3. Sinais ou presságios no nascimento, como uma marca de nascença ou o “choro no útero”, ou ainda a membrana amniótica envolvendo o rosto. 4. Revelação — descoberta de que um individuo “tem o dom da cura”. A revelação pode ocorrer sob a forma de uma experiência emocional intensa durante uma doença, um sonho ou um estado de transe. Em casos extremos, a vocação pode ser anunciada através de “um estado de possessão inicialmente descontrolado: uma experiência traumática associada a um estado de êxtase ou de histeria”. 5. Aprendizado com outro curandeiro — costume comum em todas as regioes do mundo, embora o aprendizado possa durar muitos anos. 6. Aquisição de uma habilidade em particular por si mesmo.

Na prática, os caminhos para as atividades de cura populares tendem a se sobrepor umas às outras: por exemplo, alguém nascido em uma famiia de curandeiros, que apresentou determinados sinais ao

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28 nascer ou foi objetos de determinados presságios, poderá, ainda, ter de refinar seu “dom” através de um aprendizado longo com um curandeiro mais velho. Enquanto que a maior parte dos curandeiros populares trabalha sozinha, existem também associações e organizações informais de curandeiros, que contribuem para o intercâmbio de técnicas e conhecimento, além de controlar a conduta de cada um. As relações entre os curandeiros populares e os profissionais são, normalmente marcadas pela desconfiança e descrédito mútuos. No mundo ocidental, a Medicina contemporânea vê a maioria dos curandeiros populares como charlatães ou “médicos feiticeiros”, um perigo à saúde do paciente. Embora a cura popular tenha realmente falhas e ofereça riscos, oferece, também, vantagens ao paciente, especialmente por tratar de problemas psicossociais. Algumas vantagens da Medicina popular tradicional para a população terceiro mundista que não tem acesso a médicos foram reconhecidas pela OMS. Em 1978, a OMS recomendou a integração das práticas tradicionais de cura à Medicina moderna e enfatizou a necessidade de “garantir respeito, reconhecimento e colaboração entre os praticantes dos diversos sistemas de tratamento e cura.” Os recursos humanos que a OMS pretende incorporar do setor popular incluem: assistentes de parto tradicionais ; praticantes de Ayurvédica, Unãni ou Yoga; curandeiros chineses tradicionais, tais como acupunturistas e muitos outros. 3. O setor profissional Este setor compreende as profissões sindicalizadas e sancionadas legalmente, como a Medicina científica ocidental ou alopatia. Esta inclui não só os médicos de vários tipos e especialidades, mas também as profissões paramédicas reconhecidas, tais como as de enfermeiros e fisioterapeutas. Na maior parte dos países, a Medicina científica é a base do setor profissional, mas os sistemas médicos tradicionais também podem ‘profissionalizar-se’, de certa forma. É importante admitir que a Medicina científica ocidental representa uma proporção pequena da assistência à saúde na maioria dos países do mundo. O potencial médico é um recurso escasso muitas vezes, sendo que grande parte da atenção à saúde ocorre nas alternativas informal e popular. Além disso, a distribuição de médicos não é uniforme; em muitas sociedades não-industrializadas, eles tendem a se concentrar nas cidades, onde as instalações são melhores e a prática mais lucrativa, o que leva grande parte da população do interior a recorrer às alternativas informal e popular de tratamento. Em grande parte dos países, os praticantes da Medicina científica constituem o único grupo de curandeiros cuja atividade é assegurada por lei. Eles gozam de status social mais alto, renda maior, além de direitos e obrigações mais claramente definidos do que os outros tipos de curandeiros. Têm o poder de interrogar e examinar seus pacientes, prescrever tratamentos e medicamentos poderosos e, algumas vezes, perigosos, e privar algumas pessoas de sua liberdade — confinando-as em hospitais — se estas forem diagnosticadas como psicoticos ou infecciosos. No hospital, eles podem controlar rigorosamente a dieta, comportamento, padrões de sono e medicação do paciente, além de introduzir uma variedade de exames — biópsias, radiografias etc.. Podem ainda rotular seus pacientes (em alguns casos, permanentemente) como doentes, incuraveis, simuladores, hipocondríacos ou plenamente recuperados — um rótulo que pode entrar em conflito com a perspectiva do paciente. Estes rótulos podem produzir efeitos importantes, tanto sociais (por confirmar o paciente no papel de doente) quanto econômicos (por influenciar os pagamentos de seguros de saúde e pensões).

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29 Aula 10 – Aspectos Filosóficos do Cuidado

Saúde e bem-estar Humberto Maturana

Em primeiro lugar, sobre os seres vivos, eu diria que são seres saudáveis. Na verdade os seres vivos nunca adoecem. É claro que podemos dizer que um ser vivo está doente, que vai morrer, que tem uma infeção, que se produziu uma fratura, ou que tem até um tumor, porém eles não adoecem. A doença pertence ao desejo de que viver seja diferente de como é, em um determinado momento. O ser vivo em seu fluir no viver, vive o que vive, o que lhe toca viver, independendo da opinião que um ser humano possa ter a respeito deste viver. Desta maneira o tema da saúde e da doença é um tema humano, não é um tema da vida. A saúde e a preocupação com a saúde têm a ver com o desejo do bem-estar do outro ou de si mesmo, sob certas circunstâncias. Neste sentido, falando dos seres vivos, os seres vivos como seres vivos não têm desejo de futuro, mas os seres humanos sim. Nós seres humanos temos certos objetivos de convivência, nós seres humanos configuramos um espaço de convivência específico que são as comunidades humanas. O específico dos conjuntos humanos é que, enquanto constituídos por seres humanos, são constituídos por seres que, num determinado momento, param e perguntam: “O que estou fazendo aqui?”. Uma célula hepática não faz isso, nem uma célula nervosa. As comunidades humanas são uma classe completamente distinta das comunidades de outros seres vivos que não existem, como nós, na linguagem. No momento em que aparece a pergunta: “O que estou fazendo aqui?” aparecem duas dimensões fundamentais do viver humano, que são a responsabilidade e a liberdade, dimensões que os seres vivos em geral não vivem. Então o problema da saúde, o problema do bem-estar, é um problema humano. Não é um problema biológico, não é um problema da vida, é um problema humano. Tem a ver com os desejos, com as preocupações humanas. É claro que os desejos humanos são desejos de seres vivos e por tanto seu tratamento entrecruza-se com o fato de assumir que somos seres vivos, porém é fundamentalmente um tema humano. E é por isso que a saúde requer considerações científicas, mas não só isso. Não é um problema que se possa resolver com um estudo que diga que se alguém faz a tal coisa então..., ou que se acontece tal outra coisa então..., porque dependerá de eu querer ou não fazer aquela coisa, de eu querer ou não este resultado. Se não, bastaria ter um revolver para ser um assassino! Tem que querer usar este revolver com a intenção de matar, porque se a intenção não está definida como um propósito ou uma orientação para uma conseqüência, não há ação humana. Então a saúde como tema humano tem a ver com a intenção de convivência na qual se quer estar e as convivências pertencem a classes distintas em função das emoções. Freqüentemente falamos de razões para a nossa conduta, que razões temos, nos perguntamos, que razões você tem para fazer tal coisa, e muitas vezes a resposta que damos, mesmo que a demos em termos racionais, não tem fundamento na razão, mas sim na emoção. Deveríamos perguntar: “que motivos temos para nos preocupar com a saúde da comunidade à qual pertencemos?” E não: “que razões temos?”. É uma coisa completamente diferente. A justificação ou a argumentação que apresentamos para validar ou propor as respostas é de uma classe diferente. A preocupação com a saúde é um motivo, seus fundamentos estão na emoção, pertencem à emoção. As ações que vou fazer envolvem conhecimentos científicos, envolvem conhecimentos técnicos, porém o fundamento de minha ação não é racional, é emocional. Eu penso que isto seja fundamental. [...] Porém há ainda mais alguma coisa interessante a respeito dos seres humanos. Os seres humanos somos seres multidimensionais, quer dizer, nos movemos em dimensões que poderíamos chamar da

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30 materialidade, da concretude, do viver biológico e em dimensões que têm a ver com a relação, tem a ver com as emoções, onde aparecem sentimentos, espiritualidade, propósitos, sentido para a vida, o ser partícipe na construção das conseqüências do próprio viver. E às vezes me pergunto o que significa o grande sucesso que estão tendo nestes tempos as chamadas medicinas alternativas, este fundo de desconfiança para com a medicina tradicional. A medicina tradicional tem alcançado grandes sucessos, mas apesar disso há uma desconfiança de fundo. Basta ler qualquer revista para perceber que há uma preocupação com coisas que a medicina tradicional pareceu deixar de lado. Isso tem a ver com que? Por que a leitura da mão tem efeito sobre a saúde? Como é que a aplicação de agulhas na acupuntura ou de pressões na digitopuntura tem efeitos sobre a saúde? Como é que a psicoterapia tem efeito sobre a saúde fisiológica? Parece muito fácil, basta falar de efeitos psicossomáticos, mas o que está acontecendo, de fato? O que é que nossa medicina está perdendo e vai continuar perdendo, inclusive no espaço público, a menos que percebamos o problema? O que é que a medicina chamada holística promete ou propõe, implicitamente ou até declaradamente, recuperar? Acredito que tenha a ver com esta múltipla dimensionalidade do ser humano: este tem mais dimensões das que costumamos descrever. Dimensões que negamos quando dizemos que algo está somente na mente, que são todas configurações mentais. “É apenas uma idéia sua!”. ”Ma eu sinto dor!”. “Não, é apenas uma idéia!”. “Muito obrigado, mas dói. É uma idéia muito potente!”. Tudo isso tem a ver com a comunidade humana, esta comunidade na qual surgimos como pessoas, na nossa legitimidade, na convivência. [...] As comunidades são sistemas, são entes interconectados. Imaginemos uma rede com uma malha definida. Se colocarmos um peso em um ponto específico, o que se deforma na rede? Tudo, absolutamente tudo. Em algum ponto é mais evidente, mas se medirmos o que acontece com as distâncias, com as formas dos buracos na rede, estão todos deformados. Isso acontece com os sistemas, sempre que se dá uma ação local numa comunidade, há conseqüências espalhadas por toda parte e o organismo é um sistema da mesma natureza. Eu levanto uma perna e pareceria que apenas alguns músculos tivessem a ver com a flexão da perna em relação à cadeira, aqueles que se contraem. Porém não é verdade, eles estão contraindo toda a musculatura da outra perna, enquanto estão relaxados os músculos dos ombros, do pescoço. Quando movimento um músculo, uma mão, todo o corpo está envolvido, e isso acontece também internamente. A atividade do sistema nervoso modula a atividade do sistema endócrino, a atividade do sistema endócrino modula a atividade do sistema nervoso, este modula a atividade do sistema imunitário, as prostaglandinas, toda a bioquímica. Se tivéssemos um aparelho para observar o perfil bioquímico de uma pessoa a cada momento, veríamos que vai mudando conforme sua atividade e segundo seu emocional. O mesmo acontece com uma comunidade humana, exatamente igual. Não conseguimos tratar com os sistemas porque pensamos exclusivamente em relações locais, ou pelo menos assim temos ido pensando. Então o que está em jogo é um propósito, uma intenção que surge de uma preocupação para com o bem-estar humano em uma comunidade humana, que tem um caráter sistêmico, em circunstâncias em que os componentes são também elementos sistêmicos, multidimensionais, envolvidos em interações muito além daquelas que simplesmente vemos. [...] Esta multidimensionalidade humana não a levamos em conta, quando surgem distorções que negam o bem-estar, e uma das formas de negar o bem-estar é negar à pessoa sua participação com sua atividade, de forma que o que ela faz tenha conseqüências no seu viver. Este aspecto, de ser responsável por seu próprio viver, é fundamental. Demos voltas e nos encontramos no final com o que disse no começo, que o tema da saúde é um tema relativo ao bem-estar e o tema do bem-estar e da saúde são temas humanos, porque nos

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31 preocupamos com o bem-estar do outro. Se não há preocupação com o bem-estar do outro, não pode haver preocupação com a saúde, e pode haver preocupação com o bem-estar do outro exclusivamente como uma preocupação ética, em um determinado âmbito social.

Aula 11 – O Significado Religioso do Sofrimento Pedro Cáceres

As incorporações do Diabo Para a pesquisa de campo, no que tange às entrevistas quantitativas, foram produzidos basicamente dois questionais, como falamos na introdução. Eles possuem o mesmo teor, invertendo apenas a pergunta. Vamos Trabalhar com o questionário que é constituído da seguinte pergunta: Quais são os comportamentos (atitudes/ações) que te mostram que uma pessoa está sofrendo influência do Diabo? (mínimo: 05 respostas). As respostas foram diversas, porém algumas se mostraram mais freqüentes. Abaixo iremos desenvolver análises das três primeiras palavras-chave, as que se destacaram ou apareceram na maioria das evocações. Nas doenças físicas e mentais O desafio de compreender o fenômeno da concepção da doença como um mau fruto da ação do Diabo, no universo neopentecostal, se coloca no seio da compreensão do próprio cristianismo e de sua trajetória de busca de oferecer uma resposta satisfatória para a questão do mal. (Lemos, 2003, p. 251). As diversas formas de doenças físicas e/ou consideradas de fundo emocional, conhecidas ou não, são associadas pelos fiéis da IURD a ações demoníacas. Esta representação adquire apoio na teologia dessa Igreja, que inumera dez sinais de possessão do mal. São eles: 1-Nervosismo 2-Dores de cabeça constantes 3-Insônia 4-Medo

5-Desmaios ou ataques 6-Desejo de suicídio 7-Doenças que os médicos não descobrem as causas

8-Visões de vultos ou audições de vozes 9-Vícios 10-Depressão

Edir Macedo (2005) afirma que não são todos os casos que apresentam esses sintomas, ligados diretamente às ações diabólicas. Porém, a grande maioria das pessoas que procuram a Universal, como esses sinais, “manifestam um espírito demoníaco após a oração de fé” (Idem, p. 60). Segundo o comentário informal do Dr. Apparício J. F. Neto, Neurocirurgião, 86% dos casos de epilepsia são provocados por perturbações emocionais Apenas 14% são de origem física. O quadro de doenças mentais é ainda mais alarmante. Praticamente inexiste um atendimento ambulatorial qualificado para aquilo que o senso comum denomina “doenças nervosas”. Persiste uma gama de neuroses e psicopatias adicionadas às sociopatias, na proporção em que se ampliam os segmentos da população submetidos ao estado de miséria absoluta, num ambiente de violência, inclusive institucional. (Bittencourt, 1994, p. 25). Para Macedo, cada demônio possui uma função ou ação maligna própria. Segundo ele, tais ações são inversamente semelhantes às funções dos santos da Igreja Católica, pois ali, cada um possui seus atributos ligados diretamente a seus nomes (Macedo, 2005, 47). Demônios, como os santos católicos possuem atributos mágicos capazes de alterar, para pior (no caso dos demônios), a vida da pessoa. É proporcionalmente inverso à falta de estrutura física na área da saúde pública no Brasil, entre outras necessidades, com o crescimento de templos religiosos que propõem realizar curas. Os dados indicam que nos países pobres ou em desenvolvimento a Universal, juntamente com outras igrejas da linha pentecostal, têm alcançado maior penetração. O número de fiéis dessa denominação tem crescido no mundo inteiro, mas o crescimento na América Latina é maior. (Oro, Corten Dozon,

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32 2003). Ricardo Mariano (1999), entre outros pesquisadores, afirma que as igrejas que surgiram do movimento neopentecostal funcionam como Pronto-socorros espirituais e como tais são procuradas. Baseiam-se em promessas e rituais para a cura física e emocional, prosperidade material, libertação de demônios, resolução de problemas afetivos, familiares, de crise individual e de relacionamento interpessoal. (Idem, p. 9). As incorporações do Diabo nas doenças não são vistas como negatividade total. Pelo contrário, incorporar o Diabo nas doenças é atribuir explicações e possíveis soluções para as mesmas. No imaginário dos fiéis, quando uma doença complexa como o câncer ou simples, como uma dor de cabeça, invade seus corpos e almas, ou de algum membro da família, deve-se contar com o auxilio divino. Como afirmamos acima, os fiéis da IURD, apesar da maioria fazer parte de uma parcela distanciada dos projetos de modernidade, há em grande parte deles a consciência de que o tratamento espiritual deve ser paralelo ao tratamento médico. Não existe em suas representações um afastamento do mundo. Pelo contrário, eles anseiam desfrutar de tudo que o mundo moderno oferece, inclusive de um bom plano de saúde. A busca da cura no âmbito religioso não deixa de expressar algum grau de protesto simbólico dessas pessoas contra a situação da saúde pública que vigora no país. Ou seja, ao invés de enfrentarem longas e demoradas filas diante de postos de saúde ou hospitais, ou de desembolsarem altas somas para obter atendimento médico particular, os membros das classes média-baixa e baixa da sociedade recorrem aos templos ou a outros espaços sagrados ou, sem saírem de casa, assistem a programas religiosos em que pregadores abençoam água, vestimentas, pão, óleo, etc, infundindo-lhes poder de cura. (Oro, 1996, p. 60). O estado de doença é representado no imaginário dos fiéis da Universal como vitória parcial do Diabo. Quando a doença avança progressivamente pelo corpo da pessoa, isto é um forte indício de que o mal está prestes a vencer totalmente. Conseqüentemente, o Diabo pode provocar a morte. Esse ponto é bastante controverso, pois os fiéis argumentam que a vida e a morte pertencem a Deus, mas sustentam que o Diabo possui forças para provocar doenças e ceifar a vida. Monta-se um cenário maniqueísta entre as forças do bem (Deus) e as temíveis forças do mal (Diabo). No centro da batalha estão os filhos vitoriosos do primeiro ou as vítimas do segundo. Independentemente de Deus ou do Diabo, o fiel é livre para ser um vitorioso ou um derrotado. Basta escolher e determinar. “O consolo que a Igreja traz ao reunir mulheres e homens que, juntos, expressam seu sofrimento é magnificamente resumido na fórmula Pare de sofrer” (Oro, Corten Dozon, 2003, p. 15). Segundo Weber (1999, p. 289):

O que sempre importou e ainda importa é quem mais interfere nos interesses do indivíduo na vida cotidiana, se o deus teoricamente “supremo” ou os espíritos e demônios “inferiores”. Se são os últimos, então a religiosidade cotidiana está determinada sobretudo pela relação com estes, independentemente de como se apresente o conceito do deus da religião racionalizada.

As representações do Diabo no imaginário dos fiéis da Universal participam efetivamente de suas representações das doenças. Portanto, as representações das doenças estão ligadas diretamente com as representações do Diabo. As enfermidades são ações diretas dos demônios sobre o corpo e a mente dos freqüentadores da IURD. Logo, estes seres malignos possuem forte determinação sobre a vida cotidiana dos fiéis. Os demônios são incorporados nas doenças que podem se manifestar a qualquer momento, cabendo ao fiel lutar contra a chegada ou permanência das mesmas. “Deus tem prometido, abundantemente, na Sua Palavra, curar os Seus filhos” (Macedo, 2003, p. 46). Portanto, prosperar significa também, ter o corpo e a mente saudáveis, porém essas condições dependem de fatores ligados diretamente com a posse de bens materiais. A ausência de poder econômico é sinal de derrota e fracasso. Para explorar esse assunto, trataremos abaixo das questões relacionadas às incorporações do Diabo nos problemas financeiros.

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33 O Diabo existe – “estou salvo”

O universo do fiel da IURD é carregado de significados mágicos. Sua vida cotidiana reflete, em certo nível, representações do Diabo. Logo, a existência deste último consiste em uma garantia de salvação no aqui e agora. Parece bastante paradoxal pensar no Diabo como “bem de salvação”. Um posicionamento um tanto grotesco e de mau gosto, para muitos, porém eficiente. Esse problema se intensifica na medida em que representa um antagonismo transcendental que se derrama na vida do fiel. De um lado, temos um ser demoníaco que tudo destrói, que tudo prejudica. De outro, um “Ser Supremo de Luz” que tudo restabelece, que tudo salva. No centro dessa ‘guerra de titãs’ temos o indivíduo humano que busca desesperadamente por um sentido para a vida.

A análise dominante, em nossa cultura, vê a realidade como uma

luta entre o bem e o mal. Existe um Deus responsável por tudo o que há de bom no mundo e um Diabo responsável por todos os males. Essa visão é conseqüência do dualismo, ideologia nefasta em nossa civilização. (Luís Schiavo e Valmor Silva, 2000, p. 51).

O fiel da IURD está inserido nessa ideologia, consome esse remédio que às vezes é doce,

outras, amargo. Para ele, acreditar na existência do Diabo, ter a certeza de que tal criatura provoca o mal, em todas as instâncias, é acalentador. Imaginá-lo no cotidiano é, para aquele que crê, uma forma rica de compreensão do mundo, um modo de representar as relações conflitantes, as ameaças constantes, os medos que fazem os ossos trincarem, a angústia e a incerteza que esmaga o coração. Acreditar na figura do Diabo é re-estabelecer o centralismo do mundo, é enchê-lo de sentido, é encontrar respostas para perguntas complexas e, na maioria das vezes, incompreendidas. Diz Durkheim (2000, p. 466):

Somente o homem possui a faculdade de conceber o ideal e

ampliar o real. De onde lhe vem, pois, esse singular privilégio? Antes de fazer disso um fato primeiro, uma virtude misteriosa que escapa à ciência, convêm estar seguro de que ele não depende de condições empiricamente determináveis.

A explicação que propusemos da religião tem precisamente a vantagem de dar uma resposta a essa questão, pois o que define o sagrado é que ele é acrescentado ao real.

Nesse sentido, as ações atribuídas ao Diabo são sagradas, pois além de serem acrescentadas

ao real, elas cumprem um importante papel na vida cotidiana dos fiéis da Universal. Tendo fé na existência do Diabo, o fiel da Universal transforma o mundo profano, sem sentido, em um mundo ideal. Segue Durkheim (2000, p. 493):

O fiel que comungou com o seu deus não é apenas homem que vê verdades novas que o incrédulo ignora: é homem que pode mais. Ele sente em si força maior para suportar as dificuldades da existência e para vencê-las.

O fiel da IURD concebe o ideal e dessa forma amplia sua realidade. Atribui significado onde não há sentido. Compreende a realidade por meio de uma lupa carregada de encantamento. Pode, dessa forma, encarar o cotidiano com maior disposição e coragem. Nesse sentido, a racionalidade científica não dá conta de responder a todas as perguntas. Existe um grande vazio epistemológico que é preenchido pela religião. “O comportamento religioso dos homens contribui para manter a santidade do mundo” (ELIADE, 1982, p. 111). Sua função é atribuir sentido onde, por vários motivos, a sociedade não obteve sucesso. Portanto, conhecer o Diabo e, ter fé na sua existência é olhar para a vida com sentido, com um porquê, um para quê e um para onde.

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34 Aula 12 - Para a morte ser vista com naturalidade

Clayton Levy

Otto Lara Resende disse, certa vez, que a morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável. De fato, ninguém consegue ludibriá-la. Morrer é inegociável. Trata-se de um evento tão natural quanto nascer, crescer ou ter filhos. Entretanto, a maneira como esse fato inevitável é encarado varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. Em geral, a idéia da finitude aterroriza o ser humano. Não é por acaso, portanto, que nos últimos anos inúmeros trabalhos científicos vêm sendo publicados na tentativa de desmitificar a morte. Entre os autores que atuam no Brasil, um dos destaques é o psicanalista Roosevelt Cassorla, professor titular colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Considerado um dos maiores especialistas em tanatologia do país, ele diz que na Unicamp têm sido efetuadas pesquisas sobre o tema e também sobre suicídio. Parte delas está reunida nos livro “Da morte: estudos brasileiros” e “Do suicídio: estudos brasileiros”, ambos assinados por Cassorla e publicados pela Editora Papirus. Segundo ele, falar sobre a morte talvez seja um bom começo para que o tema seja tratado com mais naturalidade. É isso que o Jornal da Unicamp pretendeu ao ouvir Cassorla, na entrevista que segue. Jornal da Unicamp — Por que a morte ainda é um tabu para a maior parte das pessoas? Roosevelt Cassorla – A morte se constitui no fato mais assustador da vida, certamente o maior deles frente ao qual não temos controle, previsão e qualquer compreensão. Mesmo as compreensões religiosas não são necessariamente suficientes para nossa mente inconsciente. Frente ao pavor da morte, seja lá o que ela for, nossa mente usa mecanismos inconscientes, sendo o que se chama cisão e projeção desse pavor o mais importante. Graças a ele, a morte, ou melhor, o pavor da morte, é projetado (colocado fora da mente) e identificado com perseguidores externos. Dessa forma, podemos “proteger-nos” dela evitando ou atacando esses supostos perseguidores. Em termos sociais e culturais, a morte pode ser produto dos deuses ou demônios, fruto de transgressões que efetuamos (como o pecado original), resultado da inveja de outros, de feitiços, quebras de tabus, de inimigos, etc. Enfim, temos que encontrar alguma explicação. Não suportamos o “não saber”. À medida que a ciência destrona as crenças e a religião, o indivíduo tem que se defrontar com esse pavor, com esse não saber, e poderemos identificar dois mecanismos. Primeiro, a negação: trata-se de um mecanismo psicológico em que não percebemos a realidade. É como se ficássemos cegos a ela. A negação da morte faz parte de nossa cultura atual. Por isso nos afastamos dela, ou quando nos defrontamos com ela, nossa mente faz o possível para que nada sintamos e nos esqueçamos logo do assunto. Curiosamente, o fato de sermos bombardeados constantemente por notícias de morte, numa sociedade violenta, faz com que também nos anestesiemos para evitar contato com a realidade, e a projetamos nos outros. Isto é, os outros morrem, eu não. O segundo mecanismo é a medicalização: a explicação da morte passa a ser a doença. Todos morremos hoje, por doenças. Espera-se que o sistema médico e de saúde dê conta disso. A impossibilidade ou dificuldade de aceitar a morte faz com que o sistema de saúde seja constantemente acusado por mortes, mesmo que inevitáveis. Procuram-se tratamentos para rejuvenescer. Por outro lado, quando ocorre a morte, evita-se ao máximo o contato com o morto e os sentimentos envolvidos. Os rituais, necessários para a elaboração de um luto, são abandonados ou feitos em forma mecânica. Aos poucos, cria-se uma “industrialização” da morte, em que empresas maquiam o morto, preparam cerimônias artificiais e todos retomam sua vida rapidamente, como se nada tivesse ocorrido. Diz-se que, atualmente, a morte substituiu a sexualidade, como algo sujo, que deve ser evitado. Enfim, foge-se da morte, na medida em que ela nos assusta e não temos meios psicossociais para lidar com ela do ponto de vista emocional. Certamente a atual cultura da não-reflexão e do prazer imediato, do não suportar a frustração, contribui para tudo isso.

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35 JU — A sociedade moderna ainda prefere ignorar a morte do que falar abertamente sobre o tema. Esse comportamento traz alguma conseqüência do ponto de vista social e psicológico? Roosevelt Cassorla – O não-poder lidar com a morte dificulta o trabalho de luto. Chamamos trabalho de luto ao esforço que nossa mente deve fazer, inconscientemente, para aprender a viver com a realidade, com as perdas, todas elas, inclusive a morte. Esse processo é bastante conhecido pelos psicanalistas e implica num isolamento, ruminações sobre o morto, lembranças, culpas, remorsos, tristeza, depressão e após algumas semanas é como se a imagem do morto tivesse sido “encaixada” no mundo interno. Dizemos que o luto foi “elaborado”, isto é, que o indivíduo pôde colocar todas as lembranças, fantasias, culpas, expectativas, em relação à perda, na sua rede simbólica, enriquecendo sua possibilidade de pensar, e podendo retomar a vida. Sem esquecer-se do morto, e enriquecido pelas lembranças boas, e sem que o morto o incomode dentro de sua mente. Para que o trabalho de luto se processe adequadamente, o indivíduo deve ter a oportunidade de falar sobre sua perda, de receber acolhimento familiar e social, de poder entristecer-se, desesperar-se, culpar-se, etc., a sociedade aceitando isso como algo natural. Rituais religiosos e culturais facilitam isso. Se a sociedade não fornece esse espaço, exigindo que o indivíduo não sinta, ou que vê esses sentimentos como vergonhosos, o processo de luto é dificultado. Os resultados serão processos melancólicos, somatizações, dificuldades em retomar a vida, risco suicida, desistência da vida, sentimentos de culpa etc. Isso pode perseguir o indivíduo por toda a vida, e pode espalhar-se por gerações, através de identificações patológicas. Possivelmente grande parte do sofrimento mental atual decorre de bloqueios no trabalho de luto, por fatores sociais, e aqui temos não somente o luto por morte, mas por outras perdas, como oportunidades, trabalho, afeto, respeito, etc. JU — A diversidade cultural resultou numa variedade enorme de significados para a morte. Para alguns é algo terrível, enquanto para outros é algo natural. De que maneira essa mistura de significados contribui para a aversão que o homem contemporâneo tem em relação à morte? Roosevelt Cassorla – A morte antes fazia parte do dia-a-dia. Ela atingia jovens e crianças, e muitas pessoas doentes tinham menos chances de sobreviver. As pessoas morriam em casa, cercadas por seus familiares e conhecidos. Crianças vivenciavam o processo de morte dos adultos e velhos e a convivência com essa realidade se tornava mais fácil. Rituais culturais e religiosos eram efetuados pela comunidade, antes e após a morte. Enfim, a morte fazia parte da vida. Com os avanços do saneamento, da medicina, etc, pessoas passam a viver mais tempo. Mudanças culturais, como as assinaladas nas respostas acima, fazem com que se negue a morte. Isso é facilitado pela medicalização: a pessoa morre no hospital, sozinha, comumente no meio de aparelhos, sedada. Não pode despedir-se dos seus, resolver suas pendências emocionais e práticas, não pode escolher sequer como quer morrer. Não pode fazer o luto por sua própria vida, o que permitiria uma morte mais tranqüila. Os estudos atuais pregam o direito a uma morte digna, a escolha – se a pessoa tiver condições para tal – do tipo e local de morte, o envolvimento afetivo com familiares, etc. Enfim, a desmedicalização da morte, que passa a ser um direito reconquistado. A humanização da Medicina caminha nessa direção. JU — Falar sobre a morte com um paciente terminal ajuda ou atrapalha? Por quê? Roosevelt Cassorla – O paciente terminal deve ser compreendido e, para isso, o profissional de saúde tem que saber identificar seus sentimentos e emoções, principalmente aquelas não visíveis. O profissional deve identificar quais são as ansiedades e medos que subjazem ao sofrimento ou ao eventual silêncio. O paciente precisa saber que pode contar com uma presença humana, próxima. Isso é básico nos momentos de crise e de passagem. O falar ou não sobre a morte dependerá da necessidade e desejo do paciente. O profissional de saúde sensível, assim como o familiar, o amigo, ou o religioso, devem dar espaço para que o paciente comunique sobre o que quer falar, como se deve falar e o quanto se deve falar. Para tudo isso é necessário um vínculo emocional forte, de confiança. Os profissionais têm que ser treinados a aprender a escutar, não somente palavras, mas

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36 mensagens emocionais. JU – Em sua opinião, os profissionais da saúde estão preparados para enfrentar a morte de um paciente da mesma maneira que estão treinados para salvar sua vida? Roosevelt Cassorla – Em geral são despreparados para lidar com aspectos emocionais de forma geral. Mais despreparados ainda frente à morte. Alguns profissionais particularmente intuitivos se saem bem. Há necessidade de preparo e é isso que fazemos nos cursos do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria e em outros cursos e grupos de reflexão sobre Aspectos Emocionais na Prática Médica. De minha experiência, o maior problema do profissional é sua dificuldade em entrar em contato com suas próprias emoções.

Aula 13 - A Concepção de Morte em Arthur Schopenhauer

Se houvesse um homem que não pudesse morrer, e se fosse verdadeira as lendas do judeu errante, titubeariam em o declarar o mais infeliz? Assim se poderia explicar o vazio da tumba; significaria que o mais infeliz é aquele que não pode morrer, nem se refugiar num túmulo.

KIERKEGAARD O grande desengano O laço formado com inconstância pela criação é desfeito pela morte, sendo a penosa aniquilação o principal erro do nosso ser; o grande desengano. A filosofia, filha da morte Morte, gênio inspirador, a musa da filosofia. Sem a qual dificilmente se teria filosofado. A noite eterna Quão longa é a noite da eternidade comparada com o curto sonho da vida. Não sobreviver, persistir A indestrutibilidade que a duração infinita da matéria oferece, poderia consolar aquele que não pode conceber outra imortalidade. "O quê? - dir-se-á, - a persistência de uma matéria bruta, de um pouco de pó, seria a continuidade do nosso ser?" Sim, um pouco de pó. Conhecem o que é esse pó? Aprendam a conhecê-lo antes de o desprezar. Essa matéria, pó e cinza, dentro em pouco dissolvida na água, brilhará no esplendor dos metais, projetará faíscas elétricas, manifestará o seu poder magnético, converter-se-á em animal e em planta, e no mistério de sua essência criará essa vida, cuja perda chora amargamente nosso espírito acanhado. Não será nada, então, persistir na indestrutível matéria? Dogma da imortalidade A natureza nos ensina a doutrina da imortalidade, quando se observa, no Outono, o pequeno mundo dos insetos, e se nota que um prepara o leito para o longo sono do Inverno, que outro prepara o casulo onde se transforma em crisálida, para renascer na Primavera, e que, enfim, esses insetos se contentam, quando próximos da morte, em colocar os ovos em lugar favorável para renascerem um dia rejuvenescidos, num novo ser? A natureza nos expõe a esses exemplos com o intuito de demonstrar que não há diferença fundamental entre a morte e o sono; ambos, perigo algum constituem à existência. O cuidado com que o inseto prepara a célula, o buraco, o ninho e o alimento para a larva, que há de nascer na Primavera, e morre, uma vez isso feito, - assemelha-se muito ao cuidado com que o

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37 homem, à noite, arruma a roupa, prepara o almoço para o dia seguinte, indo depois dormir com sossego. E isto não sucederia se o inseto que morre no Outono não fosse exatamente igual ao que deve nascer na Primavera, assim como o homem que se deita, é o mesmo que se levanta no dia seguinte. Supremo consolo Contemplando a expressão de suave serenidade refletido no rosto da maioria dos mortos, parece que o fim de toda a atividade da vida, seja um consolo para a força que a mantém. Indiferença da natureza perante a morte A vida e a morte, o nascer e o morrer, são o maior jogo de dados que conhecemos; ansiosos, interessados, agitados assistimos a cada partida, porque a nossos olhos tudo se resume nisso. A natureza, pelo contrário, que é sempre sincera e nunca mente, contempla a partida com ar indiferente, não se preocupa com a morte ou a vida do indivíduo, entregando a vida do animal e também a do homem a todos os acasos, não fazendo o mínimo esforço para os salvar. Esmagamos sem querer o inseto que se acha em nosso caminho; a lesma necessita de todo meio para se defender, não pode fugir, esconder-se, nem enganar, está condenada a ser presa de todos os seus inimigos; o peixe saltita tranqüilamente na rede ainda aberta; o sapo devido a sua moleza não pode salvar-se; o pássaro não vê o falcão voar sobre sua cabeça, nem a ovelha vê o lobo que a espreita oculto na mata. Todos esses animais inofensivos e fracos vivem no meio de perigos ignorados, dos quais podem ser vítimas a todo o momento. A natureza exprime com esse procedimento, no seu estilo lacônico, oracular, que lhe é indiferente a destruição de seus seres, não podendo ser por eles prejudicada, e que em casos semelhantes tão indiferente é o efeito como a causa. Por isso abandona sem defesa esses organismos, obras de uma arte eterna, à vontade do mais forte, aos caprichos da sorte, à crueldade da criança, ao mau humor de um imbecil. A natureza, mãe soberana e universal de todo o criado, sabe que quando seus filhos sucumbem, voltam ao seu seio, onde os conserva ocultos, expondo-os a mil perigos sem temor algum; a sua morte é para ela um divertimento, um jogo.

A natureza é indiferente no que se relaciona ao homem ou ao animal; não se deixa impressionar conosco, durante a vida ou na morte. Tampouco devíamos nos comover porque fazemos parte dela. A Folha seca interroga o destino Se dirigíssemos o pensamento para um longínquo futuro e procurássemos representar-nos às futuras gerações com os milhões de homens distintos e diferentes de nós pelos usos e costumes, perguntaríamos a nós mesmos: "De onde vieram? Onde estão agora? Onde se achará o profundo seio do nada, produtor do mundo, que os oculta?" Mas a esta pergunta, devíamos sorrir, por onde se poderá achar senão onde toda a realidade é, e será, no presente em tudo o que este representa e contém, em ti, insensato que interrogas, pois ignorando a tua própria essência, assemelhas-te a uma folha seca que oscila no ramo de uma árvore, e, no Outono, pensando na sua próxima queda, lamenta sua sorte, sem querer consolar-se com a idéia dos tenros brotos que na Primavera virão adornar a árvore. E a folha seca se queixa: "Já não sou eu, serão outras folhas". Oh! Folha insensata onde queres tu ir? De onde poderiam vir as outras folhas? Onde está esse nada em que temes sucumbir? Reconhece, pois, o teu próprio ser oculto na força íntima, sempre ativa da árvore, nessa energia que não acarreta a morte nem o nascimento de todas as suas gerações de folhas. Não sucede com as gerações de homens o mesmo que com as folhas de uma árvore? A dor Se quereres a certeza das diferenças entre o prazer e a dor, comparem a impressão do animal que devora outro, com a impressão do devorado.

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38 A vida é dor

Quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre. A vida não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de sermos vencidos. A vida é uma incessante e cruel caçada onde, às vezes como caçadores, outras como caça, disputamos em horrível carnificina os restos da presa. A vida é uma história da dor, que se resume assim: sem motivo queremos sofrer e lutar sempre, morrer logo, e assim consecutivamente durante séculos dos séculos, até que a Terra se desfaça.

Deus, criador Se for certo que um Deus fez este mundo, não queria eu ser esse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu coração. Se imaginássemos um demônio criador, ter-se-ia o direito de lhe censurar, mostrando-lhe a sua obra: "Como te atreves a perturbar o sagrado repouso do nada, para criares este mundo de angústia e de dores?".

Nosso inferno O inferno de nossa vida supera o de Dante no ponto de que cada um de nós é o demônio do seu vizinho. Há também um arquidemônio, a quem os outros obedecem: é o conquistador, que dispõe os homens uns em frente dos outros e lhes grita: "Vosso destino é sofrer e morrer; portanto, matem-se mutuamente". E assim procedem os homens.

O melhor dos mundos Se mostrássemos aos homens as horríveis dores e os atrozes tormentos a que está constantemente exposta sua existência, tremeriam de espanto; e se ao mais convencido otimista fizéssemos visitar os hospitais, os lazaretos, as salas de tortura dos cirurgiões, as prisões, os campos de batalha, os tribunais de justiça, os sombrios refúgios da miséria, e se por último, o fizéssemos contemplar a torre de Ugolino, acabaria por reconhecer de que modo é este "o melhor dos mundos possíveis". Nosso mundo, modelo de horrores Se considerarmos a dificuldade que teve Dante em descobrir o céu e suas alegrias, logo se verá que classe de mundo é o nosso. Por quê? Porque o nosso mundo nada apresenta de análogo. E para descrever o Paraíso viu-se o poeta obrigado a dar parte das notícias que lhe deram os seus antepassados, sua Beatriz e vários santos. Sem dúvida, Dante descobriu muito bem o Inferno. Por quê? Porque achou o assunto e o modelo na realidade do nosso mundo. A tragicomédia de nossa vida Vista e examinada minuciosamente de alto e de longe, a vida de cada homem tem o aspecto de uma comédia; em sua total consideração ou em seus aspectos mais dignos de apreço, se apresentará como uma contemplação trágica. O afã e o trabalho de cada dia, os desejos e receios cotidianos, as desgraças de cada hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas da comédia. As aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os esforços baldados, os erros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na morte, o último ato, eis a tragédia. Parece que o destino quis juntar o escárnio ao desespero, e, fazendo de nossa vida uma tragédia, não nos permite conservar a dignidade de uma personagem trágica. Por isso é que em todos os atos da vida representamos o lamentável papel de cômicos. Da dor ao aborrecimento A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem.

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39 Os homens exprimiram esta oscilação de modo curiosa; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram para o céu? Justamente o aborrecimento. Rio abaixo A vida é um mar cheio de escolhos e turbilhões que o homem evita à força de prudência e cuidados, sem embora desconhecer que, à medida que avança sem poder retardar a marcha, corre para o definitivo e inevitável naufrágio, a morte, fim fatal de sua acidentada navegação, é parte ele muito mais perigoso que todos os turbilhões e escolhos de que conseguiu escapar. Disfarces da dor Nossos esforços para banir a dor de nossa vida não conseguem outro resultado senão o de fazê-la mudar de forma. Em sua origem tomam o aspecto da necessidade, cuidado, para atender as coisas materiais da vida, e quando, após um trabalho incessante e penoso, conseguimos afastar a horrível máscara da dor neste determinado aspecto, adquire outros mil disfarces, segundo a idade e as circunstâncias: o instinto sexual, o amor apaixonado, a inveja, o rancor, os ciúmes, a ambição, a avareza, o temor, a enfermidade, etc. Toma o aspecto triste e desolado do tédio, da sociedade, quando não encontra outro modo de se apresentar. E se com novas armas conseguimos afastá-la novamente, recuperará sua antiga máscara, e a dança recomeça. Condenados à morte Na primeira mocidade, colocamo-nos perante o destino, como as crianças, que, em frente ao pano de um teatro, impacientes e alegres, esperam as maravilhas que virão surgir em cena. É uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Para quem sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes condenados não à morte, mas à vida, e que desconhecem ainda a sua sentença. Todos desterrados Se não fosse a dor, poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de ser. É um absurdo pensar que a dor, que nasce da vida e enche o mundo, seja apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se com uma exceção, mas, como somos todos desgraçados, a desgraça geral é a regra. Vivemos combatendo Na desgraça, pensar em outros que são mais desgraçados, é o nosso maior consolo: é este o remédio eficaz ao alcance de todos. Porém, como os carneiros, que saltam no prado, enquanto o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, assim, em nossas horas felizes, não sabemos que desastre nos prepara o destino, justamente nesse momento: enfermidade, ruína, loucura, perseguições, etc. Tudo que defendemos resiste-nos, tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. A história nos diz que a vida dos povos é uma sucessão de guerras e revoltas; os anos de paz não passam de curtos entreatos. O mesmo acontece com a vida do homem, em constante luta contra as penas ou o aborrecimento, males abstratos, e contra seus semelhantes. Em todas, as partes e ocasiões temos que travar combate com um adversário. A vida é uma guerra sem quartel, e a morte nos encontra com as armas na mão. O tempo, mais um tormento A rapidez do tempo, que se conserva atrás de nós como um vigia dos forçados, é mais um tormento da existência, que nos faz viver apressadamente sem sossego e sem deixar-nos respirar. São poupados somente aqueles que o tempo condenou ao aborrecimento. Necessidade da dor

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40 Todos nós necessitamos sofrer certo número de preocupações, de penas e misérias, da mesma maneira que um barco tem necessidade de lastro para conservar seu equilíbrio. Se assim não fosse, se súbito nos libertássemos do peso da dor e das contrariedades, o orgulho do homem o faria em bocados ou pelo menos ele seria levado às maiores irregularidades e até à loucura furiosa, do mesmo modo que o nosso corpo rebentaria se repentinamente deixasse de sentir a pressão atmosférica. O quinhão de quase todos os homens durante sua vida resume-se em pesares, trabalho e miséria, porém, se todas as aspirações humanas se realizassem, como que se preencheria o tempo? O que preencheria sua vida? Se os homens vivessem no país das fadas, onde nada exigisse esforço e onde as perdizes voassem já assadas e recheadas ao alcance da mão, num país, onde cada um pudesse obter a sua amada sem dificuldade alguma, eles morreriam de tédio ou se enforcariam, outros despedaçar-se-iam entre si, causando-se maiores males que os impostos pela natureza. E isto demonstra que para nós não há melhor cenário que aquele que ocupamos, nem melhor existência do que a atual. Se pensamos (e só é possível ter-se uma idéia aproximada) na dor, nos tormentos de todas as espécies que o sol ilumina no seu curso, sentimo-nos propensos a desejar que a sua luz perca o poder criador da vida, como acontece com a Lua, e que a superfície do nosso planeta se faça tão gelada e estéril como a do astro da noite. A grande mentira da vida Nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade do nada. Mesmo aquele que não considera a existência como uma carga, à medida que passam os anos tem a consciência clara do que a vida é, em todos os seus aspectos, uma imensa mistificação, para não dizer uma formidável zombaria. O espectador se aborrece O homem que sobrevive a duas ou três gerações pode ser comparado ao espectador de um circo, que assiste às mesmas farsas duas ou três vezes seguidas. Como a farsa estava calculada para uma única representação sua repetição não causa efeito no ânimo do espectador, o qual se aborrece por estarem dissipadas a ilusão e a novidade. Uma bela expressão A vida é uma carga enfadonha e aborrecida, uma tarefa que devemos desempenhar com tanto trabalho, que involuntariamente pensamos no descanso: e neste sentido a palavra defunctus é uma bela expressão. Vítimas e algozes Povoado por almas torturadas e por diabos que torturam, o mundo é um imenso inferno. A filosofia não é o catecismo Ainda ouvirei dizer que a minha filosofia entristece tudo, isto porque digo a verdade àqueles que só gostariam que eu lhes dissesse: "Deus, Nosso Senhor fez tudo muito bem". Ide à igreja, e deixai os filósofos em paz, ou, pelo menos, não lhes exijam que ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo. Recorrei aos filosofastros e encomendai-lhes teorias ao vosso gosto. Não há nada que dê mais prazer ou que seja mais fácil do que perturbar o otimismo dos que ensinam filosofia. A dor de viver Se o ato da geração fosse somente obra de razão e reflexão, em vez de ser uma necessidade ou uma voluptuosidade subsistiria a espécie humana? Não sentiríamos piedade pela geração futura, para lhe poupar a dor de viver, ou, ao menos, não hesitaríamos em impor-lhe a sangue frio tão pesada carga?

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41 Inveja e compaixão Não há uma só pessoa que seja verdadeiramente digna de inveja; e quantas são dignas de compaixão.

Aula 14 – O jogo existencial e a ritualização da morte (texto parcial) Bellato Roseney, Carvalho Emília Campos de. The existential game and the ritualization of death. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2005 Feb [cited 2006 Nov 28]; 13(1): 99-104. Roseney BellatoI; Emília Campos de CarvalhoII

Escamotear a morte é o mesmo que se recusar a crer que a trazemos em nós, não como enfermidade ou punição, mas como lei necessária da vida da qual ela assume a riqueza e a renovação.

Nós, humanos, como todos os seres vivos marcados pela temporalidade da vida, lutamos contra a idéia de nossa finitude, sendo que temos buscado o alívio possível para o paradoxo existencial que se apresenta frente ao dualismo vida e morte. Tal paradoxo tem sido marcante na cultura ocidental e agudiza, sobremaneira, essa angústia, tornando mais difícil o seu enfrentamento, visto que colocamos em situação de oposição esses dois momentos de uma mesma realidade: a de sermos seres vivos e que, portanto, iremos morrer um dia. Nossa incapacidade de dar àqueles que morrem a ajuda e afeição de que mais que nunca precisam, quando se despedem dos outros seres humanos, se dá exatamente porque a morte do outro é uma lembrança de nossa própria morte. A visão da pessoa que vivencia seu processo de morte e de morrer abala as fantasias defensivas que as pessoas constroem como uma muralha contra a idéia de sua própria morte(1). Assim, entender tais mecanismos defensivos se torna de grande importância para os profissionais da saúde e da enfermagem, de maneira que possam compreender os sentimentos e atender as necessidades daquele que vivencia o seu processo de morte e de morrer, proporcionando-lhe o conforto que a sensação de pertencimento e a afeição podem oferecer. O medo da morte e o seu enfrentamento pelo ser humano através dos tempos As sociedades primitivas O jogo existencial do ser humano, do qual vida e morte se fazem parceiras inseparáveis, é um problema dos vivos e, apenas e tão somente, dos vivos humanos, pois, embora compartilhem o nascimento, a doença, a juventude, a maturidade, a velhice e a morte com os animais, apenas os seres humanos, dentre todos os seres vivos, sabem que morrerão. Assim, a imagem da morte tem acompanhado o existir humano desde seu alvorecer, abrindo enorme vazio diante da vida, representado por um aterrorizante não-ser inominável. Dentro dessa perspectiva, a ritualização mítica da morte tem tido a função de transcender o sofrimento pela finitude do ser humano, pois, desde tempos imemoriais, o dado primeiro, fundamental e universal da morte humana é a sepultura, mostrando assim que é isso o que nos assegura nossa 'humanidade' em relação aos demais animais. A morte sempre suscitou emoções que se socializaram em práticas fúnebres, e o não-abandono dos mortos implica uma crença na sua sobrevivência, não existindo praticamente qualquer grupo, por muito 'primitivo' que seja, que abandone os seus mortos ou que os abandone sem ritos. Esses ritos trazem a imagem de 'passagem' para um outro estágio, sempre como metáfora de prolongamento da vida, seja ela através de um sono, uma viagem, um nascimento, uma doença, seja através de uma entrada para a morada dos antepassados. Projeta-se, assim, a vida para um tempo indefinido, mas não necessariamente eterno. Com isso o morto ganha status especial, pois reconhece-se que ele já não é um vivo vulgar. Essa mudança de estado do morto, no entanto, não deixa de provocar profundas perturbações no círculo dos vivos, que serão ritualizadas, coletivamente, nas cerimônias fúnebres. Os rituais fúnebres têm também a função de fazer o morto completar a viagem para o seu território definitivo, protegendo,

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42 dessa forma, a comunidade contra o seu retorno(5). No entanto, a morte nas sociedades primitivas não era personalizada, ou seja, dava-se como resultado de uma intervenção maléfica externa, que poderia ser um feitiço ou obra de um ancestral que voltou para buscar um membro da comunidade. A presença obsessiva da morte e do morto na mentalidade de povos primitivos se mostra pela presença dos "espíritos", isto é, dos mortos, em toda a vida quotidiana, regendo a caça, a guerra, as colheitas, as chuvas, etc.(4). Também o horror da decomposição do cadáver suscita rituais para abrandá-lo e, na pré-história, foram criadas algumas práticas que visavam apressar a decomposição (cremação e canibalismo), evitá-la (embalsamento) ou afastá-la do convívio com os vivos (sepultamento, transporte do corpo para um local ritualístico). Se essa presença pútrida do morto sempre foi sentida como contagiosa, muitas das práticas funerárias e pós-funerárias visam proteger os vivos do espectro maléfico ligado ao cadáver que apodrece. Os rituais do luto têm o sentido da purificação, sendo seu período correspondente à duração da decomposição. É preciso lembrar ainda que a impureza trazida pela putrefação afeta também os parentes do morto, sendo eles obrigados a se cobrirem com um sinal distintivo ou esconder-se, durante o período no qual grassa o 'contágio da morte'(4). É preciso lembrar que o 'horror da morte', esse fantasma que sempre acompanhou o ser humano, e que se traduz pela dor do funeral, pelo terror da decomposição do cadáver e pela obsessão da morte, tem por denominador comum a 'perda da individualidade'. Essa dor pela perda será tanto maior quanto mais próximo ou significativo for o morto para a família ou a comunidade. Portanto, não é o fenômeno da putrefação em si que traz o terror, mas a emoção, o sentimento ou a consciência da perda da individualidade, quando o morto não está individualizado, isto é, não reconhecido como ser humano, tal como o inimigo ou o traidor privados de sepultura, existe, diante da podridão, apenas indiferença e simples mal cheiro(4). E a revelação da morte do outro, causada pela presença dos "restos" (o cadáver), faz com que o ser humano apreenda a essência da existência mortal, ou seja, a noção da sua finitude, pois a morte ganha corpo e rosto, ela se encarna na carne do cadáver(3). O 'complexo da perda da individualidade' é um complexo traumático, levando ao 'traumatismo da morte', isto é, "toda distância que separa a consciência da morte da aspiração à imortalidade, toda a contradição que opõe o fato brutal da morte à afirmação da sobrevivência"(4). Daí deriva que a violência do traumatismo provocado por aquilo que nega a individualidade implica em afirmação não menos intensa da individualidade, quer seja a nossa própria morte quer seja a do ente querido ou próximo. A individualidade que se revolta contra a morte é uma individualidade que se afirma sobre a morte, ou seja, que concebe a sua própria imortalidade. Essa 'consciência humana da morte', no entanto, não se baseia no desconhecimento da realidade biológica, mas no seu reconhecimento, assim como não significa cegueira ante a morte, mas a sua lucidez. Essa lucidez não é, porém, tomada de consciência do conhecimento específico, mas sim um conhecimento propriamente individual: uma apropriação da consciência, visto que a consciência da morte não é algo inato, antes um produto de uma consciência que compreende o real(4). Ao mudar de status, passando de pessoa viva para ancestral morto, esse perde sua individualidade, ganhando, porém, sua reidentificação dentro de uma categoria arquetípica. Chega-se, assim, à crença na imortalidade, que seria a dialética resultante da consciência da morte e do traumatismo da morte, que se reforçam mutuamente(6). É preciso salientar que, em todas as sociedades, desde as mais primitivas até a atualidade, o ser humano sempre teve, efetivamente, dois tipos de morte: uma biológica, que representa o fim do organismo humano, e uma morte social, que representa o fim da identidade social do indivíduo. Essa última ocorre em um processo que compreende uma série de cerimônias, incluindo aí o funeral, no qual a sociedade oficializa e ritualiza a despedida de um dos seus e reafirma sua continuidade sem ele(7). É essa compreensão, característica própria do humano e implícita desde a pré-história que, longe de se refletir em aceitação, leva o ser humano a revoltar-se contra sua inelutável finitude, ávido de uma imortalidade que desejaria realizar. Se não buscasse alguma forma de adaptação à morte, o ser humano "morreria de morrer"(4), visto que, a idéia obsedante da morte como fim último e sem qualquer termo de continuação posterior, lhe seria mortal. O paradoxo adaptação/inadaptação à morte é expresso nos rituais funerais e de luto, ou seja, o luto expressa socialmente a inadaptação individual à morte, mas, ao mesmo tempo, é o processo de adaptação social que tende a fazer

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43 cicatrizar a ferida dos indivíduos que sobrevivem(4). Mas, para onde vão os mortos após a morte? Também aí impera o paradoxo humano de querer o morto, agora transformado em espírito, ao mesmo tempo perto e longe dos vivos. Desde as camadas mais antigas das crenças, os mortos habitam o espaço próximo do grupo a que pertenciam. Mesmo nas civilizações que, por temor dos mortos, afastaram um pouco as tumbas das habitações dos vivos, continuam aí localizados, quer seja por meio de uma ossada simbólica (o crânio, por exemplo), quer por meio de um substitutivo figurativo (bonecos de madeira ou, nos casos atuais, fotografias dos ausentes queridos). Com essa forma de agir conciliam-se os contraditórios desejos dos vivos: conservar o morto (para que não se irrite e para que os proteja) e, ao mesmo tempo, evitar sua presença macabra(4). Dentro da perspectiva de um tempo linear, a morte é tida como perda, ruptura, ausência. Porém, a lógica da vida é afirmação de continuação e de plenitude. Há, pois, que se ultrapassar a dialética da cisão vida-morte, buscando vencer o horror da finitude, inventando, para além da racionalidade, correspondências entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Essa correspondência, aparentemente mais eficaz em outros tempos, era vivida coletivamente, não constituindo, portanto, um drama pessoal, mas sendo largamente negociada no seio da sociedade. Assim, a ampla ritualização da morte que essas sociedades empreendiam, consistia numa estratégia global do ser humano contra a Natureza, procurando domar sua selvageria e violência(8). E se o ser humano de antigamente temia a morte, angustiava-se diante dela, no entanto, tal temor e angústia eram tranqüilamente traduzidos em palavras e canalizados para ritos familiares e sociais. Justamente por isso, a morte não passava o limite do indizível, do inexprimível, a ponto de o ser humano dela se afastar, de fugir, de proceder como se ela não existisse, ou de falsificar sua aparência. Vale ressaltar que nessas sociedades primitivas morria-se sempre em público, pois nunca se estava só, fisicamente, no momento da morte. Elas construíam, portanto, sistemas de defesa contra a angústia da morte, embasados em ritos e crenças que buscavam dar ao ser humano ilusão de perenidade e, por não se apoiarem na individualização e sim na participação da pessoa no seio do grupo, não concebiam a morte como ausência ou separação irreparáveis(9). CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscamos aqui traçar, a largos passos, a história do enfrentamento do medo da morte que o ser humano vem empreendendo ao longo dos tempos, tendo por foco a civilização ocidental. Esse enfrentamento tem se transfigurado em escamoteamento, da negação: o velório, feito em ambiente próprio e não mais em casa, se apresenta como um momento pouco compartilhado socialmente, onde as manifestações de tristeza e choro são contidas para não constranger os presentes, os cemitérios mais se parecem com jardins, o período de luto se resume a poucos dias, sendo que logo a vida da família do morto 'volta ao normal'. Mesmo no hospital, territorialidade permitida para a morte, morre-se às escondidas, o morto parte na ponta dos pés. A equipe de saúde procura dissimular a presença da morte impedindo que as pessoas tenham acesso ao quarto daquele que morre, ainda que sejam parentes próximos, procurando fazer rapidamente o preparo do corpo e legalizando o novo status social do morto através da emissão do atestado de óbito. Até mesmo as palavras são denunciadoras dessa ocultação: evita-se dizer que alguém morreu, usando, em seu lugar, a expressão impessoal, e por isso mesmo menos angustiante, "foi a óbito". É necessário compreender, no entanto, que nossa formação como enfermeiros e profissionais integrantes da equipe de saúde tem se dado no sentido de estarmos preparados, essencialmente, para a promoção e preservação da vida e, nesse contexto, entendemos a morte como algo contrário e não como parte intrínseca dela. A obstinação terapêutica leva até as últimas consequências a tentativa de afastar a morte e, nessa tentativa de afastamento indefinido, o doente não morre mais na sua hora, mas naquela da equipe de saúde. Como conseqüência última desse processo, temos a desumanização do atendimento àquele que morre, pois "a técnica matou a morte natural e o morrer dissolveu-se em um contexto sócio-organizacional no qual o funcional substituiu o humano. Por fim, a escamoteação da morte se faz expropriação e destituição, pois é tudo previsto para que o moribundo deixe de estar no centro de seu trespasse"(13).

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44 Resgatar o humano dentro do processo de morte e do morrer, embora essencial à perspectiva do cuidado à pessoa e não apenas ao corpo biológico, não se apresenta como tarefa fácil, visto que nossa humanidade de "profissionais da saúde" e, portanto, da vida, se ressente desse enfrentamento, temendo olhar-se no espelho da própria finitude. Iniciamos, porém, os primeiros passos nessa direção, embora ainda muito nos falte para caminhar. Temos visto numerosos estudos de enfermeiros que buscam questionar, já desde a formação, o posicionamento profissional frente ao ser humano que vivencia seu processo de morte e de morrer, assim como aos seus familiares. Nesse buscar por restituir a humanidade à morte, o espaço doméstico volta a ser pensado como local próprio para a vivência dessa experiência íntima e única na vida de cada ser humano, ainda que acompanhada do cuidado profissional. Tem sido objeto de reflexão também, sob diversos enfoques filosóficos, se o prolongamento biológico da vida de maneira artificial e indefinida é eticamente aceitável. Indagações são feitas, por fim, sobre como podemos enfrentar o nosso próprio medo da morte e, assim, nos colocarmos de maneira mais próxima diante do outro ser humano que enfrenta a experiência única de estar findando sua existência física. Tais questões, de profundo cunho antropológico, envolvem um reposicionamento do ser humano diante da morte e, por serem os aspectos aqui apresentados resultado da construção histórico-sociocultural própria do Ocidente, precisam ser debatidas no seio da sociedade e não apenas na internalidade de um segmento profissional. No entanto, para que nós, profissionais da enfermagem, que lidamos quotidianamente com o processo de morte e do morrer do outro, possamos apreender o que esse processo significa, faz-se necessário caminharmos em direção à nossa própria humanidade e procuramos entender o que ela traz em seu bojo para então, e só então, postarmo-nos humanamente como profissionais que cuidam. Talvez isso nos leve à compreensão de que a morte em si, na maioria das vezes, não é o grande problema para aquele que morre, mas sim o sentimento de desesperança, de desamparo e de isolamento que a acompanha, nascido do medo que as outras pessoas têm de enfrentar a certeza da sua própria morte(14). Nossa atitude diante daquele que enfrenta seu processo de morte e de morrer tem sido, paradoxalmente, a de abandoná-lo à sua angustiante solidão ou a de nos esforçarmos, ao máximo, por prolongar indefinidamente sua situação dúbia de quase-vivo ou de quase-morto, graças ao aparato tecnológico hoje disponível na área da saúde. No entanto, em ambas as posições o aspecto humano do morrer corre o risco de ser ocultado ou remetido para um segundo plano, juntamente com a pessoa que o vivencia. Essa reflexão se torna fundamental para a nossa própria 'condição humana', visto precisarmos assegurar àquele que morre seu justo lugar nesse processo. É necessário lembrar, por fim, que a morte não é um elemento puramente empírico de nossa experiência; a orientação para a morte é essencialmente implicada na experiência de toda a vida e de nossa própria vida(13). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Elias N. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro (RJ): Jorge Zahar; 2001. 2. Baudrillard J. As trocas simbólicas e a morte. São Paulo (SP): Loyola; 1996. 3. Thomas L-V. Antrhopologie de la mort. Paris (FR): Payot; 1975. 4. Morin E. O homem e a morte. Portugal (PT): Biblioteca Universitária; 1978. 5. Zaidhaft S. Morte e formação médica. Rio de Janeiro (RJ): Francisco Alves; 1990. 6. Eliade M. Mito do eterno retorno. São Paulo (SP): Mercuryo; 1992. 7. Helman CG. Saúde, cultura e doença. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1994. 8. Thomas L-V. Mort et vie quotidienne. Cahiers Internationaux de Sociologie 1983 jun; 75:83-96. 9. Ariès P. O homem perante a morte. Portugal (PT): Biblioteca Universitária; 1979. 10. Ariès P. A história da morte no ocidente. Rio de Janeiro (RJ): Francisco Alves; 1977. 11. Foucault M. O nascimento da clínica. 5ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense-Universitária; 1998. 12. Simmel G. La tragedie de la culture et autre essais. Paris (FR): Rivage; 1988. 13. Thomas L-V. Les chairs de la mort. Paris (FR): Sanofi-Sinthélabo; 2000. 14. Kubler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. 8ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2000.

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Reflexões e Debates

Corpos e Almas Agressividade e sexo sempre andaram juntos Disse o poeta Bandeira9: “...os corpos se entendem, mas as almas não...” Corpos são primitivos – lugares comuns Em que os instintos tateiam limites Sendo observado – do alto da inocência infantil – um casal copulando Parece digladiar em movimentos agressivos e hostis Despidos de almas resta – aos seres humanos – apenas a carne Digerida no lixo das desilusões

Expostos em mesas frias de aço – os corpos são experienciados à meia-luz Em exames lineares – anseiam por prazeres Almas não se entendem, corpos sim Almas merecem debruçares complexos... R e l a ç ã o Vidas inteiras de cuidado e atenção Merecem muito... ...do pouco de nós mesmos 9 Diálogo com o poeta Manuel Bandeira – Poema: Arte de Amar.

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Inutilidades Sou uma vaca Estou, agora mesmo, ruminando versos Por meio de refluxos de percepções Mas diferentemente das vaquinhas – (re)mastigo Capins de provocativas palavras Na pretensão de escrever algo Que valha a pena ser lido Porém, minhas amigas quadrúpedes não ruminam leite A elas foi dada uma única chance A mim... a chance de se calar Ou de ser uma vaca vendedora De poesias inúteis (como todas são) No meio de tanta COISA útil

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Um Ser Para a Morte Em espaços de tempos Seguindo as curvas do vento Põe-se a caminhar Aquele receptáculo cansado Decomposto... Surrado... Despido de toda dignidade Do respeito Do auto-respeito Não é mais homem É – apenas – mera sombra Do que um dia foi

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Dores d’Alma Florbela10 escrevia com sangue que jorrava De suas veias abertas Como rios que fogem para a escuridão do mar Queria se esconder das lacerantes11 Dores do Mundo Como escapar dos golpes Do corte de navalha Ao abrir as carnes que – salgadas – secam ao Sol? A poetisa se desfigurava em letras pulsantes As Lágrimas glaciais provindas d’alma Esgotavam – gota a gota – seu desejo de viver A libido12 – em dança de cadeiras – se deixou vencer por Mortido13 Que nos abraços de Tânatos14 Em suspiros... Se entregou Brasília, 03.06.2006 10 Grande poetisa portuguesa. 11 Que dilacera – cruel – torturante. 12 Desejo – desejo de vida 13 Desejo de morte 14 Deus da morte (mitologia grega) – personificação da morte.

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Desterrados No âmago do mundo Cercadas de jardins Sedentas de Sofia15 Debruçam as meninas a conversar Diálogo envolvente Busca em cada gente Desterrar das cavernas escuras A Luz da (com)ciência Astuta serpente – seus doces verbos Deram à Eva a fagulha incendiária Que, em largas chamas, reduziu Em conhecimento o pomar de Deus Expulsos do paraíso Cobertos de folhas de buriti Entre dores e sofrimentos Caminham pela eternidade A procura de perdão A singela conversa de meninas – Sussurrada ao pé do ouvido – Deu à humanidade aflita Um pouco mais de emoção 15 Referente à sabedoria.

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Eros Hoje não quero falar de coisas tristes

Devo falar de amor

Não quero provocar lágrimas e angústias

A acidez dos lábios deve se calar

Há dores em demasia no Mundo

Falemos – então – de amor

Basta de sofrimento, de solidão

Não aos descaminhos, às incertezas

Há lágrimas demais salgando os oceanos

Agora... é o momento de falar de amor

Nas ruas: há violência – nos lares: há palavras mudas

Aquele que do lado está é indiferente

Basta!... Chegou o instante do amor

Não à guerra estúpida

Não à fome que assola o Mundo

Não às cercas elétricas que executam a união das diferenças

Agora...

É a hora do amor

Que jamais chegou

Goiânia – 2000

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Fluir Sinto o exército da noite Suplantar16 os últimos soldados do dia Que sedentos de morte fogem para O leito escuro e frio do nunca mais O Reino da Noite deixa escapar grãos De areia que temam em cair Ritmados na direção de um novo dia Que espera – friamente – sua vingança Não há mais frio – é quente Não sinto sono – é vigília17 A criança que havia em mim Deixou-me há muito tempo Pensando em Neruda... O tempo é um cavalo veloz Pensando em Peter Pan... O tempo é um feroz crocodilo que nos devora... ...Implacavelmente Goiânia – 2000

16 Superar, vencer. 17 Atento, acordado.

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As Ruas da Minha Cidade As ruas da minha cidade São como todas as ruas Das outras cidades que não conheci Existem ruas na minha cidade Por onde eu nunca passei Elas são como todas as ruas Das outras cidades que vivem Despidas de mim Sou aquele cara que passa Invisível – entre as Margens rasas de concreto Sou um cambiante – sempre – a perguntar: Qual é a diferença que faço Para as ruas que passo E para as que nunca Passei? Introspectivamente, respondo: Minha inexistência não Perturba em nada O triste apelo Do sim

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Lobas Lobas que devoram lobos Lobos que devoram homens Homens que devoram sonhos Sonhos que devoram realidades Realidades que devoram sorrisos Sorrisos que devoram dentes Dentes são ossos que iluminam noites Despertam os sonhos das lobas Despertam vidas Maravilham o Mundo Mundo construído em bases sólidas de ossos Que outrora foi vida – e agora... Morte Morte que pulsa na vida Vida que palpita na morte Laços apertados e sincronizados Rituais sagrados das danças profanas Correlações unas e múltiplas dos deuses Em que brotam ossos revestidos De carnes macias... Prontas para – novamente Se jogarem nos braços Da morte 07.08.1997

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Metrópole Prédios entre fuzileiros Crianças entre fumageiros18 Violar odiar matar Um carro vai hiperveloz Um ônibus vai hiperveloz Um “burro” vai hiperveloz Hipervelozes... as janelas se fecham Eta vida insana, meu Deus (Uma homenagem ao genial Drummond)

18 Fabricantes de fumo: cigarros, charutos, etc.

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Milagres Da carne dada aos vermes Da Fênix que se ergue das cinzas Expressam-se todos os milagres A semente precisa se decompor Para que o esplendor Da vida possa se libertar Espera o broto – embebido de ansiedade Que a folha de outrora Caia e deixe o novo chegar As asas coloridas das borboletas Degustaram a triste crisálida Que, já morta, tem saudades Da lagarta que devorava folhas Da lama fétida19 Do meio da podridão Da ausência de tudo Nascem – em pureza – as flores de lótus A morte – poeta – é o maior de todos os milagres 19 Cheiro repugnante.

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Morre a Vida Vejo-me agora dependurado No portão de grades Olho, em noite clara Faróis de automóveis que ofuscam minha visão Junto ao meu pai [que gostava de andar sem camisa] Brinco apertando minhas órbitas Na direção das luzes Luares de vidro que nos tomam a abóbada celeste20 Não brinco com a Lua Nem com as estrelas Divirto-me com os faróis acessos Que lentamente Matam a natureza da noite: Escura calma silente Não sabia que morria Diante de meus olhos moleques Minha própria vida Minha e de todos Nova Vila – uma noite em 1976

20 É o hemisfério celeste visível. Conhecido popularmente como firmamento.

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Era noite gelada e seca Daquela que deixa a pele Trincada como chão de barro De um rio afastado de sua alma Com vontade de caboclo Ao balançar na rede Caminhavam as horas Puras e silentes21 O diminuto espaço Do barracão de amianto Possuía em suas paredes finas Oráculos22 íntimos daqueles pobres amantes Que a golpes de martelo reproduziam Maquinalmente o que era para ser amor Era eu a noite gelada e seca Daquela que deixa a pele Trincada como chão de barro De um rio afastado de sua alma 21 Silenciosa - calada. 22 Templo sagrado – (o oráculo mais famoso estava localizado na Ilha de Delfos - Grécia).

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Vírus São seres diminutos... Invadem – sorrateiramente – o espaço virgem e puro Logo começam a tomar de assalto todos os jardins secretos Suas pegadas não se apagam, seus desejos contaminam A intimidade de tudo que jaz profano23 Esses seres pequeninos procriam alucinadamente Suas sementes progenitoras tomarão terras além... Gestando a cada dia belicosos24 exércitos em flores do mal Até que a vida esteja, completamente, reduzida as sombras, a pó Gostaria de ter descrito o comportamento De um vírus altamente nocivo Gostaria de ter falado de uma Doença maligna que suga Como vampiro – o sangue dos inocentes Gostaria de ter lido um trecho de um livro de ficção científica Mas – infelizmente – narrei a história de horror da espécie humana Porém – se depender de nós – pode ser uma história de glória De glória conjunta com o outro Com a natureza e com o mundo inteiro Só depende de nós...

23 O que não é sagrado – o que é comum – cotidiano. 24 Referente à Guerra.

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No primeiro olhar Parece fácil olhar o outro Pré-concepções são como flechas Penetram a carne e faz sangrar Antes fossem apenas feridas na epiderme Antes morressem apenas os corpos Olhar mascarado por visões distorcidas Faz sangrar sonhos de um mundo plural No primeiro olhar Parece fácil olhar o outro Mediante crivos corruptos de nossas incertezas Sentenciamos – sem julgamento – o que é para nós o outro No primeiro olhar Lançamos conjecturas sonoras, fincadas em terras passadas Presas em critérios vãos Enraizadas em rochas de nosso espírito mais pobre No primeiro olhar Parece fácil olhar o outro Que se encontra no íntimo Do meu e do seu... Outro

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Limões da Vida – Uma Experiência Sagrada Em uma linda manhã de um ameno inverno Perdido em esquecimentos e atropelos Deparei-me diante de um pequeno limão que a vida nos reserva A princípio pareceu-me levemente azedo Mas logo haveria de se tornar, deliciosamente, doce! Trocando passos na direção do vento Sentia lamber a fronte uma suave brisa feita, somente, para meu deleite Permeado por aqueles que, apresados, circundam as ruas desnudas Entre seres mecânicos que, ruidosos, sangram o silêncio de outrora Caminho absorto e alheio a tudo Uma redoma de vidro transporta-me a outro mundo Mas ainda piso na realidade, fria e vulgar Deste modo me dilacero O que resta de mim Domina o cenário – não sinto dor Não sou eu agora Sou um pouco mais do que sou Levito levemente por rotas das quais nunca passei Sou passageiro de linhas mágicas Frases que me conduzem ao céu do céu Sinto-me – agora – nos braços de Deus Em uma Rua do Setor Universitário – Goiânia – 2007

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Pobres Meninos (Folhetim Diário) Em um dia fervilhante de setembro Mais uma dor – entre tantas dores do mundo Reboca de cinza o cenário de nossas vidas Não o conhecia – sequer sabia o seu nome Como é possível saber quem são eles que perdidos – como eu Vagam pela caótica multidão? Só sei que era jovem – muito jovem Para deixar a vida que lhe foi tirada Como um sopro do avesso A lhe arrebatar ao chão Morto como passarinho que inocente Não pressente a pedra que vai Ao seu caminho Atira o pobre menino que não percebe que o passarinho É sua imensa solidão Um dia quente de inverno – 2010

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Quero saltar sobre os meus desejos Invadi-los, por inteiro, de mim Mas toda vez que minha mão Se esgueira na direção dos Prazeres lacerantes A outra mão a Reprime

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Quero morrer Sinto-me como o Sol Que ao cair da tarde Deixa se apagar Nas águas do Mar Quero – como ele – fechar os olhos e dormir Nada alegra os meus dias Meu cenário e construído De destroços espectrais25 de sofridão Painéis opacos erguem-se na Sonoplastia fúnebre De uma platéia vazia Todos me olham Olham através do que sou Pensam que minha triste vida é carnaval Não sabem que a morte estende suas mãos Descarnadas em convite Para dançar em silêncio tumular A valsa das desesperanças

25 Relativo a fantasma – aparição ilusória.

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Sementes Por noites de sóis pulsantes Caminham meus sonhos Em soberbos altares A rezar por espectros Da nossa vã existência Por dias de Lua estéril Tal pedra morta A furtar os raios Do Astro-Rei Toma meu corpo Em banquete dionisíaco Nos lugares que guardam As memórias do tempo Urano26 deságua sua vida Nas espumas do Mar E nas Sementes de teus Amores

26 De acordo com o mito teogônico mais aceito, Afrodite nasceu quando Urano (pai dos titãs) foi castrado por seu filho Cronos, que atirou seus testículos ao mar, então o semêm de Urano caiu sobre o mar e formou ondas chamadas de (aphros), e desse fênomeno nasceu Aphroditê ("espuma do mar").

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Sonho Noite de outrora – o espectro de meu pai Tomou de assalto meu sonho Levado por Hypnos27 Embebido de Morfina28 Para não mais sentir dor Lembro-me de sonhos e de projetos Planos de menino que queria pescar Anseios frutados por ele, que iria me levar Chorei bastante Choro tomado de soluços Daquele que beira o desespero De ter que arrumar o quarto do filho que já morreu Mesmo criança [não sei se era tanto] Tive que sepultar, em covas rasas As carnes em podridão Entregues aos vermes – egoístas – da minha solidão Aprendendo a enlutar Meus dias foram erguendo-se sem prumo Sem direção Desse modo me fiz homem Sem saber fórmula ou equação 27 Deus do sono. 28 Relativo a Morfeu – deus dos sonhos. A morfina é um fármaco narcótico do grupo dos opióides, que é usado no tratamento sintomático da dor. Ela está presente no ópio.

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Queria pescar... Tive que me contentar com Tânatos A levar meu pai de meus braços E dos projetos de menino a banhar em ribeirão Onde engolia peixinhos para aprender a nadar Noite de outrora O espectro de meu pai Tomou de assalto meu sonho Levado por Hypnos Embebido de Morfeu Para não mais sentir dor Nessa noite... Pescamos meu pai

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Triste Divã Lançava meu olhar para você Ouvia – surdamente – em sua pele, em seus dentes, em seus lábios O canto sublime dos anjos Moça simpática – a d o r á v e l ! Todos lhe admiravam! Para beber de sua companhia, a qualquer hora Do dia – “amigos” vinham monologar Maravilhosa ouvinte – seu colo era gracioso divã Onde o medo – do agora Ia se afogar Com devota paciência sempre estava pronta Para escutar o abrir de cada Pétala do Mal Absorta, não sabia que as rosas Alimentavam – em seu peito Um ar sombrio de adeus Nunca pude imaginar que Paredes secretas escondiam Uma alma que julgava ser feliz Meus olhos míopes não puderam ver Que do canto de seus lábios Escorriam o amargo e o desespero – mudo – dos suicidas No silêncio, tumular, de uma noite sem estrelas Talvez tenha gritado por socorro Mas ninguém – minha moça – ninguém lhe ouviu

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Um Ser para a Morte Querem enlouquecer? Querem perder o sono dos justos? Como cães de agosto – querem surtar? Comprem ampulhetas Apreciem os graciosos grãos De areia sucumbirem no Aspirar do tempo Olhem para o frenético Tic-Tac do pêndulo E percebam: a cada ida e vinda Que ele... Só vai... Ao olharem – reflexivamente – para Esses instrumentos Digam: Olhem... Olhem... Olhem... ...eu e todos nós...

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Frankenstein Quero me livrar de tudo que me fez ser o que sou Quero fugir dos limites quadriculados Quero ser simples e direto Despido de toda erudição Os autores dos livros que li Impõem suas letras garrafais Escravizam minhas mãos Eles não têm escrúpulos Não se importam com minha Suposta criação Querem, apenas, o vazio de mim Sou receptáculo cheio – até a boca De tudo aquilo que não sou Meu tateante espírito quer a besta liberdade Para ser – sozinho – Senhor De minhas mãos Não é fácil ter o pensamento puro Tal qual criança a soltar pipas Em céu de brigadeiro Sinto-me em um grande lixão Chafurdando em um depósito de frases feitas Por almas desfeitas no lamber das ilusões Poderia ser ao menos Um desses “ecológicos” depósitos sanitários Que reciclariam os dejetos estrangeiros em mim

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A erudição, às vezes, me causa repulsa Temo que toda essa sabedoria alheia Tenha feito de mim um terrível Frankenstein de palavras A grande questão não é ser apenas o remedo Cosido de partes que não me cabem – Sou aberração traidora desses pensadores Toda vez que os leio, reproduzo o que julgo ser Exatamente, o que escreveram – Minha hermenêutica é canhestra29; Perdoai!... Sinto-me um grande canastrão Cercado de tantos outros que – Juntos a mim – tagarelam as sabedorias alheias Como arrancá-los de mim!? Como estripá-los do edifício de minh’alma!? – Os tijolos não são meus – muito menos as vigas Dar o grande salto, sem rede de proteção Rompendo os cordões que nos prendem a todos os mestres Pode causar nossa morte prematura Nos arrastar para o limbo das relações Isto posto, quero ser criança a soltar pipa Para ter – dos meus pensamentos puros – um sopro de criação 29 Desajeitada.