Enfoque Vicentina 1

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TRANSPORTE COMUNIDADE MORADIA Página 4 Páginas Centrais Página 9 Bicicleta é alternativa a longos trajetos de ônibus entre os bairros Parque do Trabalhador é pouco explorado por falta de segurança Geci se recupera de transplante, realizando sonho da casa própria CHUVAS ASSUSTAM MORADORES DO VICENTINA CONSTRUÍDO NUMA ÁREA BAIXA DA CIDADE, O BAIRRO FOI LIBERADO INDEVIDAMENTE PARA LOTEAMENTO PÁGINA 8 VICENTINA ENFOQUE EDIÇÃO SÃO LEOPOLDO / RS 1 SETEMBRO DE 2014 LAURA PAVESSI JÚLIA LINCK LAURA PAVESSI PRISCILA BOEIRA

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Primeira edição.

Transcript of Enfoque Vicentina 1

Page 1: Enfoque Vicentina 1

TRANSPORTECOMUNIDADEMORADIA

Página 4Páginas CentraisPágina 9

Bicicleta é alternativa a

longos trajetos de ônibus entreos bairros

Parque do Trabalhador é

pouco explorado por falta de segurança

Geci se recupera de transplante,

realizando sonho da casa

própria

CHUVAS ASSUSTAM MORADORES DO

VICENTINA

CONSTRUÍDO NUMA ÁREA BAIXA DA CIDADE, O BAIRRO FOI LIBERADO INDEVIDAMENTE PARA LOTEAMENTO

PÁGINA 8

VICENTINAENFOQUE

EDIÇÃOSÃO LEOPOLDO / RS 1SETEMBRO DE 2014

LAURA PAVESSI

JÚLIA LINCKLAURA PAVESSIPRISCILA BOEIRA

Page 2: Enfoque Vicentina 1

2. OLHAR DE FOTÓGRAFO

Tristeza e riso no VicentinaRelatos de esperança e

drama convivem a poucos metros de distância e são capturados por cliques fotográficos

Quando a Diovana Dorneles falou que gostaria de contar a história de mães cujos

filhos morreram ao se en-volver com o mundo das drogas, imediatamente le-vantei o dedo e me candi-datei para fazer as fotos: a pauta era delicada e eu queria dar close nesse so-frimento. Gosto de narrati-vas que retratam a vida das pessoas. Como repórter, tudo o que é impessoal, como números e gráficos e porcentagens, admito, pouco me interessa.

Chegamos na Vila Vi-centina e a pauta da Dio-vana era ainda pré-pauta até conseguirmos um case que confessasse para nós sua dor. Nosso caso mora-va numa casinha pequena e humilde, a alguns pas-sos dali. Estava sentado na frente da casa, numa cadeira de praia, debaixo do sol das dez horas da manhã. Mirava o nada. Ti-nha o cabelo ensebado e o rosto bronzeado marcado por rugas. Olhou pra gente sem levantar os olhos.

- Oi, seu Joca - disse a Diovana, e começou a ex-plicar o que fazíamos ali.

Nossa história não se-ria a de uma mãe que vira o filho morrer, mas a de um pai que presenciara a morte de não um, mas dois filhos: um menino e uma menina. O mais velho, o homem, tornara-se usu-ário quando foi parar na cadeia. Quando saiu, con-tinuou se drogando após deixar o presídio. Morreu, parece, porque era muito briguento. Algo a ver com vingança. A mais nova, uma jovem mulher, envol-vera-se com drogas duran-te a vida normal mesmo. Era viciada em crack e, pelo que entendi, foi as-sassinada porque ficou de-vendo para os traficantes. Os dois deixaram filhos.

Seu Joca não chora-va enquanto nos contava

sobre suas perdas. E eu procurava, insistente, os melhores ângulos de sua dor. Ele não se emociona-va a ponto de descompor sua postura já tristonha, mas mantinha o rosto ca-ído no meio dos ombros, como quem já estivesse acostumado com a vida marcada pelas dificulda-des e desgraças.

Terminou sua história e abriu algo parecido com um sorriso. Disse que era bom desabafar um pouco. Quando nos afastamos, a Diovana, delicadíssima ouvinte, disse estar cho-cada com a história de vida sofrida. Eu assenti, mas na verdade não senti o mesmo choque. Me per-gunto agora se não teria

sido frieza de minha parte. Descaso mesmo. Mas o que poderia fazer? Farei o mesmo questionamento durante toda minha futura trajetória como repórter: o que eu posso fazer, além de contar?

Talvez a distância que mantive nessa experiência foi resultado de meu com-promisso com a fotografia da matéria, sem o dever de ouvir a história em todos os detalhes para que se transformasse num relato jornalístico fiel. Não olhei no olho de seu Joca e não ouvi de perto sua infeli-cidade, como a Diovana. Me preocupei com cliques e ângulos e aberturas da câmera. Preocupada com a máquina, eu, que gosto de

gente, me poupei de sofrer.Seguimos pelas ruas do

Vicentina e encontramos outra pauta. Uma mulher natural do Piauí, que veio morar no Rio Grande do Sul por causa do compa-nheiro, que é gaúcho. Ape-sar das dificuldades que sempre deram contornos à sua vida, Marcelina não sofreu nenhuma desgra-ça. Quando saíra do Piauí, onde levava vida difícil, foi a São Paulo com von-tade de ganhar dinheiro e lá fez de tudo: lavou chão, foi manicure, atendente de comércio. Conheceu o homem com que mora hoje e com quem tem o filho. Ela conta, entre uma risada e outra, que ele tem outros filhos, cada um com

uma mulher diferente. Confessa que, apesar de estar contente com o com-panheiro, se fosse finan-ceiramente independente ficaria sozinha.

O sonho de Marcelina é fazer um curso profissio-nalizante para atuar como segurança. Disse que não tem medo da profissão, pelo contrár io: como mulher, é muito valente. Enquanto nos contava sua história, gesticulava, ria alto e olhava para os lados, dando expressão a cada detalhe. Diferente de seu Joca, Marcelina ti-nha vivacidade no corpo. Havia esperança - talvez fosse essa a diferença.

à

KARINE DALLA VALLE-

Dramas e alegrias costuram as

histórias dos moradores do bairro Vicentina

à

PRISCILA BOEIRA

O Enfoque Vicentina é um jornal experimental dirigido à comunidade da Vila Vicentina, de São Leopoldo (RS). Com tiragem de mil exemplares, é distribuído gratuitamente na região. A produção jornalística é realizada por alunos do Curso de Jornalismo da Unisinos São Leopoldo.

(51) 3591 1122, ramal 1329

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REDAÇÃO – Jornalismo Cidadão – Orientação: Sonia Montaño. Edição e reportagem: Diovana Dorneles e Vitória Santos. Reportagem: Ana Lersch, Bárbara Müller, Cíntia Richter, Francine Maless, Guilherme Rovadoschi, Jacson Dantas, Júlia Soares, Júnior Melo da Luz, Leonardo Vieceli, Pedro de Brito, Sabrina Stieler, Thaciane de Moura e Thiago Santos. FOTOGRAFIA – Fotojornalismo – Orientação: Marina Chiapinotto. Fotos: Camila Moraes, Carolina Teixeira Lima, Cassiano Cardoso da Silva, Jéssica Luana Zang, Julia Ramona Michel Linck, Karine Dalla Valle da Silva, Laura Hahn Pavessi, Luiza Marques Veber, Michelle Santos de Oliveira, Priscila Boeira, Renata Cardoso de Almeida e Vitória Padilha Roxo. ARTE – Agência Experimental de Comunicação (Agexcom) – Projeto gráfico e finalização: Marcelo Garcia. Diagramação: Gabriele Menezes. IMPRESSÃO – Grupo RBS. Tiragem: 1.000 exemplares.

Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Av. Luiz Manoel Gonzaga, 744 – Bairro Três Figueiras – Porto Alegre/RS. Telefone: (51) 3591 1122. E-mail: unisinos@

unisinos.br. Reitor: Marcelo Fernandes de Aquino. Vice-reitor: José Ivo Follmann. Pró-reitor Acadêmico: Pedro Gilberto Gomes. Pró-reitor de Administração: João Zani. Diretor da Unidade de Graduação: Gustavo Borba. Gerente de Bacharelados: Gustavo Fischer. Coordenador do Curso de Jornalismo: Edelberto Behs.REPÓRTER- FOTÓGRAFO

VICENTINAENFOQUE FALE CONOSCO

LEGENDAS

Page 3: Enfoque Vicentina 1

MEMÓRIAS .3

O banhado que virou bairroMoradores reconstroem uma

história do Vicentina

Vicentina acorda às 9h. Pouco a pouco ouve os cães que co-

meçam a latir para quem passa na rua. Janelas co-meçam a ser abertas e vi-zinhos começam a se cum-primentar. Alguns poucos carros buzinam pedindo lugar para as carroças, que também passam por ali. Tudo isso Vicentina ouve simultaneamente, sem distinguir espaços, afinal ele é o lar de todos que ali vivem. Ele é a co-munidade. Ele é o bairro.

Em 1983 , Rubem Aguiar, 60 anos, membro da Associação de Mora-dores do Vicentina, se mudou para o bairro. Nos 31 anos como morador, não apenas viu o lugar crescer como também ajudou a moldá-lo. Sua casa foi uma das primeiras construídas ali, quando o local ainda era chamado de Vila Maria. “Quando cheguei aqui, na minha rua só passava carroça de boi. Apenas em 1985 o aterro começou a ser realizado”, explica. A proximidade com o rio faz do Vicentina um dos bairros mais prejudicados pelas enchentes do Rio dos Sinos. Até hoje, chu-vas muito fortes fazem o local relembrar os tempos de banhadão.

Seu Rubem construiu sua casa sobre 50 caçam-bas de terra e, ainda assim, deixou um espaço entre o chão e o imóvel que era suficiente para sua filha de três anos caminhar sob o assoalho. Nos arredores da moradia, havia apenas banhado, que foi sendo substituído por aterros comunitários cerca de 10 anos após seu estabeleci-mento no bairro. Naque-le tempo, também eram jogados móveis velhos (como sofás, mesas e ca-deiras) nas imediações do dique para conter a água e iniciar uma espécie de “fundação” para as casas que viriam a ser construí-das. O bairro cresceu. De cerca de 6 mil moradores da Vila Sapo passou-se para 13 mil habitantes no bairro Vicentina, dividi-dos entre Vila Maria, Vila Paulo Couto e loteamento Cerâmica Anita.

As noites do antigo bairro tinham como trilha sonora uma sinfonia de coaxadas. Essa é a lem-brança mais vívida de Elaine Lerner, 52 anos. Moradora do Vicentina há 22 anos, ela criou os filhos por ali. “Quando vim mo-

rar aqui, os mosquitos me carregavam toda semana para o centro médico por causa da alergia da minha filha”, lembra a moradora. O local era infestado de insetos e maricás (árvore espinhenta onde os famo-sos sapos se escondiam durante o dia). A Vila Sapo era uma orquestra de anfíbios há 20 anos, mas hoje os aterros, lote-amentos e o próprio dique acabaram com o barulho.

Luiza Tereza Brito, de 67 anos, casada há 51 com Pedro Brito, 70, foi uma das primeiras moradoras da Rua Capitão Armindo Bier, uma das principais da Vila Maria. O casal lembra-se de como a vida mudou. “A gente não per-cebe bem como o tempo passa, mas o barulho dos sapos era enorme e hoje não se ouve”, explica Dona Tereza. Desde 1995, o que continua preocu-pando o casal é consumo e tráfico de drogas. Para eles, o local é conturbado, embora a cena de ambos sentados tomando seu chi-marrão na manhã de sába-do reflita um lado pacato do bairro. Mas, nem tudo é preocupação na vida do casal, que tem uma famí-lia numerosa e já está no quarto bisneto. Entre as datas preferidas por Seu Pedro está a Semana Far-roupilha, que acontece no Parque do Trabalhador. “É um dos eventos que mais mobiliza o bairro. Eu gosto muito de participar, inclusive cheguei a tocar num conjunto quando era guri”, lembra o morador.

São 13.140 habitantes segundo o Censo 2010. No Vicentina, homens e mulheres são populações praticamente equivalentes (6607 pessoas do sexo fe-minino e 6533 do masculi-no). Cerca de 3200 jovens vivem no bairro, que é o 6º mais populoso de São Leopoldo. No entanto, a nova geração precisa de mais perspectivas. A criminalidade assusta. O que se vê sobre o bairro nos jornais são notícias respectivas ao tráfico e homicídios. Além disso, as enchentes são cons-tantes. Os moradores reclamam por melhoras de infraestrutura e maior zelo por parte da polícia. Esse não é exatamente o bairro que queriam. Esse é o Vicentina que, mesmo sendo seu lar, é também alvo de crimes e descaso. Vicentina quer descansar, mas não consegue. Sem dúvida, muitos moradores preferem o barulho dos sa-pos ao ruído da violência que cerca as ruas.

à

JÚNIOR MELO DA LUZ-

Seu Rubem (no alto) é membro

da associação que representa os moradores do Vicentina. Aposentados, Luiza (no meio, à esquerda) e Pedro (no meio, à direita) veem o Vicentina crescer há cerca de 15 anos. Elaine Lerner (ao lado) gosta de estar envolvida com projetos sociais em prol da comunidade

à

RENATA CARDOSO

Page 4: Enfoque Vicentina 1

4. TRANSPORTE

Vida passageiraTransporte público é

problema para os moradores do Vicentina, que reclamam da demora dos trajetos

A parada coberta por telhas prote-ge os moradores do sol na manhã

de sábado. O ônibus da empresa Sinoscap, com letreiro luminoso indi-cando o destino Unisinos - Trensurb demorava mais que o habitual. Já havia se passado quarenta e cinco minutos, entretanto, Laíra Matos, moradora do bair-ro Vicentina há 18 anos, não perdia a esperança. “Não costuma demorar tanto. Esse ônibus vem de meia em meia hora. Quem reclama não tem paciên-cia”, afirma. Quando o ônibus chegou, entretan-to, uma expressão triun-fante surge da moradora: “aleluia”, repetia.

A realidade de quem mora na Vicentina e uti-liza o transporte público é contraditória. Quem usa, critica. Quem não usa, elogia. Um exemplo é Pedro Paulo Guimarães. “Quando tenho pressa, prefiro pegar minha bi-cicleta. Faço o trajeto até o centro em 20 minutos”, calcula.

Porém, o desgosto aparece na fala áspera de Solange Regina Corrêa, uma das líderes comuni-

tárias do bairro Vicentina. Quando perguntada so-bre o transporte público no local, ela afirma de forma econômica: “É horrível”. Segundo a mo-radora, existem apenas dois ônibus que fazem o trajeto bairro/centro. “A gente só tem o Unisinos/Trem e o Scharlau, e eles costumam demorar entre meia hora e quarenta e cinco minutos”, explica. No final de semana, a re-alidade para os moradores é ainda pior. No domingo, os ônibus podem demorar até uma hora para passar no bairro.

O ônibus não é o único meio de transporte utili-zado pelos moradores do bairro. Carros, de todos os tipos, dos populares aos de cabine estendida com tração nas quatro ro-das, fazem parte da pai-sagem visual das ruas. Entretanto, o que mais chama atenção é o eleva-do número de bicicletas.

Com o pedalar segu-ro e calmo, Amadeu dos Reis, vive há 35 anos no bairro. Optou por usar a bicicleta pela praticidade que as duas rodas pro-porcionam. “Quando não estou na bicicleta, estou numa moto. Nunca uso o ônibus. A bicicleta me leva mais rápido para os lugares. Levo quinze mi-nutos até o centro, é uma maravilha”, disse.

A passagem, que an-teriormente custava R$ 2,70, passou a custar R$

2,85. Sofreu, no mês de setembro, reajuste de 5,56%. A cidade de São Leopoldo conta com apro-ximadamente 1,7 milhão de passageiros que utili-zam o transporte coletivo por mês. Ainda assim, de ônibus ou de bicicleta, a cada dia são construídos rumos e caminhos que vão além de horários e itinerá-rios. Estes expressam as vivências e as escolhas de cada viagem dos morado-res do Vicentina.

à

Paixão de três cores e sete décadasESPORTE

O futebol não vive so-mente de clubes com gran-des torcidas ou de atletas com salários astronômicos. Em campos onde o gramado é irregular e repleto de bu-racos, há times que se sus-tentam graças à paixão dos torcedores. No Vicentina, o Grêmio Atlético Tricolor prova que o futebol de vár-zea está presente no bairro e é sinônimo de emoção.

Para compreender sua trajetória, é preciso voltar sete décadas no tempo. Em 1944, a Seleção Brasileira ainda não havia vencido ne-nhuma Copa do Mundo. E, em 27 de outubro daquele ano, era criado um dos clu-bes mais antigos da várzea de São Leopoldo: o Tricolor do Vicentina.

De lá para cá, a equipe venceu campeonatos mu-nicipais e intermunicipais. Parte dessa história deve-se aos gols de Sérgio Amaral,

69 anos, e às defesas de Jairo Lima, um ano mais velho do que o ex-companheiro de time. No Tricolor, atuaram como meio-campo e golei-ro, respectivamente. Além disso, ambos já presidiram a instituição. “Fomos multi-campeões juntos”, relembra Lima, com um sorriso.

Ao contrário de atletas profissionais, eles dizem que nunca receberam um tostão no período em que jogaram. Amaral trabalhou em uma empresa do setor de alumínio antes da apo-sentadoria. Lima, por sua vez, foi mecânico e hoje é motorista de caminhão. “Às vezes, quando as partidas eram fora de casa, até tiráva-mos dinheiro do bolso para a passagem de ônibus”, conta o ex-goleiro, que, apesar da baixa estatura – 1m65cm –, vestiu a camiseta do clube entre 1964 e 1975.

Amaral, por sua vez,

foi atleta do Tricolor por 25 anos. Apesar de não precisar as datas, um clássico dispu-tado contra o Obras e Viação no campo do adversário é inesquecível para ele. Sen-tado no banco de reservas, Amaral assistiu à derrota de seu time, por 4 a 1, no pri-meiro tempo. Quando entrou no jogo, o placar mudou. “Fiz três gols. Ganhamos por 6 a 5”, recorda, sem disfarçar a felicidade pela atuação de outrora.

MENINOS SÃO FUTURO DO CLUBE

Embora faça parte do desenvolvimento histórico local, o Tricolor vive outro momento atualmente. Se-gundo o diretor de esportes da equipe, Mário Trindade, 40 anos, é difícil montar um time com atletas que atuem de forma voluntária. “A maior parte dos jogadores

é daqui. Mas temos que in-vestir”, pondera o dirigente.

O futuro tricolor depende principalmente do trabalho realizado com garotos do Vi-centina. João Vitor da Silva, 13 anos, participa da escolinha de futebol do clube e, caso seja possível, quer brilhar em um clube profissional. “Sou as-mático. Meus problemas estão diminuindo aos poucos graças ao Tricolor”, elogia João.

Quando jogava futebol, Jairo Lima posicionava-se à frente das traves para evi-tar os gols dos adversários. Hoje, o vigilante Anderson Fabricio Diogo, 45 anos, desempenha função seme-lhante. Porém, ao contrá-rio de Lima, atrás de uma das goleiras do campo do clube, onde ele vive em sua casa. Da moradia, separa-da do gramado pela cerca do alambrado, o segurança cuida da estrutura tricolor.

Diogo é responsável pela

conservação do campo em que jovens como João se di-vertem e dão os primeiros chutes na bola. Chutes que poderão levá-los para longe da Vicentina. Ou, quem sabe, torná-los ídolos do futebol de várzea, no qual o Tricolor escreveu a sua história de sete décadas em azul, branco e vermelho.

GUILHERME ROVADOSCHI-

LEONARDO VIECELI-

Alguns moradores

trocam os longos e demorados trajetos de ônibus pela flexibilidade da bicicleta

à

Lima (à esquerda) e

Amaral (à direita) mostram troféu que o ex-meio-campo guarda em sua casa

à

JÚLIA LINCK

CASSIANO CARDOSO

Page 5: Enfoque Vicentina 1

DESAFIOS .5

Saúde ou recreação?Associação de Moradores

do Vicentina abre as portas e mostra serviços, ambiente e problemas de falta de espaço para uso público

No local há dois cadeados tran-cando a porta de ferro. São

nove e 30 da manhã de sábado e o militar apo-sentado Pedro Flores está em busca de chaves para liberar a passagem. En-quanto isso, a entrada da Associação de Moradores do Bairro Vicentina em São Leopoldo (AMBAVI) continua fechada.

O tempo passa , e Rubem Aguiar, ex-con-selheiro fiscal e admi-nistrativo da associação chega ao local e conta um pouco de sua história. “Nós começamos aqui na associação em 2010, era uma bagunça, nada fun-cionava direito. Quando começamos reformamos tudo, cavaletes, mesas, pintamos a sede”, expli-ca Rubem que mora no bairro há mais de 30 anos. De fato, a pintura externa do prédio está bem con-servada. Alguns minutos se passam e Pedro Flo-res, eleito em 2010 como Presidente da Associação de Moradores, reaparece. Conseguiu a chave de um dos cadeados, mas a cha-ve do outro cadeado está

na posse de uma secretá-ria ligada à prefeitura. A dificuldade para entrar na Associação é reveladora das disputas pelo espaço dentro da própria AM-BAVI.

A participação dos moradores na Associa-ção não é das mais ativas. No início do ano Pedro e Rubem, junto com outros vizinhos tentaram orga-nizar eleições para uma nova presidência da asso-ciação, mas os moradores não compareceram. “Nin-guém apareceu no dia, dai não saiu eleição, e o Pedro teve que continuar na presidência”, explica o ex-conselheiro .

Um veículo estaciona em frente ao local. “Vão abrir o prédio”, avisa o presidente. Ao entrar na associação é possível ver um espaço em disputa para múltiplos serviços. De um lado há mesas sen-do enfeitadas para uma festa infantil, o rosa com roxo contrastam com o azul das portas das salas de atendimento do Posto de Saúde.

No mesmo local, divi-didos por algumas portas estão o Posto de Saúde do Bairro Vicentina e o Salão de Festas dos moradores. Serviços de Pediatria, Gi-necologia, Clínico Geral e vacinação são ofereci-dos durante a semana. Nos finais de semana é a vez do salão acolher as festas de aniversário. Além disso, nas segundas

e quartas a noite, o local se transforma em tatami, onde os jovens da comu-nidade recebem aulas de Taekwondo.

Muitas vezes os pró-prios moradores confun-dem os espaços. “Sábado colocaram o carro de ré na porta da associação, e li-garam o som ao máximo, eu tive que vir pedi pra desligarem. Além do ba-rulho, há também alguns

problemas de passagem. A saída de emergência do prédio está obstruída por bancos e mesas, reti-rados de dentro do salão principal, que está sendo preparado hoje para fes-ta”, aponta Rubem.

O presidente da As-sociação de Moradores, Pedro Flores, percebe as dificuldades que a falta de espaço provoca. “A prefeitura tem um proje-

to pra instalar um novo posto no bairro, só que é um processo lento, então vamos usando como dá”, explica.

As atividades realiza-das na AMBAVI a tornam um lugar de soluções, mas a sobreposição do espaço para necessidades tão diferentes cria novos problemas.

à

O som da comunidadeCOMUNICAÇÃO

As rádios comunitárias cumprem importante papel social em diversas comuni-dades espalhadas pelo Brasil. No bairro Vicentina não é diferente. Aqui, eles contam com a programação da rádio comunitária Studio FM 87,7. Criada em 2006 pelo mecâ-nico e radialista Julio Ubi-ratan de Almeida, 56 anos, a emissora esperou quatro anos por sua regularização. Iniciou suas operações na sede da Associação de Moradores do Parque Vicentina (ASVIPA-VI), onde funciona até hoje, vizinha da casa e da oficina mecânica de Julio. Para con-ciliar o seu negócio com a rádio, ele conta com a ajuda de seis locutores com registro da Delegacia Regional do Trabalho (DRT), que traba-lham na rádio de Segunda a Domingo, das 17h às 9h.

O pedido para concessão de frequência para a rádio comunitária foi protocola-

do à Anatel ainda em 2002, sendo concedido apenas em 2010. “A comunidade preci-sava de uma rádio que tocas-se o que gostamos de ouvir aqui. Eu aproveitei minha paixão para deixar o lugar onde vivo mais feliz”, de-clara o radialista. Com foco

quase exclusivamente ser-tanejo, a programação tem também bandinhas alemãs, além do programa “Flashba-ck”, que toca o melhor dos anos 70, 80 e 90.

Com 25 watts de potência e alcance de 6 km, a rádio se mantém com o apoio da comunidade, que paga por serviços de utilidade para os moradores do bairro, como, por exemplo, a divulgação de vagas de emprego. Porém, a maior parte dos gastos ainda sai do bolso de Julio, radia-lista durante os anos 80 em diversas rádios comerciais da região metropolitana. Entre os anos 1990 e 2002, Julio participou de um grupo de estudos em rádio difusão, também conhecido como radioamadorismo, no muni-cípio de São Leopoldo.

Proprietário de uma em-presa de assessoria fonográ-fica, Rafael Batista é locutor na emissora há apenas três

meses, mas já carrega 12 anos de experiência no ramo. Para ele, as rádios comunitárias de hoje têm a mesma im-portância dada às AM nos primórdios da radiodifusão. “A Studio FM funciona como

um porta-voz desta comu-nidade, divulgando desde informações de utilidade pública até recados entre os moradores”, reflete.

THIAGO SANTOS-

JÚLIA SOARES-

No mesmo local, dividido por algumas

portas, estão o Posto de Saúde do Bairro Vicentina e o Salão de Festas dos moradores

à

JÉSSICA ZANG

SAIBA MAIS SOBRE AS RÁDIOS COMUNITÁRIAS

As rádios comunitá-rias são regulamentadas pela lei 9.621 de 1998, que criou o Serviço de Radiodifusão Comunitá-ria. Somente associações comunitárias sem fins lu-crativos podem explorar este serviço. Devem estar legalmente constituídas e registradas, com sede na comunidade em que pre-tendem prestar serviço,

com dirigentes brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Além disso, precisam ser maio-res de 18 anos, residentes e domiciliados no local. Apenas pessoas e enti-dades da comunidade podem compor a rádio comunitária. Na pro-gramação, não é per-mitido proselit ismo político e religioso.

No ar há oito anos, a Studio FM

é dirigida por Júlio Ubiratan de Almeida (à frente), e conta com uma programação voltada ao gosto do Vicentina

à

CAMILA MORAES

Page 6: Enfoque Vicentina 1

6. COMUNIDADE .7

Lazer e insegurança: Parque do Trabalhador é pouco aproveitado

O recanto gaúcho do Parque

Contando com apenas dois agentes

de segurança particular, espaço tem sido cenário da violência no bairro Vicentina

Logo que se passa pelo pórtico com a placa do Parque de Recreação do Trabalhador, é possível

ouvir o som dos pássaros e a bati-da dos passos na terra. A extensa abrangência de 87 hectares de área verde poderia servir como um espaço de lazer, recreação, diversão e convívio comunitário. Afinal, o local conta com uma escola, um ginásio, o Centro Me-dianeira, uma ampla área verde, quadras de esporte e trilhas para a prática de atividades esportivas. O parque também serve como um dos espaços onde acontece o Acampamento Farroupilha de São Leopoldo.

No entanto, a conjugação cer-ta do verbo é exatamente “pode-ria”. O que aos ouvidos parece belo, aos olhos não agrada. O descaso é uma presença constante em um parque vazio. O motivo para a evasão? A insegurança que a comunidade sente.

A grama está alta e as qua-dras precárias. Os únicos espaços que são realmente utilizáveis no Parque do Trabalhador são jus-tamente onde a comunidade está envolvida.

“Já vi duas mortes aqui. Só venho acompanhada. Antes vi-nha correr, mas agora nem duran-te o dia me arrisco”, comentou a estudante Ana Caroline Leal. O clima inseguro começou há cerca de dois anos, depois que a ca-valaria da Brigada Militar (BM) saiu do parque. Atualmente, o policiamento é feito por dois guardas, contratados por uma empresa particular. “Cuidamos até a parte onde está o colégio. Lá para o fundo, a empresa nos proibiu de ir. Só entra a Brigada e a Guarda (Municipal). Quando há uma ocorrência, é para eles que nós ligamos”, informou um dos agentes, Ronei Gomes. O seu colega, Carlos Eloi Aguiar Fontoura, comentou que por já conhecerem os frequentadores do parque, eles ficam em aler-ta quando há um movimento suspeito.

Apesar do clima de inseguran-ça, a dona de casa Vera Lopes, moradora há dez anos no bairro Vicentina, conta que utiliza o espaço para descanso e que seus filhos levam os netos para brincar na pracinha. Ainda assim, ela afirma: “era melhor quando a polícia estava aqui”.

O coordenador do parque, Luís Fernando Bittencourt ex-plicou que a Prefeitura de São Leopoldo está buscando convê-nios com empresas e entidades para que elas adotem algumas áreas, auxiliando na manutenção do espaço. “Também estamos no início das tratativas com uma ONG que trabalhe com as crian-ças no turno contrário ao ensino regular, além de disponibilizar Professores de Educação Física

que atendam a comunidade que vem aqui fazer atividades físicas. Queremos desenvolver projetos que possibilitem os moradores utilizarem o parque durante os finais de semana”, disse.

Quanto à segurança, o tenente-coronel Ari José Cassanta Chaves, do 25° batalhão da Brigada Militar disse que quando chegou à São Leopoldo a cavalaria já havia sido retirada do parque. Segundo a assessoria de comunicação da en-tidade, o fato ocorreu por falta de recursos financeiros para manter o efetivo e os animais. “Nós temos um mapa da violência da cidade inteira. Fazemos patrulhamento e operações no entorno. Mas temos outros pontos para atender e esta-mos fazendo o nosso serviço com o que tem. Temos consciência do que está ocorrendo, mas é normal que os ambientes quando não são utilizados, se tornem locais para o uso e tráfico de drogas, além de outros atos ilícitos. Acredito que o Estado e o município de-vem cercar ou fazer algo para aproveitar melhor a área do parque”, declarou.

Apesar do subaproveitamento do local, o Parque do Trabalhador ainda abriga parte da comunida-de. Sejam os alunos do Instituto

Estadual Parque do Trabalhador, os tradicionalistas ou aqueles que aproveitam o dia, quando o clima permite uma corrida. No entanto, as quadras não apresen-tam condições para a prática de esportes, e as edificações anti-gas – o restaurante e o vestiário – apresentam apenas resquícios do que um dia foi usado pelos moradores do Vicentina.

No mês de setembro, o Par-que do Trabalhador fica mais animado que no restante do ano. A Semana Farroupilha ocupa parte dos 87 hectares com 38 piquetes e seis Centros de Tra-dição Gaúcha (CTGs), formando um dos maiores Acampamentos do Estado. Conforme o patrão do CTG Tapera Velha, Paulo Leite, a manutenção deste espaço é feita pelos acampados. No en-tanto, alguns participantes do evento não mantêm o local limpo após os festejos farroupilhas. “O governo está trabalhando com o Ibama para fazer o corte das árvores que apresentam risco. Recentemente, uma delas caiu e causou um grande estrago”, explicou.

Junto com a inauguração do parque, ocorrida no dia 8 de março 1975, foi inaugurado um

restaurante para 600 pessoas e canchas de bolão, além de várias quadras a céu aberto, para a prá-tica de esportes múltiplos, área de churrasqueiras e área verde. Infelizmente, com o passar dos anos, sobrou apenas as paredes de pedra. O guarda Carlos Fontoura contou que o espaço era bem aproveitado. “Eu fiz a festa da minha filha ali”, lembra.

UMA ESCOLA NO PARQUE

No meio da riqueza de flora e fauna, mas também do descaso e insegurança, o Parque abriga uma escola estadual. “Temos o canto dos passarinhos. É um lugar diferente. Há um braço do Rio dos Sinos, os alunos fazem caminhadas nas atividades da escola. É uma pena que real-mente não valorizam o parque”, comentou a Coordenadora Pe-dagógica do Instituto Estadual Parque do Trabalhador, Rejane Margo Lucas Garcia.

O instituto foi fundado em 2000 e funcionava como um anexo da Escola Estadual Cal-dre Fião. Atualmente, a escola, a única que tem Ensino Médio no outro lado da BR-116, conta

com 330 alunos, que frequentam o espaço em dois turnos. O ins-tituto foi instalado no prédio que havia sido construído inicial-mente para a Universidade do Trabalhador, que nunca entrou em atividade.

A professora de Educação Fí-sica, Hildegard Hamester, disse que logo que a escola começou a funcionar, o prédio apresentava uma estrutura precária. Não havia cercamento e contava com pou-cas salas. “Nós chegávamos na segunda-feira e o pessoal havia levado a janela inteira, pois era de alumínio, que provavelmente eles vendiam para comprar dro-ga”, lembra a docente.

Com o tempo, a escola foi crescendo, a cerca foi feita e, hoje, um dos maiores proble-mas enfrentados pela direção são as pichações. Entretanto, um dos destaques da escola é o projeto coordenado pela Profes-sora Camila Oliveira Tremarin que envolve os alunos e a co-munidade. O “Jornal na sala de aula” é feito duas vezes por ano, contando sobre as atividades do colégio, sendo distribuído para os moradores.

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FRANCINE MALESSA

CÍNTIA RICHTER

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As marcas do tradicionalis-mo estão em todos os detalhes do CTG Tapera Velha cuja sede está no Parque do Trabalhador, no Bairro Vicentina. O ambiente é aquecido pelo fogão a lenha, que cozinha o prato campeiro, e pela boa conversa. O CTG vive de doações de empresas e movimenta cerca de 130 associados. Paulo Cezar Leite, 52 anos, frequentador há 17 anos, é o patrão do Tapera Velha. Natural de Encruzilhada do

Sul, vive há 28 anos no Vicentina. Desde que se mudou para São Leopoldo em 1986, se associou ao Tapera Velha e é patrão do CTG, eleito pela quinta vez. Vendedor em uma loja de aços, o patrão se orgulha do trabalho feito no Tapera, usa trajes gaudérios no dia a dia e dedica boa parte do seu tempo ao tradicionalismo.

O Centro realiza diversas ati-vidades como cavalgadas, rodeios, além de participar de eventos

como o Encontro de Arte e Tradi-ção (Enart) e o Concurso Estadual de Danças Tradicionais, categoria juvenil (JuvEnart). Há atividades diferenciadas como a cavalgada ecológica, durante a Semana do Meio Ambiente, quando é feita a distribuição de mudas nativas, para o reflorestamento, costeando o Rio dos Sinos.

O trabalho do CTG busca atingir também crianças e jovens vítimas de violência familiar ou

em situação de vulnerabilidade com riscos de se envolver no consumo ou tráfico de drogas. Estimulados a participar do tra-dicionalismo, esses jovens, vão evoluindo com o apoio dos pró-prios associados que fazem o tra-balho social na sede do Centro. Há ainda as invernadas, encontros de dança tradicionalista nas categorias adulta, juvenil e mirim.

LAURA PAVESSI

Moradores que utilizam o parque

para atividades físicas têm que enfrentar a grama alta

Eleito pela quinta vez, Paulo Cezar Leite (à esquerda) é o Patrão do CTG Tapera Velha

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LAURA PAVESSI

Page 7: Enfoque Vicentina 1

8. EMERGÊNCIA

A vila que vira mar Drenagem urbana é

problema de planejamento em toda a cidade

Dona Ana não con-segue manter a casa limpa. Enver-gonhada, ela mos-

tra o banheiro coberto por lama preta que parece estar parada ali há muito tempo. As paredes da casa, mesmo pintadas, estão cobertas de limo e mofo e os móveis, que eram novos, estufam por causa da umidade e se des-mancham a cada movimento mais brusco. Nada disso, no entanto, é por descuido ou falta de cuidado. Para Ana Izabel Oliveira, assim como para grande parte dos mora-dores do bairro Vicentina, a água é o problema. As en-chentes são uma constante na região. Na realidade, as enchentes são um desafio antigo da cidade. Em 2013 São Leopoldo teve a pior cheia desde 1965. A admi-nistração pública apresenta dificuldades em oferecer soluções. Os alagamentos são consequência da falta de planejamento urbano e da redução das áreas de banhados, que auxiliam no amortecimento das cheias. O bairro Vicentina é um dos exemplos mais claros deste problema.

Moradora do bairro há dois anos, Ana vendeu um terreno que tinha no bairro São Miguel para comprar a casa onde mora com a filha e dois netos. A esperança de um lugar onde pudesse viver sem pagar aluguel e dar conforto para as crianças virou um pesadelo logo na primeira chuva intensa que atingiu o local.

Ana mostrou que o es-goto não tem vasão para a rua e, por isso, não conse-guem puxar a descarga do vaso sanitário ou manter o box limpo. Sem condições de corrigir o problema, ela já buscou ajuda com enti-dades competentes, mas só ouviu promessas.

Não é só dentro da casa, no entanto, que a água trans-borda. A rua, que fica um nível acima da construção, enche quando chove inten-samente, e a inundação in-vade a residência. “Quando começa a chover, eu já me apavoro e deixo a minha irmã de sobreaviso. Se vejo que vai inundar, alguém vem buscar as crianças e ajudar a salvar as coisas”, relata a moradora.

Nem sempre a ajuda da família e dos amigos é suficiente. Em março, a úl-tima vez que o local encheu de água, só deu para salvar a televisão e a geladeira. Além disso, Ana precisou ficar um mês morando na

casa da irmã, esperando a água baixar. Até hoje, nunca recebeu nenhuma visita ou orientação da Defesa Civil sobre essa situação.

O sol e o calor têm sido os melhores amigos dessa população. “Temos medo da chuva”, diz Diovana Cassol Araújo, que já pre-cisou sair de casa com o filho mais novo, quando a água estava chegando no joelho. Mãe de três filhos, Diovana afirma ter medo das doenças que a água suja pode trazer. O marido, que tem artrose, sofre para sair de casa nos dias de chuva, já que a umidade piora as dores e dificulta a caminha-da. Moradora do Vicentina há 15 anos, ela teme pelas enchentes, que vem pioran-do. “Antes a água ficava na rua. Na última, faltou muito pouco para entrar em casa”, lembra Diovana.

ESGOTO E ALAGAMENTOS

CRIAM CÍRCULO VICIOSO

Próximo ao arroio que corta o bairro os alaga-mentos tem outra origem. Recém-criado e não con-cluído, um duto frequente-mente transborda e enche as casas mais humildes do Vicentina. No ano passado, a água invadiu duas vezes as residências que ficam em frente ao valo.

Nos últimos anos, no en-tanto, a situação dos alaga-mentos parece piorar. João Luiz Cazulo, dono de uma estofaria no Vicentina, viu sua casa ser invadida pela primeira vez há oito meses. Ele conta que o problema é o sistema de esgoto que foi feito da forma errada. “Eu não trabalho na Prefeitu-ra, mas não sou burro. Isso aqui tudo foi mal planejado, porque se tivessem feito o projeto certo, não enchia assim aqui”, desabafa João.

O morador Jesus da Sil-va Damasceno explica que, com a construção do canal, as tubulações que escoavam a chuva ficaram sem vasão, o que faz com que a água volte e encha as casas. De acordo com os moradores, uma casa de bombas cons-truída para ajudar com a pressão da água não parece colaborar. Quando alguém percebe que a água começa a encher, avisa os guardas para abrirem as comportas. Depois da chuva, o que fica é a lama preta dentro das casas e um cheiro forte mis-turado ao sentimento de re-volta, impotência e tristeza.

A água que baixou e deixou suas marcas nas paredes e na vida de Ana e sua família é a mesma que indigna João e que assusta Diovana e outros morado-res do Vicentina. A única

coisa que esperam, agora, é que não chova tão cedo, ao menos não antes de con-seguirem solucionar tantos problemas.

ENTENDA AS ENCHENTES DO

BAIRRO VICENTINA

“O Vicentina foi cons-truído em uma parte muito baixa da cidade. Era uma área de alagamento que in-devidamente começou a ser liberada para loteamento. O bairro teria que ser constru-ído, no mínimo, um metro mais alto, o que é inviável de se fazer”. A explicação é do Engenheiro Civil Nil-son Karam, diretor de dre-nagem urbana do Serviço Municipal de Água e Esgoto (SEMAE). Ele afirma que o problema das enchentes no Vicentina nasceu com o bairro e que a manutenção nas redes de escoamento fluvial já foi realizada.

Sobre as soluções e os pedidos para aumentar o número das proteções cha-madas de bocas de lobo nas ruas, Karam não ilude. “As bocas de lobo não resolve-riam o problema. Podem ajudar quando for pouca chuva, mas se o volume de água for muito, vai inun-dar”, ressalva ele. Para o engenheiro o ideal seria um novo canal para esco-amento da água da chuva. O atual deságua na via da Avenida João Correa, que recebe um volume muito grande, quando enche, as comportas são fechadas e a água acaba voltando para o lugar de origem e alaga as ruas.

Sobre as bombas que parecem não ajudar, Ka-ram tem outra versão. Ele aponta o lixo como princi-pal vilão. “Não podemos ligar as bombas se tem lixo que impede a passagem de água pelas grades de con-tenção. Primeiro tiramos os entulhos que atrapalham para depois ligá-las, o que demora um certo tempo”. O engenheiro ainda afirma que o problema do lixo só au-mentou nos últimos tempos e diz que estão buscando formas mecanizadas para melhorar essa situação, mas o orçamento é pouco.

Segundo o Engenheiro, já está confirmado o valor de R$ 76 milhões para a construção de uma estação de tratamento de esgoto no Vicentina. O in-vestimento viria do Governo Federal e estaria previsto para 2015. “Vai mudar a cara do Vicentina tratando-se de es-goto”, afirmou Karam. Com a obra, a água tratada pode-rá ser devolvida diretamente para o Rio dos Sinos, tendo maior vasão e amenizando os problemas que sofrem os moradores.

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SABRINA STIELERANA LERSCH

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Os moradores do Vicentina temem

quando chove. A água inunda ruas e casas, deixando marcas em paredes e móveis

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LAURA PAVESSI

Page 8: Enfoque Vicentina 1

MORADIA .9

Um teto para chamar de meuVizinhança do conjunto

habitacional cresce a cada ano, trazendo moradores de diferentes partes da cidade

Se histórias fossem tecido, o conjunto de moradias po-pulares do bairro

Vicentina poderia ser de-finido como uma colcha de retalhos. As habitações que vêm sendo entregues há cerca de cinco anos pelo programa do Gover-no Federal Minha Casa Minha Vida reúnem mora-dores de diferentes áreas e até de outros bairros. As residencias, todas padro-nizadas, se diferenciam na medida em que seus habitantes vão dando seus toques pessoais, tornando-as únicas.

No final da Rua Arno Schuch, vivem o polidor de metais José Krin, 54 anos, sua esposa Nelci, 45, dona de casa, com os filhos Heitor e João Inácio, 24 e 22 anos respectivamente. Após quase dez anos mo-rando na Rua do Carmo, onde há de ser concluído o acesso à BR 448, chega-ram à nova residência em fevereiro, depois de cinco anos de espera. “Aqui não tinha água nem energia elétrica, esperei até que a luz fosse instalada e me mudei”, diz Nelci.

O casal ainda luta por melhores condições den-

tro do conjunto de habita-ções. “Primeiro precisam resolver o problema da iluminação pública aqui. De noite o pessoal chega a ligar o celular para poder enxergar alguma coisa”, explica José. Outras recla-mações são sobre a quali-dade de algumas moradias e o terreno dos fundos de algumas casas, que ainda não foi terminado.

Perto dali, vive a re-cém-chegada Geci Maria da Silva, de 57 anos. Ela conseguiu moradia após oito anos de espera. Geci se recupera de um trans-plante de fígado, resul-tado de sua luta contra o câncer, e conseguiu ter-reno e moradia devido a esta condição. “Acordo às quatro da manhã duas vezes por semana para ir à Santa Casa consultar” explica, mostrando as caixas de remédio cus-teadas pelo governo. “Só uma dessas caixas cus-taria mil reais”, aponta. Caprichosa, ela se enche de orgulho ao mostrar a casa que mantém sempre limpa e conta seus pla-nos: começar a vender cuca e nega maluca pela comunidade.

Entre os moradores, vindos cada um de um canto, surgem diversas histórias e caminhos que convergem em algumas quadras. Mas uma coisa é consenso: o orgulho em chamar aquela casa de sua.

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Projeto responde à vulnerabilidade socialFILANTROPIA

“A vulnerabilidade so-cial em que as crianças se encontram é muito mais carência emocional do que financeira”. É com essa frase que a coordenadora do pro-jeto filantrópico Visão para o Futuro, mantido pelo Minis-tério Batista Cristo é a Vida (MBCV), Cassia Pires, define as necessidades das crianças beneficiadas pelo projeto.

Com o lema “a visão que alcança a família”, o Ministé-rio localizado no bairro Vicen-tina há 18 anos procura ajudar a comunidade trabalhando com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilida-de social. Começando com gincanas que envolviam a população infanto-juvenil hoje são cerca de 90 crianças e adolescentes atendidas nos turnos da manhã e da tarde.

O Ministério Juniores e Adolescentes (JUAD), que é a entidade a qual o projeto está vinculado, fica localiza-

do dentro do Ministério. O local que iniciou com uma única casa hoje conta com duas sedes – uma onde fun-ciona a Escola Particular de Educação Infantil Instituto Terapêutico JUAD que aten-de crianças de 0 a 5anos e

11 meses – e no outro está o MBCV, onde as atividades com as crianças e os ado-lescentes são desenvolvidas.

As propostas estão re-lacionadas a áreas como informática, reforço escolar, dança, música, teatro e arte-

sanato. Crianças e adolescen-tes de 6 a 19 anos participam complementando, assim, as atividades escolares. A ins-tituição oferece educação integral que vai além de um local de acolhimento físico e de estudos: conforto emo-cional e carinho. O filho de Elaine Lerner, voluntária do projeto, é um dos beneficiados do JUAD. Nicolas, hoje com 18 anos, praticamente nasceu dentro do ministério. Cursan-do o ensino médio, o jovem é hoje motivo de orgulho para a mãe. “Ele já terminou dois cursos técnicos e atualmente está estudando no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) na cidade de Novo Hamburgo, fazendo o curso de Tornearia Mecâni-ca”, orgulha-se a mãe.

No entanto, a instituição criada para dar continuidade à Educação Infantil, também passou por momentos difíceis.

No último mês, um fre-

quentador do projeto foi retirado da família e levado a uma casa de acolhimen-to. Filho de mãe usuária de drogas, o menino de 11 anos estava sendo iniciado no ví-cio. A instituição que conta com uma equipe, formada por uma pedagoga, uma as-sistente social e Educadores Sociais, em parceria com o Conselho Tutelar e com o Centro de Assistência de Referencia Social (CRAS) acionou o ministério público para a tomada de decisões.

A instituição propõe di-versas maneiras de auxiliar a comunidade. Dois lan-ches são servidos por turno (manhã e tarde), são doadas cestas básicas para famílias carentes e, principalmente, acontecem grupos de conver-sa para auxilio emocional das crianças e adolescentes que frequentam o projeto.

PEDRO DE BRITO-

VITÓRIA SANTOS-

José (acima) e Nelci Krin

(esquerda) se mudaram após cinco anos de espera

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PRISCILA BOEIRA

Salão do Ministério

Batista pronto para jantar beneficente

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RENATA CARDOSO

Page 9: Enfoque Vicentina 1

10. SUPERAÇÃO

Uma luta diária contra o álcoolHá três décadas sem ingerir

bebida alcoólica, morador do Vicentina compartilha experiência com dependentes na Pastoral da Sobriedade

O ano era 1986. O metalúrgico Alfeu Antônio Rosa tinha 31

anos. Casado há cerca de uma década, na época, e com uma filha de seis anos para criar, o jovem rapaz vivia sem esperanças. O motivo: 12 anos de depen-dência alcoólica e nenhu-ma estimativa de futuro. “Eu não queria aquilo, mas não tinha força para sair”, relata.

Amigos e familiares já não acreditavam mais em sua recuperação. Somente o apoio da esposa, Nely Santos Paula, na ocasião com 28 anos, persistia. “Jamais desisti dele. Não aceitava aquela situação. Meu marido não era um vagabundo. Ele era um doente que precisava de ajuda”, lembra emocio-nada.

O cuidado da jovem senhora demonstrado para com o esposo foi de fun-damental importância para a decisão que ele tomou. Alfeu ingressou na Clínica Pinel de reabilitação em

Porto Alegre no mesmo ano. Foram 28 dias de tratamento para reeducar uma vida diária de con-tato com o álcool. “Não foi fácil”, lembra Alfeu. “Casei com 18 anos sem saber do vício dele, mas

o amor que eu sinto por ele me fazia acreditar que a gente ia dar a volta por cima”, comenta Nely.

O ano é 2014. Mês de agosto.Vinte oito anos se passaram. Alfeu, hoje com 59 anos, é aposen-

tado. Nely, com seus 56 anos, continua ao lado do esposo. Desde 1986, ele não ingere bebida alcoó-lica. Há 11 anos, os dois trabalham lado a lado na coordenação da Pastoral da Sobriedade da Paróquia

Nossa Senhora da Media-neira no bairro Vicentina, em São Leopoldo.

A experiência de vida adquirida há cerca de três décadas atrás, é compar-tilhada com aproximada-mente 20 pessoas, entre dependentes químicos, alcoólatras e familiares, que frequentam as reuni-ões de grupo realizadas todas as quartas-feiras, às 20h, em uma das salas de reuniões da igreja.

Para vencer o vício, Alfeu conta que o apoio da família é fundamen-tal, pois a luta é diária. Ele acredita que a falta de valores familiares é o que contribui para que jovens entrem no mundo da dependência química. “Certos jovens são criados sem limites. Fala-se mui-to em amor, mas o amor verdadeiro tem muito não, muita disciplina, valores que hoje são esquecidos”.

Interligada a este tra-balho de autoajuda, está a Comunidade Terapêutica Bom Pastor, em Gravataí. O centro de recuperação para dependentes quími-cos e de álcool atende no momento oito homens. Nos 11 anos de existên-cia, que vão se comple-tar no dia 28 de outubro, aproximadamente três mil pessoas já realizaram tra-tamento no local.

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A fé como profissãoCRENÇA

Chegar na comunidade Vicentina com a missão de construir perfis das pessoas mais proativas da comunida-de não é tarefa fácil. A per-gunta dirigida aos líderes da comunidade foi muito direta: “quais são os ‘ícones’ do Vi-centina, – aquelas pessoas conhecidas ou lembradas por todos?” – . O nome de Dona Mariquinha foi uma resposta unânime. Uma senhora que morou no bairro até falecer, em 1996.

Segundo os moradores, ela tinha um dom como pou-cos. Maria Angelica dos Reis fez fama no bairro durante anos, sendo responsável pela cura das mais diversas enfer-midades. A benzedeira viveu durante toda sua vida no mes-mo lugar, fazendo sua casa de altar para a cura daqueles que a procuravam.

Pouco depois dos qua-renta anos, ela começou a usar sua crença em prol dos outros. Em uma mesa peque-na nos fundos de sua casa, reuniu as mais variadas ima-

gens e estátuas de santos – al-gumas já suas, outras doadas por amigos e parentes – . Em pouco tempo, havia montado o cenário de suas preces.

Maria Marlene, umas das filhas, relata que pessoas de outras cidades procuravam sua mãe em busca de uma saúde plena, principalmen-te para as crianças. Como a espera era grande, a família construiu bancos de madeira no pátio da casa para que hou-vesse mais conforto. Ainda assim, muitas pessoas fica-vam de pé.

De acordo com a neta Giane, sua avó atendia mais de vinte pessoas por dia, sempre de graça. Esse número chegou a ser de aproximadamente cinquenta logo que Dona Mariquinha iniciou seus atendimentos. Com o avanço da idade, ela diminuiu a frequência de ati-vidades. Contudo, isso não a impediu de levar uma vida plena até os últimos dias. Segundo sua família, ela sempre foi muito ativa e con-

tinuou assim até o momento em que foi para o hospital.

Autodeclarada “católica kardecista”, acreditava nos ensinamentos do catolicismo, mas também frequentava o Centro Espírita Alan Kardec. Em decorrência de uma forte anemia, a benzedeira passou

pouco mais de uma semana internada e sempre deixou claro para os parentes que não voltaria para casa.

A neta diz que, dentre as pessoas que perdeu, aquela de que mais sente saudade e que gostaria de rever é sua avó. A filha, por sua vez, gosta

de relembrar o passado ao ver fotografias antigas de quando a mãe era viva. Essa é a forma encontrada para manter a memória de uma das figuras mais conhecidas da Vicentina.

JACSON DANTAS-

THACIANE DE MOURA-

Durante 12 anos, Alfeu viveu escravo

do álcool, recuperado, ajuda outros dependentes a mudar de vida

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Uma das filhas de Dona Mariquinha,

Maria Marlene, abre as portas para as lembranças de quando sua mãe benzia os moradores do Vicentina

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VITÓRIA PADILHA

PRISCILA BOEIRA

Page 10: Enfoque Vicentina 1

DRAMA .11

A dor da perdaSeu Joca relata como perdeu

seus dois filhos vítimas da violência após envolvimento com drogas

Sentado ali, na frente da sua oficina, João Ubi-rajara Cardoso – tam-bém conhecido como

Seu Joca -, de 57 anos, vê o movimento da rua. Ele vive em uma casa simples e ao lado, tem sua oficina, local em que presta pequenos reparos a carros. Joca cumprimenta um e outro conhecido, mas não é de muitos sorrisos, também pudera, teve os dois filhos levados pelas drogas.

O filho, Leonardo Ubira-jara Cardoso, faleceu aos 26 anos. Conheceu as drogas du-rante o período em que ficou detido no Presídio Central. Tinha sido preso após matar um homem na Rua Indepen-dência, no centro da cidade. “Ele não levava desaforo pra casa”, conta Jussara Soares, tia de Leonardo.

A sentença determinava 19 anos de prisão. Porém, ele cumpriu apenas seis. “Eu ti-nha uma casa bonita e outra na praia, mas me desfiz de tudo. Vendi para pagar advogado e livrar o meu filho”, relata Seu Joca. Quando Leonardo foi solto, procurou a boca de fumo do bairro para sustentar o vício. O jovem morreu há oito anos e deixou dois filhos pequenos, que hoje estão com a ex-esposa de Joca.

A perda mais recente foi a da filha Sabrina. Ela morreu

aos 34 anos e deixou um filho de três meses. “Ela estudava, seria advogada. Mais um ano e ela exerceria a profissão”, explica o pai. Sabrina nun-ca foi usuária de drogas, até chegar uma primeira vez que não teve volta. Ela é lembrada pela família como uma moça linda e dedicada. Seu Joca não sabe explicar como a filha se tornou usuária de entorpecen-tes. Quando Sabrina entrou nas drogas começou com furtos em casa. O primeiro objeto furtado por Sabrina foi a carteira com os docu-mentos de Joca. Ele lembra do dia em que comprou uma televisão nova para a casa. A aquisição foi entregue durante a manhã. À tarde, a filha já havia trocado a tv por pedras de crack. “Ela levou tudo o que eu tinha de bom na minha casa”, lamenta Seu Joca.

O corpo de Sabrina foi encontrado há menos de qua-tro quadras da casa de Joca. Ele não foi ao velório, nem ao enterro.

Sentado em frente à sua oficina, Seu Joca vê o movi-mento da rua. Ele vive em uma casa simples e ao lado, tem sua oficina, local em que presta pequenos reparos a car-ros. Joca leva uma vida calma e solitária após a morte dos dois filhos. Cumprimenta um e outro conhecido, mas não é de muitos sorrisos.

Quando questionado se ele guardou algum pertence dos filhos, os olhos de Joca ficam marejados e com a voz embargada ele responde “não fiquei com nada deles, eu não guardo para não lembrar”.

Essa foi a maneira que ele encontrou para seguir a vida e diminuir a dor da perda dos dois filhos.

O Brasil, país do fute-bol e do carnaval, está em sétimo lugar na lista dos países com maior número

de homicídios, conforme o Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebe-la). No ano de 2012, 56.337 pessoas foram assassinadas. Esses dados fazem parte do Mapa da Violência 2014 que mostra o índice de 100

países. Segundo dados da mesma pesquisa , na cidade de São Leopoldo, entre os anos de 2008 e 2012, foram assassinadas 420 pessoas. Destas, 51% eram jovens.

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Tem sotaque nordestino entre a gauchadaHISTÓRIA DE VIDA

Marcela atravessa a rua empurrando o carrinho de bebê. Ela é mais uma das moradoras do bairro Vicentina, mas, diferente de muitos ali, não nasceu em São Leopoldo. Natu-ral do Piauí, Marcelina Januário da Silva – ela prefere ser chamada de Marcela – mora no Sul há um ano. Veio para cá junto com o marido Airton Apo-linário de Azevedo, que é caminhoneiro. Eles se conheceram em São Paulo durante um baile em um CTG. Logo no início do namoro, ela engravidou e teve seu primeiro filho, o pequeno Artur.

Marcela tem 30 anos. Quando criança, ela e os cinco irmãos trabalhavam na roça, ajudando os pais Sebastião e Maria do So-corro. Mesmo com o tra-balho de gente grande, ela nunca deixou de estudar.

Cursou até o último ano do ensino fundamental. Aos 18 anos, saiu de casa para trabalhar como ven-dedora. Porém, ela queria ir para São Paulo. E foi. Chegou lá com apenas R$ 500,00, alugou um quarto e começou a trabalhar na copa do Clube Pinheiros.

Ela passou cinco anos em São Paulo, saiu de lá com 28 anos, casada e com o filho Artur. Mar-cela lembra que a sua gestação foi difícil. “O Airton viajava muito. Passei minha gestação sozinha. Quando o Ar-tur nasceu, ele demorou quase 15 dias para vê-lo”, explica. Além da apertada rotina de Airton, outro motivo também compli-cava a relação entre ele e Marcela: o caminhonei-ro mantinha uma família no Rio Grande do Sul. A piauiense não se deixou

abalar por isso e também não desistiu do amor. Air-ton separou-se da outra esposa e trouxe Marcela para ser sua mulher.

Marcela agora procura emprego, mas no bairro não conseguiu uma escola para deixar o filho. “Uma escolinha particular me cobrou R$ 480 para ficar com ele. Não tenho con-dições”, afirma.

A escola de educação infantil só terá vagas ano que vem. Enquanto isso, a vizinha se dispôs a cui-dar de Arthur para que Marcela possa trabalhar de faxineira. Mas ela quer um trabalho como vendedora para continuar estudando. “Um dia eu termino meus estudos e desejo fazer curso para ser segurança, esse é meu sonho”, conclui.

DIOVANA DORNELES-

DIOVANA DORNELES-

Morador tenta apagar

lembranças para seguir a vida

àKARINE DALLA VALLE

Marcela, saiu do Piauí com R$ 500

rumo a São Paulo. Hoje, vive no Vicentina com o marido e o filho Artur

àKARINE DALLA VALLE

Page 11: Enfoque Vicentina 1

A perseverança que faz enxergarA história de um homem

que desafiou seus limites, tornou-se multiparaatleta e iluminou a escuridão de seus dias

O filósofo alemão Arthur Schope-nhauer, certa vez disse que “todas

as pessoas tomam os limites de seu próprio campo de vi-são, pelos limites do mundo”. Léverson Líbio Lehn tem 43 anos, há 21 ficou cego. A per-da da visão mudou comple-tamente o mundo de Lehn, mas não limitou sua vida. Pelo contrário. Segundo ele, mes-mo com os obstáculos que en-frentou, passou a viver muito melhor. O sorriso estampado no rosto e sua expressão amis-tosa confirmam isso.

Natural de Porto Alegre morou em Taquara até os cin-co anos. Após o divórcio de seus pais, ele, suas duas irmãs e sua mãe foram para Sapiran-ga. Ficou lá até os 12 anos e depois foi para Gramado viver com o pai. “Sempre tive uma vida cheia de alegrias, amigos, e desde cedo eu era muito es-tudioso”, recorda.

Com 22 anos, foi vítima de um assalto em Gramado. “Fiquei cego com um tiro. E por um erro médico, em uma cirurgia, perdi o olfato e o paladar”, conta Lehn. Na época, sua companheira o dei-xou. “Parecia que o mundo havia parado, foi complicado, não foi fácil. Mas percebi que não poderia parar de viver, de continuar buscando tudo o que sonhei pra mim”, completa.

Decidido a não se deixar vencer pela dificuldade de vi-ver em um mundo sem cores,

começou uma nova vida em Porto Alegre. A determinação e a perseverança foram suas melhores amigas. Aprendeu braile, fez curso de informática, de massoterapia e, também, de locutor. “Desde pequeno sonho em trabalhar com rádio”, con-fessa com empolgação e diz que suas inspirações no ramo são Cândido Norberto e Ruy Carlos Ostermann.

Em 1995, Léverson vol-tou a morar com a mãe, dessa vez em São Leopoldo, na Fei-toria. Está no bairro Vicenti-na há oito anos. “Sou muito grato a minha mãe, ela me ensinou tudo o que alguém deve saber sobre a vida. É uma pessoa maravilhosa” enaltece. Resolveu prestar vestibular para Educação Física, na Uni-versidade Feevale em Novo Hamburgo. Classificou-se em quarto lugar.

Na Feevale teve a ideia do projeto – aprovado pela coordenação do curso – de atividades físicas e esporte inclusivo para pessoas com necessidades especiais. Deu aulas de natação para inte-grantes da Associação de Deficientes Visuais de Novo Hamburgo. “Busco me aperfeiçoar no trabalho com pessoas com necessidades especiais, pois noto que há uma grande demanda e falta de Professores de Educação Física com conhecimento na área da inclusão”, destaca Lehn, que trancou o curso no quinto semestre, mas pretende conclui-lo em 2015.

Léverson já gostava de es-portes antes de perder a visão e por isso não foi tão difícil praticá-los após o incidente. Tornou-se multiparaatleta. Fez judô, natação, corrida de 100 metros, arremesso de dardos e discos. Participou de competi-

ções de natação em São Paulo, de judô, dos Jogos Escolares do Rio Grande do Sul (JERGS). Em sua estante coleciona 25 medalhas, entre ouro e bronze, que representam a conclusão de mais uma etapa vencida.

Atuou como voluntário na Associação Leopoldense de Deficientes Físicos, e lá conheceu Rosemari Peres, ou a “paixão”, como ele prefere chamar. “Nos conhecemos há 14 anos e desde então sempre fomos parceiros no volunta-riado. Há oito anos estamos

juntos, e o fruto desse amor é o Kassyus, nosso filho”, ressalta com carinho.

Para ele, acompanhar a evolução da gravidez de sua parceira e o nascimento do filho foi um dos melhores momentos de sua vida. “Eu estive ao lado dela durante o parto e fiquei 40 minutos com o meu filho no colo, logo que ele nasceu. Nunca vou me esquecer disso”, lembra emocionado. Kassyus tem sete anos e sempre foi ape-gado ao pai. “Não contei pra

ele que eu era cego, deixei que descobrisse por conta. E ele me ajuda muito, é meu companheiro”, disse o atleta.

Lehn pretende, um dia, morar na praia. E de tudo o que viveu até agora, leva consigo um lema: “Eu que-ro sempre mais. Nunca me contento com o que tenho. Sempre busco melhorar, me superar. Não perco o meu foco diante de qualquer tipo de preconceito”.

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Impressões de uma repórterSempre gostei de histórias que emocio-

nam, que despertam sentimentos e, princi-palmente, que ensinam algo. Larguei o curso de Direito e fui me aventurar no Jornalismo para ir atrás desse tipo de narrativa. Talvez até por ser sentimental demais. Adquiri conhecimento (por mínimo que fosse) em todas as matérias que já fiz, nestes dois anos de curso. Mas conversar com o Léverson foi diferente.

Cheguei na casa dele às duas horas da tarde, de um sábado ensolarado. Todas as perguntas anotadas, caneta, bloquinho e gravador a postos. Confesso que estava meio sem jeito e muito preocupada em deixa-lo à vontade. No entanto, ele foi tão receptivo e amistoso – sorte a minha –

que essas preocupações desapareceram nos primeiros minutos de conversa. Ambos estávamos confortáveis, o papo foi fluindo naturalmente.

Ouvir a história do Levérson, saber que ele perdeu a visão jovem, não se deixou abater, foi atrás de todos os seus sonhos e hoje leva em sua bagagem uma série de conquistas, me fez perceber o quão capaz o ser humano é de alcançar aquilo que almeja.

Não importa se é difícil, ou demorado. O que conta é o resultado final, a realização pessoal. Desistir é uma palavra que não existe no vocabulário dele, e, a partir de agora, nem no meu.

BÁRBARA MÜLLER-

BÁRBARA MÜLLER-

Com sua história de

vida, Léverson serve de inspiração para a comunidade

à

ARQUIVO PESSOAL

ENFOQUE VICENTINA EDIÇÃOSÃO LEOPOLDO / RS 1SETEMBRO DE 2014

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INSPIRAÇÃO

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