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MARIA CANDIDA DO AMARAL KROETZ

ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO CONTEMPORNEO E RECOMPOSIO PATRIMONIAL

CURITIBA 2005

MARIA CANDIDA DO AMARAL KROETZ

ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO CONTEMPORNEO E RECOMPOSIO PATRIMONIAL

Tese apresentada como requisito parcial obteno do grau de Doutor, ao Programa de Ps-Graduao em Direito, ao Setor de Cincias Jurdicas e Sociais da Universidade Federal do Paran. Orientador: Prof. Dr. Luiz Edson Fachin

CURITIBA 2005

TERMO DE APROVAO

MARIA CANDIDA DO AMARAL KROETZ

ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO CONTEMPORNEO E RECOMPOSIO PATRIMONIAL

Tese aprovada como requisito parcial obteno do grau de Doutor no Programa de Ps-Graduao em Direito, Setor de Cincias Jurdicas e Sociais da Universidade Federal do Paran, pela seguinte banca examinadora:

ORIENTADOR: _______________________________________________ Prof. Dr. Luiz Edson Fachin ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________ ________________________________________________

Curitiba, 27 de junho de 2005.

Este trabalho dedicado ao Tarcsio, em agradecimento ao incentivo e apoio dispensados.

AGRADECIMENTOS

Ao Pofessor Jos Francisco Ferreira Muniz, inesgotvel fonte. Ao Professor Doutor Luiz Edson Fachin pela valiosa orientao na elaborao desta tese, marcada por diretivas exatas, acuradas observaes, constante estmulo, plena presteza de atendimento e delicadeza de trato mpar. Aos Professores Doutores Edevaldo Brito, Jos Antonio Peres Gediel, Ricardo Aronne e Ana Carla Harmatiuk Matos, membros da banca examinadora da tese apresentada para fins de doutoramento, pela especial ateno na anlise deste trabalho e pelas consideraes tecidas. Ao Professor Doutor Ricardo Marcelo Fonseca pelas valiosas sugestes. professora Antnia Schwinden pela reviso dos originais. Aos meus pais Ione e Gariba pela formao recebida e pela ajuda cotidiana. Ao Tarcsio pelo incentivo e apoio pleno. s queridas Maria Eugnia, Maria Augusta e Maria Cristina pela compreenso e pelo carinho.

SUMRIO

RESUMO ......................................................................................................................vii ABSTRACT ...................................................................................................................viii INTRODUO .................................................................................................................1 I. PARTE 1: MARCOS PARA O ESTUDO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ...........................11 I.1 - PREMISSAS .......................................................................................... .....12 I.2 - AS ELOQENTES RAZES HISTRICAS ....................................................... ....20 I.3 - OS DIVERSOS PARADIGMAS DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ........................35 I.4 - ELEMENTOS INDISPENSVEIS CONFIGURAO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA .................................................................................................67 I.5 - OBJETO DA OBRIGAO DE RESTITUIR O ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ......104 II. PARTE 2: O MBITO DE APLICAO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ........................114 II.1 - HIPTESES DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA NOS QUADROS DO ENRIQUECIMENTO FORADO ................................................................120 II.2 - PAGAMENTO INDEVIDO .............................................................................135 II.3 - ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA POR INTERVENO NO PATRIMNIO ALHEIO .144 II.4 - ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DECORRENTE DA INVALIDADE DOS NEGCIOS JURDICOS ............................................................................. .162 II.5 - ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA E CONTRATO ............................................. 170 CONCLUSO ..............................................................................................................180 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 186 NDICE .......................................................................................................................195

RESUMO

O enriquecimento sem causa descrito como um mecanismo satisfatrio para recomposio patrimonial em casos em que tenha ocorrido uma transferncia de bens ou direitos desprovida de uma causa justificativa juridicamente aceitvel. Partese da concepo do enriquecimento sem causa como uma fonte de obrigaes. So examinados os diversos paradigmas coexistentes para explicitar a dimenso do enriquecimento sem causa adotada: nem to ampla quanto um princpio geral de direito, nem to restrita quanto sua reduo a categorias previamente tipificadas. Toma-se o artigo 884 do novo Cdigo Civil como clusula geral em constante construo. So explicitados os elementos necessrios caracterizao do enriquecimento sem causa enriquecimento, ausncia de causa e obteno custa de outrem e afastados os requisitos reducionistas - subsidiariedade da obrigao de restituir, ausncia de culpa de quem exige a restituio, exigncia de imediao e necessidade de um empobrecimento concomitante. Sustenta-se que o valor da restituio do enriquecimento deve corresponder ao valor objetivo da vantagem adquirida enriquecimento real limitado diferena para maior produzida no patrimnio do enriquecido enriquecimento patrimonial somente nos casos em que este tenha agido de boa-f. Aduz-se aos casos mais freqentes de enriquecimento sem causa: benfeitorias, acesses, pagamentos indevidos, prestaes derivadas de contratos invlidos, vantagens obtidas por interveno em bens ou direitos alheios e contratos com flagrante desequilbrio na equivalncia das prestaes.

ABSTRACT

Unjust enrichment is described as a satisfactory mechanism for pecuniary restitution in cases in which there has been a transfer of wealth without a legally accepted justification. It parts from the conception of unjust enrichment as a source of obligations. The various coexisting paradigms are examined to make explicit the dimension of the unjust enrichment adopted: not as broad as a general principle of law, nor as restricted as its reduction to previously characterized categories. It takes Article 884 of the new Civil Code as a general clause in constant construction. The elements necessary to characterize unjust enrichment are made explicit enrichment, absence of cause, and being at the cost of another and reductionist requirements are separated subsidiarity of the obligation to make restitution, absence of faults in the one who seeks restitution, a requirement of proximity, and necessity of concomitant impoverishment. It argues that the amount of restitution for the enrichment must correspond to the objective value of the advantage acquired actual enrichment limited to the increase produced in the wealth of the one who is enriched patrimonial enrichment only in cases in which the one who is enriched has acted in good faith. It presents the most frequent cases of unjust enrichment: improvements, accessions, undue payments, consideration deriving from invalid contracts, profits obtained by intervention in anothers property or rights, and contracts with flagrantly unequal consideration.

INTRODUO

A partir de preocupaes tericas e estmulos de ordem prtica pode se detectar que, no Brasil, a vedao do enriquecimento sem causa, como modo de recomposio patrimonial, parece carecer de uma adequada sistematizao doutrinria, legislativa e jurisprudencial. A pesquisa realizada moveu-se com o intuito de enfrentar esta questo e, na medida do possvel, contribuir formulando propostas para colmatar as lacunas observadas, bem como elucidar as possibilidades de aplicao do enriquecimento sem causa como mecanismo adequado para reverter as atribuies patrimoniais desprovidas de causa justificativa. Analisando-se a doutrina e jurisprudncia brasileiras, constatou-se que o tema do enriquecimento sem causa no largamente difundido. Isso est a justificar que sejam envidados esforos tendentes a preencher um vazio no direito obrigacional nacional. Faz-se necessrio manuse-lo para conhec-lo e revel-lo. Essa colocao no simplifica nem reduz a problemtica e tampouco sugere que se almeje esgotar o tema. Em verdade, pe a lume uma realidade

incontestvel, na medida em que no h uma concepo genericamente aceita e compartilhada sobre o enriquecimento sem causa, nem mesmo entre os juristas. De outro lado, o enriquecimento sem causa uma figura que, apesar de ainda no ter

os contornos perfeitamente delineados na dogmtica1, surge promissora como ponta de lana na evoluo do direito patrimonial. O enriquecimento sem causa possibilita que se recolham e sistematizem os saberes j produzidos e, examinando-os sob um novo ngulo, se faa uma releitura do instituto, para apresentar proposies consentes com as necessidades da atualidade, numa autntica travessia da tica clssica contemporaneidade. Na expresso de Jos LVAREZ-CAPEROCHIPI, o enriquecimento sem causa uma palavra nova, mgica, insinuante e cheia de poder sedutor, que pretende renovar o direito em tudo que lhe for permitido.2 O tema da pesquisa mostra-se complexo e plural. O enriquecimento sem causa, sendo uma criao jurdica, traduz um estgio juscultural e exprime um modo de decidir prprio de certa ordem sociojurdica. Isto implica que se busque a sua explicao em termos histricos e sua integrao nesta ordem sociojurdica. A cientificidade do enriquecimento sem causa corresponde efetiva possibilidade de serem resolvidas questes concretas mediante sua aplicao. com vista ao equacionamento dessas questes concretas, mediante o auxlio das fontes, da doutrina e da jurisprudncia que se buscar traar o regime atual do enriquecimento sem causa. Desde logo advirta-se que para realizao deste mister foi decisiva a obra de Jlio Manuel VIEIRA GOMES O conceito de enriquecimento, o enriquecimento

O sentido em que est empregada a expresso dogmtica aquele impresso por Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, na introduo sua consagrada obra, Da boa-f no direito civil, p. 30: Nas palavras de Esser: a dogmtica o caminho de tornar questes de justia, nos seus diversos mbitos, juridicamente operacionais. A dogmtica no constitui, apenas, um elemento decisivo na captao do material jurdico; ela permite a verificao racional das solues encontradas e a sua crtica; pressupondo um nvel organizatrio elevado da ordem jurdica, ela deve servir s necessidades da vida. Neste sentido entende-se, aqui, a dogmtica e no num outro, algo difundido e fonte de confuses pelas crticas indiscriminadas que possibilita, no qual dogmtica se identifica com axiomatismo ou conceptualismo, postulando uma deduo lgica de proposies a partir de um ncleo central, e culminando na subsuno.2

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Jos Antonio Alvarez-Caperochipi, El enriquecimiento sin causa, p. 3.

forado e os vrios paradigmas do enriquecimento sem causa qual este trabalho em grande medida tributrio. A profunda anlise do enriquecimento sem causa realizada pelo autor portugus, incluindo incurses na doutrina alem clssica e no arrojo inovador do direito ingls, serviu de guia constante. A par das diversas outras obras que tanto contriburam para execuo do trabalho, no se pode deixar de mencionar a influncia do pensamento vanguardista de JOS LVAREZCAPEROCHIPI, na obra El enriquecimiento sin causa. Vanguardista no sentido de ousar na tica de anlise e de acreditar nas inmeras possibilidades do enriquecimento sem causa. Neste momento inicial reputa-se oportuno esclarecer que o pano de fundo da questo relativa ao enriquecimento sem causa assenta-se em grande medida no sistema de transmisso da propriedade consagrado em cada ordenamento jurdico, o que impede a simples transposio de solues adotadas em sistemas estrangeiros. No direito brasileiro a atribuio patrimonial, entendida como o ingresso em uma esfera jurdica de um montante, bem ou interesse pecuniariamente afervel, no prescinde de uma causa. E desde logo percebe-se que a vedao do enriquecimento sem causa tem potencial para ocupar um relevante espao no direito obrigacional, j que pode consistir em instrumento assaz eficiente para o controle da correspondncia necessria entre as atribuies patrimoniais e suas causas, prestando-se, em ltima anlise, concreo do ideal de igualdade que permeia o contemporneo civil atual. Inicialmente tambm de se apontar que a vetusta figura do enriquecimento sem causa deita razes no direito romano clssico, mas pode-se dizer que foi esquecida ou propositalmente escanteada no perodo das codificaes do sculo XIX, j que no se adequava concepo essencialmente voluntarista e consensualista vigente poca. interessante notar que tais codificaes, inspiradas na matriz francesa do Code de Napolon, no positivaram nenhum

princpio que proibisse o enriquecimento sem causa. Isto porque no sistema terico criado a causa era vista como um dos requisitos de validade do contrato e ao anulatria do contrato cumpriria o controle das situaes decorrentes de deslocamentos patrimoniais derivados de contratos ilcitos, inexistentes ou sem causa. Ocorre que cedo se observou que esta viso de que todos os

deslocamentos patrimoniais resolviam-se nos quadros do contrato expresso acabada de irrestrita autonomia da vontade revelou-se deturpada, porque era, no mnimo, insuficiente. O silncio a propsito do enriquecimento sem causa aparece como correlativo dos princpios individualistas, voluntaristas e nominalistas do sistema instaurado por esses Cdigos, princpios estes propensos a sacralizar os contratos, a proteger os patrimnios de toda e qualquer intromisso estranha vontade do seu titular, contrrios aceitao de obrigaes sem o consentimento do obrigado, negadores da exigncia do preo justo e do princpio da equivalncia das prestaes. As excees admitidas por tais Cdigos, na regulao da atualmente superada categoria dos quase-contratos (gesto de negcios e repetio do indevido), aparecem como figuras marginais e construdas dentro de limites estreitos. Outras situaes em que se suscitassem problemas de enriquecimento injustificado, como as conseqncias da posse e da acesso, encontravam uma resposta legal especfica. Contudo, talvez at por corresponder a um conceito popularmente consagrado de que ningum pode locupletar-se s custas de outrem, o instituto sobreviveu, alado a um estado etreo de princpio geral de direito, sendo usado com pouca freqncia na jurisprudncia e negligenciado na elaborao doutrinal. Disso resultou uma utilizao assistemtica da noo de vedao do enriquecimento sem causa, baseada em uma repetio de velhos brocardos transmitidos de boca em boca, ou melhor, de deciso em deciso, como verdades inconcussas, ainda que

embrumadas por uma certa dose de incerteza ou confuso. Nas mos da jurisprudncia, a doutrina do enriquecimento sem causa vem sendo muito utilizada como recurso de eqidade por aqueles que no se ocupam em racionalizar a aplicao do direito mas em encontrar solues para o caso concreto. Esse fenmeno, todavia, tem a virtude de revelar que desde muito h um prentendimento3 do tema que reabilita a tradio e a experincia jurisprudencial sobre o enriquecimento sem causa. Em verdade, ele explica uma certa intuio judicial no encontrar solues acertadas para situaes concretas. Assim chegou-se regulao do enriquecimento sem causa que foi impulsionada por obra dos julgamentos dos intrpretes-aplicadores. No direito comparado j existe importante elaborao doutrinria, acolhimento legislativo e rica aplicao jurisprudencial do enriquecimento sem causa, mas o panorama jurdico nacional do tema ainda incipiente. A recente consagrao legislativa do enriquecimento sem causa pelos artigos 884 a 886 do Cdigo Civil de 2002 constitui um marco fundamental na disciplina da matria. Embora se tenha conscincia de que, com o surgimento dos diversos microssistemas que pretendem disciplinar a vida de relao, o Cdigo Civil tenha perdido o papel central que desfrutava no sistema4 e adquirido um carter perifrico e supletivo, ele ainda um

Nas palavras de Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, op. cit., p. 38, O fenmeno do pr-entendimento jurdico no se queda pelo apreender de textos: a deteco dos problemas carecidos de regulao que vai, de si, com a prpria regulao , em grande parte, obra dos pr-julgamentos do intrprete-aplicador. As perspectivas desta instrumentao, a aprofundar nos prximos anos, j que, s aos poucos, a temtica, no nova, vai chegando dogmtica, so considerveis. Explicam a intuio judicial no encontrar, com deficincias de fundamentao, de solues acertadas e permitem alargar as potencialidades sindicantes do sistema. Conforme Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil Introduo ao direito civil constitucional, p .6: Numerosas leis especiais tm disciplinado, embora de modo fragmentado e por vezes incoerente, setores relevantes. O Cdigo Civil certamente perdeu a centralidade de outrora.4

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bastio, um relevante componente da regulao patrimonial dos interesses do sujeito.5 Inicialmente preciso reconhecer que impedir o enriquecimento injusto custa de outrem um dos princpios mais gerais do ordenamento jurdico e constitui uma das finalidades precpuas do direito das obrigaes. Todas as normas tendem mais ou menos diretamente a obter uma distribuio equilibrada dos direitos e interesses nas relaes de interdependncia. Se o comprador e o vendedor se comprometem reciprocamente a entregar o preo e a coisa, se o mandatrio deve prestar contas de sua gesto ao mandante, se a conseqncia da resoluo do contrato determina a devoluo do recebido, se deve-se reparar o dano causado e assim por diante, tudo isto em ltima anlise pretende impedir que transferncias patrimoniais injustificadas se produzam. Nessa medida, no h como se negar que a vedao do enriquecimento injusto seja um princpio geral de direito entendido como uma daquelas grandes

At porque o direito civil, especialmente no direito das obrigaes, parece ter preservado um regime, oriundo de Roma, que tem sobrevivido s diversas oscilaes poltico-sociais. E neste ponto compartilha-se a opinio que foi externada por Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, op. cit, p. 35-36: Uma dogmtica dinmica deve ter capacidades de aderncia realidade, enquanto o convergir de sociedades tcnicas reduz a margem de oscilao. A possibilidade de evitar rupturas depende em ltima anlise, da margem constitucional, face abertura da sociedade correspondente. O restringir progressivo das ideologias, aplicadas a temas de exerccio e natureza do poder ou a aspectos quantitativos da apropriao, deixa o Direito civil numa rea pouco sensvel, sobretudo no domnio das obrigaes, cujo regime, oriundo de Roma, tem sobrevivido aos sistemas poltico-sociais mais diversos. Crises do Direito, de origem ideolgica, a haver, manifestar-se-iam, assim, no campo constitucional, embora seja de notar, por uma amostragem nacional e estrangeira, que face a constituies consideradas idneas, a tendncia v para o reforo da interpretao convencional, num neopositivismo jurdico-constitucional, ao arrepio do que sucede no Direito privado. No entanto, como instncia de controlo, o plano ideolgico no deve ser esquecido: nas reas de largo consenso, como no da liberdade ou no da igualdade, ele pode reforar a jussubejectivao ou a proscrio do arbtrio, base de qualquer sistemtica, por exemplo, nas reas de consenso menor, ele deve permitir uma maleabilidade acrescida de sadas, como forma de manter o essencial. A adeso a esta corrente doutrinria no significa que se adote a concepo de direito vigente no perodo das grandes codificaes, assim descrita por Pietro Perlingieri, op. cit., p. 58, poca da emanao do Cdigo, o sistema jurdico era visto principalmente na acepo recebida pela pandectista: os dogmas imperantes acreditados por uma longa tradio de elaborao do direito romano eram o carter sacro da propriedade privada e o poder da vontade do sujeito. Tem-se plena conscincia das insuficincias da dogmtica clssica e da necessidade de prosseguir no desenvolvimento do direito em uma dimenso histrico-relativa.

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orientaes da ordem positiva, que a percorrem e vivificam, e tem a potencialidade de conduzir a novas solues. Porque a ordem jurdica no um amontoado casual de elementos, iluminada por grandes orientaes que lhe do o travejamento bsico e que, como componentes da lei, merecem o mesmo respeito e a mesma obrigatoriedade da prpria lei. Assim, o princpio da boa-f, o princpio da conservao dos negcios jurdicos e tantos outros que tm sido elaborados. Fala-se em princpios da ordem jurdica e no em princpios da ordem legal que se referem ao ordenamento no seu conjunto e que permitem a evoluo da ordem normativa em que pese as leis ficarem aprisionadas em frmulas que no se atualizam. No mesmo sentido a posio de LARENZ, que entende que os princpios pertencem verdadeiramente ao contedo do direito positivo, desde que por tal no se compreenda apenas a lei, mas sim a totalidade da ordem jurdica vigente; mas eles no brotam nem da lei nem da jurisprudncia, antes esto subjacentes a ambas.6 Tradicionalmente o escopo traduzido nesse princpio geral de vedao do enriquecimento sem causa foi freqentemente perseguido por meio de normas especficas anulabilidade, gesto de negcios, responsabilidade civil sem recurso direto ao enriquecimento sem causa. E foi este remodelar constante do princpio geral do enriquecimento sem causa, mediante o papel essencial da jurisprudncia, que acabou por fazer com que ele se emancipasse tambm como realidade jurdica autnoma necessria e suficiente a regular um determinado conjunto de situaes. No Direito Civil brasileiro essa operao consolidou-se com a consagrao, pelo artigo 884 do Cdigo Civil de 2002, de uma clusula aberta que obriga aquele que, sem justa causa, enriqueceu custa de outrem, a restituir o indevidamente

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Karl Larenz, Derecho Justo Fundamentos de tica jurdica, p. 32 e segs.

auferido. Em poca em que se lanam desafios tendentes a possibilitar a transio do clssico para o contemporneo com fundamento nas premissas da dogmtica crtica, o tema exsurge muito instigador. que, apesar de suas significativas matrizes histricas, depois de um longo perodo de exlio do panorama doutrinrio, legislativo e jurisprudencial, o enriquecimento sem causa ressurgiu mitigado e enfraquecido, provavelmente pela dificuldade de enquadramento nas categorias preestabelecidas. Mas as infinitas possibilidades do instituto justificam os esforos tendentes a resgat-lo da posio marginal que vem ocupando, desatrelando-o de quadros mentais obsoletos em que o direito obrigacional exaure-se na temtica dos contratos e da responsabilidade civil. Quando se considera a proibio do enriquecimento sem causa precisamente como uma das fontes de obrigaes, no se est aludindo ao significado global e amplo do enriquecimento injusto que se considera e evita por meio das mais variadas instituies jurdicas, mas se dota o enriquecimento sem causa de um significado autnomo como direito gerador de obrigaes. O enriquecimento sem causa um tema clssico porque tem suas origens na modernidade jurdica, mas esse classicismo basicamente serve como alavanca para projetar o objeto de exame para contemporaneidade quando esto superadas a viso monoltica do direito e os juzos apriorsticos. A tnica que se pretende imprimir anlise no sentido de promover um afastamento dos desenvolvimentos tericos da Cincia do Direito7, que traduzem a fraqueza do processo juscientfico, paraNas palavras de Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, op. cit., p. 34: A presena de nveis superiores de discusso, face realidade investiganda, conduz, como natural, possibilidade de discursos autnomos, num afastamento crescente do objecto de investigao. Quando um desenvolvimento desse tipo incidiu no plano sistemtico, desembocou-se no conceptualismo. (...) Evite-se, pelo desgaste, falar de crise. Mas h, pela manuteno de desenvolvimentos metassistemticos, sem conexo com o Direito aplicvel, um cientismo estranho dogmtica e logo metodologia real. Neste ponto, que traduz a inoperncia dos desenvolvimentos tericos em voga, face necessidade de solues reais, reside a fraqueza do processo juscientfico actual. O diagnstico, que aqui se antecipa, pois, por definio, s a dogmtica jurdica, demonstrando a disparidade entre afirmaes metodolgicas e sadas concretas, pode comprov-lo, ser traduzido pela idia de irrealismo metodolgico.7

buscar solues reais, pois o Direito encarado como um modo de solucionar casos concretos. A opo realizada foi por ampliar as fronteiras do objeto de estudo para alm das consideraes centrais do problema, traduzidas em discursos sobre a prpria noo de enriquecimento sem causa, o que apenas contribuiria para os metadesenvolvimentos de carter terico e lingstico que tanto afligem o panorama juscientfico da atualidade. Busca-se aprofundar a base terica para que ela se lance como fundamento para as solues dos problemas que se apresentam na vida de relao. O estudo desenvolve-se em duas partes: na primeira ficam estabelecidos os marcos para o estudo do enriquecimento sem causa e na segunda so analisadas as diversas situaes de ordem prtica cujo equacionamento depende de solues fundadas no enriquecimento sem causa. A primeira parte inicia-se por esclarecimentos relativos terminologia adotada e considerao do enriquecimento sem causa como fonte de obrigaes. Adentrando especificamente no tema, comea-se com o exame das eloqentes razes histricas do tema que tem origens no direito romano clssico, sofreu influncias dos interpoladores bizantinos e posteriormente dos canonistas. Depois, passa-se a explicitar os diversos paradigmas do enriquecimento sem causa desde a sua dimenso principiolgica e suas ligaes histricas com a eqidade at a anlise crtica da elaborao doutrinria sobre o enriquecimento sem causa a partir do sculo XIX at a atualidade. Na seqncia, a anlise recair mais detidamente sobre cada um dos elementos do enriquecimento sem causa em sua dimenso contempornea. Tambm sero suscitados questionamentos sobre os requisitos reducionistas que costumam vir associados caracterizao do enriquecimento sem causa, quais sejam, a subsidiariedade, a imediao, o empobrecimento do

proprietrio e a ausncia de culpa pelo deslocamento patrimonial. Pretende-se igualmente situar o enriquecimento sem causa nesta importante seara do privado que o direito das obrigaes, expondo suas relaes com a responsabilidade civil, sem deixar de apreciar a dinmica da restituio propriamente dita, trabalhando os conceitos de enriquecimento real e patrimonial e frisando a prioridade da restituio in natura. Da mesma forma passa-se pelo exame das situaes em que desaparece o enriquecimento e em que h necessidade de proteger o enriquecido de boa-f. Na segunda parte examina-se a casustica do enriquecimento sem causa. Toda a anlise foi permeada por um fio condutor apontado por Jlio Manuel VIEIRA GOMES. O objeto da restituio do enriquecimento sem causa o enriquecimento real, que corresponde ao valor objetivo e autnomo da vantagem adquirida. O enriquecimento patrimonial, que reflete a diferena para maior produzida na esfera econmica do enriquecido se comparadas a situao atual efetiva e aquela hipottica em que se encontraria o patrimnio se a deslocao no houvesse acontecido, funciona apenas como limite da obrigao caso o enriquecido esteja de boa-f. Com base nesta premissa parte-se para a anlise das hipteses mais freqentes de aplicao do enriquecimento sem causa, quais sejam, o

enriquecimento forado, os negcios jurdicos nulos ou anulveis, o pagamento indevido, o lucro por ingerncia nos direitos ou bens jurdicos alheios e os enriquecimentos sem causa gerados no mbito dos contratos. Por fim, abre-se a oportunidade para autonomizar a tese defendida e apresentar as concluses extradas da pesquisa realizada.

PARTE I

MARCOS PARA O ESTUDO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

I.1 PREMISSAS

I.1.1 A OPO PELA EXPRESSO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

Ao mencionar-se institutos como o contrato, o casamento ou a propriedade, at mesmo aqueles indivduos sem formao tcnico-jurdica tm uma noo, ainda que vaga ou imprecisa, do que se trata. Outras expresses como responsabilidade civil, vcios redibitrios ou bem de famlia so termos cujo significado de conhecimento restrito aos profissionais do direito. Mas no enriquecimento sem causa o quadro desolador. Nem mesmo no meio jurdico existe uma idia clara do que se trata. Se no se tem sequer uma noo do que seja o enriquecimento sem causa, provvel que ele continue a ser uma sada eventual para conflitos cuja resoluo no se obtm nos quadros tradicionais do ordenamento jurdico. E como tal no satisfaz plenamente sua vocao como instrumento jurdico alternativo de resoluo de conflitos resultantes de transferncias patrimoniais ocorridas fora dos quadros do contrato e da responsabilidade civil. Note-se que nem sequer na denominao do instituto existe uma unanimidade.8 s vezes fala-se em enriquecimento sem causa, restituio9,

Como observa Manuel De La Cmara Alvarez, Enriquecimiento injusto y enriquecimiento sin causa, in Dos Estudios sobre el Enriquecimiento sin Causa, p. 139, La dificultad que el estdio del enriquecimiento injusto conlleva h determinado que todo o casi todo lo que concierne a la institucin que nos ocupa sea objeto de discusin y controversia. (...) He dicho que se discute todo o casi todo; empezando por la misma terminologa. Enriquecimiento injusto o enriquecimiento sin causa?

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enriquecimento injusto ou enriquecimento injustificado como sinnimos10. Outros autores apontam distines entre os termos ou os contrapem.11 Nesta tese optou-se por adotar a denominao enriquecimento sem causa porque a expresso j consagrada nos pases latinos (enriquecimiento sin causa, enrichissement sans cause e arricchimento senza causa) e na legislao nacional pelo captulo IV, do ttulo VII, do livro I, da parte especial do Cdigo Civil (artigos 884 a 886). Sem olvidar, todavia, que esta expresso, alm de ser ininteligvel para um leigo, padece de forte ambigidade e impreciso, especialmente pela sua expressa referncia causa, que por si s j um conceito jurdico profundamente cientificizado e em torno do qual no h consenso.12

O termo restituio muito ambguo e incorpora a idia de devoluo de uma determinada coisa ou direito que pode decorrer de situaes no relacionadas ao enriquecimento sem causa. Todavia h que se salientar que o termo restitution o consagrado no common law para identificam a mesma rea do direito abrangida pelo enriquecimento sem causa dos pases de tradio latina. Peter Birks, Na Introduciton to the Law of Restitution, p. 17, apud, Jlio Manoel Vieira Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forado e os vrios paradigmas do enriquecimento sem causa, p. 84, assevera: Restitution and unjust enrichment identify exactly the same area of law. The one term simply quadrates with the other. Jlio Manoel Vieira Gomes, op. cit., p. 79, salienta que: Em suma, quer a expresso sem causa, quer a expresso injusto, significam apenas que o enriquecimento deve ser restitudo, o que parece ter o sabor de uma tautologia: o enriquecimento no tem causa quando deve ser restitudo e deve ser restitudo quando no tem causa. Contudo, o que isto traduz, como veremos, que a ausncia de causa uma questo a que as regras do enriquecimento sem causa no do resposta, devendo esta ser procurada noutro lugar do ordenamento. Manuel de La Cmara Alvarez, op.cit., p. 140, assevera que: En la doctrina se habla muchas veces de enriquecimiento injusto y de enriquecimiento sin causa como expresiones que designa un mismo concepto, pero quienes profundizan en el estudio de la institucin matizan ms. (...) en puridad, no es lo mismo, a mi entender, enriquecimiento injusto que enriquecimiento sin causa, si bien para ambos conceptos estn en relacin de gnero a especie. Diogo Paredes Leite de Campos, A subsidiariedade da obrigao de restituir o enriquecimento, p. 232-298, analisa diversos autores baseados nos ordenamentos jurdicos francs, alemo, italiano e portugus para concluir que no h consenso quanto ao conceito de causa.12 11 10

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I.1.2

A CONSIDERAO DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA COMO UMA

FONTE DE OBRIGAES

Fonte da obrigao qualquer fato jurdico de onde nasce ou deriva o vnculo obrigacional, dando vida a uma relao creditria. Hoje encontra-se superada a concepo clssica que apontava a lei e o contrato como as nicas fontes de obrigaes.13 Modernamente, a sistematizao das fontes de obrigaes no goza de unanimidade perante a doutrina14 e os diversos ordenamentos jurdicos, mas quatro institutos so invariavelmente apontados como fontes obrigacionais: o contrato, a responsabilidade civil, o enriquecimento sem causa e a gesto de negcios.

Fernando de Noronha, Direito das Obrigaes, p. 343, bem sintetiza esta superao: No fundo, todas estas posies reconduzem-se famosa classificao bipartida das fontes das obrigaes, contrato e lei, formulada no comeo do sculo XX pelo grande mestre francs que foi Planiol. Para ele, atrs de cada obrigao estava ou a vontade legal (obrigaes legais), ou a vontade privada (obrigaes contratuais): nas obrigaes contratuais o dever de prestar derivaria do acordo de vontades, no da lei, a qual s interviria para vincular juridicamente as partes ao contrato celebrado; as demais obrigaes seriam conseqncia do estatudo na lei. Atualmente, com a superao das teses individualstico-liberais que sacralizavam a vontade, o papel desta na constituio de obrigaes vem sendo reduzido s devidas propores, ao mesmo tempo que se reconhece que a lei apenas pode permitir a criao de direitos de crdito, mas nunca cri-los diretamente. Classificao diversa apresenta Fernando Noronha, Tripartio fundamental das obrigaes: obrigaes negociais, responsabilidade civil e enriquecimento sem causa, p. 105, que entende que o mais acertado a tripartio das obrigaes, a partir de suas funes: obrigaes negociais, de responsabilidade civil e de enriquecimento sem causa. Na verdade, a cada uma dessas categorias de obrigaes corresponde um princpio tico-jurdico diferente, que assinala claramente a diversa finalidade de cada uma. As obrigaes negociais tm na sua base o princpio de que quem assume livremente uma obrigao, deve cumpri-la: pacta sunt servanda, os pactos tm de ser acatados. princpio que tem por pressupostos essenciais os princpios da autonomia privada, da boa-f e da justia contratual, no deixando, alis, de estar contido na expresso de Ulpiano honeste vivere, viver honestamente. As obrigaes de responsabilidade civil baseiam-se essencialmente no princpio neminem laedere, no lesar ningum: quem causa dano a outrem, deve repar-lo. As obrigaes de enriquecimento sem causa assentam no princpio sum cuique tribuere, dar a cada um o que seu: quem beneficiou com algo alheio, deve restituir o valor do benefcio.14

13

Essa classificao, assim como as demais classificaes dogmaticamente elaboradas, tem por objetivo sistematizar15 o pensamento jurdico, embora se tenha a conscincia de que ela no tem o condo de aprisionar a realidade ftica nos limites das categorias que traa. Presta-se muito melhor a organizar estas diversas categorias que guardam entre si similitudes, comungam de princpios gerais e geram conseqncias semelhantes na vida de relao, sem com isso perder suas caractersticas peculiares. Grosso modo, pode-se dizer que o enriquecimento sem causa um instituto que cria para o enriquecido a obrigao de devolver a parcela do patrimnio de outrem, que foi retirada sem uma causa justificativa. Considerando que a principal conseqncia do enriquecimento sem causa criar uma obrigao de restituir, muito difundida na doutrina moderna a linha de pensamento de que o enriquecimento sem causa uma fonte de obrigaes.16 Quando HUGO VAN GROOT GROTTIUS OU GROCIO esteve preso no castelo de Levenstein (1619 a 1621) e escreveu uma Introduo ao Direito Civil Holands, de carter bastante elementar, com o objetivo de iniciar seus filhos no estudo do Direito, asseverou que o Direito Natural oferece duas fontes de obrigaes: o contrato e a desigualdade. Como nem todas as pessoas poderiam ser igualmente ricas, no seria qualquer desigualdade apta a gerar obrigaes, mas tosomente a desigualdade gerada contra a vontade do afetado, quando este sofresse uma perda por um ato de maldade de outrem. A obrigao de enriquecimento

Claus-Wilhelm Canaris, Pensamento sistemtico e conceito de sistema na cincia do direito, p. 280, leciona: A funo do sistema na Cincia do Direito reside, por conseqncia, em traduzir e desenvolver a adequao valorativa e a unidade interior da ordem jurdica. A partir da, o pensamento sistemtico ganha tambm a sua justificao que, com isso, se deixa derivar mediatamente dos valores jurdicos mais elevados. Orlando Gomes, Obrigaes, p. 297, leciona que: A figura do enriquecimento sem causa pode ser isolada como fonte autnoma de obrigaes. No a lei que, direta e imediatamente, faz surgir a obrigao de restituir. No a vontade do enriquecido que a produz. O fato condicionante o locupletamento injusto.16

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surgiria quando algum, sem ttulo legal, tirasse uma vantagem da propriedade de outrem. Esta obrigao, segundo GROCIO, derivaria diretamente do Direito Natural, porque depois da diviso da propriedade entre os homens, a eqidade no permitiria que um homem se enriquecesse a custa de outrem.17 Dessa formulao primitiva derivaram as proposies de diversos autores tomando o enriquecimento sem causa como fonte de obrigaes. Partindo da perspectiva de que o principal efeito do enriquecimento sem causa a criao de uma obrigao, a considerao do mesmo como fonte de obrigaes uma verdade inelutvel.18 O Cdigo Civil Brasileiro de 2002, no Livro I, da Parte Especial, que trata do Direito das Obrigaes, Ttulo VII que regula os Atos Unilaterais, dedica o Captulo IV ao tema do Enriquecimento sem Causa. Numa leitura feita do ponto de vista de quem analisa o direito civil por uma tica sistemtica evidente a locao do instituto no direito obrigacional, sendo que as obrigaes por ele geradas no derivam de um acordo de vontades, mas de um ato unilateral em que nem sempre intervm a vontade dos envolvidos. O artigo 884, ao dispor que Aquele que, sem justa causa, se enriquecer custa de outrem, ser obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a

Conforme Luis Diez-Picazo y Ponce de Leon, Doctrina del Enriquecimiento Injustificado, in Dos Estudios sobre el Enriquecimiento sin Causa, p. 49-51. Giovanni Ettore Nanni, Enriquecimento sem causa, p. 167 tem opinio diversa, atribuindo uma natureza jurdica dplice ao enriquecimento sem causa bifurcada em fonte de obrigaes e princpio geral de direito. Esta opinio flagrantemente oposta ao ponto de vista exposto neste estudo que reputa que a considerao do enriquecimento sem causa como princpio geral de direito corresponde a um estado mais primitivo de desenvolvimento do instituto.18

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atualizao dos valores monetrios., consagra uma clusula geral19 ou conceito indeterminado. Isto reflete a inteno de o legislador adotar um modelo jurdico inovador, aberto e flexvel que se mova sob a perspectiva da construo e reconstruo do direito privado na contemporaneidade.20 corrente na melhor doutrina que os conceitos jurdicos tm um ncleo e uma zona perifrica distintos. O ncleo seria um ndulo conceitual fixo e determinvel por mera interpretao e a zona perifrica surgiria como uma aurola conceitual indeterminada que s seria delinevel progressivamente mediante a deciso dos casos concretos. 21 O enriquecimento sem causa, em comparao com outros institutos jurdicos, apresenta um grau de indeterminao bastante elevado dado vacuidade de seu conceito. Esta indeterminao no tanto conseqncia da impreciso das palavras que o exprimem, mas sim da necessidade de um aclaramento da zona perifrica do

Segundo Judith Martins Costa, O direito privado como um sistema em construo as clusulas gerais no projeto do Cdigo Civil brasileiro, p. 26-7, As clusulas gerais, (...) constituem as janelas, pontes e avenidas dos modernos cdigos civis. Isto porque conformam o meio legislativamente hbil para permitir o ingresso, no ordenamento jurdico codificado, de princpios valorativos, ainda inexpressos legislativamente, de standards, mximas de conduta, arqutipos exemplares de comportamento, de deveres de conduta no previstos legislativamente (e, por vezes, nos casos concretos, tambm no advindos da autonomia privada), de direitos e deveres configurados segundo os usos do trfego jurdico, de diretivas econmicas, sociais e polticas, de normas, enfim, constantes de universos metajurdicos, viabilizando a sua sistematizao e permanente ressistematizao no ordenamento positivo. evidente que o modelo adotado pelo novo Cdigo Civil no formulado apenas por clusulas gerais porque isso comprometeria um grau mnimo de certeza jurdica. H espao tambm para a tcnica legislativa da casustica tambm chamada de regulamentao por fattispecie em que o legislador se concentra em uma concreo especificativa de uma matria mediante a delimitao e determinao de seu carter em um nmero de casos bem descritos e definidos. No caso do enriquecimento sem causa a casustica legal bastante representativa no mbito do pagamento indevido e das benefeitorias e acesses, por exemplo. Diogo Jos Paredes Leite de Campos, A subsidiariedade da obrigao de restituir o enriquecimento, p. 435.21 20

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conceito que s pode ser obtido pela aplicao numerosa e sucessiva da norma a casos concretos.22 O sucesso da novidade da consagrao legislativa do enriquecimento sem causa como fonte de obrigaes depende, pois, da aplicao da norma em uma constante re-elaborao referenciada nos critrios axiolgico-normativos que fundamentam a norma. Este quadro, em verdade, muito promissor porque abre amplas possibilidades para que o enriquecimento sem causa seja instrumento para superar a crise do dogmatismo voluntarista e consensualista do direito patrimonial. Desde que esta abertura venha acompanhada de uma elaborao doutrinal e jurisprudencial preocupada em sistematizar e delimitar o instituto para evitar a pior crise do direito que a vulgarizao.23 Ocorre, todavia, que definir o enriquecimento sem causa como fonte de obrigaes apesar de satisfatrio parece no ser suficiente. Remete a uma sensao de superficialidade porque, em que pese adequar o instituto ao esquema

Diogo Jos Paredes Leite de Campos, ibid., p. 439-440, exprime esse pensamento da seguinte forma: Deste modo, a indeterminao das clusulas gerais comum a todos os conceitos normativos, e no a conseqncia da impreciso das palavras que os exprimem. O sentido normativo no se esgota, repetimo-lo, no sentido lgico da norma como proposio, mas s pode ser precisado atravs da fuso entre o significado lgico-proposicional da norma e o seu fundamento axiolgicotranscendente Esta transcendncia torna, portanto, indeterminado o contedo da norma. (...) O conceito integrante da zona perifrica s pode ser, mais claramente, determinado atravs de decises de casos concretos, segundo a fuso entre a aplicao e a interpretao que acabamos de referir. Nas palavras de Jos Antonio Alvarez-Caperochipi, El enriquecimiento sin causa, p. 4-5: Pero las ideas superficiales se encuentran siempre ligadas a los grandes principios; el pensamiento vulgar se detiene en las generalidades, y tanto ms vulgar cuanto mayor es la generalizacin; nada ms inseguro que referir genricamente el enriquecimiento sin causa a la crises de la dogmtica del contrato y cobijarlo bajo las grandes alas de la justicia en abstracto. El problema, evidentemente, es el de delimitar adecuadamente la institucin para evitar la peor crisis del Derecho: el vulgarismo. Un Derecho vulgar es el paraiso de burcratas indolentes y de corruptos leguleyos amantes de los pleitos.23

22

legal que preside o direito civil patrimonial, no explicita sua natureza e tampouco seu sentido funcional.24 A boa compreenso do enriquecimento como fonte sem de causa, que somente pressupe

recentemente

reconhecido

obrigaes,

contextualizadamente apontar suas relaes com as demais fontes de obrigaes j que, apesar de guardarem regulamentaes prprias, se inserem num mesmo sistema jurdico e, muito freqentemente, se inter-relacionam porque de um mesmo fato jurdico podem ser originadas obrigaes de espcies distintas. Para prosseguir neste mister de explicitao, entende-se necessrio realizar uma reviso histrica do instituto e apontar os diversos modelos ou paradigmas que ele ocupa a fim de fundamentar e justificar a concepo do instituto que orienta este estudo.

Nesse sentido Lus Diez-Picazo Y Ponce de Leon, op. cit., p. 51-52: Qu decir de esta perspectiva del enriquecimiento sin causa como fuente de obligaciones? Puede pensarse de inmediato que es decir muy poca cosa. Si se trata de aludir a su efecto (la creacin de una obligacin restitutoria), se trata de una verdad indiscutible. Ocurre, sin embargo, que definir una institucin o una figura jurdica como fuente de obligaciones es quedarse en la superficie de las cosas. No tendra, v. Gr., ningn sentido definir el contrato limitndonos a decir que es una fuente de obligaciones. Lo mismo ocurre y de forma notoria con el llamado Derecho de daos. Por consiguiente, se trata de una explicacin insuficiente. Reconociendo que existe una fuente de obligaciones, es menester seguir profundizando en su naturaleza y en su sentido funcional.

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I.2 AS ELOQENTES RAZES HISTRICAS

O enriquecimento sem causa um instrumento de defesa do direito de propriedade que tem razes histricas bastante fragmentadas. necessria uma referncia de sua memria, ainda que muito abreviada, para auxiliar na resoluo de algumas das dvidas e elucidar as discusses doutrinrias a seu propsito. De incio, preciso advertir que a prpria noo de propriedade, que est subjacente a todo e qualquer enriquecimento, oscila muito no curso da histria. No existe uma identidade de sentido entre a propriedade do passado e a do presente. PAOLO GROSSI, em um estudo dedicado uma viso historiogrfica da propriedade, salienta que isto se explica porque a propriedade trata do eterno problema da relao entre o homem e as coisas nos diversos sistemas de organizao da realidade econmica. um conceito profundamente permevel ao substrato socioeconmico vigente nas diversas civilizaes.25 No direito romano clssico a propriedade, concebida como o poder amplo e absoluto de uso, gozo e disposio sobre os bens, era exclusiva do pater familias. Ningum alm dele poderia possuir bens em nome prprio. Os romanos no pensavam em termos de transmisso da propriedade, mas sim na destruio destaNas palavras de Paolo Grossi, La propriet e le propriet nellofficina dello storico, p. 614, La propriet sicuramente anche un problema tcnico ma non mai soltanto, nel suo continuo annodarsi con tuto il resto, un problema tcnico: dal di sotto, i grandi assetti delle struture, dal di sopra, le grandi certezze antropologiche pongono sempre la propriet al centro duna societ e duna civilt. La propriet non consister mai in una regoletta tcnica ma in una risposta alleterno problema del rapporto fra uomo e cose, della frizione fra mondo dei soggetti e modo dei fenomeni, e colui che si accinge a riconstruine la storia, lungi dal cedere a tentazioni isolazionistiche, dovr, al contrario, tentar di collocarla sempre all interno di una mentalit e di un sistema fondiario con funzione eminemente interpretativa.25

na pessoa do anterior proprietrio e seu aparecimento na pessoa do novo proprietrio. Os negcios jurdicos necessrios para justificar esta operao eram subordinados a uma tipicidade rgida, sustentvel apenas enquanto a cidade romana permaneceu um crculo restrito em que os envolvidos se conheciam mutuamente e era a comunidade que se encarregava de fazer cumprir as obrigaes. medida que a cidade cresceu e o comrcio expandiu-se, tornou-se necessrio corrigir os inconvenientes do formalismo e criar mecanismos para, de certa forma, descentralizar a propriedade dos bens. Devido s progressivas deteriorao social, crise econmica, desocupao das cidades e retrao do comrcio, a civilizao greco-romana entrou em

decadncia. Com ela ruiu a cultura jurdica a que estava conectada. Em virtude da conjuntura social e econmica, o subseqente medievo caracterizado como um perodo em que a sobrevivncia era o duro desafio cotidiano. O ser humano deixa de ser o sujeito dominador para, humildemente, colocar-se num patamar de igualdade com as coisas como elementos de uma paisagem cada vez menos influenciada pela ao humana. As titularidades proprietrias abstratas no desaparecem, todavia perdem seu colorido. O que passa a ser relevante a presena viva, so as dimenses fticas, as aparncias, em outras palavras, quem faz de fato uso e gozo da coisa. Por conta desta primazia do que era econmico e socialmente efetivo, a titularidade proprietria fica sufocada. A experincia dita uma nova ordem informal e plural que constantemente cria novas formas de propriedade calcadas na dimenso da efetividade e da relevncia.26

Paolo Grossi, ibid, p. 637, fala de uma revoluo surda operada vagarosamente de gerao em gerao para converter a concepo proprietria romana em uma mentalidade possessria no medievo: a una mentalit angolosamente proprietria come quella romanda si sostituisce una civilt possessoria cui del tutto indifferente lidea di un rapporto di validit (anche perch manca il modello rispetto al quale operare raffronti e misure) e che invece dominata da un vigoroso principio di effettivit. (...) Uso, esercizio, godimento: situazioni che esprimono vivacemente con la loro carnalit la familiarit delluomo con le cose, il suo mercolarsi e il suo vivere com esse.

26

Nova mudana de mentalidade operou-se gradativamente entre os sculos XIV e XIX para culminar na noo de propriedade moderna. O despertar antropolgico trouxe consigo um anseio de autonomia. As velhas propriedades

medievais fundadas somente nas situaes de fato precisavam ser novamente abstradas e normatizadas. Surge, pois, um sujeito presunoso e dominante27 que cria um Cdigo Civil francs altamente tcnico, pronto a servir aos interesses de um capitalismo emergente porque consagra um direito de propriedade amplo e absoluto. O artigo 544 deste Cdigo proclama ser a propriedade le droit de jouir et disposer des choses de la manire la plus absolue. O bem se transforma em mercadoria privada que pode circular livremente de acordo com a vontade soberana de seu titular. Esse conceito moderno de propriedade, por sua manifesta insuficincia, no resistiu aos anseios de uma realidade cambiante.28 Desembocou na

contemporaneidade com a discusso pluralista da propriedade: no se fala mais da

Marcelo Ricardo Fonseca, A Lei de Terras e o advento da propriedade moderna no Brasil, p. 101, discorre sobre a passagem da noo medieval de propriedade para a moderna ressaltando o principal fator que ensejou a libertao do indivduo do mundo dos fenmenos naturais para de uma perspectiva exterior dominar os bens de acordo com sua vontade livre e soberana: Limitemo-nos a registrar, dentro dessas reflexes de passagem e de emergncia da noo do sujeito, aquela que diz respeito mais de perto ao prprio direito de propriedade: trata-se da reflexo franciscana sobre a pobreza que, formulando uma nova noo de homem (como aquele que, na caridade e na vontade, um ser essencialmente espiritual) afasta-o daquela intrincada relao que ele sempre teve com as coisas na reflexo medieval, colocando-o como um ser apartado e autnomo com relao aos bens. Orlando Gomes, Introduo ao direito civil, p. 11, assim traduziu a transio entre o conceito moderno para o conceito contemporneo de propriedade: Com o instituto da propriedade, ocorreu essa dissimulao, e esse aproveitamento realizou-se com pleno xito. Toda a estrutura liberal apoiava-se no conceito de direito subjetivo, explicitado, na ordem patrimonial, na proteo dispensada ao pleno poder do indivduo sobre as coisas submetidas sua vontade. (...) Quando, porm, os aspectos oriundos das transformaes econmicas se acentuaram, descortinando a nova funo social da propriedade, e passaram, novamente, a ter relevncia a pessoa do proprietrio e a qualidade dos bens, o prprio conceito de propriedade, abstrado de outras realidades, inferido de condies sociais diversas, tornou-se manifestamente incongurente. Percebeu-se no ser indiferente pertencerem os bens a um empresrio ou a um ocioso, no ter a mesma siginificao social a propriedade de uma fbrica ou de um bem de consumo. Sentiu-se, enfim, a necessidade de reformular a conceituao, de apoiar a noo em outra realidade social, de depreend-la, em suma, da essncia dos novos fatos.28

27

propriedade, mas das diversas propriedades possveis porque a apropriao privada dos bens deve estar subordinada sua relevncia econmico-social. 29 Note-se que a prpria Constituio brasileira, e conseqentemente o direito civil que tambm direito constitucionalizado, garante o direito de propriedade (artigo 5., XXII), mas submete-o ao atendimento de sua funo social (art. 5., XXIII), numa clara demonstrao da subordinao do direito de fruio do proprietrio tradicional aos mltiplos interesses daqueles indivduos que tem interesses sobre o bem.30 Nesse cenrio de propriedade plural o enriquecimento sem causa localiza-se muito bem. Como se pretende demonstrar no decorrer do trabalho, o enriquecimento sem causa se assenta sobre um conceito de transmisso de propriedade no subordinada ao domnio da vontade do sujeito soberano. O enriquecimento sem causa navega tendo por substrato uma propriedade que prescinde do exerccio do poder de disposio de seu titular para circular. Admite uma propriedade que flutua

No Prlogo para civilistas feito na edio espanhola da obra de Paolo Grossi, La propiedad y las propiedades. Un anlisis histrico, p. 13, Angel Lpez y Lpez bem expressou este panorama contemporneo do conceito de propriedade: Esa general crisis contempornea de las instituciones jurdicas codificadas sacude con enorme violncia a la propiedad, institucin elevada a eje y fundamento del ordenamiento que haban diseado los Cdigos, y se manifiesta en la reflexin de la civilstica moderna que aboca a la formulacin de la que hoy conocemos como teoria pluralista de la propiedad: no se hable ya de la propiedad, hblase de las propiedades, lo que significa cambiar absolutamente de ngulo visual; significa contemplar el fenmeno de la apropiacin privada desde la perspectiva de la relevncia econmico-social de los bienes, no desde aquella outra que pivota sobre la abstracta consideracin de stos, y en consecuencia se resuelve en la simplicidad, unidad y homogeneidad del poder atribudo a un sujeto, siempre identico a si mismo, y por ende, tambin abstracto. Julio Cesar Finger, Constituio e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalizao do direito civil, p. 101, in, Ingo Wolfgang Sarlet, A Constituio concretizada: construindo pontes com o pblico e o privado, assim expressou esta idia: O Prof. Gustavo Tepedino leciona que o que mais distancia a nova propriedade do modelo apregoado pala codificao civil a insero da matria no catlogo de direitos fundamentais (art. 5, inciso XXIII), de modo que ao lado do tradicional direito de propriedade (inc. XXII), est positivado que esta atender a sua funo social. Do regramento da funo social, no art. 186, conclui o eminente civilista carioca que o preceito condiciona a fruio individual do proprietrio ao atendimento de mltiplos interesses noproprietrios.30

29

ao sabor dos fatos e da experincia e somente a posteriori e mediante iniciativa de seu titular eventualmente poder ser restituda.

I.2.1 AS FONTES DE DIREITO ROMANO

No

direito

romano

podem

ser

identificadas

mltiplas

origens

do

enriquecimento sem causa. No existia um instituto unitrio talhado num s bloco assemelhado ao atual enriquecimento sem causa.31 Basicamente trs razes romanas podem ser apontadas: as condictiones, a actio de in rem verso e a actio negotiorum gesti. a) CONDICTIONES As condictiones representam a principal fonte histrica da categoria moderna do enriquecimento sem causa. No perodo do direito romano clssico a condictio era um procedimento abstrato e uniforme sem requisitos especificamente diferenciados. Era uma carta em branco. Como j foi mencionado, os juristas romanos, a rigor, no pensavam em transmisso da propriedade, mas sim na destruio desta na pessoa do anterior proprietrio e seu aparecimento na pessoa do novo proprietrio. Assim, o sistema romano conhecia casos de transmisso abstrata da propriedade, e uma das caractersticas mais marcantes da legis actio per condictionem era a sua natureza abstrata: a base substantiva da ao, a causa debendi, no era mencionada.

Como fez notar Gerota, La thorie de lenrichissement sans cause dans le Code Civil allemand, p. 7, o princpio do enriquecimento sem causa no foi talhado num bloco nico; ele representava uma espcie de mosaico, formado por mltiplas aplicaes dspares, recolhidas tmida, lentamente e sem mtodo.

31

A utilizao desse procedimento aparece associada aos problemas conexos com a transmisso de propriedade. Os fatos designados por causae que acarretam uma transmisso da propriedade so fatos que justificam a apropriao da coisa por um novo proprietrio. A sua falta significa a ilegitimidade da pretenso de apropriao do destinatrio e, num sistema causal, a no transmisso da propriedade. No sistema romano, que admitia a transmisso abstrata, o anterior proprietrio poderia reaver o bem por meio da rei vindicatio. Todavia poderia suceder que o substrato corpreo da propriedade tivesse sido destrudo, consumido ou confundido. Neste caso impunha-se a restituio das deslocaes patrimoniais que ocorriam sem uma causa mediante uma actio in personam, a condictio. Assim, o principal domnio de aplicao das condictiones correspondia ao domnio das transmisses abstratas de propriedade e sua finalidade era fazer regressara propriedade pessoa do queixoso, repristinando a situao anterior. A condictio existia quando o escopo visado pela transferncia se frustrava ou era censurado pela comunidade. A tipologia das condictiones de um perodo posterior, pois surgiu nas rubricas do Digesto. Segundo DIEZ-PICAZO32, eram as seguintes as condictiones no Digesto Justineneu: - Condictio causa data causa non secuta - que se produzia quando com um fim desonesto se dava uma quantidade para obter um determinado resultado e este no se produzia. O enriquecimento deveria resultar de uma atribuio causada por um evento de realizao futura que, ao final, no se produzira. - Condictio ob turpem vel iniustam causam que se produzia quando o resultado buscado era imoral ou desonesto. Se a prestao tivesse sido

Luis Diez-Picazo y Ponce de Leon, Doctrina del Enriquecimiento Injustificado, in Dos Estudios sobre el Enriquecimiento sin Causa, p. 73.

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obtida pelo accepiens para fins imorais ou proibidos pelo direito o solvens teria direito restituio, sendo irrelevante a circunstncia de que tais objetivos tivessem ou no sido alcanados. - Condictio indebiti que se produzia quando se repetia o que no era devido e fora pago por erro. Corresponde ao que hoje se disciplina como pagamento indevido. Aplicava-se aos casos de pagamento de uma dvida inexistente. - Condictio sine causa que se produzia quando algum levava a cabo uma promessa sem causa neste caso no h datio, mas uma simples promissio.33 - Condictio furtiva que permitia reclamar a coisa furtada ou seu valor. - Condictio ex lege que se produzia quando uma nova lei introduzia uma obrigao e no se previa nela o mesmo tipo de ao. Neste caso entendiase que era a condictio. b) ACTIO DE IN REM VERSO O direito romano tambm conheceu a actio in rem verso (Digesto 15,3), expresso que pode ser traduzida aproximadamente por ao sobre o proveito obtido.34 Este brocardo latino foi associado no direito privado moderno com significados muito diversos e nem sempre claros.

H quem entenda que a condictio sine causa era uma espcie de enunciao genrica do princpio do enriquecimento sem causa. Teresa Paiva de Abreu Trigo de Negreiros, Enriquecimento sem causa aspectos de sua aplicao no Brasil como um princpio geral de direito, p. 772, assim se manifesta: Discute-se se tal condictio (condictio sine causa) constitua uma formulao genrica das demais ou se era apenas mais uma modalidade, cabvel subsidiariamente, quando aquelas se revelassem inapropriadas. A concepo desta condictio como abrangente das demais parece dominar na doutrina, o que no significa, entretanto, que no pressupusesse a aplicao de uma condictio especfica eventualmente cabvel.34

33

Luis Diez-picazo Y Ponce de Leon , op.cit., p. 71.

A regra geral era de que quando as pessoas submetidas ao poder do chefe de famlia no tivessem condies de honrar seus compromissos, o seu senhorio responderia por suas dvidas sempre que tivesse obtido algum proveito da atuao daqueles. Assim a actio in rem verso era o procedimento tcnico a que se recorria nas situao em que os filhos ou servos celebravam um negcio com um terceiro. Apesar de o pater familias no ficar vinculado pelo negcio realizado ele deveria satisfazer o terceiro na medida em que seu patrimnio tivesse sido beneficiado. Notam-se duas vertentes na figura: de um lado, a considerao do enriquecimento do chefe de famlia e, de outro, a proximidade com a gesto de negcios. Pouco a pouco estas duas figuras foram se aproximando tanto que chegaram a confundir-se. c) ACTIO NEGOTIORUM GESTIO A actio negotiorum gestio foi criada para regular juridicamente as relaes de administrao entre o procurador e o ausente. Posteriormente estendeu-se seu mbito para qualquer caso de procurao, mesmo que a pessoa no estivesse fora da cidade. Por fim a anlise histrica revelou que tal ao tambm era aplicada gesto de qualquer negcio ainda que isolado. No era necessrio qualquer formalidade, contrato, acordo ou declarao de vontade para constituio de um gestor. Pelo simples incio de gesto da administrao de bens de outrem algum tornava-se procurator qui alienis negotiis gerendis ultro se offert. Esta atitude obrigava-o a cuidar de todos os negcios deste terceiro e lhe conferia o direito de exigir a sua aprovao desde que utilmente realizados, bem como o direito de reembolso das despesas feitas justificadamente no curso da gesto.

A relao entre a gesto de negcios e o enriquecimento sem causa sempre suscitou controvrsias, tendo-se verificado historicamente que, ora a gesto de negcios reconduzida a uma hiptese especial de enriquecimento sem causa, ora sucede precisamente o inverso, e o enriquecimento sem causa reduzido a uma forma imprpria ou anmala de gesto de negcios. Esta sucinta meno s fontes romanas serve para demonstrar que o princpio do enriquecimento sem causa vai mergulhar as suas razes no mais antigo direito de Roma, mas daqui a dizer-se que o direito romano criou a teoria do enriquecimento sem causa vai uma distncia enorme, tanto mais que se alguma das condictiones do direito justineneu pode ser considerada antepassado remoto da referida teoria apenas a condictio sine causa. 35

I.2.2 A OCORRNCIA DE INTERPOLAES NO CORPUS IURIS CIVILIS

H uma certa unanimidade na doutrina no sentido de que os compiladores bizantinos efetuaram muitas interpolaes nos textos clssicos atinentes ao enriquecimento sem causa. VIEIRA GOMES atribuiu esta atitude a duas ordens de fatores: em primeiro lugar, influncia do Cristianismo imbudo dos ideais de humanidade, generosidade e caridade, e, em segundo lugar, criao de uma estrutura de tribunais responsveis em face do imperador, que tornou suprfluas muitas das distines entre as condictiones.36

35 36

L. P. Moitinho de Almeida, Enriquecimento sem causa, p. 14/15.

Jlio Manuel Vieira Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forado e os vrios paradigmas do enriquecimento sem causa, p. 53-54.

Como generalizao

conseqncia e abstrao

da

obra

dos

compiladores a ponto

assistiu-se de

a

uma o

das

condictiones

transformar

enriquecimento injustificado num princpio geral. Muitos sculos passados, com a redescoberta medieval do direito romano, o enriquecimento sem causa j aparece com o carter de princpio geral. que os glosadores no suspeitavam das numerosas interpolaes e o Corpus Iuris Civilis era encarado como uma espcie de smula da sabedoria humana. Assim, as contradies ou ambigidades que se apresentavam eram solucionadas como problemas muito especficos e a tendncia dos glosadores era a de invocar o princpio de inadmissibilidade do enriquecimento injustificado formulado no Corpus, com expressa citao do ius naturale e da aequitas. No direito medieval e moderno as discusses jurdicas estavam muito ligadas a uma concepo teolgica global do mundo que no mbito contratual se traduzia na doutrina do justo preo e na proibio da usura.37 A teoria do justo preo era estrutural para a organizao de uma sociedade corporativa que s admitia o lucro que derivasse da incorporao de valor aos bens por intermdio do trabalho. J a proibio da usura, entendida como a cobrana de juros pelo emprstimo de dinheiro, era condenada desde a cultura hebraica, cristalizada no Antigo Testamento, que influenciou fortemente os clssicos gregos, romanos e foi recebida pela tradio crist. A cobrana de juros seria intrnsecamente m e contrria ao direito natural porque alm de permitir o abuso do forte sobre o fraco, tambm permite viver sem trabalhar e o trabalho era o nico instrumento de regenerao

Jos Antonio Alvarz-Caperochipi, El enriquecimiento sin causa, p. 47, bem revela que no antigo regime o contrato se definia pela exigncia do justo do preo. S com o direito patrimonial liberal, plasmado nos Cdigos Civis do sculo XIX, que se substitui o limite moral e jurdico do justo preo pelo dogma liberal de que o contrato enriquece justamente, contrato este que rege-se pela mera equivalncia formal das prestaes.

37

para a natureza humana, amaldioada por Deus depois que Ado cometera o pecado original.38 Foi SO TOMS DE AQUINO que sistematizou esse arcabouo de princpios morais. Na Summa Teolgica trata do direito de restituio como decorrncia do fundamento bsico da justia comutativa: dar a cada um o que seu implica devolver ao prximo o injustamente retido. SO TOMS DE AQUINO encara a usura como injusta porque se vende o que no existe e, assim procedendo, relaciona-a com a teoria do justo preo permitindo um estudo coerente de ambos. A transferncia da discusso da restituio para o plano da justia comutativa, transformou-a em um problema eminentemente jurdico de restaurao de um equilbrio. E assim foram lanados alguns do fundamentos do direito restitutrio com o primado da restituio in natura e sua limitao reposio do status quo ante o que afastava a possibilidade de, a ttulo de penitncia, exigir-se a restituio de um mltiplo do montante devido.39

I.2.3

A AMPLIAO DA CONDITIO ROMANA PELO RACIONALISMO DOS

SCULOS XVII E XVIII

A construo mais completa e definitiva do tema operou-se nos sculos XVII e XVIII sob a tica da doutrina do Direito Natural racionalista. Amparados pela afirmao de POMPONIO de que a regra de vedao do enriquecimento sem causa procedia do Direito Natural, os jusnaturalistas desses sculos, como GROTIO e

38 39

Jos Antonio lvarez-Caperochipi, op. cit., p. 48-9. Jlio Manuel Vieira Gomes, op. cit., p. 68-9.

ULRICO HUBER40, incorporaram esta orientao em suas obras gerando duas sortes de conseqncias: a primeira a admisso de uma conditio sine causa de carter geral, distinta daquela consagrada pelo Digesto Justineneu que se referia somente promissio sem causa; a segunda a criao do que alguns autores chamam de actio de in rem verso do Direito comum, mais ampla que aquela do direito romano e que permitia reclamar uma vantagem ou um benefcio patrimonial obtido por meio do patrimnio de um terceiro. Assim, na concepo dessa poca a conditio ensejava a repetio das atribuies patrimoniais diretas, enquanto a actio de in rem verso autorizava uma indenizao pela utilidade obtida indiretamente. Tal tradio desembocou na recompilao do direito prussiano e no Cdigo Civil austraco que regularam a gesto de negcios e inseriram preceitos que autorizavam aquele cujos bens foram empregados em benefcio de outro a reclamar a coisa ou seu valor.

I.2.4 O RESGATE OPERADO PELA PANDECTISTA ALEM

No sculo XIX a literatura jurdica d um novo impulso s teorizaes sobre o enriquecimento sem causa. SAVIGNY aponta como ponto comum entre todas as conditiones o aumento de um patrimnio pela diminuio de outro patrimnio ocorrida sem causa ou em que se perdeu a causa originria. Esta idia foi adotada e desenvolvida pelos pandectistas alemes. WINDSCHEID, por exemplo, dedicou-se a estudar os direitos de crdito que nasciam sem conveno e elaborou uma classificao para os quase-contratos em que o enriquecimento injustificado aparecia ao lado da gesto voluntria de assuntos40

Luis Diez-picazo Y Ponce de Leon , op.cit, p. 83.

alheios, da tutela e curatela, do exerccios de cargos ou ofcios e da comunho ou confuso de limites. Em seus estudos, o autor apontou dois tipos centrais do enriquecimento injustificado: a) o enriquecimento derivado de uma prestao que se cumpriu com a finalidade de adimplir uma obrigao erroneamente pressuposta e b) o enriquecimento derivado de uma prestao que foi executada tendo por base uma pressuposio futura. A posio de WINDSCHEID teve uma grande importncia na doutrina e codificao alems, sendo que esta ltima revela a tenso entre o casusmo e as clusulas gerais. A clusula geral foi consagrada pelo inciso primeiro do pargrafo 812 do BGB: quem obtm algo sem causa jurdica atravs da prestao de outrem ou de qualquer outra forma a custa do mesmo, est obrigado a restitu-lo. A casustica traada nos pargrafos seguintes quando se estabelece que a obrigao restitutria existe tambm se a causa jurdica desapareceu posteriormente ou se no se produziu o resultado perseguido pela prestao segundo o contedo do negcio jurdico. A mesma linha foi adotada pelo Cdigo suo, pelo Cdigo Civil italiano de 1942 e pelo Cdigo Civil portugus de 1967.

I.2.5 A OMISSO DO CDIGO CIVIL FRANCS POR FORA DO DOGMATISMO EXEGTICO

Quando o codificador francs, que no havia positivado nenhum princpio que proibisse o enriquecimento sem causa, adota a tese de DOMAT que consagra o elemento causa como requisito essencial de validade de todo o contrato, todo o controle acerca dos deslocamentos patrimoniais derivados de contrato ilcito, inexistente ou com perda de causa desviado para a ao de nulidade contratual. O

labor restitutrio que at ento vinha sendo realizado pelas condictiones foi ento suprimido. No de admirar que, em um ordenamento jurdico-privado dominado pelo dogma da autonomia da vontade materializada e sublimada na idia de contrato, a atividade e previso bsicas do legislador se desenvolvam em torno do mesmo. Com esta atitude restou abandonado o controle de outros desequilbrios patrimoniais que no derivassem de contrato (apropriaes ilegtimas por uso, consumo ou alienao de bens alheios, benfeitorias em patrimnio alheio, reembolso pelo pagamento de dvida alheia, etc...); a configurao da repetio do indbito na parte dos contratos em espcie deu-lhe um carter de certo modo residual e produziu-se um completo silncio em relao figura de proibio dos enriquecimentos sem causa. A formao da teoria do enriquecimento sem causa no direito francs tardia e tem origem jurisprudencial. Aponta-se como marco inicial da construo pretoriana o chamado Arrt Boudier41 que foi uma deciso da Corte de Cassao proferida em 15 de junho de 1892. Nele ficou consignado que a actio de in rem verso, que derivava do princpio de eqidade que probia algum de enriquecer-se em detrimento de outrem, apesar de no ter qualquer regulao legal, no estava submetida a nenhuma condio determinada. Para para que fosse admissvel bastaria que o demandante alegasse e provasse a existncia de um benefcio obtido em virtude de um feito pessoal que tivesse beneficiado quele contra quem props a ao.

Tratava-se de um proprietrio rural que havia arrendado suas terras a um fazendeiro que em um dado momento deixou de cumprir suas obrigaes, o que ensejou a resciso do arrendamento. Para quitar parte de sua dvida o arrendatrio cedeu ao proprietrio toda a colheita que estava pendente. Boudier era um comerciante de adubos que havia contratado a administrao de adubos com o arrendatrio e no havia recebido pagamento. Boudier reclamou, pois, o pagamento ao proprietrio e obteve ganho de causa apesar de o proprietrio defender-se alegando que jamais havia celebrado qualquer contrato com o comerciante de adubos. (Luis Diez-picazo Y Ponce de Leon , op.cit., p. 92.)

41

Essa soluo apresentada pela jurisprudncia francesa teve sua origem em uma antiga tradio de aplicao da actio de in rem verso como conditio sine causa generalis, derivada do Direito comum anterior codificao.

I.2.6 DIREITO BRASILEIRO: DAS RAZES AO NOVO CDIGO CIVIL

O Cdigo Civil brasileiro editado em 1916 seguiu a tradio francesa e no consagrou uma clusula genrica de vedao do enriquecimento sem causa, limitando-se a regular alguns casos especficos de enriquecimento sem causa como a repetio do indbito. Em assim se posicionando, o direito brasileiro, de certa forma, encurtou o campo de aplicao do enriquecimento sem causa, como princpio geral de Direito. A doutrina e jurisprudncia todavia contemplaram o enriquecimento sem causa como fonte de direito para aplicao em situaes especficas. Nesse sentido a deciso proferida no Recurso Especial 11025/SP, pela 3. Turma do Superior Tribunal de Justia, em que foi relator o Ministro Waldemar Zveiter, ainda na vigncia do Cdigo Civil de 1916: No se h negar que o enriquecimento sem causa fonte de obrigaes, embora no venha expresso no Cdigo Civil, o fato que o simples deslocamento de parcela patrimonial de um acervo que se empobrece para outro que se enriquece o bastante para criar efeitos obrigacionais. (DJ 24/02/1992, p. 1868). O Cdigo Civil de 2002, por sua vez, veio a alterar esse quadro revelando a influncia do direito germnico, italiano e portugus. O artigo 884 ao dispor que Aquele que, sem justa causa, se enriquecer custa de outrem, ser obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualizao dos valores monetrios., acaba por positivar o princpio de direito que condena o enriquecimento sem causa

s custas do patrimnio alheio. Em assim procedendo, o direito brasileiro acompanhou a tendncia das codificaes modernas abrindo espao para a consagrao de uma clusula geral que acolhe o enriquecimento sem causa. Esta insero do enriquecimento sem causa no novo Cdigo Civil foi muito louvada pela doutrina42, ademais porque foi feita por meio de uma clusula geral cuja finalidade trazer para o fenmeno jurdico aquilo que foi denominado vlvula para exigncias tico-sociais.43 Assim permite-se que a evoluo da sociedade seja acompanhada pelo direito porque confere ao intrprete e ao aplicador da lei uma maior flexibilidade para adaptar a norma s situaes de fato.44

Luiz Edson Fachin, O aggiornamento do direito civil brasileiro e a confiana negocial, in Repensando fundamentos do direito civil contemporneo, p. 129, enaltece a previso de um captulo dedicado ao enriquecimento sem causa pelo Projeto do Cdigo Civil, ressalvando reputar injustificvel o carter subsidirio a ele atribudo. Ruy Rosado de Aguiar Jnior, Projeto do Cdigo Civil: as obrigaes e os contratos, Revista dos Tribunais, v. 775, p. 29, tambm aplaude a consagrao legislativa do enriquecimento sem causa: O art. 883 veio dispor expressamente sobre o enriquecimento sem causa, preenchendo uma lacuna do nosso ordenamento. Trata-se de clusula geral que ter grande efeito no foro, porque permitir reparar todas as situaes de vantagem indevida.43 44

42

Luiz Edson Fachin, Teoria crtica do direito civil, p. 305.

Rosa Maria de Andrade Nery, Perfis do direito civil, p. 27, comenta: Por isso se entende que o Direito no pode prescindir, na atualidade, de direcionar-se para o denominado sistema aberto, sob pena de no poder acompanhar as mudanas que se desenvolvem a cada minuto no meio social. possvel que o jurista possa superar a crise do envelhecimento do Direito posto sem que faa uso de mtodo de trabalho que supere o anacronismo da lei, desde que se comprometa com o procedimento decisrio e o trabalho de resolver conflitos, participando diretamente do poder criador do Direito e exercendo a parcela do Poder.

I.3 OS DIVERSOS PARADIGMAS DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA

I.3.1 A LIGAO HISTRICA EQUIDADE

Historicamente o enriquecimento sem causa tem sido associado eqidade, entendida como emanao do ideal central de justia de nossa concepo jurdica: a arte de dar a cada um o que seu. Quem se locupleta a custa de outrem no d a cada um o que seu, pois se enriquece com prejuzo alheio. Essa ligao histrica com a eqidade tem sido responsvel simultaneamente pelo desenvolvimento e tambm pelo atrofiamento do enriquecimento sem causa. Explica-se: de um lado, o apelo eqidade arraigou a convico de que a restituio do obtido injustificadamente custa alheia corresponde a uma das tarefas que qualquer ordem jurdica tem de desempenhar; mas, de outro lado, teve um efeito de algum modo contraproducente porque um apelo genrico e de algum modo vago eqidade pode de gerar muita incerteza diante de sua insuscetibilidade de sistematizao como instrumento tcnico.45 Note-se tambm que o apelo eqidade enfraqueceu, em ltima anlise, a pretenso de restituio fundada no

enriquecimento sem causa. Ocorre que no se pode reduzir o enriquecimento sem causa a uma mera aplicao da eqidade porque ela um princpio to impreciso em sua formulao

Jlio Manuel Vieira Gomes, O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forado e os vrios paradigmas do enriquecimento sem causa, p. 73.

45

terica quanto difcil na sua aplicao prtica46. Na busca do sentido material do enriquecimento sem causa preciso desde j realizar uma delimitao negativa da eqidade j que esta dispe de uma capacidade geral de enquadrar diversas situaes em seu domnio. O ponto de partida para a noo de eqidade a epieikeia da filosofia clssica grega: uma correo da lei quando por causa de sua universalidade ela se mostrava incapaz de atender a determinada situao concreta. No dizer de ARISTTELES, quando a coisa indefinida, a regra tambm indefinida, como a rgua de chumbo usada para ajustar as molduras lsbias (da ilha de Lesbos): a rgua adapta-se forma da pedra e no rgida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos.47 No direito romano a aequitas servia como critrio de orientao para que os pretores integrassem ou corrigissem os preceitos rgidos do ius civile arcaico, adaptando-o s condies sociais e econmicas. A eqidade romana era um valor, extremamente varivel, imbudo dos significados de igualdade, proporo, simetria, que impedia a cristalizao do direito em frmulas definitivas, que tinha trs funes tpicas: 1) bitola de crtica ao direito e princpio do seu aperfeioamento, 2) princpio de interpretao do direito e 3) norma complementadora do direito. Pode-se reconhecer que foi esta concepo de eqidade no direito romano que permeou

Caramuru Afonso Francisco, O Enriquecimento sem causa nos contratos in Contornos Atuais da Teoria dos Contratos, Coordenador, Carlos Alberto Bittar., p. 80, assevera: Alguns doutrinadores chegaram a ver o fenmeno do enriquecimento sem causa como mera emanao da eqidade no mundo dos negcios. (...) No entanto, uma anlise acurada desta postura leva o estudioso a afast-la, pois para se usar da prpria expresso de Ulpiano, o relacionamento de um instituto jurdico a um dos princpios basilares da prpria cincia jurdica situao comezinha e que no d qualquer especificidade a um instituto, pois todo o direito se desenvolve sobre o trip traado pelo sbio romano. Dizer, ento que o enriquecimento sem causa fruto da equidade, nada dizer sobre o instituto, uma vez que o direito a arte do bom e do equnime. Aristteles. tica a Nicmaco. So Paulo: Abril, 1979, vol. II, p. 136. Os Pensadores, apud, Francisco Amaral, A eqidade no Cdigo Civil brasileiro, in Aspectos Controvertidos do novo Cdigo Civil, p. 200.47

46

toda a evoluo histrica e continua informando a idia de eqidade at os dias de hoje. O desenvolvimento posterior do direito conduziu a uma diminuio da importncia da concepo greco-romana da eqidade em prol do direito legislado. A racionalizao do direito, cujo mais flagrante efeito foi o processo de codificao e o positivismo jurdico, levou a uma tal diferenciao entre eqidade e lei que os mesmos eram contrapostos. Este dualismo s foi superado quando reconhecidas a insuficincia e a incompletude do sistema legal que conduziram necessidade de recurso eqidade para a sua complementao. A eqidade surge no panorama jurdico contemporneo de forma dispersa em duas acepes fundamentais: uma de sabor aristotlico, que invocando as particularidades das situaes de fato identifica a eqidade como soluo jurdica que permitiria corrigir as injustias ocasionadas pela natureza rgida das regras jurdicas abstratas; a outra, mais radical, identifica a eqidade como a soluo dos problemas baseada na chamada justia do caso concreto, prescindindo do direito legislado. Ocorre que ambas so por demais genricas e no fornecem a bitola material para se saber se e at onde se reconhece ao julgador a possibilidade de decidir com base na eqidade, seja adaptando a regra legislada, seja ignorando-a. Para escapar a este labirinto de solues lingsticas, de contedo inapreensvel e incapazes de oferecer solues reais, necessrio principiar por uma anlise do direito vigente.48 O Cdigo Civil brasileiro no define a eqidade, mas a refere em diversos dispositivos: o artigo 413 determina que a clusula penal seja eqitativamente reduzida pelo juiz em caso de cumprimento parcial da obrigao ou de excessiva onerosidade; o artigo 479 autoriza a modificao eqitativa do contrato para evitar48

1199.

Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa f no direito civil, volume II, p.

sua resoluo; os artigos 944 nico, 953 nico, 954 e 928 nico, invocam a eqidade como critrio a ser utilizado pelo juiz para a fixao ou adequao do montante da indenizao em sede de responsabilidade civil. O que comum a estas referncias que elas visam determinar aspectos quantitativos de prestaes ou montantes indenizatrios, sem deixar a operao ao livre-arbtrio do julgador, que deve obedecer antes a outros critrios objetivos pr-fixados. Em anlise mais cuidadosa percebe-se que, em verdade, so remisses aparentes eqidade porque no autorizam o juiz a julgar com espeque em um fator extra-sistemtico, como seria de esperar de acordo com o sentido prprio da eqidade. de reconhecer que a incluso da eqidade nos dispositivos citados no contribuiu para que fosse aclarado seu conceito. Em verdade, ela permanece uma noo ambgua, seno equvoca, com a qual os juzes se sentem mais embaraados que auxiliados e qual se recorre quando esgotados os outros meios de interpretao e criao do direito.49 No direito positivo vigente a eqidade s pode ser captada em termos relativos. Tanto isto verdade que o artigo 127 do Cdigo de Processo Civil dispe que o juiz s decidir por eqidade nos casos previstos em lei. Mas cabe perguntar, como o fez MENEZES CORDEIRO,50 qual o sentido da deciso que, divorciando-se do direito positivado, estatui por eqidade. Segundo o autor, esta deciso no deve ser irracional, mas juscultural, refletindo um consenso e uma legitimidade. Afasta-se a eventual tnica de arbitrariedade pela comprovao da legitimidade do processo que vem a ger-la e pela ponderao das suas boas conseqncias reveladas pela sua aplicao ao caso concreto. Intervm argumentos mais vastos e um subjetivismo mais intenso do julgador, mas sempre dotados de pontos objetivos que permitam consider-los como integrando uma realidade juscultural que exprima

49 50

Francisco Amaral, op. cit., p. 207. Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, op. cit, p. 1203-04.

aquilo que em uma sociedade considerado justo, tico, adequado e conveniente. Ainda h uma particularidade neste modelo de deciso pela eqidade, que o fato de ele no ter uma preocupao generalizante, por ser confeccionado caso a caso. Esta eqidade, como se depreende da leitura do artigo 127 do Cdigo de Processo Civil, um modo de resolver questes estranho ao direito estrito. Corresponde a um modo de decidir extra-sistemtico, por prescindir das proposies legais, mas no arbitrrio porque respeita o sentido material do jurdico de uma certa sociedade estabilizada. Alarga os pontos de vista dos articulados legais o que excepcional em um direito positivo como o brasileiro em que a tendncia visvel de proliferao das clusulas gerais em prol de corrigir certos excessos das solues de direito estrito e de uma particularizao das conseqncias nos casos concretos. Assim, o extra-sistematismo da eqidade apenas formal.51 Mas no se pode negar que as decises que derivam da eqidade so filhas do empirismo e da intuio, preocupando-se basicamente com uma soluo pontual e momentnea, enquanto aquelas baseadas no direito estrito so produto do labor da cincia jurdica e constituintes do sistema, tido como uma instncia de controle permanente. As aproximaes freqentes e confusas entre a eqidade e o enriquecimento sem causa no se justificam.52 Num prisma estrutural, o enriquecimento sem causa surge como direito estrito e consagrado legislativamente pelo ordenamento jurdico e dotado de uma justificao dogmtico-sistemtica. As regras tcnicas, formais e instrumentais ignoradas pela eqidade devem ser consideradas pelo enriquecimento sem causa que leva em conta a necessidade de reproduo das decises em casos

51 52

Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, ibid., p. 1205.

L. P. Moitinho de Almeida, Enriquecimento sem causa, p. 46, cita Henri de Page para acentuar os malefcios de se manusear o enriquecimento sem causa de maneira simplria como um sinnimo da eqidade livre de quaisquer atributos impostos pela tcnica jurdica: Cest ce qui explique que lenrichissement sans cause est si souvent invoqu mal propos. Il ne faut pas y voir une panace , un moyen commode et simpliste de faire rgner, tout prix, la justice et lequit dans ls relations juridiques.

semelhantes e convida a um labor cientfico. Roubando a expresso de MENEZES CORDEIRO, de todo conveniente distinguir o enriquecimento sem causa da eqidade porque ela corresponde a um estdio antigo do Direito; hoje, ela foi absorvida pela elaborao juscientfica, com que se confunde, conservando-se em estdio puro, apenas, muito sectorialmente. 53

I.3.2 A PLURALIDADE DE PARADIGMAS DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA ATUALMENTE COEXISTENTES

A compreenso da figura do enriquecimento sem causa dificultada pela multiplicidade de paradigmas a ela associados que, por conviverem

simultaneamente, por vezes se complementam, mas tambm se contrapem. CAMARA-ALVAREZ sintetiza com perfeio a contradio interna e constante do estudo do enriquecimento sem causa, ressalvando que o instituto no pode ficar restrito a dispositivos legais isolados e dispersos e tampouco pode ser erigido a uma espcie de panacia apta a corrigir qualquer desarranjo jurdico. 54 ALVAREZ-CAPEROCHIPI55 elabora uma classificao dos entendimentos do enriquecimento sem causa posteriores s codificaes com quatro paradigmas correspondentes s fases da evoluo de sua dogmtica: 1) sua compreenso como regra moral ou princpio geral de direito; 2) a sua compreenso como fundamento nico da dogmtica dos quase-contratos; 3) a sua compreenso como ao subsidiria fundada num princpio geral; e 4) a sua compreenso como fundamento

53 54

Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, op. cit., p. 1208.

Manuel De La Cmara Alvarez, Enriquecimeiento Injusto Y Enriquecimiento sin Causa, in Dos Estudios sobre el Enriquecimiento sin Causa, p.208.55

Jos Antonio Alvarez-Caperochipi, El enriquecimiento sin causa, p. 11 e segs.

da ao principal destinada a corrigir os desequilbrios patrimoniais produzidos sem uma causa vlida de atribuio. Segundo ALVAREZ-CAPEROCHIPI,56 a explicao do enriquecimento sem causa mediante a teoria da causa a interpretao mais moderna e que corresponde maturidade dogmtica da instituio. A confuso que envolve a teoria da causa no direito patrimonial contemporneo deve-se ao seu pioneirismo na evoluo e adaptao do direito s novas realidades e exigncias da vida social e poltica.57 O enriquecimento sem causa tributrio de toda a obscuridade que envolve a teoria da causa, mas de outro lado participa de sua vocao de modernidade e renovao do direito. Ambos esto envolvidos na polmica entre abstrao e causalidade das atribuies patrimoniais, consubstanciam uma reao contra o voluntarismo radical e abrem horizontes para incluir no ordenamento novas formas de restituio, ampliando os estreitos limites do contratualismo codificado, e ainda so remdios eficientes perante as conseqncias injustas das aplicaes do princpio da equivalncia formal das prestaes e do princpio nominalista. Antes porm de explicitar a funcionalidade do enriquecimento sem causa no direito atual, interessante percorrer o caminho de evoluo tcnica e estudo doutrinal que contemplam seu desenvolvimento desde suas primeiras formulaes na poca imediatamente posterior s codificaes at sua configurao tcnica atual.

56 57

Jos Antonio Alvarez-Caperochipi, ibid, p. 11-12.

Luiz Edson Fachin, Teoria Crtica do Direito Civil, p. 236, compartilha desse entendimento ao servir-se d