Ensaio Sobre o Feminismo Marxista

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Mneme – Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004 Dossiê Gênero ISSN 1518-3394 Disponível em http://www.seol.com.br/mneme 1 Ensaio sobre o feminismo marxista socialista i Elisabete Santos Licenciada em Gestão de Recursos Humanos Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Portugal [email protected] Lígia Nóbrega Licenciada em Sociologia Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Portugal [email protected] Resumo Trata-se de um ensaio acerca do Feminismo Marxista Socialista onde são apresentados os pontos mais marcantes desta teoria em articulação com os/as autores/as que determinaram a construção desta corrente de pensamento em diferentes períodos da história. Com início em meados do séc. XIX com Marx e Engels, os grandes mestres da ideologia marxista, continua com Bebel no seio do partido social democrata alemão e Clara Zetkin, um importante marco na liderança feminina do socialismo europeu. Esta abordagem termina salientando o importante contributo da teoria feminista socialista para a valorização do modo de produção doméstico, a situação de subordinação da Mulher, bem como a discriminação vivenciada por outros grupos. Palavras-Chave Modo de produção doméstico Abstract An approach about Marxist and Socialist Feminism with the explanation of the main points of this theory trough the more representative authors in different history stages. Starting in the middle of the XIX century with Marx and Engels the masters of Marxist ideology, goes on with Bebel from the German social democrat party and Clara Zetkin the main feminine leader of European socialism. This approach ends underlining the great contribution of socialist feminism theory to reveal the value of domestic work and the subordinated situation of women and other socially discriminated groups. Key Words Value of domestic work Nos estudos de género, que na realidade começaram por ser estudos da mulher, reflectem diversas ideologias teóricas que se combinaram de acordo com diferentes tradições:

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  • Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004

    Dossi Gnero ISSN 1518-3394

    Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme

    1

    Ensaio sobre o feminismo marxista socialistai

    Elisabete Santos Licenciada em Gesto de Recursos Humanos

    Comisso para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Portugal [email protected]

    Lgia Nbrega Licenciada em Sociologia

    Comisso para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Portugal [email protected]

    Resumo Trata-se de um ensaio acerca do Feminismo Marxista Socialista onde so apresentados os pontos

    mais marcantes desta teoria em articulao com os/as autores/as que determinaram a construo

    desta corrente de pensamento em diferentes perodos da histria. Com incio em meados do sc. XIX

    com Marx e Engels, os grandes mestres da ideologia marxista, continua com Bebel no seio do partido

    social democrata alemo e Clara Zetkin, um importante marco na liderana feminina do socialismo

    europeu.

    Esta abordagem termina salientando o importante contributo da teoria feminista socialista para a

    valorizao do modo de produo domstico, a situao de subordinao da Mulher, bem como a

    discriminao vivenciada por outros grupos.

    Palavras-Chave Modo de produo domstico

    Abstract An approach about Marxist and Socialist Feminism with the explanation of the main points of this

    theory trough the more representative authors in different history stages. Starting in the middle of the

    XIX century with Marx and Engels the masters of Marxist ideology, goes on with Bebel from the

    German social democrat party and Clara Zetkin the main feminine leader of European socialism.

    This approach ends underlining the great contribution of socialist feminism theory to reveal the value

    of domestic work and the subordinated situation of women and other socially discriminated groups.

    Key Words Value of domestic work

    Nos estudos de gnero, que na realidade comearam por ser estudos da mulher, reflectem diversas

    ideologias tericas que se combinaram de acordo com diferentes tradies:

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    - uma tradio liberal que afirma que o problema das mulheres uma falha do liberalismo

    que no lhes permitiu aceder a uma cidadania plena devido no atribuio de

    igualdade de direitos;

    - com um outro ponto de vista e partindo de diferentes pressupostos tericos surgiu um

    feminismo marxista que reconheceu o problema da mulher enquanto um problema de

    explorao econmica atravs duma abordagem, que podemos classificar como

    redutora, subordinando o tema da mulher ao tema da classe social.

    A associao entre feminismo e marxismo, nos momentos iniciais do feminismo contemporneo,

    embora nem sempre pacfica, foi intensa e fecunda, dado que havia entre ambos uma convergncia

    quase natural na luta terico-poltica que visava alcanar transformaes nas situaes de

    explorao e opresso. Constata-se o paralelismo entre o materialismo histrico que um

    conhecimento crtico elaborado pelo ponto de vista de explorados/oprimidos, com o do feminismo.

    Num primeiro momento a luta das mulheres no dissociava a dimenso das desigualdades sociais da

    opresso de gnero, o que, por sua vez, estava associado luta contra o capitalismo.

    As feministas encontraram no marxismo conceitos que poderiam potencialmente explicar as

    estruturas sociais atravs das quais as mulheres so exploradas e oprimidas, porm essa

    aproximao no se deu de forma a-crtica, desafiando os limites do marxismo expandiram o seu

    potencial terico-crtico atravs da incorporao da dimenso sexuada nas relaes sociais.

    O feminismo marxista vai teorizar o gnero baseando-se nas categorias filosficas constituintes do

    marxismo, partindo do principio materialista da dialctica, d centralidade, entre outras questes, s

    articulaes entre vida material e simblica, estabelecendo as conexes entre produo e reproduo

    social, entre diviso social e sexual do trabalho, em ltima anlise, entre o sistema de gnero e o de

    classe social. Tambm as relaes entre cincia e ideologia constituem estratgias para a

    desnaturalizao do gnero e as relaes entre teoria e praxis, legitimam as mulheres como sujeitos

    de um conhecimento terico-prtico, potencialmente crtico e transformador.

    O marxismo permitiu ao feminismo situar a sua gnese num processo gerado nas e pelas relaes

    sociais, em contextos socio-histricos determinados.

    No plano poltico, o feminismo marxista/socialista parte do postulado da indissocivel conexo entre a

    luta das mulheres e a luta de classes, pelo facto do capitalismo ser uma totalidade social, essa luta

    deve-se travar no s no plano econmico mas tambm no da cultura, o que inclui a cincia.

    Em nosso entender a cultura apesar de no constituir a totalidade da vida social, uma importante

    dimenso da trama humana onde se verifica a produo e a reproduo social.

    Outra linha de orientao dos estudos feministas o feminismo radical que deve, em parte, a sua

    emergncia ao feminismo socialista e d inicio a um interessante desenvolvimento sobre as

    diferenas entre mulheres e grupos de mulheres, e no apenas entre o homem e a mulher.

    Neste sentido a expresso Mulher no significa o mesmo que Mulheres, interpelao que comea

    com o feminismo socialista e posteriormente desenvolvido numa perspectiva radical de que ser

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    mulher jovem no o mesmo que ser mulher adulta, ser mulher negra, ser mulher pobre ou ser

    mulher rica.

    O feminismo socialista, juntamente com o feminismo radical, estiveram na vanguarda dos feminismos

    de segunda vaga uma vez que, de acordo com alguns/algumas autores/as (Vicente, 2002: 19) a

    primeira vaga dos feminismos surge entre a 2 metade do sculo XIX e a 1 metade do sculo XX,

    tendo-se caracterizado pela procura duma identidade prpria, do direito educao, do direito de

    criar cultura, do direito de entrada em certas profisses, do direito de votar e de ser eleita. Sendo que

    a segunda vaga do movimento feminista se situa por volta dos anos 60 (Nogueira, 2001: 136) e

    prolonga-se mais ou menos at meados dos anos 80 e representa uma poca de grande actividade e

    inovao, d-se uma viragem no abordar das questes relativas s mulheres, coloca-se um nfase

    em questes como a alternidade, a diferena sexual ou a opresso cultural das mulheres.

    O socialismo, na perspectiva de movimento diversificado favoreceu, desde a sua gnese o feminismo,

    possivelmente, devido a duas razes centrais: o socialismo surge num estgio histrico posterior ao

    individualismo, numa altura em que o feminismo j era uma ideologia conhecida, por outro lado, a

    ideologia socialista desenvolve um forte antagonismo famlia enquanto instituio, o que constitua

    um factor atractivo para aquelas feministas que queriam desligar as mulheres do seu papel tradicional

    de famlia.

    O feminismo marxista socialista, tal como outras correntes do feminismo, posiciona a situao das

    mulheres como grupo ou grupos, no entanto caracteriza-se com matizes que se distinguem de outras

    correntes tericas com razes ideolgicas, ou no, e que igualmente incorporaram o feminismo

    enquanto movimento. Sob diferentes orientaes procura o reconhecimento da igualdade de direitos

    legal, poltica e na prtica da vida do quotidiano entre mulheres e homens.

    Quando fazemos referencia a esta forma de pensamento feminista, obrigatoriamente somos

    levadas/os a remeter as suas bases para a ideologia Marxista que lhe foi percursora e onde

    efectivamente ela teve a sua gnese, nomeadamente atravs da abordagem de uma compreenso

    dialctica das relaes de classe e a teoria explicativa das mudanas sociais, onde cabem tambm

    as relaes de sexo.

    A teoria marxista, o feminismo marxista e o feminismo socialista no obedecem a uma continuidade

    harmoniosa apresentando-se, muitas vezes, com pontos de clivagem. De facto, a teoria marxista

    quando adaptada para a luta feminista foi seguramente ultrapassada em aspectos importantes que

    concorrem para a perpetuao das desigualdades. Esta distino relativamente ao marxismo, embora

    com outro formato, aplica-se tambm a outras tendncias de pensamento que vrias/os tericas/os

    defenderam uma vez que se serviram da problematizao do feminismo socialista como suporte a

    outras correntes feministas. O mesmo se verificou no sentido oposto, isto , a orientao feminista do

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    socialismo entrosou outros feminismos, designadamente o radical, o liberal e o ps-modernista,

    assumindo no entanto uma faceta prpria que adiante passamos a descrever.

    Valerie Bryson fundamenta, na sua obra sobre a teoria poltica feminista, que o termo feminismo

    socialista , tambm, um pouco confuso pois tende a descrever as teorias que veem o socialismo e o

    feminismo relacionados e a sintetizar as ideias dos feminismos marxista e radical (Bryson, 1992: 2).

    Alguns/Algumas feministas socialistas modernos/as afirmam mesmo que a corrente socialista do

    feminismo procura combinar o melhor do marxismo e do feminismo radical quando coincide na

    insistncia de diminuir o poder masculino, do feminismo radical e a necessidade de tratar, sob um

    ponto de vista poltico, todas as reas de vida nomeadamente as do foro privado, transferindo-as para

    a esfera publica (Bryson, 1992: 4).

    O pensamento marxista e o feminismo socialista

    Marx e Engels, os principais marcos da ideologia marxista, acreditavam que a sociedade perfeita no

    era alcanvel por si s, mas surgiria na sequncia e sob a forma de um resultado de um perodo

    particular de desenvolvimento histrico.

    Se inferida brevemente, podemos descrever a teoria marxista reduzindo-se anlise do sistema

    econmico onde foram enquadradas todas as questes sociais tais como a famlia e as relaes de

    sexo e que, semelhana de outras formas de organizao social, sero substitudas num

    determinado contexto histrico para o qual se encaminha a necessria mudana do sistema, em

    suma a supresso do capitalismo.

    O enfoque marxista parte do pressuposto de que nas sociedades primitivas, apesar da diviso sexual

    do trabalho, as relaes entre os sexos eram baseadas na igualdade. Ora, este equilbrio fica

    perturbado e subvertido quando o homem adquire o direito propriedade privada, e passa a

    assumir na esfera familiar uma posio de supremacia e de poder, e a transmisso do direito a essa

    propriedade efectuada atravs dos familiares masculinos, ficando assim reduzido o papel feminino

    funo de servido e de reproduo. Este processo explica a explorao da mulher que coincide com

    o aparecimento da propriedade privada e com a sociedade de classes.

    Como Marx tinha previsto, a maquinaria, ao lanar todos os membros da famlia do trabalhador no

    mercado de trabalho, reparte o valor da fora de trabalho do homem por toda a famlia, rebaixa o

    valor do trabalho masculino e, consequentemente, dali para diante, todos os membros da famlia

    precisam de fornecer no s trabalho, mas mais trabalho para o capital, para que uma famlia possa

    sobreviver. Desta forma, no s as mulheres como tambm as crianas e jovens da classe

    trabalhadora so reduzidos condio de simples fora de trabalho sob explorao do capital. A

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    libertao das mulheres dar-se-ia com a superao do modo de produo capitalista que, em sntese,

    eliminaria todas as formas de opresso, explorao e subjugao de toda a sociedade.

    Engels por sua vez sublinha a importncia da incorporao das mulheres nas foras de trabalho

    assalariado, j que o emprego feminino uma forma bsica para o alcance da igualdade.

    Problematizou ainda a questo da reproduo e do cuidado das crianas, bem como a educao dos

    menores que se deveria tornar um assunto pblico, libertando assim a mulher para o exerccio da sua

    funo no sistema de produo cessando a situao de dependncia e de opresso (Engels citado

    por Bryson, 1992: 71). Desta forma, a desigualdade entre os sexos ficaria reduzida desigualdade

    entre classes. Poder-se-ia concluir que a resoluo da luta de classes resolveria tambm a questo

    da opresso, e que com a incorporao da mulher no trabalho assalariado desapareceria a diviso

    sexual do trabalho.

    Engels, com base numa anlise antropolgica, contribuiu para a compreenso da famlia como

    organizao social onde a diviso do trabalho tambm uma diviso sexual entre funes

    masculinas e femininas. Esta anlise clarifica a explorao da mulher enquanto classe oprimida, mas

    no a sua subordinao como membro da categoria mulheres (que esto num plano

    hierarquicamente inferior) e que se submetem ao grupo dos homens. A situao de submisso das

    mulheres ultrapassa, porm, os limites deste nexo causal, espartilhado no mbito do sistema

    econmico, inscrevendo-se noutras causas tais como a tica subjacente s prticas da vida

    quotidiana que, de uma forma transversal determina uma participao feminina num plano de

    igualdade.

    O enfoque da opresso da mulher pois enriquecido pelas/os socialistas alargando-o para a questo

    da subordinao. O certo que o conceito de opresso ou explorao distingue-se do de

    subordinao. Este ltimo implica algumas condies partida tais como a existncia de nveis de

    hierarquizao onde determinados grupos exercem o poder e outros a eles esto submetidos. O

    enfoque marxista no analisa esta premissa de submisso das mulheres pelos homens o que

    precisamente retomado e analisado pelas feministas socialistas. Apesar das mulheres sofrerem uma

    situao de subordinao no sentido de unidade colectiva, no so todas a vivenciar a mesma

    situao de opresso ou uma opresso do mesmo tipo. Para alm disso, apesar da opresso

    feminina ser uma parte da sociedade de classes no necessariamente uma caracterstica

    permanente e determinante das relaes humanas.

    Questes, abordagens e perspectivas do feminismo socialista

    O feminismo socialista demarca-se e ultrapassa o debate do marxismo clssico sublinhando as

    relaes entre o sistema econmico e a subordinao das mulheres, constatando a sua opresso

    enquanto classe trabalhadora, mas tambm enquanto mulheres, compreendendo de uma forma

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    dialctica as relaes de sexo e de classe. estrutura de classes capitalista corresponde, como que

    simetricamente, a estrutura sexual hierarquizada. Na primeira temos capitalismo que se ope e

    domina a classe trabalhadora, na segunda temos o patriarcado que se ope e domina mulheres e

    crianas. Desta forma, capitalismo e patriarcado, so ambos sistemas de explorao e entre ambos

    se estabelece uma relao de servio mtuo, onde o sistema de valores institudo pelo patriarcado

    refora, fundamenta e serve o controlo capitalista.

    o feminismo socialista que introduz um novo elemento e faz emergir o Modo de Produo

    Domstico para o centro da actividade produtiva, atribuindo-lhe o devido reconhecimento do seu

    contributo para a economia. Num sistema de valores patriarcal e num sistema econmico, onde

    domina o capital, o trabalho domstico no reconhecido nem remunerado beneficiando, desta

    forma, a perpetuao de ambos os sistemas econmico e cultural. Perspectiva-se, desta forma, a

    situao da mulher como uma situao de classe, tendo a sua opresso origem na existncia de

    papis diferenciados hierarquicamente em funo do sexo (Maquieira e outras, 2001: 118).

    A implementao da ideologia socialista, antes da Primeira Guerra Mundial, assume forte expresso

    com o movimento socialista alemo tendo sido o maior e que obteve mais sucesso no mundo.

    Bebel, do Partido Social Democrata Alemo, e Englesii (Bryson, 1992: 121-129) partilhavam a posio

    bsica de que a opresso das mulheres era um produto da sociedade e que s terminaria quando a

    revoluo do proletariado trouxesse uma sociedade socialista na qual cada mulher teria larga

    independncia econmica aps a colectivizao do trabalho domstico e do cuidado das crianas.

    Porm, Bebel distingue-se de Engels, quando verifica que a classe trabalhadora feminina remunerada

    alm de explorada enquanto trabalhadora era tambm oprimida como mulher. Refere ainda que, de

    acordo com as premissas do sistema capitalista e os padres culturais que lhe esto associados, a

    remunerao da fora de trabalho feminina consequentemente inferior dos homens. O mesmo

    autor defende a igualdade de direitos, considera que a desigualdade de gnero prvia

    desigualdade de classes e pensa que alcanar a igualdade formal um objectivo necessrio, no

    sendo porm suficiente, se, depois de alcanado, no se incorporar de uma forma automtica na

    prtica.

    No mesmo perodo histrico Clara Zetkin foi, entre os dois autores anteriores, a principal lder

    feminina do socialismo Europeu. Concentrou as suas preocupaes nos problemas das mulheres e

    como editora do jornal Equality direccionou os problemas tericos e prticos para o recrutamento de

    mulheres para a causa socialista.

    Para Zetkin, tal como para outras socialistas, o livro de Bebeliii foi um ponto de inspirao; aceitou as

    suas teses centrais, que encadeavam os vrios factores de desigualdade que originavam opresso,

    enquadramento explicativo a partir do qual se estabelecem as inter-ligaes necessrias entre as

    aspiraes das mulheres e a realizao do socialismo. Foi extremamente hostil ao feminismo dito

    burgus que considerava imbudo duma perspectiva individualista e envolvido numa superficial

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    batalha contra os homens que no permitiu o desaparecimento duma dominao sistemtica dos

    homens sobre as mulheres. Revelou a sua oposio atravs de exigncias para melhorar a

    educao, as perspectivas de emprego e o estatuto legal das mulheres, embora o feminismo burgus

    se tenha revelado, por vezes, mais apto a identificar exemplos de opresso. Enquanto militante do

    partido socialista, recusou-se a cooperar nas campanhas pelo voto, dado que, no seu entender, as

    mulheres do proletariado precisavam da implementao de polticas e direitos legais que

    promovessem a igualdade, o que constitua uma parte integrante da luta contra o capitalismo.

    Tal como Bebel e Engels, Zetkin referiu tambm que a inexistncia de propriedade na classe

    trabalhadora e a participao das mulheres do proletariado no trabalho assalariado da indstria,

    significaria a cessao de bases ou motivao para a continuidade da desigualdade de gnero. As

    ideias de Zetkin (Bryson, 1992: 128) foram mudadas ao longo do tempo, sobretudo atravs de

    estratgias de presso exercida dentro do prprio partido socialista, de que era militante. As suas

    anlises da famlia como uma instituio opressora e a sua persistncia na importncia da

    participao feminina na actividade poltica, foram substitudas como contrapartida por outras verses

    de que, segundo o socialismo, a famlia permaneceria como uma unidade moral. A sua determinao

    radical isolou-a, no s do partido, mas de uma nova gerao de mulheres igualmente militantes do

    partido socialista, que estavam preocupadas com a assistncia e bem-estar das crianas, mais do

    que em desafiar a estrutura de poder ou alcanar uma grande mudana social.

    O feminismo inicial na Rssia foi de alguma forma semelhante ao do Este da Europa. Em meados do

    sculo XIX, as mulheres da classe mdia exigiram direito educao, carreira, igualdade plena e

    direito de voto numa sociedade onde o liberalismo era fraco e s organizaes estavam preparadas

    para defender seriamente as questes das mulheres. Contudo, este envolvimento feminino tornou-se

    de tal forma forte e radical que se disseminou sob a forma muito prxima de terrorismo tendo

    obrigado as autoridades da poca a construrem uma nova priso para mulheres.

    Nadezhda Krupskayaiv foi a primeira a apelar a ateno do marxismo ortodoxo para a situao das

    mulheres na Rssia. Seguindo as linhas anteriores, afirmou que a participao feminina na fora

    trabalhadora era progressiva e essa libertao podia resultar da participao na luta de classes.

    O prprio Lenine no mostrou indiferena ou hostilidade s exigncias que as mulheres reclamaram

    relativamente situao dos homens. Ele entrou para alm das usuais questes sobre os direitos

    legais, igualdade futura e insistncia na necessidade de libertar as mulheres do trabalho penoso

    domstico. Contudo, a situao da opresso feminina no era, semelhana dos restantes

    percursores do marxismo, uma prioridade poltica para Lenine, mais uma vez, os objectivos de

    emancipao feminina ficam aqum das expectativas inicialmente definidas.

    William Thompson, apesar de preconizar uma orientao claramente liberal, no incio do sc. XIX,

    refora alguns dos pressupostos socialistas tendo defendido que a capacidade intelectual das

    mulheres seria, pelo menos, to boa quanto a dos homens e as diferenas biolgicas nunca poderiam

    ser argumento contra direitos polticos iguais. Para Thompson, independncia econmica, envolvia a

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    insistncia no sentido de que as mulheres teriam o direito de seguir uma carreira e participar, num

    plano de igualdade, no sistema de processo produtivo. Isto s poderia ser alcanado numa sociedade

    cooperante na qual o contributo das mulheres fosse apreciado e no existissem motivos para os

    homens praticarem injustias ou para as mulheres se submeterem a elas. Distorcendo as influncias

    de possesso e do direito de propriedade que homens e mulheres se poderiam relacionar como ser

    humanos livres e iguais.

    A famlia funcionava como espao privilegiado da dominao masculina, no qual as mulheres eram

    isoladas com as suas crianas "reduzidas a um estado de estupidez e apatia" (Bryson, 1992: 34)

    pelos homens.

    Numa larga escala o fim das relaes de dependncia e de possesso na vida pessoal tornariam

    possvel uma nova e forte ordem da sociedade.

    Nos Estados Unidos da Amrica o feminismo no aparece ligado duma forma to evidente ao

    socialismo como no Continente Europeu, no entanto podemos considerar Robert Owen (Bryson,

    1992:29), no princpio do sc. XIX, como percursor de algumas ideias socialistas no continente

    americano aborda pela primeira vez a problemtica da partilha de tarefas como fonte de desigualdade

    para alm da propriedade privada, do matrimnio e da diviso sexual do trabalho. De acordo com

    Owen, a propriedade privada, a religio e o casamento eram componentes indissociveis do mesmo

    tringulo e no podiam ser erradicados. Para evitar que as mulheres fossem tratadas como

    propriedade dos homens era necessrio abolir no s o casamento mas tambm a propriedade

    privada. Logo, era necessrio remover o individualismo e a estrutura de organizao familiar, tal como

    era ento concebida, para que a abolio da propriedade privada fosse possvel. Finalmente, para a

    concretizao deste objectivo, seria necessrio abalar o motor que sustenta, que fundamenta e que

    gere a sua existncia, em suma a religio.

    O Owenismo, apesar de ter construdo uma base de fortes alicerces para os argumentos de

    emancipao por parte da classe-trabalhadora, e esteja fortemente associado aos movimentos da

    unio trabalhadora, nunca se tornou um movimento de massas. semelhana de Engels, Owen traz

    para o debate a questo do privado que dever tornar-se pblico como forma de dissoluo das

    desigualdades que por sua vez esto inscritas na diferenciao funcional dos diferentes sexos, ao

    homem atribudo um papel produtivo que radica na esfera pblica, mulher competem funes da

    esfera privada tais como a reproduo.

    A conjuntura internacional, que emerge entre os anos 60 e 70 na sequncia de distintas guerras

    imperialistas, associa a respectiva oposio de movimentos polticos cuja orientao ideolgica

    identificada com a esquerda, bem como a necessidade de explicar a vigncia do racismo, e ainda a

    implementao de sistemas econmico-polticos como o da Unio Sovitica, China e Cuba. Todos

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    eles englobam um conjunto de factores que contribuem para um ressurgimento ou renascimento das

    teorias explicativas das mudanas sociais e das relaes sociais de dominaov.

    No mbito deste enquadramento, as organizaes de esquerda desempenharam um papel

    fundamental, porm, no tardou que as mulheres que integravam estas organizaes,

    reequacionassem as perspectivas do marxismo clssico que apesar de renascido continuava imbudo

    de premissas perigosamente sexistas. Tal como o feminismo liberal e radical, o feminismo socialista

    tem afluentes na experincia e na prtica poltica das mulheres.

    E na senda deste activismo poltico que um movimento de mulheres oriundas destes grupos de

    esquerda (Maquieira e outras, 2001:115) denunciam a persistncia de questes relativamente

    teoria marxista questionando se esta constitui uma ferramenta terica suficientemente abrangente

    para explicar a opresso das mulheres, se a explorao de que so vtimas as mulheres da classe

    trabalhadora semelhante que se verifica noutros estratos sociais, e, por fim, quais os instrumentos

    metodolgicos vlidos que poderiam explicar a subordinao das mulheres.

    O poder do feminismo inicia o seu ressurgimento no contacto das diferentes correntes tericas com a

    problemtica da vida quotidiana e constitui-se num modelo de anlise que tinha a capacidade de

    apreender, desconstruir e alterar esse quotidiano.

    Nesta dcada de 60-70 a denominao de feminismo marxista e feminismo socialista, embora de

    razes semelhantes diferenciam-se, de acordo com a anlise de alguns/algumas autores/as como o

    caso de Alison Jagar que considerava o feminismo socialista mais consistente e resultante da

    aplicao duma epistemologia marxista, consequentemente mais abrangente e completo que procura

    ultrapassar o reducionismo econmico marxista, e apesar de utilizar a metodologia do materialismo

    histrico para analisar a opresso das mulheres adopta e combina aspectos caractersticos do

    feminismo radical.

    Juliet Mitchell (Bryson, 1992:248-249), feminista britnicavi, pode-se situar na senda do feminismo

    socialista, uma vez que s questes feministas que levanta, responde com frmulas marxistas,

    complementando a questo central da subordinao das mulheres. Considera que os marxistas no

    foram suficientemente ambiciosos, ao situarem a opresso da mulher no circuito das relaes de

    produo, acrescentando que a esta situao de subordinao h que contemplar o facto de se

    posicionarem noutras estruturas que envolvem e so adjacentes estrutura econmica e que no s

    a determinam como tambm se determinam mutuamente. A instituio familiar est assente em

    estruturas de reproduo, de sexualidade e da socializao das crianas, que funcionam em

    interdependncia e que da mesma forma se relacionam com a estrutura produtiva.vii O papel

    identificado com o sexo masculino tem um estatuto de dominao assumindo o controle do

    conhecimento limitando, desta forma, a autonomia e a participao feminina. semelhana de outras

    socialistas, Mitchel (Beasley, 1999:62) manteve alguns elementos do Marxismo no que diz respeito

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    importncia das distines de classe e de trabalho incorporando a perspectiva feminista radical de

    que a opresso sexual no historicamente uma consequncia da diviso de classes.

    Existem vrias verses de feminismo socialista que envolvem diferentes combinaes do feminismo

    radical e Marxista e que por vezes incorporam a influncia de feminismos psicanalticos. Uma das

    vertentes desta orientao envolve a preocupao com a construo social de gnero, que foi

    largamente vista em termos da psicanlise freudiana. Esta aproximao tende a no considerar a

    opresso sexual atravs da diferente posio scio-econmica das mulheres mas concebe a

    opresso como o efeito das funes psicolgicas, ao mesmo tempo continua a usar a compreenso

    Marxista das relaes de classe. Representa tambm um modelo de duplo sistema de anlises

    sociais, investiga a relao entre sexo e classes de poder de acordo com diferentes procedimentos e

    identifica dois sistemas de organizao social que correspondem a essas formas de poder, que so o

    patriarcado e o capitalismo.

    Em termos gerais um modelo psicolgico de poder sexual apresentado ao lado de uma base

    econmica da corrente de classes de poder. De certa forma, trata-se mais de uma abordagem da

    sobreposio dos estratos sociais que se distancia da teoria do duplo sistema como explicao para

    as relaes sociais. Esta sobreposio caracteriza o trabalho desenvolvido por Juliet Mitchell.

    Uma outra vertente deste feminismo socialista tenta aproximar o trabalho das Feministas Radicais e

    Marxistas a uma teoria de poder onde se descreve um sistema unificado algumas vezes referido

    como patriarcado capitalista, ao invs do que ocorre nas abordagens iniciais onde identificado um

    sistema dualizado: patriarcado e capitalismo.

    Apesar dos primeiros Marxistas estarem correctos em verem a relao das mulheres com a

    produo, estas anlises ignoraram as formas cruciais pelas quais a subordinao das mulheres

    mantida atravs da famlia.

    Alm das estruturas de produo, tradicionalmente analisadas pela teoria Marxista, o feminismo

    socialista alerta para a necessidade de examinar as estruturas de reproduo que servem de suporte

    famlia, sexualidade e a socializao das crianas.

    Existe um aspecto-chave na teoria de Mitchell que ainda importante referir. A explorao da teoria

    psicaniltica levou-a a tentar reabilitar Freud e mostrar que, apesar do frequente uso indevido e das

    crticas dos/as feministas, as suas ideias podem ser usadas nas anlises feministas. Ela afirma que

    as suas esperanas e previses para o futuro so baseadas na anlise do presente, no qual as

    condies econmicas podem ser fundamentais, mas que ambas as lutas, poltica e ideolgica

    podem ter papel chave. No entanto, evita o cruel (Bryson, 1992:249) reducionismo econmico a que

    as anlises Marxistas so propensas.

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    Estas anlises tambm lhe permitem advogar organizaes autnomas de mulheres, insistindo que

    como um grupo oprimido necessitam trabalhar para a sua prpria libertao e defender que no

    haver dissoluo automtica do patriarcado sem a luta feminista. Nas teses apresentadas por Marx

    o conceito de alienao envolve uma crtica humanitria das condies de trabalho sob o Capitalismo,

    defendendo que a extrema diviso de trabalho impedia uma percepo controlada desta actividade

    por parte do trabalhador, elemento activo e pea-chave do processo produtivo. Atravs desta

    fundamentao, as teorias marxistas, classificavam esta actividade como uma actividade alienada.

    As socialistas Alison Jaggar (1996) e Foreman (cit. em Bryson,1992:251) estenderam o argumento da

    alienao defendendo que para as mulheres a alienao no est confinada ao mundo do trabalho

    remunerado verificando-se tambm atravs da famlia e da vida privada, o que limita o controlo da

    reproduo e da sexualidade por parte das mulheres e assegura a proviso emocional e o suporte

    material para os homens, desvalorizando assim as necessidades prprias das mulheres e da sua

    respectiva realizao como ser humano.

    Jaggar (1996) apresenta tambm as condies mnimas de adequao que dever enquadrar e

    teoria feminista para uma aproximao tica. No seu texto: tica feminista: alguns temas para os

    anos 90 (em Castells, 1996:29) expe que a tica feminista dever procurar desafiar e identificar

    todas as formas de tica ocidental na medida em que esta excluiu as mulheres ou racionalizouviii a

    sua subordinao. O objectivo da implementao duma tica feminina dever ser ento proporcionar

    uma compreenso terica de um sistema de valores morais que no subordine, de forma explcita ou

    implcita os interesses de uma mulher, ou grupo de mulheres a outro grupo ou indivduo.

    A autora classifica como errada a postura, preconizada por parte de alguns ideais feministas, onde os

    interesses das mulheres so colocados em primeiro lugar substituindo uma moral discriminatria

    assente em valores masculinos por uma moral discriminatria assente em valores femininos. No

    contexto social actual, as mulheres continuam numa situao de subordinao pelo que a tica

    dever proporcionar um enquadramento para uma aco que permita subverter esse estado de

    subordinao atravs do reconhecimento de formas, por vezes desconhecidas e pouco divulgadas,

    em que as mulheres e outros membros de subclasses se negaram a cooperar e se opuseram a uma

    situao de opresso/dominao tendo desenvolvido condies que proporcionaram, ou poderiam

    proporcionar, a sua prpria emancipao. Esta tica, defendida por Jaggar (1996) dever tambm

    contemplar questes morais de mbito privado e pblico, subjacentes a problemticas como a

    partilha das tarefas domsticas, os afectos e a sexualidade, assim como o trabalho e as diversas

    formas de participao na vida pblica.

    A referncia indicada pela autora como ponto de partida ser a experincia moral de todas as

    mulheres, embora no de uma forma acrtica.

    Na abordagem dos conceitos de Igualdade e Diferena sublinha a importncia da identificao do

    gnero como um sistema de normas sociais que regula a actividade dos indivduos de acordo com o

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    seu sexo biolgico referindo que as normas baseadas na diferenciao do gnero de uma forma

    prtica ou simblica reforam a dominao dos homens em relao s mulheres. Na complexidade

    que constitui o debate entre o que Igualdade e Diferena, a noo de gnero traduz uma distino

    relevante entre indivduos, no entanto na prtica da sociedade ocidental contempornea tem sido

    possvel constatar que igualizar no produz necessariamente igualdade como ocaso de normas

    legais estabelecidas como forma de alcanar a igualdade, porm, na sua prtica, resultam em

    situaes de clivagens maiores de desigualdade. De que exemplo a proteco legal especial que

    proporcionada s mulheres em caso de maternidade e que originou, em alguns casos da sua

    aplicao, uma maior dificuldade das mulheres em acederem ao mercado de trabalho.

    A autora considera que homens e mulheres raramente enfrentam a mesma situao a partir do

    mesmo plano uma vez que a cada gnero socialmente atribuda uma situao diferenciada o que

    levanta uma questo que teve grande actualidade na dcada de 90 que a questo da Neutralidade.

    Confere a este conceito a proeminncia que lhe foi dada tradicionalmente porque vinculado ao

    conceito de igualdade, no entanto, semelhana de outras filsofas feministas, desafia-o,

    argumentando que no contempla as identidades particulares, constitudas de acordo com os

    projectos individuais e determinadas por relaes no controlveis. Por isso, prope a sua

    reformulao, atendendo situao especfica de determinados indivduos ou grupos.

    Na sequncia dos conceitos de neutralidade e de igualdade, aborda tambm a noo de autonomia e

    a subjectividade moral. semelhana da neutralidade a autonomia necessita de uma reformulao

    que ultrapasse o sentido da tradio kantiana de desinteresse e desprendimento por vnculos

    particulares. Considera pois que o feminismo contemporneo dever insistir na autonomia moral,

    intelectual e racional semelhana dos homens, mas tambm poltica, social e econmica mediante

    a representao poltica, a abolio da discriminao sexual e o respeito pelas decises das

    mulheres em temas como o aborto. No que respeita subjectividade moral procura relativizar o

    modelo cartesiano em que o eu moral um ser descarnado, separado, autnomo, unificado e

    racional, apelando a que de facto a individualidade resulta, grandemente de um eu construdo

    socialmente em que as individualidades representam variveis abstractas de diferentes tipos sociais.

    Aborda ainda as questes adjacentes epistemologia moral e a antiepistemologia que representam

    basicamente duas orientaes feministas. A primeira, no contesta drasticamente a base do sistema

    de valores existente e assenta em fundamentos de neutralidade. A segunda orientao, porm,

    pretende abalar por completo com este conjunto de regras assente numa neutralidade construda de

    um ponto de vista masculino: pretende, efectivamente, derrubar as regras racionalmente

    estabelecidas, substituindo-as pela intuio, pela virtude e pelo carcter moral, na determinao de

    como intervir numa situao especfica. Identifica uma tica do cuidado como claramente associado a

    uma preocupao feminina que se movimenta no mbito do espao privado e uma tica da justia

    associado ao masculino, correspondendo, na sociedade contempornea subordinao do privado

    pelo pblico.

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    Jaggar (Castells,1996:181) procura distanciar a definio de uma tica feminista de uma ortodoxia

    rgida, mas que acolhe um fermento de ideias, por vezes controversas, e que coexistem num debate

    em aberto.

    A discusso entre o que dever ser pblico e o que dever ser do domnio privado sempre presente

    nos/as pensadores/as marxistas e socialistas, retomada, em paralelo pelo feminismo radical.

    Na dcada de 80, ris Young considerada uma autora de charneira, entre feministas socialistas e

    feministas radicais (Evans, 1995:109-123), ao abordar ao longo da sua obra, alguns argumentos

    centrais do feminismo socialista adoptando-os e ultrapassando-os duma forma pioneira. Numa

    abordagem socialista, aquilo que dever ser pblico e privado tem razes na diviso sexual do

    trabalho e corresponde a um modelo de androginiaix. Young, porm, infere-a para uma perspectiva de

    ginocentrismo que atende, por outro lado, s diferenas de gnero (Young, 1996).

    Defende que a anlise dualista do patriarcado e do capitalismo, atribuindo a opresso de gnero ao

    primeiro e a opresso econmica ao segundo, permitiu anlise econmica e social marxista

    permanecer como estava, pelo que a introduo do conceito de gnero constituiu uma adio menor

    sem grandes repercusses para as linhas mestras da orientao terica.

    Salienta a necessidade de requisitos para um ataque mais vigoroso ao capitalismo atravs duma

    integrao terica que no submeta o gnero e no ignore as preocupaes feministas.

    Embora faa referncia necessidade de se tornarem pblicos alguns aspectos do privado, no

    deixa de salientar a necessidade de respeitar um espao individual privado estabelecendo desta

    forma a relao entre igualdade e individualismo. Sublinha a diferenciao entre os grupos, no pelas

    caractersticas dos seus membros mas pela sua identidade colectiva com uma determinada situao

    de opresso. Adopta, desta forma, uma poltica dos grupos e da identidade que se ope a uma

    poltica de luta de classes fundamentada nas diferenas entre grupos sociais. Esta poltica dos

    grupos atende liberdade individual e procura estabelecer mecanismos de participao poltica. ,

    sobretudo, no atender s diferenas que constitui o enfoque do seu pensamento e que a leva a

    ultrapassar a abordagem das classes dando relevncia heterogeneidade entre grupos de mulheres

    e grupos em geral.

    Algumas reflexes conclusivas

    Embora o feminismo socialista, com razes em teorias explicativas da mudana social e das relaes

    sociais, tenha ultrapassado o debate marxista clssico, deixa em aberto algumas limitaes que

    progressivamente foram complementadas e expandidas por outras correntes do feminismo que j

    foram aqui apontadas como o caso do feminismo radical.

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    A varivel dominante do mtodo de anlise socialista a econmica, que desemboca num modelo

    economicista e redutor, limitando-se a uma anlise das relaes de produo no mbito do sistema

    social. Fica visivelmente excluda a produo e reproduo psicolgica da Mulher que veicula a

    utilizao de diversas formas de violncia que povoam claramente o quotidiano feminino com base

    em razes culturais do passado mas que actualmente assumem outras manifestaes e subterfgios

    que disfaram novas formas de opresso.

    A violncia domstica, a prostituio, o assdio sexual ou a violao, so exemplos duma expresso

    mxima que se traduzem em formas de subordinao de que o sexo feminino preferencialmente a

    vtima e que corre o risco de no estar contemplada num modelo que analisa redutoramente relaes

    de produo.

    A teorizao do marxismo clssico, cujo paradigma desenvolvido pelo feminismo socialista

    relativamente mudana social, obedece a um padro universal do desenvolvimento de organizao

    familiar da primeira sociedade humana, que hoje largamente questionvel. Embora na sociedade

    contempornea o modelo dominante seja heterossexual ele no nem foi o nico, proliferando outras

    formas familiares como a homossexualidade e a monoparentalidade.

    A proposta da sociedade socialista relativamente ao modo de produo domstico e ao cuidado das

    crianas de que ambos sejam colectivizados, sendo desta forma transferido para a esfera pblica

    aquilo que gerava uma relao opressiva na esfera do privado. No foi, no entanto, claramente

    discutido a quem deveria ser atribuda a competncia da realizao destas tarefas, e uma vez que a

    diviso sexual do trabalho, nesta sociedade dita socialista, ocorre na sequncia duma diviso natural

    entre os sexos, o risco do trabalho penoso ficar para o grupo com menor capacidade de reivindicar

    indiscutvel.

    Ainda no que se refere ao trabalho domstico foi o feminismo socialista que ps em relevo o seu

    respectivo valor no mbito do processo produtivo. E para muitas feministas marxistas a reproduo

    uma componente da base material da sociedade que necessita ser incorporada numa correcta

    compreenso da mesma.

    Fica assim em aberto a possibilidade de uma interaco entre a produo e a reproduo, que por

    sua vez se traduz na interaco da luta de classes e de sexo. Porm, a explorao da mulher pelo

    homem, pelo facto do segundo no partilhar estas tarefas, no posta em evidncia, e as

    dificuldades que as mulheres sentem em tentar combinar o trabalho remunerado com as

    responsabilidades domsticas nunca foram analisadas luz da dupla opresso que da advm uma

    vez que a grelha de anlise socialista no o permitex.

    Alguns crticos defendiam que a concepo da teoria Marxista no neutra de gnero, pois no so

    aplicveis s mulheres e so baseadas numa viso masculina do mundo que exclui as necessidades

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    e as experincias das mulheres, a vida produtiva masculina funcionava como a fora condutora da

    histria humana.

    Nas consideraes que tecemos visvel a relevncia do feminismo socialista numa fase inicial do

    seu aparecimento uma vez que apontou questes importantes como as relaes no sistema

    econmico e a subordinao das mulheres, que o marxismo clssico no debateu ou diluiu na

    problemtica da luta de classes, ficando claro que a luta pela igualdade de sexos est integralmente

    relacionada com a luta da classe econmica.

    Embora algumas das questes apontadas pelo feminismo marxista, hoje, j no tenham a

    actualidade e a pertinncia que tiveram nos primrdios da sua emergncia, a problemtica associada

    ao trabalho domstico, as questes da reproduo e o sistema econmico so pontos visveis que

    continuam no debate dos movimentos feministas actuais, sobretudo no que se refere problemtica e

    ao valor atribudo ao trabalho remunerado e no remunerado.

    O legado desta corrente continua, porm, a dar sentido existncia de um ou vrios movimentos

    feministas uma vez que fica clara, atravs desta forma de anlise, a situao de desigualdade em que

    continuam a persistir diferentes grupos de mulheres.

    Bibliografia

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    e a Tecnologia, 2001;

    Notas 1 Verso melhorada do trabalho publicado no livro Um Olhar sobre os feminismos pensar a democracia no mundo da vida sob a coordenao de Conceio Nogueira e outras. ii No final do Sec. XIX, primeira metade do sec. XX iii citado no livro de Bryson, Valerie Feminist Political Theory, London 1992. iv Mulher de Lenine v Inspiradas na teoria Marxista. vi 1966, Women, the Longest Revolution. vii Atravs de todas elas e da sua interdependncia se verifica a subordinao da mulher. viii No sentido de justificar e legitimar. ix Os dois sexos tm caractersticas tradicionalmente ligadas ao feminino e masculino, a forma de minimizar estas diferenas seria atravs da atribuio de direitos e competncias semelhantes (Nogueira, 2001:147-148). x Uma das situaes exemplificativas do que fica dito o facto do sexo feminino, apesar de inserido no processo produtivo, com idnticas funes e competncias s dos homens, usufruir nveis de remunerao mais baixos