Ensinando a nao fazer nada

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Texto para a Disciplina de Psicologia Médica 1 da Unifesp.

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PSICOLOGIA MÉDICA : ENSINANDO A "NÃO FAZER NADA"

Julio Ricardo de Souza Noto

Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina

...há coisas que melhor se dizem calando-se Machado de Assis

I- INTRODUÇÃO

O objetivo desta exposição é analisar algumas questões do ensino da disciplina de

psicologia Médica relacionando-as com o estado atual do conhecimento médico assim como com

a velocidade da produção desse conhecimento.

Para expor algumas idéias proponho, uma reflexão a partir da História tentando focalizar

a representação social do médico no século XVIII e XIX. A informação, ainda que romanceada,

que se possui é que esse profissional era um indivíduo muito respeitado, com um status muito

bem definido e cuja valorização chega até nossos dias. Por outro lado, também sabe-se dos

pouquíssimos recursos terapêuticos disponíveis na época: antes da descoberta das técnicas de

assepsia e do advento da anestesia qualquer intervenção cirúrgica era uma temeridade, ficando

quase que exclusivamente limitada às amputações. A farmacologia também não contribuía com

muito para o arsenal médico: não se contava com quase nenhum dos produtos hoje utilizados,

como por exemplo antibióticos, corticóides, antinflamatórios, neuroléticos, sem falar nos

citostáticos e nos imunossupressores.

A reflexão proposta é então, a seguinte: se não era decorrente dos recursos técnicos, de

onde seria proveniente esta valorização do médico? Ou, em outras palavras: se o médico do fim

do século XVIII e início do século XIX praticamente "não fazia nada", a que se devia o seu

prestígio?

Em primeiro lugar gostaria de deixar claro desde logo que, para mim, este "não fazer

nada" é um fazer muito e que estou usando esta expressão unicamente como recurso retórico.

Sugiro uma ponte na História, voltando ao tempo presente, para analisar alguns aspectos

da valorização do ato médico na atualidade e ao nosso meio. evidentemente esta análise será

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tendenciosa pois recorta apenas um dos fatores da causalidade dos fatos, mas que penso ser

válida para esta reflexão.

Freqüentemente surgem na imprensa estatísticas mostrando o número exagerado de

cesarianas em detrimento de partos normais. Pelo menos em termos econômicos a valorização de

um ato cirúrgico é maior do que o seria se um médico ficasse "sem fazer nada", esperando um

parto normal. Os serviços médicos que lidam com os sistemas de saúde, tanto público como

privado, sabem que a maior remuneração é proporcional ao número de "procedimentos" que

puderem ser realizados. A maior distorção, nesse sentido, está no fato que as intervenções

psicológicas, na maioria das vezes, não estão cobertas pelos seguros-saúde, ou seja, quase se

pode concluir que se um psicoterapeuta inventasse alguma maquininha que intermediasse a

relação com o paciente, provavelmente, ai sim, ele receberia alguma remuneração. Mas enquanto

ele ficar com o paciente apenas conversando e "sem fazer nada", não ganhará nada.

Eu acredito que, pelo menos em parte, esse seja um fenômeno cultural. É o preço que se

paga pelo desenvolvimento do método científico, conseguido após as idéias de Descartes, do

empirismo e do racionalismo de Bacon. Precisa-se da "res extensa" para que se possa estar

seguro da natureza científica de um fato. Penso que esta tendência está imersa na nossa Cultura

e em todos os níveis. Qual médico já não ouviu de um paciente, a célebre frase: ...Doutor, não

seria bom uma radiografia? "É a "res extensa"(materialidade) de uma placa de celulóide dando a

segurança de que a ciência fez tudo. A natureza mágica do elemento concreto talvez seja mais do

que uma consequência do cartesianismo. Assim, Levy-Strauss em sua Antropologia Cultural

conta-nos a história de Quesalid que era um indigena que queria provar os embustes dos

fenômenos xamanísticos; para tanto ele fez-se aprendiz de xamã e nas suas andanças percebe

que conseguia um efeito terapêutico muito maior quando apresentava aos doentes um elemento

concreto da doença, no caso uma pluma misturada com saliva e sangue, que habilmente havia

ficado escondida em sua boca. Seus concorrentes, que diziam que a doença era um espírito e

portanto invisível, eram facilmente desprestigiados diante da apresentação de algo que podia ser

visto e tocado, isto é, que tinha matéria.

Não obstante, nosso médico do século passado, sem tantos recursos ditos científicos e

tecnológicos ocupava um lugar importante na constelação social dos pacientes. O que é que ele

fazia? Não fazia nada. E esse nada é importante.

Especificando melhor as palavras que iniciaram o presente trabalho reitero que o objetivo

desta reflexão é o ensino da Psicologia Médica tentando estabelecer alguma relação desta com o

"nada" que era feito por esse médico imaginário do século passado.

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II - PRIMEIRO ENCONTRO DO ALUNO COM O PACIENTE

O curso de Psicologia Médica ministrado na escola Paulista de Medicina, onde desenvolvo

minha atividade docente, é ministrado nos três primeiros anos do curso e tem por objetivo a

formação do aluno mais do que a informação. Neste sentido, desde o 1º ano é fornecida ao aluno

a possibilidade de contato com os pacientes.

A experiência desenvolvida tem revelado que uma das principais ansiedades do aluno ao

defrontar-se, pela primeira vez, com um paciente poderia ser sintetizada na seguinte fala do

estudante: "...como eu vou conversar com ele(o doente) se eu não tenho nada para dar".

Este primeiro encontro visa apenas uma entrevista com o paciente procurando objetivar

uma temática mais cultural que clínica, como por exemplo, o reconhecimento de práticas de

medicina popular ou caseira com uma finalidade mais ampla que é familiarizar o estudante com as

vicissitudes da relação médico-paciente. Entretanto os temores e fantasias dos alunos adquirem

contornos bastante desproporcionais: são imaginados pacientes que se recusam a falar; doentes

que questionam a condição de estudante do entrevistador; pacientes desrespeitosos em virtude da

pouca idade do aluno; pacientes que protestam por estarem sendo feitos "de cobaia"; enfim uma

série de temores alicerçados no fato do aluno não ter nada a dar em troca das informações

pedidas aos pacientes.

Após realizada esta experiência, um novo clima forma-se entre os alunos. É uma mistura

de alivio, orgulho e satisfação. É a descoberta de um brinquedo novo. Alguns inclusive voltam, em

outros horários, para conversar com o paciente , porque perceberam que o "não fazer nada",

além de ser bom para o paciente pode fazer bem também para o médico (no caso o aluno).

A conscientização pelos alunos que a troca afetiva no relacionamento profissional é

benéfica para ambos é um ponto importante nesta etapa do curso. Eles, os alunos, descobrem que

o paciente sente-se bem e fica agradecido quando alguém dispõe-se a ficar a seu lado, a ouvir

suas histórias, a ocupar-se alguns minutos com ele, sem fazer nenhum tipo de "procedimento".

Talvez fosse isso o que fizesse o tal médico do século passado no intervalo da aplicação

de algumas ventosas ou de algumas sangrias: ficar ao lado do paciente e ouvir suas queixas.

A diferença entre o intenso medo antes e a grande satisfação depois dessa 1ª entrevista

faz-nos refletir sobre a desproporção entre o estímulo (entrevista) e a resposta(ansiedade). Esta

aparente disparidade deve corresponder a alguma proporcionalidade em outro nível (talvez

inconsciente). Dois fatos são inquestionáveis na situação examinada: alguém que está internado

num hospital tem algum tipo de desejo de ser ajudado e alguém que ingressa numa faculdade de

medicina tem que ter algum tipo de motivação em ajudar. É precisamente no 1ºano do curso que,

geralmente, observamos o pico da idealização da tarefa médica.

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Penso poder postular que a representação que os alunos tem do "ser médico " tenha duas

raízes principais: uma cultural e outra pessoal. É nessa raiz pessoal que ficam assentados todos

os elementos subjetivos da motivação vocacional. Identifico aqui o depósito de toda necessidade

inconsciente de reparação que irá contribuir na intensidade da idealização. Na verdade as

cobranças atribuídas aos pacientes, antes da 1ª entrevista (e talvez nas subseqüentes), nada mais

são que cobranças internas projetadas e que no fundo expressam a própria vocação médica.

Por outro lado é na raiz cultural que, provavelmente, encontra-se a necessidade de

parafernália tecnológica. Está arraigado em nossa cultura a necessidade de exames objetivos,

maquinárias complicadas, fatos estes já comentados no início da exposição.

Nesta 1ª entrevista, cujo objetivo é um inquérito sobre o uso de práticas de medicina

caseira, muitos alunos tentam obsessivamente obter informações "técnicas'(diagnósticos,

resultados de exames de laboratório) junto aos residentes ou no próprio prontuário do paciente a

fim de irem mais instrumentados - protegidos - para enfrentarem a 1ª relação médico-paciente.

III- O CONTATO COM A INTIMIDADE DO PACIENTE

De acordo com a estruturação do curso de Psicologia Médica, na Escola Paulista de

Medicina, é durante o 2º ano que o aluno é introduzido na investigação dos aspectos psicológicos

do paciente. Nesse sentido, entrevistas são realizadas visando obter uma história biográfica do

paciente salientando os pontos importantes para a formação da personalidade. Procura-se, assim,

evidenciar as situações de conflito vividas pelos pacientes e a relevância das mesmas no estado

psicológico atual.

Para os alunos isso equivale a pedir que mexam em "casa de marimbondo". As

ansiedades despertadas apontam para o fato deles, alunos, terem ou não o direito de abordar

questões doloridas ou constrangedoras para os pacientes e invariavelmente desembocam no

problema de o que fazer se o paciente ficar "mal".

Esta é uma questão que não é exclusiva de estudantes. Inúmeros profissionais

apresentam a mesma inibição diante das eventuais reações emocionais dos pacientes. Muitos

diagnósticos ou informações mais específicas são omitidas aos pacientes com a racionalização

que, assim, evita-se uma descarga emocional, ou, numa fantasia mais drástica, até mesmo uma

tentativa de suicídio.

É obvio que tanto o aluno como o médico formado sabem que qualquer ser humano

deprime-se diante de uma perda ou mesmo de uma ameaça de perda. Este é uma fato tido como

normal e o mesmo acontece, com maior razão, quando a perda refere-se à própria vida ou à

qualidade dela. Por que será, então, que o profissional evita ou fica intimidado em tais situações?

Penso que uma das hipóteses a ser levantada é que o médico simplesmente não consegue

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permanecer junto de quem sofre sem fazer nada: a sua "parte médica" não permitiria que ele

apenas ficasse ao lado de quem sofre. O aluno, enquanto "pessoa", até que se sai bem, como o

demonstra o seguinte fato:

Como recurso pedagógico, algumas vezes, utilizo dramatizações onde situações

conflitivas são encenadas na busca de soluções adequadas. Observa-se, por exemplo, que

quando uma cena de comunicação dolorosa é montada sem envolver o papel de médico o diálogo

flui mais facilmente , mesmo quando o montante de emoção ou sofrimento sejam equivalentes. O

aluno desempenhando outro papel que não o de médico (amigo, namorado, etc.) permite-se muito

mais entrar em contato com o sofrimento do outro.

Acredito que a visão do sofrimento funciona como um gatilho acionando a necessidade de

curar existente na vocação médica. O médico tem que "mostrar serviço", não tanto para o

paciente como para si mesmo. Penso que aqui poderia residir uma das causas do chamado "furor

curandi" dos iniciantes, que faz com que tantas intervenções ou medicações sejam feitas

desnecessariamente.

A título de ilustração, recordo que há alguns meses atrás foi apresentada numa revista

semanal, uma matéria escrita por um familiar de um paciente terminal e que relatava uma

infinidade de intervenções às quais o paciente foi submetido apesar da irreversibilidade do caso.

Como a internação fora motivada unicamente para cuidados paliativos, as reflexões do familiar

apontavam para o aspecto comercial da questão denunciando a atitude extorsiva do médico. Sem

entrar no mérito da denúncia, eu gostaria de complementar esta polêmica acrescentando este

dado que está sendo examinado, que é a compulsão do médico em fazer coisas que lhe tragam a

sensação de estar exercendo sua missão curativa ou pelo menos de que está tentando.

Estima-se, hoje em dia, que o conhecimento médico duplica a cada sete anos; desta

forma, o avanço tecnológico e as possibilidades de intervenções passam a ser tantas que o

médico pode perder-se neste emaranhado e não saber o limite de sua atuação. O médico do

século passado, freqüentemente, era obrigado a dizer a um paciente ou à família que "...agora a

questão está nas mãos de Deus". Hoje em dia não é mais assim; não se ouve mais isso. Curar

não é mais tarefa de Deus e sim dos médicos que se julgam muito bem equipados tecnicamente.

Há sempre alguma coisa a mais que pode ser feita ou algum aparelho que pode ser ligado

mantendo a vida de alguém. De tal forma esta situação evoluiu, que na década passada, alguns

hospitais de ensino norte-americanos tiveram que desenvolver normas que limitassem as

intervenções desnecessárias: são os conhecidos DNR (do not ressucitate). Pelas mesmas razões

começou-se a cogitar do direito legal a uma morte natural.

Esta armadilha na qual o médico atual pode ficar preso não é nova. Já era conhecida na

Grécia Antiga onde encontram-se os mitos que mostram alguns heróis sendo punidos por

arrogarem-se tarefas próprias dos deuses: Icaro com suas asas desejando voar e Prometeu

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ensinando aos mortais o domínio do fogo. No próprio mito de Asclépio - o deus da medicina -

encontra-se o primeiro médico punido com a morte por Zeus, pela razão de estar ressuscitando os

mortos e quebrando assim a ordem natural do Universo.

Eu chamo tal situação de armadilha porque creio que o médico que tenha conhecimentos

e recursos técnicos e deixa de usa-los num determinado paciente que não apresenta mais

condições terapêuticas, pode entrar num dilema bastante intenso pagando um preço muito alto por

ter tantos recursos em suas mãos e não usa-los. Este preço é pago em moedas tipo ansiedades,

culpas, remorsos, depressões e até mesmo suicídios.

Esta é a razão do título desta exposição: chegamos a um ponto do conhecimento médico

e iremos avançar muitíssimo mais, onde começa a ser importante ensinar ao estudante de

medicina que, em algumas circunstâncias, o mais importante é não fazer nada .

IV - CONTEÚDO PROGRAMÁTICO DO "NÃO FAZER NADA"

1- AUDIÇÃO CATÁRTICA

O efeito benéfico da catarse foi descrito por Aristóteles enfatizando seu efeito terapêutico

através da purgação das emoções . O termo foi retomado por Freud e Breuer, em 1895, no estudo

das histerias e foi baseado nesse fenômeno que as primeiras curas psicanalíticas foram

explicadas.

Para uso do médico em geral, interessa a noção de "audição catártica" tal como foi

descrita por Ruesch: esta "expressão refere-se a uma atitude do médico que implica sua

disposição a dar ouvidos às inquietações do paciente, a seus escrúpulos emocionais e a outras

expressões, num esforço por compreender, sem interromper, guiar, aconselhar e nem refutar nada

que o paciente diga. ...É esta atitude sem crítica que inspira confiança ao aflito e o induz a falar...

Nos seres humanos existe aparentemente uma necessidade, inata ou adquirida, de compartilhar

informações; uma pessoa sente-se inquieta se deve suportar sozinha um segredo."

Embora a catarse esteja presente em todas as psicoterapias, o que acabei de descrever

não se constitue, por si só, num processo psicoterápico. Não é intenção. É importante ressaltar

aqui a diferença estabelecida por Schineider entre psicoterapia e atitude psicológica do médico,

onde esta última corresponde a um conjunto de disposições no sentido de considerar, na sua

atividade profissional, as variáveis psicológicas do paciente. Não cabe ao médico substituir o

psicoterapeuta; a psicoterapia continua tendo suas indicações precisas e normas para constituir-se

numa sub-especialidade. O que tento ressaltar é que, assim como todo paciente tem uma

pulsação e uma temperatura que precisam ser medidas, também há um psiquismo sempre

presente a ser levado em conta.

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2- CONTINÊNCIA EMOCIONAL

Muito relacionada com a audição catártica descrevo aqui a capacidade do médico em

funcionar como continente de emoções e fantasias dos pacientes.

Em 1914 no estudo "Introdução ao Narcismo", Freud assinalava que o estar doente

produzia um estado mental onde o interesse do indivíduo era retirado do mundo externo

concentrando-se no próprio ser. Postulou, na ocasião, que uma concentração desta natureza

também ocorria num dos primeiros períodos da vida correspondendo a um estágio natural do

desenvolvimento ao qual, o sujeito doente retornava por meio de um processo que denominou-se

regressão. Desta forma estes dois conceitos psicanalíticos passaram a ficar incorporados na

psicologia do adoecer. Na observação de uma pessoa doente vamos identificar situações de

dependência, passividade, alheiamento e egoísmo que corresponde a tais conceitos.

Este estado mental, próprio de quem está enfermo ,busca uma complementação na

pessoa do médico. É esta atitude específica do profissional de saúde que é denominada

continência. Como a pouco foi referido esse narcismo ou mesmo a dependência e passividade são

etapas normais do ser humano em suas primeiras fases da vida e que, ai, tem como complemento

natural a pessoa da mãe ou de sua substituta. Esta continência materna foi e é objeto de estudos

psicanalíticos sob varias denominações (maternagem, "holding", capacidade de "reverie", etc.)

Desta forma quando um indivíduo adoece e, por meio da regressão, retorna a padrões de

comportamento passados, passa a buscar por meio de transferência (outro conceito psicanalítico)

a mesma continência existente na infância, agora na pessoa do médico.

Outro conceito psicanalítico que pode ser útil na compreeensão das vicessitudes

emocionais do doente; foi dado por Kohut que, no estudo das perturbações narcisiscas, descreveu

um estado denominado self-grandioso que teria por função compensar tal perturbação. Como o

próprio nome está dizendo trata-se, esquematicamente, de um sentimento de onipotência, de uma

grandiosidade que busca neutralizar a ferida narcísica. Este estado emocional pode estar

localizado no próprio sujeito ou ser projetado no mundo esterno. É esta última eventualidade que

interessa no estudo da Psicologia Médica, visto que o paciente, desde seu desequilíbrio narcísico

acionado por uma enfermidade, freqeuntemente projeta na pessoa do médico esse self-

grandioso, passando estão a vê-lo como um Deus todo-poderoso.

Este é um ponto crucial na formação psicológica do médico pois, se por um lado procura-

se desenvolver uma atitude de continência, por outro, deve-se prepará-lo para o manejo adequado

das projeções maciças de onipotência das quais ele é o alvo. É uma corda bamba na qual é

dificial equilibrar-se: se pender para um lado deixa de ser continente; se pender para o outro pode

cair numa situação de onipotência com todos os riscos mencionados.

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A situação é bastante complicada pois a incorporação da projeção do self-grandioso pode

vir ao encontro das perturbações narcísicas de próprio médico e desta forma funcionar como um

fator de aprente equilíbrio para o psiquismo do profissional. É aqui que situo a referida artmadilha

proporcionada pelo avanço tecnológico. Atualmente, e cada vez mais, os recursos oferecidos pela

ciência tendem a funcionar como um alicerce de realidade para este jogo de projeção/introjeção

do universo psiquico, criando assim um estado de perigo permanente para o médico mais

vulnerável.

3 - ATITUDE EXPECTANTE

Os aspectos que estou abordando separadamente, nada mais são que ângulos diferentes

de observação da mesma questão e que vem a ser a atitude psicológica do médico. Isto me

obriga a uma certa repetição ou retomada de pontos já descritos. Neste sentido é que analisarei a

necessidade de intervenção do médico, muitas vezes, assumida apressadamente.

A ansiedade em aliviar um sofrimento, aliada a um sentimento de onipotência,

freqüentemente, está na raiz de intervenções iatrogênicas.

O modelo mais primitivo de ajuda, proteção, alivio e satisfação de necessidade, é sem

dúvida o da relação mãe-bebê. Tomando este relacionamento como paradigma podemos apontar

um exemplo de intervenção prejudicial: tome-se, a título de ilustração, a questão da cólica do

recém-nascido. Uma das hipóteses que tenta explicar este quadro refere-se à ansiedade da mãe

em cuidar de seu bebê. desta forma a mãe inexperiente, não aguentando o choro da criança tenta

acalmá-la agindo apressadamente e em qualquer direção: acha que o bebê está com sede e dá-

lhe água, depois acha que é fome e dá de mamar, e assim vai indo, trocando fralda, agasalhando,

desagasalhando, pegando no colo, pondo no berço e cada vez o problema agravando-se mais.

Este círculo vicioso poderia ser interrompido se alguma pessoa mais tranquila tomasse o bebê no

colo e o deixasse ficar. É outra vez o efeito mágico do "não fazer nada". Na verdade o que

ocorre é que as ansiedades do bebê são contidas por este 2º personagem em vez de serem

potencializadas pelas ansiedades da mãe.

Uma situação semelhante pode ocorrer na relação médico-paciente, onde um médico

levado pelas próprias ansiedades inicia uma série de intervenções desnecessárias o que só

contribue para o agravamento do estado do paciente. Quantos exames invasivos são pedidos e

enquadram-se neste tipo de caso?

A pessoa que procura o auxílio de um médico está, na maior parte das vezes, dominada

por uma ansiedade relacionada com sua integridade ou equilíbrio e este é um estado que

primeiramente deve ser contido pelo médico e o melhor instrumento é o que foi exposto no item

referente à audição catártica.

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No decorrer do curso de medicina o aluno vai tomando contato com os mais variados

quadros patológicos com suas respectivas e apropriadas intervenções curativas. De seus

professores aprende a clínica e a terapêutica assim como o momento adequado do uso desta

última. Na Psicologia Médica o que ele deve aprender é ser continente das emoções do paciente

assim como lidar com suas próprias. Faz parte de seu aprendizado o treino em permanecer aberto

aos aspectos psico-sociais do doente. Da mesma forma o estudante deverá ser ajudado a

reconhecer seu próprio universo psicológico incluindo aqui suas motivações e conflitos, com a

finalidade de melhor lidar com eles ou de saber procurar uma ajuda específica quando isto for

necessário.

Uma variante desta temática é o treinamento para a falibilidade do médico. Como

qualquer ser humano o médico pode errar e neste sentido deve saber manejar os seus erros. Um

erro deverá ser encarado como fonte de conhecimento e não como desencadeante de uma culpa

paralisante. Quando investido de uma sentimento de onipotência o médico fica impossibilitado de

reconhecer suas próprias limitações e assim poder utilizar seus erros como bússula no seu

caminho para um diagnóstico ou para uma terapêutica. Preso na arapuca do narcisismo ou da

onipotência ele perde a capacidade de dizer "não sei" e de ficar sem "fazer nada" até que algum

elemento novo surja do prórpio paciente ou que um outro profissional mais capacitado agregue

algo ou aponte uma saida ou mesmo reconheça que esta não existe.

Volto a insistir que esta expectativa onipotente não está apenas no médico e que

freqüentemente a sua origem encontra-se no paciente que sofrendo e sentindo-se ameaçado cria

figuras todo-poderosas como meio de controlar sua ansiedade. A nossa cultura também contribui

formando um pano-de-fundo no cenário onde se dá a relação médico-paciente. Como exemplo

trago uma crônica recentemente publicada no jornal " A Folha de São Paulo" onde a cronista

descreve o insucesso de uma amiga ao consultar-se com um médico. Os comentários feitos pela

cronista apontavam a sua indignação pelo problema da amiga não ter sido resolvido.

Aproximadamente suas palavras eram estas: "...o duro é aguentar a ignorância da Medicina..."

Suponho que o unico referencial que pode estar por trás destas palavras é o da Imortalidade; o dia

em que um médico (ou qualquer ser humano em qualquer profissão) deixar de ter dentro de si a

ignorância é porque foi atingida a Onisciência e desta forma teremos todos nos tornado deuses

deixando de existir portanto morte e sofrimento. A negação da morte como fenômeno natural é um

fato bastante difundido nos dias atuais da civilização ocidental e tem merecido, por suas

implicações, a atenção de vários estudiosos.

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4- USO DA CONTRA-TRANFERÊNCIA

Fiz referência à atribuição que o doente faz ao médico de sentimentos e atitudes que

corresponderiam a outros relacionamentos passados. Este fenômeno, a Psicanalise denominou

transferência . A mesma situação, porém com sentido inverso, é possível de ocorrer: isto é,

sentimentos vivenciados pelo médico diante de seu paciente. neste caso, independentemente de

uma origem anterior ao relacionamento atual, convencionou-se chamar de contra-transferência a

tudo o que o médico sente no contexto da relação médico-paciente. Este conjunto de sentimentos

pode funcionar como um excelente guia do raciocínio clínico do profissional, e aqui, novamente o

médico não precisa fazer nada: basta sentir. Esta é a razão pela qual este item esta incluído no

presente trabalho.

A análise da contra-transferência foi e continua sendo a pedra fundamental do protótipo

dos Grupo de Formação Psicológica para Médicos. Michael Balint, psicanalista húngaro radicado

em Londres, iniciou na década de 50 este tipo de grupo com médicos generalistas da Tavistock

Clinic. Eles discutiam seus casos clínicos enquanto que o olho do psicanalista buscava os

elementos da contra-transferência; estes médicos eram estimulados a descreverem seus

sentimentos despertados pelos pacientes e com esse novo ingrediente a discussão clínica

ampliava suas fronteiras para o campo psicológico.

Este método, na sua forma original ou com algumas variações, continua sendo um

excelente instrumento para o médico conhecer a si mesmo, no contexto do exercício de sua

atividade profissional, assim como permite encontrar melhores caminhos de acesso ao mundo

psíquico do paciente.

Por força da regressão o colorido emocional da relação médico-paciente adquire matizes

muito intensos. É bastante frequente ouvir de médicos que trabalham

com pacientes muito graves que um toque corporal(um aperto de mão ou uma mão no ombro)

faz mais que muitas palavras. É possível que pacientes nestes estados hajam regredidos tanto

que chegaram a níveis pré-verbais de comunicação onde as palavras já não dizem mais nada.

Penso que fica claro, aqui, a importância para o médico, de poder reconhecer seus próprios

estados emocionais mobilizados por mecanismos intensos de identificação projetiva.

De um modo geral os médicos não são treinados para o uso deste tipo de instrumento.

Apenas alguns poucos o utilizam de uma forma intuitiva, enquanto que os demais assumem essas

emoções sentidas como sendo provenientes únicamente do seu próprio psiquismo. Aprender a

separar o que é próprio e o que, embora sentido em sí, provem do psiquismo do paciente é uma

tarefa muito árdua e sofrida pelo estudante, pois antes deste aprendizado ele vivencia tudo como

próprio, como fruto de sua inadequação, perseguindo-se e enchendo-se de culpas.

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5-INTRANSFERIBILIDADE DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

Por tudo o que já foi exposto até o momento fica claro que encaro a relação médico-

paciente como um tipo de interação humana onde estão em jogo emoções, sentimentos e

fantasias de natureza bastante primitivas e portanto muito intensas. Tal situação não é exclusiva

da Medicina, sendo provável que ocorra também em outros tipos de relacionamentos onde um dos

membros detem o poderes sobre algo muito valorizado do outro. Esta relação de dependência

vital cria uma condição tal que não é possível haver delegação de funções. Normalmente esta

exclusividade do relacionamento fica muito patente com o uso enfático de pronomes possessivos;

por exemplo: meu advogado, meu confessor, minha noiva e evidentemente meu médico.

A ninguém ocorreria mandar um substituto caso a noiva ou namorada enviasse uma

mensagem solicitando carinho e atenção. Da mesma forma uma criança que se perde num parque

de diversões só se acalma quando a mãe reaparece.

O mesmo ocorre na relação médico-paciente. O poder que se atribui a um médico para

amputar uma perna, abrir um tórax, parar um coração, injetar o que achar conveniente é algo sem

precedente em outros relacionamentos. Quando se delega a alguém tal poder, um vínculo

fortíssimo estabelece-se imediatamente e a contra-partida disso é que a partir de então essa

pessoa será aquela em que mais se confia; essa será a pessoa que conterá as ansiedades e dela

espera-se que elucide as dúvidas. Se o médico omite-se dessas funções e a delega a outro

profissional, no mínimo, está sendo desleal.

Evidentemente o que estou expondo nada tem a ver com a condição de trabalho em

equipe. Tal modalidade de atendimento é cada dia mais importante e enriquecedora do trabalho

em saúde. O que aponto é uma distorção na divisão das funções dentro de uma equipe.

Ultimamente tenho visto a inclusão de psicólogos nas equipes de saúde, mas infelizmente com um

viés no sentido destes profissionais serem chamados a exercer funções que, por mais árduas que

sejam, são da alçada do médico. Já é quase anedótico um episódio onde um cirurgião pede a um

psicólogo que avise ao paciente que dentro de algumas horas será procedida uma amputação da

perna. A racionalização do médico é que tal comunicação por envolver uma carga emocional

deveria ser feita pelo psicólogo que é o "especialista" desta área. Felizmente, pela informação que

tenho, o psicólogo recusou essa atribuição, mantendo a especificidade de seu papel.

Para finalizar gostaria de pontuar que acredito que o ensino da Psicologia Médica não

deva ficar restrito aos alunos da graduação, mas deveria alcançar a todos os profissionais de

saúde e em especial aqueles que funcionam como modelos para os iniciantes. A reflexão

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contínua das questões aqui abordadas contribuem certamente para um atendimento mais humano

aos pacientes, mas , sem dúvida, tem no próprio médico um grande beneficiado.

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BIBLIOGRAFIA

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