Ensinar a Ler Na Escola a Leitura Como Prática Cultural

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249 Ensinar a ler na escola: a leitura como prática cultural Fabiana Rodrigues Cruvinel Ensino Em-Revista, Uberlândia, v.17, n.1, p. 249-276, jan./jun.2010 ENSINAR A LER NA ESCOLA: A LEITURA COMO PRÁTICA CULTURAL Fabiana Rodrigues Cruvinel 1 RESUMO: Assumindo o ato de ler como objeto de cultura, este artigo busca apresentar a contribuição dos estudos de Vigotski e da teoria da enunciação de Bakhtin para o ensino dessa atividade na escola, com o objetivo de evidenciar em seus trabalhos as relações entre o processo de escolarização e a formação do leitor. A princípio, discute-se a partir de Vigotski o papel do processo de escolarização para a formação do indivíduo, focando a questão da formação do leitor. Na sequência, são expostos os pressupostos e a contribuição da teoria de Bakthin em rela- ção ao desenvolvimento e apropriação da linguagem tecendo relações com o ensino do ato de ler na escola. Finalmente, o texto propõe uma interlocução entre as duas teorias indicando o ensino da leitura como prática cultural. PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Processo de escolarização. Prática cultural. ABSTRACT: Accepting the reading as an object of culture, this article tries to present the contribution of Vigotski’s studies and Bakhtin’s theory of enunciation to the teaching of this activity at school, with the objec- tive of showing in their work the relationships between the process of schooling and the reader’s formation. At first, starting from Vigotski, it is discussed the role of the process of schooling in the individual’s forma- tion focusing on the reader’s formation. Then, the assumptions and the contribution of Bakthin’s theory are exposed in relation to the develop- ment and appropriation of the language, creating relationships with the teaching of reading at school. Finally, the text proposes an interlocution between both theories suggesting the teaching of reading as a cultural practice. KEYWORDS: Reading. Process of schooling. Cultural practice. 1 Profa. Dra. da Faculdade de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Ensino em Re-Vista 17.indd 249 Ensino em Re-Vista 17.indd 249 8/10/2010 15:31:20 8/10/2010 15:31:20

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    Ensino Em-Revista, Uberlndia, v.17, n.1, p. 249-276, jan./jun.2010

    ENSINAR A LER NA ESCOLA: A LEITURA COMO PRTICA CULTURAL

    Fabiana Rodrigues Cruvinel1

    RESUMO: Assumindo o ato de ler como objeto de cultura, este artigo busca apresentar a contribuio dos estudos de Vigotski e da teoria da enunciao de Bakhtin para o ensino dessa atividade na escola, com o objetivo de evidenciar em seus trabalhos as relaes entre o processo de escolarizao e a formao do leitor. A princpio, discute-se a partir de Vigotski o papel do processo de escolarizao para a formao do indivduo, focando a questo da formao do leitor. Na sequncia, so expostos os pressupostos e a contribuio da teoria de Bakthin em rela-o ao desenvolvimento e apropriao da linguagem tecendo relaes com o ensino do ato de ler na escola. Finalmente, o texto prope uma interlocuo entre as duas teorias indicando o ensino da leitura como prtica cultural.PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Processo de escolarizao. Prtica cultural.

    ABSTRACT: Accepting the reading as an object of culture, this article tries to present the contribution of Vigotskis studies and Bakhtins theory of enunciation to the teaching of this activity at school, with the objec-tive of showing in their work the relationships between the process of schooling and the readers formation. At fi rst, starting from Vigotski, it is discussed the role of the process of schooling in the individuals forma-tion focusing on the readers formation. Then, the assumptions and the contribution of Bakthins theory are exposed in relation to the develop-ment and appropriation of the language, creating relationships with the teaching of reading at school. Finally, the text proposes an interlocution between both theories suggesting the teaching of reading as a cultural practice. KEYWORDS: Reading. Process of schooling. Cultural practice.

    1 Profa. Dra. da Faculdade de Educao da Universidade Federal Rural de Pernambuco.

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    1. A leitura e o processo de escolarizao sob a perspectiva dos estudos de Vigotski

    Um dos pressupostos centrais da teoria histrico-cultural e que ser o ponto de partida para esta discusso a tese de que o homem no nasce humano, mas se torna humano. Diferentemente dos animais, um ser de natureza social. Ao nascer, no se adapta natureza, mas comea a aprender a ser homem iniciando um processo de apropriao das propriedades e aptides historicamente formadas da espcie hu-mana. Assim, a criana no nasce dotada de um conjunto de aptides e capacidades a se desenvolver, mas precisa de se apropriar delas no decurso de sua vida em sociedade. Nas palavras de Leontiev (1978), a sociedade forma a natureza humana, uma vez que por meio da relao com o mundo que o rodeia que o homem pode reproduzir as aptides e funes humanas historicamente formadas. A experincia social, portanto, a fonte do desenvolvimento; por meio da relao com o outro, com as pessoas adultas e com as crianas mais velhas, que a criana se apropria da cultura de acordo com as situaes e com o momento histrico em que vive. E esse processo de apropriao , de acordo com Vigostski (1996), um processo de educao, pois o homem s se humaniza, s se torna homem, aprendendo com os outros.

    Nesse sentido, a educao ocupa papel central no processo de de-senvolvimento, uma vez que o processo de apropriao da cultura pela criana no ocorre de forma espontnea, mas por meio do processo de educao. No se aprendem os conhecimentos da vida cotidiana e os conhecimentos mais intelectualizados sozinho ou de forma automtica; aprende-se no processo de interao com o outro que j se apropriou do conhecimento e das prticas com as quais se pode compreender o mundo. O homem se humaniza quando, por meio do processo de edu-cao, apropria-se da cultura criada pelas geraes precedentes. Como afi rma Leontiev (1978, p. 267),

    Podemos dizer que cada indivduo aprende a ser um homem. O que a na-tureza lhe d quando nasce no lhe basta para viver em sociedade. -lhe ainda preciso adquirir o que foi alcanado no decurso do desenvolvimento histrico da sociedade humana.

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    Assim, a continuidade do progresso histrico da humanidade est atrelada educao. por meio do processo educativo que se transmi-tem s novas geraes as aquisies da cultura. Educar, portanto, no tarefa corriqueira e sem inteno. tarefa complexa e sempre implica uma dada inteno, pois, como aponta Vigostski (1996), a funo es-sencial da educao a socializao do saber historicamente produzi-do tendo em vista a mxima humanizao dos indivduos. Por isso, na tarefa de educar assume-se um compromisso poltico-pedaggico e um compromisso histrico-social ante as novas geraes. Nesse cenrio, a educao escolar desempenha um papel fundamental, uma vez que para se atingir a mxima humanizao necessria a apropriao de formas elevadas de cultura que ultrapassem a vida cotidiana.

    A escola, desse ponto de vista, , por excelncia, a instituio res-ponsvel por propiciar a apropriao do saber historicamente produzido e organizado pela humanidade com o objetivo de promover a elevao cultural dos indivduos. A educao escolar, ao promover essa elevao cultural, torna possvel a transformao da sociedade por meio da trans-formao das conscincias; assim, espera-se que a escola possibilite a apropriao do conhecimento pelas crianas, pois a partir dessa apropriao da cultura que o ser humano se desenvolve e desenvolve a sociedade. Para Vigostski, o desenvolvimento resultado da apren-dizagem:

    A aprendizagem no em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta organizao da aprendizagem da criana ... conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativao no poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a apren-dizagem um momento intrinsecamente necessrio e universal para que se desenvolvam na criana essas caractersticas humanas no naturais, mas formadas historicamente. (VIGOTSKII, 2006, p.115).

    Com esse pressuposto, o autor legitima o papel do processo de escolarizao para o desenvolvimento de novas qualidades tipicamente humanas, uma vez que, ao invs do ensino adaptar-se ao que a crian-a j sabe, ele precisa ir frente, impulsionando o desenvolvimento dela. Mukhina (1995, p. 52), ao tecer uma anlise da teoria histrico-

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    cultural em relao ao desenvolvimento da infncia, afi rma que quando o ensino avana, abre caminho para o desenvolvimento psquico, pode orientar o desenvolvimento dos processos psquicos, levar formao de determinadas qualidades psquicas [...]. Esse ponto importante, pois o processo de escolarizao precisa ser visto como etapa essencial ao desenvolvimento do indivduo e no mera extenso da vida cotidia-na ou, ainda, simples socializao daquilo que j se sabe. Os sujeitos precisam ir alm do seu meio, ultrapassando os conceitos formados no dia a dia para alcanar a apropriao dos conceitos cientfi cos. Da a necessidade de superar a viso de que basta o acesso dos indivduos escola e de entender essa instituio como espao para a formao cultural, o que implica um compromisso no apenas com o acesso, mas com o sucesso dos sujeitos, buscando criar condies para que possam se apropriar das mximas capacidades humanas.

    Isso nos leva a reconhecer que na escola as situaes didticas precisam ser planejadas de modo a resultar em novas aprendizagens, ou seja, aprendizagens que ao transformar as qualidades psquicas ad-quiridas anteriormente levem formao de novas qualidades. Nessa direo, ao ensinar a ler, a educao escolar deve considerar as apro-priaes das crianas em relao a essas qualidades adquiridas at o momento, afastando-se do pressuposto de que a criana nada sabe ou que ainda no est pronta para, a partir da, organizar um ensino que, de fato, resulte em aprendizagem dessa atividade como uma prtica cultural construda historicamente pela humanidade, e no como uma tcnica cujo uso se restringe escola. Ao processo de escolarizao fi ca a incumbncia de assegurar s crianas a apropriao desse objeto da cultura, a leitura, tornando-as leitoras nas mais diversas situaes sociais e, assim, possibilitar a apropriao das formas elevadas da cul-tura humana.

    Sob esse olhar, o desencontro entre processo de escolarizao e formao do leitor poderia ser superado se a instituio escolar conce-besse a leitura como objeto de cultura herdada histrica e socialmente das geraes precedentes e que, portanto, s pode fazer sentido para os indivduos quando eles aprendem seu uso social. Insistir em ensinar a ler como um sistema de decodifi cao, como uma tcnica mecanizada de transformar letras em sons, contribuir para que cresa ainda mais o

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    nmero de pessoas que, apesar de ter vivenciado o processo de esco-larizao, no se apropriou dessa funo psquica que a leitura como prtica cultural e, portanto, no capaz de objetiv-la nas relaes so-ciais. Ao discorrer sobre a relao entre os processos de apropriao e de objetivao como a dinmica da formao do gnero humano se-gundo os pressupostos da teoria histrico-cultural, afi rma Duarte (1999, p. 53) que:

    [...] os indivduos para se inserirem nesse processo histrico do gnero humano, precisam se objetivar, isto , precisam produzir e reproduzir a realidade humana, o que, porm, no podem realizar, sem a apropriao dos resultados da histria da atividade humana.

    Aprendendo a leitura como uma tcnica as crianas no podero objetivar-se em relao a essa atividade, uma vez que na cultura ela no existe como tal e, portanto, o processo de apropriao dessa atividade como prtica de cultura e fruto da histria da humanidade no poder ocorrer. Ao impossibilitar a relao entre o processo de apropriao e de objetivao, a escola no cumpre sua misso em relao leitura, no forma leitores, pois o indivduo se forma, apropriando-se dos resultados da histria social e objetivando-se no interior dessa histria, ou seja, sua formao se realiza atravs da relao entre objetivao e apropriao. (DUARTE, 1999, p. 47). A criana se apropria da leitura quando capaz de objetiv-la inserindo-a em sua atividade social. Dessa forma, rele-vante nos dedicarmos ao ensino da leitura como ela de fato objetivada na sociedade, e isso s possvel quando a escola se torna mediadora entre as crianas e o mundo da atividade humana objetivada, quando ensina a leitura para alm de seus muros.

    Leontiev (1978), ao ressaltar o processo de desenvolvimento como um processo de educao, evidencia esse aspecto colaborativo da aprendizagem que prev sempre o papel do outro mais experiente como mediador entre a criana e o conhecimento historicamente produzido e organizado pela humanidade. Segundo o autor,

    As aquisies do desenvolvimento histrico das aptides humanas no so simplesmente dadas aos homens nos fenmenos objetivos da cultura

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    material e espiritual que as encarnam, mas so a apenas postas. Para se apropriar destes resultados, para fazer deles as suas aptides, os rgos da sua individualidade, a criana, o ser humano, deve entrar em relao com os fenmenos do mundo circundante atravs de outros homens, isto , num processo de comunicao com eles. Assim, a criana aprende a atividade adequada. Pela sua funo, este processo , portanto, um pro-cesso de educao. (LEONTIEV, 1978, p. 272).

    Assim, pontuada a relevncia do processo de educao para o de-senvolvimento, e consequentemente a relevncia do processo de es-colarizao para a apropriao das qualidades tipicamente humanas, cabe nesse momento discorrer sobre a tese de que as crianas se apro-priam dessas qualidades sempre por um processo de aprendizagem colaborativo, como indica o autor.

    Para isso necessrio ressaltar que, na trajetria do desenvolvimen-to infantil, Vigotski (1995) aponta a formao de dois processos intrica-dos, o primeiro de ordem biolgica, espontnea e natural, os chamados processos inferiores, e o segundo de ordem social, histrica e cultural, os processos superiores. Esses ltimos referem-se s estruturas com-plexas que nascem no decorrer do desenvolvimento cultural do sujeito, como a linguagem oral, o desenho, a leitura, a escrita, as operaes ma-temticas, o pensamento lgico entre outras. Dessa forma, apropriar-se das mximas capacidades humanas criar novas funes psquicas. Afi nal, diferentes dos animais, ns no nos desenvolvemos por um pro-cesso de adaptao, mas pelo processo de apropriao, reproduzindo as aptides e funes humanas historicamente formadas. (LEONTIEV, 1978). Nesse sentido, as funes psicolgicas superiores se formam na interao social, so inicialmente interpsquicas, partilhadas entre as pessoas; formam-se no processo de vida por meio da educao que as transforma em intrapsquicas. Como afi rma Luria (2006, p. 27),

    [...] os adultos so agentes externos servindo de mediadores do contato da criana com o mundo. Mas medida que as crianas crescem, os pro-cessos que eram inicialmente partilhados com os adultos acabam por ser executados dentro das prprias crianas.

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    Assim, as funes superiores primeiro se manifestam na vida co-letiva da criana e apenas depois se tornam individuais. Para Vigotski, (1995, p. 361, traduo nossa) o individual o social assimilado. Nas palavras do autor,

    [...] sabemos que a continuidade geral do desenvolvimento cultural da criana a seguinte: primeiro outras pessoas atuam com respeito a ele; se produz depois a interao da criana com seu entorno e, fi nalmente, a prpria criana quem ativa sobre os demais e to s ao fi nal comea a atu-ar com relao a si mesmo. (VYGOTSKI, 1995, p. 232, traduo nossa).

    Se o individual o social assimilado, podemos compreender facil-mente a necessidade de as crianas conviverem com as formas ideais de caractersticas superiores humanas. A criana apropria-se das ca-pacidades humanas de acordo com a qualidade de sua interao com o outro mais experiente. Se essa interao for defi citria ou no existir, seu desenvolvimento cultural estar comprometido, afi nal, como afi rma Vigostski (1996), o homem um ser social e, portanto, no pode desen-volver-se em nenhum dos atributos sem a interao social.

    [...] quando por diversas razes externas ou internas se rompe a interao entre a forma fi nal que existe no meio e a forma rudimentar que possui a criana, o desenvolvimento deste se torna muito limitado, e isso resulta em um estado mais ou menos subdesenvolvido das formas de atividade e dos traos apropriados da criana. (VYGOTSKI, 1996, p. 23, traduo nossa).

    Assim, se o que buscamos na escola em relao leitura, processo psquico de ordem superior, a formao de leitores, no podemos pri-var as crianas de vivenciarem situaes de prtica cultural envolvendo o ato de ler. No podemos dedicar um ano da educao infantil e um ano do ensino fundamental ao ensino das letras, slabas, palavras, de-codifi cao de textos, para somente aps nos dedicarmos tarefa de formar leitores. Se as funes psquicas superiores so formadas a par-tir da interao social imprescindvel que desde o incio do processo de escolarizao as crianas convivam em contextos em que haja prti-ca efetiva da leitura, nas quais os adultos leem para elas, em que sejam

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    ensinadas a ler, em que sintam a necessidade de se apropriarem dessa prtica cultural. Isso implica compreendermos que na escola o ensino da leitura acontece atravs do movimento e no de forma esttica. Afi -nal, Vigotski (1996) ressalta que a aprendizagem se realiza sempre em forma de colaborao com sujeitos mais experientes por meio de uma interao intencional, organizada com objetivos defi nidos e alunos ati-vos nesse processo.

    O professor no exerccio de sua principal tarefa dirige o proces-so educativo, sendo responsvel por planejar situaes de ensino que permitam a formao do aluno impulsionando seu desenvolvimento. O ensino gera aprendizagem e a aprendizagem conduz o desenvolvimen-to. Como indica Vigotski (2007), s boa a aprendizagem que passa frente do desenvolvimento e o conduz; por isso se faz necessrio que o professor conhea o nvel de desenvolvimento real dos alunos, as aprendizagens que j foram consolidadas e os conhecimentos que j fo-ram apropriados, para poder planejar situaes de ensino que objetivem novas aprendizagens, novos conhecimentos. Apenas nesse processo possvel impulsionar o desenvolvimento. Estabelecer o nvel real de desenvolvimento uma tarefa essencial e indispensvel para a soluo de todas as questes prticas relacionadas com a educao e a apren-dizagem da criana... (VYGOTSKI, 1996, p. 265-266, traduo nossa).

    Conhecendo o nvel de desenvolvimento real, o professor pode co-nhecer o desenvolvimento prximo do aluno, aquilo que a criana no consegue realizar sozinha, mas com ajuda do outro mais experiente capaz de realizar. Assim, de acordo com Vigotski (1996), a segunda tarefa do professor determinar os processos no maduros, que se encontram em vias de amadurecer, e determinar a zona de desenvolvi-mento prximo:

    Ao investigar o que pode fazer a criana por si mesmo, investigamos o desenvolvimento do dia anterior, mas quando investigamos o que pode fazer em colaborao determinamos seu desenvolvimento de amanh. (VYGOTSKI, 1996, p. 269, traduo nossa).

    Conhecer o desenvolvimento real e o desenvolvimento prximo condio para o professor poder, de fato, intervir no processo de apren-

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    dizagem do aluno contribuindo para seu desenvolvimento. Em relao leitura, cabe ao professor investigar o que as crianas j sabem e o que so capazes de realizar com sua ajuda para planejar situaes de ensino que de fato promovam aprendizagem, porque, concordando com Vigotskii (2006, p. 109), a aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criana na escola tem uma pr-histria. Dessa forma, inaceitvel e incompreensvel acreditar que todo e qualquer en-sino de leitura na escola deva comear pelo funcionamento do sistema de escrita, ensinando primeiro o som das letras. Seria mais aceitvel comearmos por investigar o que as crianas so capazes de ler e como o fazem, pois no lemos sons nas palavras, lemos o sentido que elas adquirem no contexto em que surgem (VIGOTSKI, 1998).

    Mais uma vez, ensinar a ler colaborar para que o sujeito se apro-prie de uma prtica cultural e no de um processo mecanizado de cor-respondncia grafema-fonema. Por isso, o processo de escolarizao acaba no promovendo o aprendizado dessa atividade quando a reduz a um ato mecnico e isolado de oralizao da lngua escrita.

    A esse respeito, escreveu Vigotski (1995, p. 183):

    A diferena do ensino da linguagem oral, a qual se integra na criana por si s, e do ensino da linguagem escrita que se baseia em uma aprendi-zagem artifi cial que exige enorme ateno e esforo por parte do professor e do aluno, devido a se converter em algo independente, em algo que se basta a si mesmo; a linguagem escrita viva passa a um plano posterior. Nosso ensino da escrita no se baseia ainda no desenvolvimento natural das necessidades das crianas, nem em sua prpria iniciativa: ela chega de fora, das mos do professor e lembra a aprendizagem de um hbito tcnico, como por exemplo, tocar piano. Como semelhante proposta, o aluno desenvolve a agilidade de seus dedos e aprende, lendo as notas, a tocar as teclas, mas no o introduz na natureza da msica. (Traduo nossa).

    Ainda nos dias de hoje, a escola tem insistido em ensinar a ler como se estivesse ensinando a tocar piano, ou seja, como tcnica. As crian-as aprendem o funcionamento do sistema lingustico, mas muitas no aprendem a ler, no compreendem o sentido daquilo que est diante

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    dos olhos, no entram no mundo da linguagem escrita, no crculo dos que compartilham dispositivos, comportamentos, atitudes e signifi cados culturais, acabando por limitar seu desenvolvimento cultural. Nessa di-reo, preciso ir alm de ensinar como funciona o nosso sistema de escrita e introduzir as crianas desde o princpio em situaes vivas de leitura, levando-as a perceber que essa consiste numa atividade pro-dutiva para a vida humana. Insistir em ensinar a leitura como um hbi-to sensrio-motor e no como processo psquico de uma ordem muito complexa (VYGOTSKI, 1995, p. 198) constitui-se em algo incompreen-svel se o que buscamos a formao de leitores.

    Nesse quadro, o autor deixa claro que aprender a ler no dominar uma tcnica mecanizada, mas um sistema de signos simblicos com-plexos que no pode ser reduzido verbalizao do smbolo escrito. Vygostski (1995) argumenta que a leitura no se reduz reproduo de imagens de todos os objetos mencionados em cada frase lida e nem sequer do nome que corresponde palavra fnica; em vez disso, ela consiste no manejo do prprio signo, na referncia ao signifi cado, no rpido deslocamento da ateno na discriminao dos diversos pontos que passam a ocupar o centro de nossa ateno. E ainda, complemen-ta o autor, em saber destacar o importante e passar dos elementos separados ao sentido do todo. (VYGOTSKI, 1995, p. 199). Ora, essa a conduta do leitor ao fazer uso da leitura como objeto de cultura; no se l cada palavra como um objeto isolado e muito menos se verbaliza uma a uma; l-se de forma seletiva o conjunto de palavras de acordo com sua signifi cao que, mediada pela inteno do leitor e pelo contexto no qual ocorre, permite a construo do sentido.

    Ler no verbalizar a palavra escrita, saber trat-la como signo, atribuir-lhe sentido tendo como referncia seu signifi cado, pois, como afi rma Vigotski (1998, p. 150), uma palavra sem signifi cado um som vazio; o signifi cado, portanto, um critrio da palavra, seu componente indispensvel; da a necessidade de, no ensino da leitura, serem con-sideradas as palavras como signos que como tais so dotadas de sig-nifi caes. Aqui cabe mencionar que, para o autor, no domnio do signo lingustico, signifi cado e sentido so distintos, pois uma palavra s ad-quire o seu sentido no contexto em que surge, sendo o signifi cado incor-porado pelo sentido. O signifi cado permanece estvel ao longo de todas

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    as alteraes de sentido, j que segundo Vigotski (1996), o signifi cado a prpria palavra vista no seu aspecto interno. Ao ler, operamos com palavras, signifi cados estveis, que de acordo com o contexto podem adquirir diferentes sentidos. Da ser necessrio conceber seu ensino no como algo puramente mecnico, mas como algo que demanda criana apropriar-se de uma complexa atividade cultural.

    Para que o ensino da leitura se concretize como tal, as crianas em processo de aprendizagem, sempre colaborativo, precisam vivenciar si-tuaes de leitura que lhes permitam construir sentido a partir da signi-fi cao do smbolo visual, ou seja, precisam continuar a perceber que, assim como na lngua oral, no h palavra sem signifi cado. Quando a escola conduz o ensino da leitura considerando apenas o aspecto sono-ro da linguagem escrita, ela destitui a palavra de sua essncia, levando a criana a utiliz-la como se fosse apenas um som vazio que, esvazia-da de signifi cao, impede a construo do sentido. E, assim, o ensino da leitura se reduz a um processo mecnico e a linguagem escrita deixa de ser tratada como tal.

    Um bom ensino de leitura aquele que promove atividades que per-mitem s crianas atribuir sentidos que provoquem nelas a necessidade de ler como uma tarefa vital que lhes imprescindvel. (VYGOTSKI, 1995). Para a teoria histrico-cultural, o elemento que move todo o pro-cesso de desenvolvimento do sujeito a atividade humana; assim, no processo de aprendizagem a criana sempre ativa. Para se apropriar das qualidades humanas, ela prpria precisa realizar as atividades; o outro atua apenas como mediador. Porm, uma tarefa realizada pela criana s pode ser considerada como atividade quando faz algum sen-tido para ela. Leontiev (1988) nos explica que a criana est realizando uma atividade quando o motivo que a faz realiz-la coincide com seu resultado, ou seja, quando o resultado satisfaz uma necessidade da pr-pria criana. Por essa razo, o desafi o do processo de escolarizao planejar situaes de ensino que criem novas necessidades, que gerem novos motivos permitindo que as tarefas realizadas em sala de aula se constituam como atividades e deixem de ser simples execuo de um fazer mecnico, ausente de sentido para os sujeitos aprendizes.

    Mello (2004, p. 148), ao discorrer sobre o conceito de atividade e sua implicao pedaggica, afi rma que a atividade que faz sentido para

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    a criana a chave pela qual ela entra em contato com o mundo, apren-de a usar a cultura e se apropria das aptides, capacidades e habilida-des humanas. Assim, retomando Vygotski (1995), a leitura no pode vir de fora, pelas mos do professor como se fosse uma tcnica; seu ensino precisa criar situaes em que as crianas sintam necessidade de realiz-la e assim o faam, elas prprias, por meio de atividades cujo sentido seja para elas o ler com possibilidades de tomada de iniciativa e de sua entrada no mundo da cultura escrita.

    Nas palavras do autor,

    O ensino deve ser organizado de forma que a leitura e a escrita sejam necessrias de algum modo para a criana. Se esse saber for utilizado apenas para escrever felicitaes ofi ciais aos superiores as que temos examinado so palavras ditadas evidentemente pela professora , resul-ta evidente que semelhante atividade puramente mecnica, que no tar-dar em aborrecer a criana que no atua por si mesmo e no desenvolve sua personalidade. A criana tem que sentir a necessidade de ler e escre-ver. [...] Isso signifi ca que a escrita deve ter sentido para a criana, que deve ser provocada pela necessidade natural, como uma tarefa vital que lhes imprescindvel. Unicamente ento estaremos seguros de que ela se desenvolver na criana no como um hbito de suas mos e dedos, mas como um tipo realmente novo e complexo de linguagem. (VYGOTSKI, 1995, p. 201, traduo nossa).

    O ensino da leitura, ao ser organizado de forma a levar a criana a construir um sentido para o ler, permite a aprendizagem da linguagem como um sistema de signos, como instrumento cultural complexo utilizado na mediao com o mundo. Ler na escola, ao tornar-se necessrio crian-a, deixar de ser reduzido a um objeto escolar com um fi m em si mesmo para se constituir num objeto cultural. As crianas, ao lidarem desde o incio com situaes didticas que considerem o uso social para o qual a leitura foi criada, iro apropriar-se no de um sistema de codifi cao, mas de uma complexa atividade produzida histrico-cultural e socialmente.

    Ensinar a ler, nessa perspectiva, consiste em planejar situaes que vo alm do ensino do sistema de escrita alfabtico. No corresponde em fazer das crianas bons decodifi cadores, dotando-as de um me-

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    canismo de transformar grafemas em fonemas. Como afi rma Vygotski (1995, p. 150), a palavra deve possuir, antes de tudo, um sentido, no pode ser objeto de um mecanismo, afi nal, a capacidade puramente mecnica de ler mais freia que impulsiona o desenvolvimento cultural da criana. (VYGOTSKI, 1995, p. 204). Ao leitor aprendiz torna-se im-prescindvel vivenciar atividades em torno do ato de ler como objeto de cultura, uma vez que, como aponta a teoria histrico-cultural, por de trs de todas as funes superiores e de suas relaes se encontram as re-laes sociais, as relaes humanas. Se as crianas no souberem por que devem ou esto lendo, o que buscar, qual a fi nalidade, o motivo e o resultado do ato de ler, suas chances de produzir leitura sero cada vez mais pequenas, tendo em vista que essa complexa atividade cultural ser para elas uma tarefa mecanizada.

    Com efeito, os professores, como mediadores entre as crianas e o conhecimento, possuem um importante papel na organizao do pro-cesso de ensino da leitura como prtica cultural, pois, para promover o aprendizado e impulsionar o desenvolvimento de seus educandos, precisam conhecer a zona de desenvolvimento real (VIGOTSKI, 2003) para estabelecer a zona de desenvolvimento prximo e, com base nela, criar necessidades ao planejar atividades que faam sentido s crianas e que s se tornam possveis a partir de situaes reais de leitura que envolvam os sujeitos aprendizes num processo de colaborao e ativos no meio. pela complexidade dessa tarefa que, com base em Vigotski (2003), parece no ser possvel que as crianas sozinhas possam se apropriar de uma atividade cultural complexa como a leitura. Seu apren-dizado, como prtica cultural, no ocorre de forma espontnea, mas precisa ser ensinado a elas.

    A meta da educao no a adaptao ao ambiente j existente, que pode ser efetuado pela prpria vida, mas a criao de um ser humano que olhe para alm de seu meio... No concordamos com o fato de deixar o processo educativo nas mos das foras espontneas da vida [...] to in-sensato quanto se lanar ao oceano e entregar-se ao livre jogo das ondas para chegar Amrica. (VIGOTSKI, 2003, p. 77).

    Em sntese, a teoria histrico-cultural permite dar sustentao

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    afi rmao ttulo desse texto, evidenciando a relevncia do processo de escolarizao para a formao do leitor na perspectiva de um ensino ativo que requer um processo de colaborao entre professor e crianas e entre crianas e crianas, tendo como referncia o pressuposto de que s promover aprendizagem se ela for organizada de forma a fazer sentido aos sujeitos aprendizes, que ao se apropriarem daquilo que foi objetivado pelas geraes precedentes possam tambm eles objetivar, participar da cultura, fazendo uso da leitura como prtica cultural.

    2. Aspectos da teoria bakhtiniana para a questo da formao do leitor na escola

    A teoria de Bakhtin no traz escritos acerca de aplicaes peda-ggicas para o ensino da leitura na escola, entretanto, assim como a teoria histrico-cultural, sua obra (1995, 2003), por buscar a construo de uma concepo histrica e social da linguagem, pode permitir uma transposio para a questo da formao do leitor na escola, possibili-tando contribuies ao ensino do ato de ler.

    Ao adentrar seus estudos, possvel reconhecer pontos de en-contro com os estudos de Vigotski apresentados no tpico anterior em relao ao ensino do ler como uma complexa atividade cultural. Para ampliar a discusso tecida at o momento, busco neste tpico apresen-tar trs aspectos relevantes da teoria bakthiniana para a questo da for-mao do leitor na escola. O primeiro consiste na concepo dialgica de linguagem, o segundo no papel do outro para seu desenvolvimento, pois para Bakthin a interao o princpio fundador da linguagem e, por fi m, o fato de que nos apropriamos da lngua por meio dos gneros do discurso, instrumentos de comunicao.

    Para Bakhtin (1995), a linguagem dialgica por natureza, no pode ser considerada individual; ela social. Produto da interao de dois in-divduos socialmente organizados, a lngua constitui um processo de evoluo ininterrupto, que se realiza atravs da interao verbal social dos locutores. (BAKHTIN, 1995, p. 127). A lngua no existe como ob-jeto isolado e acabado; construda pela interao entre, no mnimo, dois interlocutores, que como seres sociais produzem seus discursos com base em outros discursos; um processo que est em evoluo

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    permanentemente e por essa razo no pode ser considerada como algo esttico, sem vida.

    Nesse sentido, o dialogismo da linguagem tem em Bakhtin (1995) duas facetas. Primeiramente indica que h um permanente dilogo en-tre os diferentes discursos histrico- socialmente produzidos, e, segun-do, que os discursos s podem ser realizados porque existem o eu e o outro. Toda manifestao lingustica est, portanto, situada no meio so-cial em que se encontra o indivduo. Ao produzir discursos, o sujeito no o faz no vazio, mas a partir de outros discursos, e no o faz para si, faz para o outro. Assim, como Vygotski (1995), Bakhtin concebe a lingua-gem como atividade cultural complexa que s apropriada pelo sujeito por meio das relaes sociais. De acordo com o autor, originariamente, a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de socializao dos indivduos, para ser, em seguida, integrada ao orga-nismo individual [...] (BAKHTIN, 1995, p. 64). Em ambas as teorias, o outro sempre importante e indispensvel, pois sem ele o sujeito no se desenvolve, no se apropria da linguagem, no realiza aprendizagens. Bakhtin (1995) considera a interao como a realidade fundamental da linguagem; para ele, o eu s pode realizar-se no discurso, apoiando-se em ns. O sujeito, ao constituir um discurso, leva em considerao o discurso do outro, que estar presente no seu. Assim, todo discurso se faz a partir de outros discursos e todos so atravessados pelo discurso do outro. A linguagem produz-se num contexto que social e dialgico a partir da relao entre os sujeitos.

    Dada a natureza dialgica da linguagem, o ensino da leitura na es-cola no se realiza a partir de uma lngua esttica, pronta, sem vida, mas ocorre na atividade da prpria lngua em seu uso nas relaes so-ciais, a partir da interao escritor e leitor ao lidar com o discurso que, sempre ideolgico, responde a alguma coisa, refuta, confi rma, anteci-pa as respostas e objees potenciais, procura apoio etc. (BAKHTIN, 1995, p.123). a leitura como objeto da cultura como atividade-meio que precisa ser ensinada s crianas, algo que se contraponha ao ensi-no dessa atividade como algo em si mesmo, ausente de ideologia, que nada responde, nada refuta, nada confi rma e, portanto, no se constitui como processo dialgico, j que reduz o discurso escrito a um conjunto de letras, palavras e oraes.

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    O leitor aprendiz h de ter oportunidades de vivenciar na escola a dialogia da linguagem ao lidar com ela como enunciao, pois para Bakhtin (2003, p. 297) as pessoas no trocam oraes, assim como no trocam palavras, ou combinao de palavras, trocam enunciados constitudos com a ajuda de unidades da lngua palavras, combi-naes de palavras, oraes. O enunciado constitui-se na unidade da comunicao discursiva; uma enunciao a produo da lngua pelos indivduos; assim ao lermos, no lemos letras que formam slabas, pa-lavras e oraes; lemos enunciados. O enunciado refere-se ao ato de produo do discurso oral ou escrito; refere-se ao discurso da cultura.

    Bakhtin (2003) permite compreender que o ensino da leitura na es-cola no se faz a partir de letras, palavras ou oraes isoladas, mas a partir de enunciados concretos que se dirigem a algum ou so suscita-dos por algo, e que, sendo assim, possuem algum objetivo na comuni-cao discursiva da cultura. Para o autor,

    Todo enunciado concreto um elo na cadeia da comunicao discursiva de um determinado campo. Os prprios limites do enunciado so determi-nados pela alternncia dos sujeitos do discurso. Os enunciados no so indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhe-cem os outros e se refl etem mutuamente uns nos outros. Esses refl exos mtuos lhes determinam o carter. Cada enunciado pleno de ecos e ressonncias de outros enunciados com os quais est ligado pela iden-tidade da esfera de comunicao discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo... ela o rejeita, confi rma, completa, baseia-se ne-les, subentende-os como conhecidos de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN, 2003, p. 297).

    Um enunciado se forma a partir de enunciados anteriores; qualquer enunciado produzido pelo indivduo carrega consigo a palavra do outro. Da a natureza dialgica da linguagem sob uma perspectiva histrica e social, pois cada enunciao produto da relao entre os indivduos ao longo de seu desenvolvimento cultural. No existe enunciado produzido para ser indiferente; quando o falante ou o escritor cria um enunciado, espera uma resposta do ouvinte ou do leitor que, portanto, so ativos e

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    no processo de produzir respostas formaro outros enunciados. Apenas na escola que a construo de enunciados pode ser indiferente, quan-do se coloca o texto nas mos da criana, mas no se ensina a operar com enunciados, a atribuir sentido, a dialogar com o autor, a produzir respostas para tornar-se coenunciadora.

    Uma produo escrita, uma leitura sempre preveem interlocutores. Ao escrever, o escritor considera seu destinatrio que lhe dirige a forma de tecer o discurso escrito; ao ler, o leitor torna-se coenunciador porque, ao atribuir sentido ao escrito, recria o enunciado a partir de seu prprio discurso. Por meio dessa dinmica, considerando sempre o outro, que se constri a experincia discursiva individual, aprendendo a falar, a ou-vir, a escrever, a ler enunciados. Isso implica considerar que na mani-festao real e concreta da leitura que essa atividade apropriada pelo sujeito aprendiz, o qual, desde o incio do processo de escolarizao, deve operar com enunciados, aprender a atribuir-lhes sentido.

    O discurso s existe na forma de enunciaes; fora dessa forma no se refere a discursos, manifestaes da linguagem como tal, mas a um conjunto de sinais grfi cos sem sentido, monolgico, que no per-mite ao sujeito aprendiz construir sua prpria experincia discursiva, porque no trabalha com sua unidade. O enunciado no corresponde a uma unidade artifi cial, mas a uma unidade real em que os sujeitos do discurso participam ativamente, operando sobre eles. A linguagem no falada ou escrita no vazio, mas numa situao social concreta.

    Nesse quadro, Bakhtin (1995), tambm como Vygotski (1995), con-cebe a palavra como signo. Quando a escola no realiza o trabalho com a leitura a partir de enunciaes, deixa de conceber a palavra como sig-no e passa a consider-la como sinal: o signo dialtico, dinmico, vivo, ope-se ao sinal inerte que advm da anlise da lngua como sistema abstrato (p. 15). A lngua tomada em sua concretude, como processo de comunicao vivo e ininterrupto, constitui-se num sistema de signos ideolgicos que jamais pode ser tomada como um sistema estvel e abstrato de sinais constantemente iguais e possveis de serem isola-dos. Quando o homem se comunica com o outro por meio da linguagem falada ou escrita, no so palavras que falamos ou escrevemos, mas de acordo com Bakhtin (1995, p. 95), verdades ou mentiras, coisas boas ou ms, importantes ou triviais, agradveis ou desagradveis, etc.

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    A palavra est sempre carregada de um contedo ou de um sentido ide-olgico. No so as palavras como sinais que nos permitem fazer uso da linguagem, mas as palavras como signo. O sinal constitui-se num aspecto tcnico que sozinho nada diz, apenas quando absorvido pelo signo que pode comunicar-se, tornar-se linguagem.

    A palavra para Bakhtin (1995) o signo interior; o que a faz tornar palavra sua signifi cao. Quando o homem no capaz de reconhecer sua signifi cao, perde a prpria palavra que, reduzida sua realidade fsica, torna-se em mero sinal. Reduzida sua sinalidade, a palavra ou um conjunto de palavras no pode ser constitudo como enunciado, pois esse se caracteriza por ser a unidade da comunicao discursiva da lngua. Nesse sentido, ao ensinar a linguagem escrita s crianas, a escola no pode se deter a ensinar a palavra como sinal para de-pois a trat-la como signo. Reduzir o processo de alfabetizao ao en-sino da linguagem como um sistema de sinais ensinar s crianas a lngua como um objeto isolado, imutvel e monolgico. Ler e escrever tornam-se atividades com um fi m em si mesmo, fi cando reduzidas ao aprendizado tcnico de decodifi car e codifi car, mas no de ler e produzir discursos, no de operar com enunciados num processo de dialogia, de interao entre interlocutores e, portanto, no de se apropriar da lingua-gem como atividade cultural.

    Acreditar que primeiro preciso que as crianas aprendam a sinali-dade da linguagem, para somente depois aprender a trat-la como sig-no, incorrer contra a prpria linguagem, uma vez que sem signifi cao, a funo de signo, a palavra no palavra, portanto no pode haver en-sino e aprendizagem de linguagem. Como Vygotski (1995), Bakhtin nos d pistas de que o ensino da leitura, desde o princpio, se faz a partir de prticas culturais, prticas discursivas, concebendo a linguagem escrita como um sistema de signos e no como um mero conjunto de sinais. Segundo o autor,

    Enquanto uma forma lingstica for apenas um sinal e for percebida pelo receptor somente como tal, ela no ter para ele nenhum valor lingstico. A pura sinalidade no existe, mesmo nas primeiras fases da aquisio da linguagem. At mesmo ali, a forma orientada pelo contexto, j constitui um signo [...] (BAKHTIN, 1995, p. 94).

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    Desde o princpio do processo de escolarizao, a linguagem como signo e no como sinal que deve ser ensinada s crianas. Assim, no h sentido em iniciar o processo de alfabetizao a partir de letras, slabas e palavras isoladas ou ainda, at mesmo a partir de textos, se esses no se confi guram para as crianas e para os professores como tal, mas apenas como um conjunto de sinais que nada comunica para os sujeitos, e que por isso no possui valor lingustico; est ali apenas para servir como objeto no ensino da correspondncia grafema-fonema, na linguagem como sinal. Com isso, quero salientar que tanto iniciar o ensino da leitura por meio da identifi cao de letras, como a partir de textos para apenas tirar dele uma palavra que ser isolada para ensinar suas partes, no so, do ponto de vista dos estudos de Bakhtin (1995), prticas coerentes com o ensino da leitura como de fato se confi gura nas relaes sociais.

    Quando a criana aprende apenas a sinalidade da linguagem, ela aprende apenas a identifi car um sinal tcnico que no pode refratar nada; ela capaz de oralizar o escrito, mas no capaz de atribuir-lhe sentido, no capaz de ler, uma vez que quando a palavra percebida apenas como sinal, a identifi cao predomina sobre a compreenso. A criana capaz de identifi car o conjunto das letras e slabas que for-mam a palavra, mas no capaz de reconhec-la como signo, ou ela percebe o texto como um conjunto de palavras, mas no capaz de compreend-lo como enunciado.

    Assim, cabe aqui uma afi rmao de Arena (1992, p.79) que ao tecer uma anlise da contribuio de Bakhtin ao processo de alfabetizao afi rma que: Argumentar que no incio do processo de alfabetizao necessrio trabalhar a sinalidade, isto , a identifi cao do sinal, reme-ter a criana para um processo de contra-formao do leitor e escritor. Essa armadilha to antiga e cristalizada na escola de que para ser leitor necessrio primeiro aprender os sinais, aprender a decodifi car para depois operar com signos, aprender a compreender, ler de fato, ainda h de ser superada pela instituio escolar.

    Nessa perspectiva, possvel reconhecer a necessidade de situa-es de ensino que criem verdadeiras prticas de leitura, uma vez que, para a palavra ser ensinada como signo e no como sinal, necessrio que o sujeito aprendiz a vivencie, a realize convivendo com prticas

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    discursivas; afi nal, os indivduos no recebem a lngua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicao verbal, somen-te quando mergulham nessa corrente que sua conscincia desperta e comea a operar. (BAKHTIN, 1995, p. 108). Quando se oportuniza situaes de leitura reais para as crianas participarem, mostrando a elas como operar com enunciados, que como tal sempre dizem algo ou provocam respostas, est, de fato, contribuindo para a formao de leitores.

    Com efeito, participar da cultura escrita lidar com a leitura e es-crita de enunciados, uma vez que na enunciao que a palavra deixa de ser sinal e se torna signo. A signifi cao, segundo Bakhtin (1995), s se realiza no processo de interao entre interlocutores; somente a co-municao discursiva fornece palavra sua signifi cao; impossvel designar a signifi cao de uma palavra isolada sem fazer dela o ele-mento de um tema, isto , sem construir uma enunciao, um exemplo. (BAKHTIN, 1995, p. 129).

    Cabe mencionar que Bakhtin (1995, p. 129) faz uma distino entre sentido e signifi cado. Segundo ele, a signifi cao corresponde aos ele-mentos da enunciao que so reiterveis e idnticos cada vez que so repetidos; a palavra dicionarizada como tambm concebe Vigotski (1998). J o sentido, denominado pelo autor como o tema da enuncia-o, dado pelo contexto nas condies de uma enunciao concreta. Com efeito, o tema da enunciao determinado no apenas por sua forma lingustica, mas principalmente pelos elementos da situao. As-sim, ao operar com enunciados de suma importncia no perder de vista esses elementos, pois, de acordo com Bakhtin, seria o mesmo que perder suas palavras mais importantes, tornando difcil a atribuio de sentido. Ao realizar o trabalho de leitura com as crianas preciso aten-tar para o fato de que no se pode operar com o enunciado fora de seu contexto histrico-social, isolando-o como objeto de ensino; se assim se proceder, no ser possvel determinar seu tema, ou seja, atribuir-lhe sentido, afi nal o signo e a situao social esto indissoluvelmente ligados. (BAKHTIN, 1995, p. 16).

    Quando Bakhtin (1995) ressalta a natureza dialgica da linguagem h de se compreender que o dilogo a que o autor se refere no ape-nas o de uma relao face a face, mas notoriamente o da relao entre

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    enunciados e contextos de produo. O discurso, seja falado ou escri-to, s pode ser compreendido de acordo com seu contexto. Enuncia-dos desvinculados de seus contextos tornam-se um conjunto de sinais grfi cos ou de sons que impedem uma atitude responsiva do sujeito e, portanto, fazem da lngua um sistema fechado, ausente de ideologia e compreenso.

    Como afi rma Bakhtin (1995), todo enunciado espera uma compre-enso responsiva ativa, produzido sempre para uma resposta; por essa razo no existe fora das relaes dialgicas. Compreender enun-ciados escritos, por exemplo, participar de um dilogo com o autor gerando uma resposta ativa. A compreenso uma forma de dilogo; ela est para a enunciao assim como uma rplica est para a outra no dilogo. Compreender opor palavra do locutor uma contrapa-lavra. (BAKHTIN, 1995, p.132). Ao oportunizar aos leitores iniciantes situaes de leitura com enunciaes vinculadas a seu contexto de pro-duo, a escola favorece a compreenso das crianas como uma forma de dilogo. Afi nal, o sentido e a signifi cao das palavras na enunciao no esto no papel, prontos para ser desvendados, s podem ser cons-trudos pelo leitor durante o ato de ler. Segundo Bakhtin (1995, p. 132):

    [...] no tem sentido dizer que a signifi cao pertence a uma palavra en-quanto tal. Na verdade, a signifi cao pertence a uma palavra enquanto trao de unio entre os interlocutores, isto , ela s se realiza no processo de compreenso ativa e responsiva.

    Para Bakhtin os enunciados so, portanto, produzidos de acordo com sua funo no processo de interao. Cada enunciado constru-do de acordo com as necessidades e fi nalidades da atividade humana ao fazer uso da linguagem. No processo dialgico entre o eu e o outro se elaboram tipos relativamente estveis de enunciados para atender a uma determinada esfera de atividade. Bakhtin (2003) denomina es-ses tipos de enunciados relativamente estveis de gneros do discurso, compreendendo-os como organizadores do discurso e instrumentos do processo de comunicao.

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    2.1 Os gneros do discurso: instrumentos de comunicao e de ensino do ato de ler na escola

    Os enunciados, de acordo com Bakhtin (2003), encontram-se or-ganizados no emprego da lngua em forma de gneros do discurso. Cada gnero compreende tipos estveis de enunciados de acordo com trs elementos: contedo temtico, construo composicional e estilo. O contedo temtico refere-se ao domnio de sentido de que se ocupa o gnero. A construo composicional corresponde ao modo como os enunciados so estruturados. O estilo a seleo dos meios lingusti-cos necessrios ao enunciado em funo do destinatrio e de como se espera sua compreenso responsiva ativa.

    Dessa forma, cada vez que o sujeito faz uso da lngua, ele o faz por meio de determinado gnero que selecionado a partir da realidade da comunicao, considerando a necessidade temtica, o interlocutor e sua prpria inteno como locutor. Para Bakhtin (2003), sem os gneros do discurso no haveria comunicao, como afi rma o autor:

    Ns aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gnero e, quan-do ouvimos o discurso alheio, j adivinhamos o seu gnero pelas primei-ras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto , uma extenso aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construo com-posicional, prevemos o fi m, isto , desde o incio temos a sensao do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo de fala. Se os gneros do discurso no existissem e ns no os dominsse-mos, se tivssemos de cri-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunica-o discursiva seria quase impossvel. (BAKHTIN, 2003, p. 283).

    O gnero , para o autor, a realidade da comunicao humana. por meio dos gneros que o sujeito se apropria da linguagem e a objeti-va. Nesse sentido, eles so instrumentos que tornam possvel a comuni-cao discursiva. Aprender a falar, a escrever, a ler, apropriar-se des-ses instrumentos que tornam possveis a produo ou a compreenso de enunciados; logo, os gneros do discurso constituem-se tambm em instrumentos para o ensino da leitura na escola.

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    As crianas aprendem a ler a partir de tipos estveis de enuncia-dos, a partir dos diversos gneros do discurso, pois no lemos receitas como lemos poesias, no lemos uma notcia como lemos uma histria de fi co. Cada conjunto de enunciados organizados de acordo com seu contedo, sua estrutura e suas marcas lingusticas demandam do leitor diferentes condutas. Quando a escola concebe a linguagem como sinal, ensinando apenas uma forma de ler, no permite aos alunos ope-rarem com os diversos gneros do discurso e assim no contribui para a formao de leitores. Nesse sentido, ao considerar a linguagem como um sistema de signos, os gneros em sua diversidade se tornam os instrumentos pelos quais o professor ensina a lngua escrita.

    No processo de apropriao dos gneros do discurso, Bakhtin (2003) aponta que, ao longo do desenvolvimento da linguagem, o indi-vduo se apropria dos gneros primrios, tipos mais simples de enun-ciados, e dos gneros secundrios, tipos mais complexos de enuncia-o. Os gneros primrios so desenvolvidos a partir das condies da comunicao discursiva imediata. A criana se apropria deles por meio da troca verbal espontnea no decorrer de sua experincia social. J os gneros secundrios surgem apenas nas condies de um convvio cultural mais complexo, desenvolvido e organizado, por isso no so apropriados de forma espontnea pelo sujeito. Os gneros primrios fornecem ao indivduo a base para o desenvolvimento dos gneros se-cundrios. Com base em Bakhtin (2003), Schneuwly e Dolz (2004, p. 30-35) afi rmam que os gneros primrios so o nvel real com o qual a criana confrontada nas mltiplas prticas de linguagem... so os instrumentos de criao dos gneros secundrios.

    A partir dessas consideraes, acredito que sendo o processo de es-colarizao responsvel pela apropriao do conhecimento cultural produ-zido e organizado pela humanidade, cabe a ele, notadamente, realizar com base nos gneros primrios o trabalho de ensino dos gneros secundrios, possibilitando s crianas novas construes discursivas e a apropriao de enunciados mais complexos, como os gneros discursivos escritos, a retrica, e outros. Para isso, na escola, os gneros devem no apenas se constituir como instrumentos da comunicao, como tambm em instru-mentos de ensino e de aprendizagem da linguagem, j que sem eles no h comunicao e consequentemente no h ensino da lngua.

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    Nessa perspectiva, quando a criana inicia o processo de escola-rizao, suas apropriaes em relao aos gneros primrios no po-dem ser desconsideradas pelo professor; so a referncia para novas apropriaes discursivas. Por isso, situaes que permitam s crian-as participarem de prticas efetivas de linguagem so fundamentais no processo de ensino; somente dessa forma possvel ao professor conhecer o nvel real das crianas em relao linguagem.

    Ao argumentar sobre a necessidade em conceber os gneros do discurso como instrumentos para o ensino do ato de ler na escola, sa-liento que esses no podem ser tomados simplesmente como conjunto de propriedades formais a que os enunciados devem obedecer. Assim como defende Fiorin (2008), o ensino a partir dos gneros no pode tornar-se normativo, porque no corresponde a esse um conjunto de propriedades isolado de uma esfera de ao. Tratar os gneros do dis-curso sob esse ponto de vista desconsiderar sua prpria natureza, uma vez que esses no esto estagnados, acabados, normatizados na lngua. Como afi rma Bakhtin (2003, p. 262),

    A riqueza e a diversidade dos gneros do discurso so infi nitas porque so inesgotveis as possibilidades da multiforme atividade humana e por-que em cada campo dessa atividade integral o repertrio de gneros do discurso, que cresce e se diferencia medida que se desenvolve e se complexifi ca um determinado campo.

    Nesse sentido, os gneros do discurso no esto numa grade pron-tos para serem utilizados em qualquer tempo e espao. De acordo com a realidade da atividade humana, novos gneros podem surgir e outros se modifi car. Fiorin (2008), a esse respeito, cita como exemplo o desa-parecimento da epopeia e o surgimento do e-mail. Assim, ensinar a ler tendo como instrumento os gneros do discurso no trat-los como um conjunto de regras sem conexo com a realidade da atividade hu-mana na qual se inserem. No isol-lo da situao de comunicao como objeto didtico, mas consider-los como meio de apreender a re-alidade, j que o gnero estabelece uma conexo da linguagem com a vida social, instrumento de comunicao.

    Cabe ressaltar que a prpria denominao dada por Bakhtin (2003)

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    aos gneros do discurso como tipos relativamente estveis de enuncia-dos deixa explcito que normatiz-los ir na contramo desse conceito.

    As crianas se apropriaro dos gneros do discurso ao fazerem uso desses em contextos de conexo da linguagem com a vida social, ou seja, em situaes reais que envolvam o ato de ler. No dominar um determinado gnero do discurso no signifi ca que o sujeito no conhece um conjunto de normas que o caracteriza, mas sim que no o vivenciou em determinada esfera da atividade humana. Da a relevncia de en-sinar a ler tendo como instrumento os gneros, j que o que falamos, ouvimos, escrevemos e lemos esto organizados em gneros do dis-curso. De acordo com Schneuwly e Dolz (2004, p.75), o gnero pode, assim, ser considerado um megainstrumento que fornece um suporte para a atividade, nas situaes de comunicao, e uma referncia para os aprendizes.

    Portanto, os gneros do discurso podem corresponder ferramenta do professor ao ensinar a ler, uma vez que ensinar a leitura tomando como referncia Bakhtin (2003) ensinar os alunos a dominar a diver-sidade dos gneros do discurso de forma que ao reconhecerem seu contedo, sua estrutura e sua forma lingustica possam dar-lhe sentido, ou seja, ler. Quando ensinamos a ler a partir de tipos de enunciados no a leitura como sinal, reduzida decodifi cao ou oralizao, que est em jogo, mas a leitura como prtica cultural que emerge de uma concepo dialgica da linguagem e de um conceito de lngua como construo social e ideolgica, que, dotada de um sistema de signos, sempre prev uma atitude responsiva do outro com quem se fala, para quem se escreve, de quem se fala, de quem se escreve, uma relao dialgica entre os discursos e entre os interlocutores que s possvel por meio da interao social entre os indivduos.

    Ao argumentar sobre a natureza dialgica da linguagem, a intera-o como seu princpio fundador e os gneros do discurso como ins-trumento no processo de comunicao humana, Bakhtin (1995, 2003), assim como os estudiosos da teoria histrico-cultural, pode nos ajudar a diminuir a distncia entre escolarizao e formao do leitor, indicando que na escola imprescindvel considerar a palavra como signo ideol-gico, que como tal sempre dialgico, demandando interao entre dis-cursos e entre os sujeitos do discurso, a partir de um trabalho por meio

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    dos gneros e no por meio de letras ou palavras ou textos isolados. A leitura a ser ensinada na escola a que se faz presente nas relaes sociais, uma leitura ideolgica, dialgica e interlocutora, portanto uma prtica da cultura.

    A partir do mergulho nas obras de Vigotski e Bakhtin, e com o olhar focado para a questo da formao do leitor foi possvel encontrar in-dicaes de que a leitura a ser ensinada na escola de fato no a me-diada pela relao grafema-fonema, mas a mediada pela signifi cao. Ambos os autores concordam que a palavra escrita signo e que, por-tanto, sempre signifi ca, no pode ser lida como sinal; smbolo visual e s adquire sentido quando inserida num contexto, como afi rma Bakhtin (1995), quando corresponde ou pertence a uma enunciao. a leitura objetivada na cultura que ser apropriada pelas crianas, ou seja, uma atividade necessria e vital nos termos de Vygotski (1995), e ainda dia-lgica e ideolgica nos termos de Bakhtin (1995); portanto, os dois auto-res discordam claramente que o ensino da leitura no incio do processo de escolarizao precisa centrar-se sobre a leitura como habilidade de decodifi cao ou de oralizao da palavra escrita.

    Entretanto, no sculo seguinte publicao dessas duas teorias, a escola parece insistir em no mudar sua histria em relao formao do leitor, pois se ainda h um desencontro entre processo de escolariza-o e apropriao da leitura como prtica cultural porque grande parte das crianas continua aprendendo uma leitura que s serve escola e que no possibilita a objetivao dessa atividade em suas relaes sociais.

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