ENSINO DA MATEMATICA OU EDUCAÇÃO MATEMA TICA?

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ENSINO DA MATEMATICA OU EDUCAÇÃO MA TEMA TICA? Roberto Ribeiro Baldino 1 quem diga que esta é uma questão geral demais para ser interessante e que, ao abordá-Ia, estaríamos no máximo esclarecendo algumas confusões semânticas. Notamos, entretanto que, em encontros recentes, algumas pessoas se referem sempre ao "ensino da Matemática", evitando, sistematicamente, pronunciar a expressão "Educação Matemática". Serão talvez as mesmas que há alguns anos, em nossas assembléias, não viam motivo para fundarmos uma Sociedade Brasileira de Educação Matemática, quando já tinhamos uma Sociedade Brasileira de Matemática. Falar em Ensino lembra "didática", lembra "instrução", "transmissão", "apresentação"; abre o campo da técnica. Falar em Educação lembra "pedagogia", lembra "aprendizagem", "motivação", "desejo"; abre o campo do sujeito situado no contexto social. por isso, quando uma importância da Revista do Professor (RPM), no edi torial de seu número 10 não é uma revista pedagógica, a ensino/educação adquiriu um caráter· Não pretendemos esgotá-Ia aqui; vamos um certo ângulo. revista da de Matemática declarou que questão do de urgência. abordá-Ia de questão. coisa", Há duas maneiras Uma é dizer que que Ensino da de evitar o debate dessa nao se trata da mesma Matemática e Educação 1 Departamento de Matematica, Insti tuto de Geociências e Ciências Exatas, Claro. UNESP, Campus de Rio Temas & Debates, Ano IV, n.3, pp.51-60, 1991

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ENSINO DA MATEMATICA OUEDUCAÇÃO MATEMA TICA?

Roberto Ribeiro Baldino 1

Há quem diga que esta é uma questão geraldemais para ser interessante e que, ao abordá-Ia,estaríamos no máximo esclarecendo algumas confusõessemânticas. Notamos, entretanto que, em encontrosrecentes, algumas pessoas se referem sempre ao"ensino da Matemática", evitando, sistematicamente,pronunciar a expressão "Educação Matemática". Serãotal vez as mesmas que há alguns anos, em nossasassembléias, não viam motivo para fundarmos umaSociedade Brasileira de Educação Matemática, quandojá tinhamos uma Sociedade Brasileira de Matemática.

Falar em Ensino lembra "didática", lembra"instrução", "transmissão", "apresentação"; abre ocampo da técnica. Falar em Educação lembra"pedagogia", lembra "aprendizagem", "motivação","desejo"; abre o campo do sujeito situado nocontexto social.

por isso, quando umaimportância da Revista do Professor(RPM), no edi torial de seu número 10não é uma revista pedagógica, aensino/educação adquiriu um caráter·Não pretendemos esgotá-Ia aqui; vamosum certo ângulo.

revista dade Matemática

declarou quequestão do

de urgência.abordá-Ia de

questão.coisa",

Há duas maneirasUma é dizer queque Ensino da

de evitar o debate dessanao se trata da mesma

Matemática e Educação

1Departamento de Matematica, Insti tuto de

Geociências e Ciências Exatas,Claro.

UNESP, Campus de Rio

Temas & Debates, Ano IV, n.3, pp.51-60, 1991

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Matemática têm objetos distintos. Ambos teriamdireito à existência, porém em continentesestanques do saber. Segundo esse ponto de vista,obviamente, a Educação Matemática iria viver nocontinente da Educação, e o ensino da Matemáticaentre nossos primos ricos, no continente daMatemática. .. As contradições submergiriam, nãoprecisariam ser resolvidas, a reflexão tenderia aficar sempre para depois.

preferimos dedicar este espaço a outramaneira, mais sutil, de elidir a questão. Elaconsiste em argumentar que, não havendo ensino semcorrespondente aprendizagem, falar sobre ensinodispensa o orador de considerar explici tamente aaprendizagem.

De fato, o discurso do ensino daMatemática traz em si um silêncio explícito sobre aaprendizagem. Nosso objetivo, aqui, é desvendar anatureza e a função desse silêncio.

partiremos de um discurso típico sobreEnsino da Matemática: o discurso da RPM. Coerentecom a sua posição declarada de não ser uma revistapedagógica, a RPM apresenta o ensino por seu ladopositivo. Como ideal, procura que seus artigossejam de lei tura amena e agrad~vel, (n. 10 p. 1, 16p.21) procura que as soluções dos problemas sejamelegantes (n. 10 p.2) e que sejam apresentadas demaneira competente (n. 16 p.21), além de seremcorretas do ponto de vista matemático.

A RPM não inclui, pois, análises deregistros de sala de aula. Mesmo os relatos de salade aula são raros. Por' exemplo, no n. 11, p.26, oautor começa pelos problemas, e o relato aparece aofinal como comentário. No n. 13 p.18, o autor omiteo relato que fez em exposição no Encontro de

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Professores realizado na Escola Experimental daLapa em 1988, sobre a aplicação do método.

A RPM só dá a palavra ao aluno quando esteapresenta uma contribuição avaliada por sua"correção" , "amenidade" , "competência" e"elegância" ou quando sua p'ergunta ingênuadescortina questões avaliadas, por sua vez, segundoesses quatro registros. Jamais o aluno, nem mui tomenos o professor, são ali colocados em situação defracasso diante do objeto matemático. Pelocontrário, na medida em que o momento daaprendizagem, isto é, da reequilibração, não étematizado, o sujeito do discurso da RPM e ointerlocutor que ele supõe no leitor aparecem comoa-históricos, como descontextualizados ou, emoutras palavras, como contextualizados apenas naprática científica da Matemática. Esse sujeitos sãofei tos à imagem e semelhança do sábio, cujaestrutura cogni tiva está pronta para assimilar asinformações veiculadas na revista.

Com o jogodescontextualizados, a RPMolímpica do sábio a partirdos mortais, incapazes dematemática contida neles.

desses sujeitosdemonstra a genial idadede objetos do dia-a-diadescobrir por si sós a

Ao pressupor uma l1atemática propriamentedita (n. 10, p.l), a RPM ·pretende descartar aquestão epistemológica. Ao aceitar que a tarefa doensino da matemática é ensinar a pensar (n. 7.p.12), sem dizer sobre o quê, pretende descartar aquestão ontológica. A opacidade da aprendizagem épostulada por Polya (n. 10, ,p.3):

Os psic~logos fizeram trabalhosexperimentais muito importantes e emitiram algumasopiniões te~ricas interessantes sobre o p~ocesso deaprendizagem. Tais experiências e opiniões podem

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servir como uma base estimulante para um professorexcepcionalmente receptivo, mas elas ainda nãoamadureceram suficientemente (e não amadurecerãopor um bom tempo, temo eu) para ser de usoimediatamente pr~tico naquelas fases da instruçãoque nos concerne aqui. Em seu trabalho di~r i o, oprofessor,deve basear-se primeiro e antes de tudona sua propria experiência.

Deixando de lado, momentaneamente, aelegância que preconiza para a Matemática, a RPMendossa esse ponto de vista, referindo-se a"pomposas teorias pseudopsicológicas". Com essaoperação, a RPM corre os ferrolhos da porta quepoderia abrir para a pedagogia. Conseqüentemente,não se ocupa em mostrar como levar às salas de aulareais as excelentes sugestões matemáticas quecontém. Resul ta daí o baixo índice deaprovei tamento direto da revista em sala de aula(n. 13, p. 2).

No entanto, como me observou um dosmembros de seu Comitê E~itorial [1] dizer que a RPHnão é uma revista pedagogica não ímplica dizer queela seja uma revista "não pedagógica". As questõespedagógicas, nela, recebem tratamento efícaz nasentrelinhas dos artigos que criteriosamente a RPMescolhe para publicação. Assim, o fracasso não estáde todo ausente. Ele é apresentado nos silêncios domesmo movimento em que só o sucesso é posto. Aexplícitação do ser que ensina como pólo positivo,como modelo olímpico a ser imitado, institui aproblemática em que o pólo negativo, o ser queaprende, aparece recoberto do silêncio.

[2]Nas palavras de um painelista no lIIENEM, na díalétíca da geníalidade/burríce O burro éo gênio com sinal trocado. De nada adianta declararque essa problemática sítuada entre pólos extremosseria superada pela consideração da "normalidade",

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porque, na medidanormalidade segenialidade, como

em que o fracassoidentifica, de

logo veremos.

não é posto,imediato,

Assim, o ponto de vista segundo o qual odiscurso sobre ensino dispensa maiores referênciasà aprendizagem constrói um silêncio específico emtorno da gênese das estruturas cognitivas, o quelhe permite supor um aluno ideal, "pronto", dotadode uma estrutura cognitiva formada "a priori"lporém isomorfa às estruturas da Matemática com aqual vai ser preenchido e que lhe vai ser"transmitida" também "pronta".

Vejamos esse ponto de vista apresentadosegundo o discurso de um professor [3] em uma aulapara uma turma de Licenciatura no Departamento deMatemática da UNESP, Campus de rio Claro:

Mesmo que o aluno chegue do colegial semsaber nada de l1atem~tica, se ele tiver umainteligência normal, segundo alguma concepção deinteligência e se ele tiver os primeiros passos deuma teoria met ems t i ce bem dados, isto é, se forembem explicados para ele os primeiros passos, ele,sozinho, pode, por esforço pr~prio e mais ajuda doprofessor e discussão com os colegas, ele podedesenvolver o conhecimento de uma teoria.

Um exemplo: pega os números reais. Pega umaluno que não sabe o que é fração, não sabe o que énúmero natural. Ai, você d~ os axiomas dos reais aele e começa a brincar com os axiomas. Então, derepente, ele começa a tirar os naturais. Como tiraros naturais? Pega o zero, pega o um, vai somando,um mais um dá o dois, vai analisando isso dai.Então, de repente, ele tem o conjunto dos naturais.Depois ele começa a perguntar o seguinte: será quetem mais números além dos naturais? Evidentemente,ele demonstrou que 1 é diferente de 2, que 2 é

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diferente de 3, que tem aquela cadeia dedes igualdades, O < 1 < 2. Demonstra isso. Só porai, os reais j~ são infinitos. Has ai, a perguntaé: ser~ que tem outros reais? Então eu acredito .q~eo aluno que tem os axiomas na mão, ele pode, mesmoque ele não tenha nada na cabeça sobre fração,sobre. .. nenhuma informação do colegial... Issofalando assim, por cima ...

Vejamos, não o que o orador dirá que quisdizer, mas o que efetivamente disse. As unidadessignificativas são as seguintes.

DAR·..tiver osmatematica bem·..forem bempassos ......d~ os axiomas ...

primeirosdados ...explicados

passos de uma teoria

para ele os primeiros

PEGAR...pega os números reais.·..pega um aluno ...·..pega o zero, pega o um ......um aluno que tem os axiomas na mão ...

DE REPENTE

...de repente, ele começa a tirar os naturais .

...de repente ele tem o conjunto dos naturais .

VAZIO

...mesmo que ele não tenha nada na cabeça ...

...sem saber nada de Hatem~tica ...

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TIRAR...ele começa a tirar os naturais ......Como tirar os naturais? ..

PERGUNTAR...ele começa a perguntar ......a pergunta é...

AS PREOCUPAÇÕESSer~ que tem mais números além dos naturais?Ser~ que tem outros reais? O que se esperaDemonstrar que 1 é diferente de 2, que 2 édiferente de 3.Demonstrar que O < 1 < 2 ...Demonstrar que os reais são infinitos.

Relido, em termos das categorias que essasunidades significativas indicam, esse discurso dizo seguinte: os sujeitos (de inteligência normal)dispõem de uma CAPACIDADE COGNITIVA inata (mesmoque o aluno chegue do colegial sem saber nada deMatemática e mesmo que ele não tenha nada nacabeça), capaz de REPRODUZIR as .perguntas e asrespostas que o estado atual da ciência matemáticajulga relevantes, a partir de uma INFORMAÇÃOinicial (dá a ele os axiomas) num processosimultaneamente ESPONTÂNEO (brincar) e IMPOSTO(ajuda) que é OPACO ao conhecimento, porque ocorrede repente.

Segundo essa concepção, o OBJETO DOCONHECIMENTO é a teoria (desenvolver o conhecimentode uma teoria). A teoria é EXTRAíDA por observaçãosensorial (tirada) do objeto manipulado (pega osnúmeros reais) por FACULDADES COGNITIVASdescontextualizadas e formadas a priori" ( osaxiomas na mão e nada na cabeça), bastando, para

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isso, que o objeto seja devidamente MOSTRADO (bemexplicado, bem dado).

Uma categoria, entretanto, funci~naatravés do silêncio: se, apesar de as informaçõesterem sido ministradas ao aluno de maneira correta,amena e elegante, ele não chegar a perguntar o quese espera que ele pergunte (Haverá outros reais?Zero é menor que 17 etc), a conclusão silenciosa éque a hipótese da inteligência normal não severifica. Então o aluno é... (silêncio aqui)!

Numa palavra, a visão que recusa olhar apedagogia reduz o ensino da Matemática a informarum ALUNO IDEAL (de irit e I igência normal). O ALUNOREAL não pode ser considerado porque a aprendizagemocorre "de repente". O problema que o Ensino daMatemática se põe é, então, o de como apresentaruma teoria que é essencialmente axiomática, demaneira a mais possível amena, agradável, elegante,sem deixar de ser correta. A competência écomprovada principalmente por exames escritos deconteúdo, associados ao processo de seleçãoescolar. A expressão máxima da genialidade éperseguida nas Olimpíadas de Matemática. O que apesquisa que se propõe apenas melhorar o ensino daMatemática termina, de fato, por melhorar, é ofuncionamento desse sistema, colaborando para sua

d - [4]repro uçao

A Educação Matemática não recusa apreocupação com essas questões, mas reformula suasrelações de modo a at r í bu í r+Lhes outrossignificados. O problema central que a EducaçãoMatemática tem a resolver é o seguinte:

Existem metodologias alternativas para aspráticas de ensino da Matemática?

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Ou seja, é possível levar o aluno aadquirir competência olímpica de conteúdosmatemãticos, avaliada por provas escritas,empregando metodologias que não promovam aideologia da genial idade nem se apóiem sobre oprocesso seletivo a ela associado?

t: possível formar um professor que, alémde bom desempenho olímpico, não tenha medo de ficarpreso às dificuldades do aluno ao entrar em diãlogocom ele? Ou o bom desempenho olímpico leva osujeito, necessariamente, ao isolamento e arestringir seus interlocutores?

Esse problema parece decisivo porque namedida em que tais metodologias não foremencontradas ou mesmo na medida em que se concluaque elas não existem, a Educação Matemãtica ficadiante da seguinte alternativa:

10. Dissolver-se dentro do Ensino da

Matemãtica, aceitando a ideologia da competência deconteúdos matemãticos.

o2. Argumentar que o domínio 01 ímpico deconteúdos estritamente matemãticos avaliados porprovas escritas que se sabe não serem suficientes àformação do professor também não lhe é necessãrio!Nesse caso o discurso da Educação Matemãtica deixade conter o discurso do Ensino da Matemãtica paraincorporar valores que lhe são exteriores.

Estamos apostando que as metodologiasalternativas existem!

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Referências[1] MELLO, Alciléia Augusto Homem de. II Encontro

Nacional de Educação Matemática, jan. 1988,Maringá. Sessão Púbblica de Divulgação daRevista do Professor de Matemática.

[2] BICUDO, Irineu. III Encontro Nacional deEducação Matemática, jul, 1990, Natal, Grupode Trabalho, Hist. Filosofia, Epistemologia,Sociologia da Matemática e da EducaçãoMatemática.

[3] GELONEZE, Antônio. Alocução inicial da aulaministrada para alunos do Curso de Matemática,do Instituto de Geociências e Ciências Exatas,UNESP, Campus de Rio Claro, gravada em vídeoem 21/ jun/1990.

[4] BOURDIEU, Pierre, PASSERON, Jean Claude. AReprodução. Tradução por Reynaldo Bairão,2 ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.238 p. Tradução de: La Reproduction.