Ensino de história indigena

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Revista História Hoje Ensino de História Indígena ANPUH - Brasil

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A Revista História Hoje publica artigos relacionados à temática de História e Ensino com a finalidade de promover a divulgação de reflexões, projetos e experiências nesta área e também criar um espaço institucional de debate relativo aos campos de trabalho dos profissionais de História.

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Revista História Hoje

Ensino de História Indígena

ANPUH - Brasil

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Diretoria NacioNal • aNPUH - Brasil • GestÃo 2011-2013

Presidente: Benito Bisso Schmidt – UFRGSVice-Presidente: Margarida Maria Dias de Oliveira – UFRNsecretário Geral: Angelo Aparecido Priori – UEM1o Secretário: Antonio Celso Ferreira – UNESP2o Secretário: Carlos Augusto Lima Ferreira – UEFS1o Tesoureiro: Francisco Carlos Palomanes Martinho – USP2o Tesoureiro: Eudes Fernando Leite – UFGDeditora da revista Brasileira de História: Marieta Moraes Ferreira – UFRJ/FGVeditora da revista História Hoje: Patrícia Melo Sampaio – UFAM

coNselHo coNsUltivo • aNPUH - BrasilAlmir Félix Batista de Oliveira – ANPUH-RNAltemar da Costa Muniz – ANPUH-CEÁurea da Paz Pinheiro – ANPUH-PIBraz Batista Vas – ANPUH-TOCélia Costa Cardoso – ANPUH-SECélia Tavares – ANPUH-RJÉlio Chaves Flores – ANPUH-PBEurelino Coelho – ANPUH-BAHélio Sochodolak – ANPUH-PRHideraldo Lima da Costa – ANPUH-AMJaime de Almeida – ANPUH-DFJoão Batista Bitencourt – ANPUH-MAJulio Bentivoglio – ANPUH-ESLuís Augusto Ebling Farinatti – ANPUH-RSLuzia Margareth Rago – ANPUH-SPMarcília Gama – ANPUH-PEMaria da Conceição Silva – ANPUH-GOMaria de Nazaré dos Santos Sarges – ANPUH-PAMaria Teresa Santos Cunha – ANPUH-SCNeimar Machado de Sousa – ANPUH-MSRonaldo Pereira de Jesus – ANPUH-MGSérgio Onofre Seixas de Araújo – ANPUH-ALThereza Martha Borge Presotti Guimarães – ANPUH-MT

RePReSenTanTe da anPUH/BRaSil no ConSelHo naCional de aRqUiVoS (ConaRq)

Ismênia de Lima Martins – UFF (Titular)Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira – UERJ (Suplente)

Revisão: Armando OlivettiDiagramação: Flavio Peralta (Estúdio O.L.M.)

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Revista História Hoje

Ensino de História Indígena

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Revista História Hoje Vol. 1 No 2, ISSN 1806-3993 • Biênio: Agosto de 2011 a Julho de 2013

Editora ResponsávelPatrícia Melo Sampaio – UFAM

Conselho editorial da RHHJAndréa Ferreira Delgado – UFSCÂngela Maria de Castro Gomes – UFFCirce Maria Fernandes Bittencourt – USPDilton Cândido Santos Maynard – UFSEEduardo França Paiva – UFMGFlávia Eloisa Caimi – UFPFJosé Miguel Arias Neto – UELJosenildo de Jesus Pereira – UFMAKeila Grinberg – UNIRIOLuiz Carlos Villalta – UFMGMarcelo de Souza Magalhães – UniRioMauro Cézar Coelho – UFPAMônica Lima e Souza – UFRJNilton Mullet Pereira – UFRGSSusane Rodrigues de Oliveira – UnB

Conselho consultivo da RHHJAna Livia Bomfim Vieira – ANPUH-MAAntonio Jacó Brand – ANPUH-MS Carla Mary da Silva Oliveira – ANPUH-PBChrislene Carvalho dos Santos – ANPUH-CE Claudira do Socorro Cirino Cardoso – ANPUH-RS Cristiano Pereira Alencar Arrais – ANPUH-GO Franciane Gama Lacerda – ANPUH-PA James Roberto Silva – ANPUH-AM Janete Ruiz de Macedo – ANPUH-BAJosé Antonio Vasconcelos – ANPUH-SPLaurindo Mékie Pereira – ANPUH-MG Marcelo Balaban – ANPUH-DF Marcos Silva – ANPUH-SE Osvaldo Batista Acioly Maciel – ANPUH-AL Sandra Paschoal Leite de Camargo Guedes – ANPUH-SC Yonissa Marmitt Wadi – ANPUH-PR

Secretária da RHHJPaula Dantas – UFAM

Endereço na Web: http://rhhj.anpuh.org/ojs/index.php/RHHJ/index Email: [email protected] e [email protected]

A Revista História Hoje publica artigos relacionados à temática de História e Ensino com a finalidade de promover a divulgação de reflexões, projetos e experiências nesta área e também criar um espaço institucional de debate relativo aos campos de trabalho dos profissionais de História.

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SUMÁRIO

Apresentação 7 Patrícia Melo Sampaio – Editora

Dossiê: Ensino de História Indígena

Apresentação • Dossiê 13 Circe Maria Fernandes Bittencourt e Maria Aparecida Bergamaschi

Os índios na história do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo 21Maria Regina Celestino de Almeida

Outra redução: a dinâmica interétnica na Limpia Concepción de Jeberos, nas missões jesuíticas do Marañon no século XVII 41Fernando Torres-Londoño

Categorias de entendimento do passado entre os Kadiwéu: narrativas, memórias e ensino de história indígena 59Giovani José da Silva

Educação escolar indígena: a escola e os velhos no ensino da história kaingang 81Juliana Schneider Medeiros

Da Escola Isolada Mista da Vila do Espírito Santo do Curipi à escola diferenciada entre os Karipuna: entrelaçamentos na história da educação escolar indígena. 103Edson Machado de Brito

Entrevista

entrevista: Gersem José dos Santos Luciano – Gersem Baniwa 127Maria Aparecida Bergamaschi

Artigos

Livro didático de História: representações do ‘índio’ e contribuições para a alteridade 151Maria de Fátima Barbosa da Silva

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A Educação Superior de Indígenas no Brasil contemporâneo: reflexões sobre as ações do Projeto Trilhas de Conhecimentos 169Antonio Carlos de Souza Lima

Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’ 195Jane Felipe Beltrão

O ensino de História Indígena: possibilidades, exigências e desafios com base na Lei 11.645/2008 213Edson Silva

Falando de História Hoje

Espaço e tempo como dimensões do conhecimento e objeto de ensino-aprendizagem em História 227Carlos Augusto Lima Ferreira e Edicarla dos Santos Marques

E-storiaE-storia 249Dilton C. S. Maynard e Marcos Silva

História Hoje na sala de aula

Ensino de história e a questão indígena 255Antonia Terra de Calazans Fernandes

Resenhas

Os índios na história política do Império: avanços, resistências e tropeços 269Vania Maria Losada Moreira

Indígenas na História do Brasil: identidade e cultura 275Antonio Simplicio de Almeida Neto

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ApresentAção

É com imensa satisfação que a revista História Hoje, criada em 2003, lança o segundo número da sua nova série, dando continuidade ao processo de revitalização do periódico iniciado em 2011. O dossiê Ensino de História Indígena, organizado por Circe Bittencourt e Maria Aparecida Bergamaschi, reuniu artigos instigantes na medida em que, tomados em conjunto, dão relevo à complexidade dos processos que apontam para o crescente protago-nismo dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, redimensionam os debates e desafios que cercam tanto as diferentes tentativas de escolarização, no tem-po e no espaço, quanto aqueles, mais recentes, relacionados à implementação da Lei 11.645/2008. Desse ponto de partida, temos os textos de Maria Regina Celestino de Almeida, “Os Índios na história do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo”; Fernando Torres-Londoño, “Outra redu-ção: a dinâmica interétnica na Limpia Concepción de Jeberos, nas missões jesuíticas do Marañon no século XVII”; Giovani José da Silva, “Categorias de entendimento do passado entre os Kadiwéu: narrativas, memórias e ensino de história indígena”; Juliana Schneider Medeiros, “Educação escolar indí-gena: a escola e os velhos no ensino da história kaingang” e Edson Machado de Brito, “Da Escola Isolada Mista da Vila do Espírito Santo do Curipi à es-cola diferenciada entre os Karipuna: entrelaçamentos na história da educação escolar indígena”.

Ampliando seu alcance e assegurando-lhe maior densidade, as organiza-doras do Dossiê assumiram outras seções e, com isso, brindam-nos com a entrevista de Gersem José dos Santos Luciano – Gersem Baniwa, numa perfeita tradução do compromisso de assegurar, aos índios, centralidade e protagonis-mo. O riquíssimo relato das trajetórias das populações do Alto Rio Negro, no

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Apresentação

Amazonas, reúne grande parte dos elementos que têm pautado o debate sobre o tema da escola indígena nas últimas décadas no Brasil. Além disso, as orga-nizadoras também selecionaram para a seção História Hoje na sala de aula o relato de Antonia Terra de Calazans Fernandes e suas experiências no “En-sino de história e a questão indígena”.

Na seção artigos, intensifica-se o debate sobre as dimensões da Lei 11.645/2008, como veremos nos artigos de Maria de Fátima Barbosa da Silva, “Livro didático de História: representações do ‘índio’ e contribuições para a alteridade”, e de Edson Silva, “O ensino de História Indígena: possibilidades, exigências e desafios com base na Lei 11.645/2008”. Vale chamar a atenção para os textos de Antonio Carlos de Souza Lima, “A Educação Superior de Indígenas no Brasil contemporâneo: reflexões sobre as ações do Projeto Trilhas de Conhecimentos” e de Jane Felipe Beltrão, “Histórias ‘em suspenso’, os Tem-bé ‘de Santa Maria’: estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’”. Mar-ca a novidade de suas abordagens o fato de que estamos diante de uma pers-pectiva diferenciada, considerando que são trabalhos produzidos no campo da Antropologia e, deste modo, permitem-nos abordar as questões que norteiam este número com um novo olhar.

Falando de História Hoje, seção dedicada a temas do nosso tempo, apre-senta o artigo de Carlos Augusto Lima Ferreira e Edicarla dos Santos Marques, “Espaço e tempo como dimensões do conhecimento e objeto de ensino-apren-dizagem em História”, no qual os autores abordam categorias que são indis-pensáveis na reflexão histórica e redimensionam sua perspectiva quando op-tam por analisá-las no contexto do ensino de História.

Na inovadora seção e-storia, Dilton Maynard reforça princípios para o uso das NTICS (Novas Tecnologias da Informação e Comunicação) na edu-cação e acrescenta uma série de sugestões para incorporar essas novas tecno-logias ao nosso trabalho docente, explorando-as de forma criativa.

Por fim, as resenhas de Vania Maria Losada Moreira, “Os índios na his-tória política do Império: avanços, resistências e tropeços”, e de Antonio Sim-plicio de Almeida Neto, “Indígenas na História do Brasil: identidade e cultura”, fecham o número apresentando-nos as possibilidades de leitura e os avanços de trabalhos recentes sobre a História Indígena no Brasil.

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Apresentação

Mais uma vez, o comprometimento e o espírito de trabalho solidário do Conselho Editorial foram imprescindíveis para que este número existisse com tal riqueza e diversidade. Contudo, apesar do entusiasmo com seu lançamento, há que se registrar nosso pesar pelo falecimento do professor Antônio Jacob Brand, representante da Anpuh/MS no Conselho Consultivo da História Hoje e pesquisador reconhecido na área de história indígena e do indigenismo no Brasil. Este número também é, ao seu modo, uma forma de reconhecimento à sua trajetória e ao seu notável trabalho.

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ApresentAçãoCirce Maria Fernandes Bittencourt*

Maria Aparecida Bergamaschi**

É com satisfação que apresentamos o dossiê temático do presente número da Revista História Hoje, que versa sobre história, educação e cultura indígena. A escolha da temática decorre, em grande parte, da Lei Federal 11.645 de 2008 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas de ensino fundamental e médio, mas, sobretudo, o tema abordado nesta edição almeja contribuir para a ampliação dos estudos sobre os povos indígenas e subsidiar as tarefas dos professores de História em suas aulas. De acordo com a lei, a atribuição dos estudos é, em especial, relacionada à área de história, como fica explicitado nos parágrafos de seu artigo 1o:

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspec-tos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resga-tando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.1

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* Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política, Sociedade. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, Perdizes. 05015-901 São Paulo – SP – Brasil. [email protected]** Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Av. Paulo Gama, 110. 90040-060 Porto Alegre – RS – Brasil. [email protected]

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Apresentação • Dossiê

Se, por um lado, a obrigatoriedade do estudo da história e cultura indíge-na na escola, forjada por uma lei, pode produzir certo desconforto, por outro oferece a possibilidade alentadora de que um tema tão importante e necessário se faça presente no curso básico e nos currículos de formação docente, favo-recendo o diálogo étnico-cultural respeitoso embasado no reconhecimento dos saberes, histórias, culturas e modos de vida próprios dos povos originários e, contribuindo, assim, para superar o silêncio e os estereótipos que, em geral, acompanham a temática indígena nos espaços escolares.

A necessidade de rever a forma como a temática indígena é tratada na escola é uma preocupação de variados setores responsáveis pelas políticas pú-blicas, de educadores e de intelectuais indígenas e não indígenas. Na Conven-ção 169/1989 da OIT,2 lideranças indígenas afirmaram: “Medidas de caráter educativo deverão ser adotadas em todos os segmentos da comunidade nacio-nal ... com o objetivo de eliminar preconceitos que possam ter com relação a eles”. Diz ainda esse documento que muitos esforços deverão ser feitos, para que “livros de história e demais materiais didáticos ofereçam descrição correta, exata e instrutiva das sociedades e culturas dos povos indígenas e tribais”. Nessa direção também se insere o depoimento de Vherá Poty Benitez, intelec-tual do povo Guarani. Segundo ele, a implementação da Lei 11.645/2008 requer alguns movimentos dos professores: em primeiro lugar a sensibilidade para reconhecer a necessidade e a importância do tema, inclusive para possibilitar aos alunos um encontro com a ancestralidade ameríndia. Porém, reconhece Vherá que os professores necessitarão de muito estudo, pois considera que há um desconhecimento do tema que precisa ser tratado com profundidade, trazendo-o para o centro das preocupações e reflexões na escola e nas aulas de História. E completa que para saber a história e cultura dos povos indígenas há um terceiro movimento, que é o de ouvir os próprios indígenas como au-tores de suas histórias, movimento que também iniciamos aqui, com a palavra de Gersem José dos Santos Luciano, professor indígena nascido na aldeia Ya-quirana, no Alto Rio Negro, Amazonas, integrante do Conselho Nacional de Educação (CNE) e que esteve à frente da Coordenação da Educação Escolar Indígena, no Ministério da Educação (Secad/MEC) nos últimos anos. Em sua entrevista, especial para este número da História Hoje, Gersem Baniwa fala de sua trajetória de estudante, professor e gestor em escolas e em políticas educa-cionais indígenas, traçando um panorama nacional acerca da educação escolar

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Apresentação • Dossiê

específica e diferenciada. Discorre sobre a presença de estudantes indígenas no ensino superior e faz ponderações importantes acerca da implementação da Lei Federal 11.645/2008, apontando possíveis caminhos para processos in-terculturais no ensino da História e para a escola em geral.

Por parte dos historiadores houve uma ampliação de estudos sobre a te-mática indígena, embora pouco numerosos considerando a diversidade de grupos em todo o território brasileiro. Com base nos recentes estudos históri-cos tem havido uma renovação de materiais didáticos com iniciativas promis-soras em obras, sobretudo paradidáticas, inseridas em concepções de história local ou regional. Tais concepções tornam-se condição fundamental para ul-trapassar estudos que concebem genericamente os índios, sem considerar a diversidade étnica, cultural e histórica dos povos indígenas de diferentes luga-res e sobre os conhecimentos que possuem sobre esses espaços historicamente ocupados. Afinal, existem atualmente cerca de 230 povos indígenas, com 180 línguas faladas que pertencem a mais de trinta famílias linguísticas, sem esque-cer o grande número de sociedades indígenas exterminadas ao longo da his-tória de contato. Os recentes estudos sobre a história dos povos indígenas no Brasil, é importante destacar, tiveram um importante referencial na obra or-ganizada por Manuela Carneiro da Cunha, a História dos Índios no Brasil, de 1992, obra esta que marca, definitivamente, o rompimento com a ideia de que os indígenas são ‘povos sem história’. A partir desse momento, tem sido pos-sível situar os indígenas em suas especificidades étnicas e culturais mas, prin-cipalmente, como sujeitos históricos e não apenas grupos resistentes às mais diversas frentes de colonização do século XVI ao XX. A concepção de que os indígenas também foram protagonistas da sua própria história, que participa-ram e ainda participam da história denominada nacional, não só na condição de trabalhadores escravos mas também como participantes da constituição das fronteiras da nação ou ainda como comunidades que lutam para manter sua própria forma de organização social e cultural, tem marcado a nova produção historiográfica que retoma um importante debate sobre as fontes para estudos de ‘povos sem escrita’. As pesquisas têm enfrentado os desafios de novos pro-cedimentos metodológicos na análise das fontes escritas deixadas por religio-sos, administradores e viajantes, dentre outros, além de uma complexa icono-grafia produzida pelos próprios indígenas e pelos não indígenas e por vestígios arqueológicos. Além disso, os historiadores deparam com uma nova concepção

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Circe Maria Fernandes Bittencourt*Maria Aparecida Bergamaschi

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Apresentação • Dossiê

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sobre o trabalho, graças à memória oral de povos cuja história se perpetua pelas narrativas de uma tradição oral.

Nessa dimensão dos estudos históricos, o artigo “Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo”, da historiadora Ma-ria Regina Celestino de Almeida, apresenta uma reflexão que nos permite com-preender e pensar sobre o lugar dos índios na história do Brasil, considerando sua invisibilidade enquanto sujeitos históricos no século XIX e o protagonismo crescente revelado pela historiografia atual. A autora analisa como os discursos e imagens sobre os índios, que contribuíam para lhes retirar o papel de sujeitos históricos no decorrer dos séculos XIX e XX, vão sendo lentamente desmon-tados em nossos dias, passando da invisibilidade para o protagonismo con-quistado e restituído por movimentos políticos e intelectuais, nos quais eles próprios têm tido intensa participação, principalmente a partir da década de 1990.

No enfrentamento de revisão da história da catequese colonial em que predomina com exclusividade a ação dos missionários mesmo que analisada sob uma vertente em que se critica o processo de destruição cultural por eles promovido, apresenta-se o artigo de Fernando Torres-Londoño “Outra redu-ção: a dinâmica interétnica na Limpia Concepción de Jeberos, nas missões je-suíticas do Marañon no século XVII”. Nesse artigo o historiador Torres-Lon-doño, com base nas cartas jesuíticas, percorre a atuação do povo indígena Jebero em uma missão jesuítica na Amazônia do século XVII e suas formas de enfrentamento com os missionários. O autor indaga como os diversos povos indígenas que interagiram com os missionários entendiam as missões, e até que ponto compartilhavam da visão dos brancos. Nessa perspectiva há uma análise com inversão de olhares e de consideração de expectativas, deslocando a ênfase da ação dos missionários para a dos índios. E, ao realizar esse deslo-camento – do olhar dos índios em relação aos missionários – torna possível um entendimento mais complexo das missões religiosas como lugares de re-definição das relações interétnicas e se percebe a dinâmica de negociações constantes entre jesuítas e lideranças indígenas que atinge também as ações dos colonizadores em suas guerras de conquista e ocupação territorial.

O tema educacional apresenta-se como relevante para estudos sobre a história dos povos indígenas, concebendo o significado do processo de esco-larização como fundamental na história da integração de grupos de ‘selvagens’

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ao se transformarem em ‘civilizados’. Tal concepção sobre a importância da educação no processo de integração dos povos indígenas na comunidade na-cional marcou parte dos estudos sobre as comunidades indígenas, notadamen-te no século XX, e as formas de atuação dos órgãos estatais que passaram a se responsabilizar oficialmente pelas comunidades indígenas – Serviço de Prote-ção aos Índios (SPI) e depois Fundação Nacional do Índio (Funai) – em relação à criação de escolas nas áreas indígenas. A trajetória da educação proporcio-nada pelo Estado nacional às comunidades indígenas é o tema do artigo do historiador indígena Edson Machado de Brito, “Da Escola Isolada Mista da Vila do Espírito Santo do Curipi à escola diferenciada entre os Karipuna: en-trelaçamentos na história da educação escolar indígena”. O autor, com base na pesquisa de doutorado, situa a problemática da transformação de uma escola criada na década de 1930 em uma aldeia situada na Terra Indígena do povo Karipuna, na região do Oiapoque, fronteira com a Guiana Francesa, cuja meta era ‘abrasileirar’ a comunidade para transformá-la em trabalhadores a serviço do Estado nacional, em uma escola indígena diferenciada, conforme possibilita a Constituição de 1988. O tema se entrelaça com a história da educação escolar indígena no Brasil em confronto com a educação tradicional indígena no de-correr desse processo de contato, pontuando as mudanças ocorridas a partir dos anos 1980, principalmente em decorrência das conquistas constitucionais e da legislação subsequente, que aponta possibilidades para uma educação escolar diferenciada, voltada para a preservação cultural, incluindo o direito ao estudo da língua materna.

Com base nos princípios das escolas diferenciadas para as comunidades indígenas, a autora Juliana Schneider Medeiros, no artigo “Educação escolar indígena: a escola e os velhos no ensino da história kaingang”, relata, a partir de um estudo etnográfico na Terra Indígena Kaingang da Guarita, no Rio Grande do Sul, como ocorre a participação das narrativas tradicionais na escola e no ensino de História. Com base no acompanhamento das aulas de História e nas conversas com os velhos, a autora apresenta reflexões sobre a relação dos velhos com a escola, buscando compreender qual o papel desses ‘contadores de histórias’ na transmissão da história kaingang. Trata-se de referencial sig-nificativo para o entendimento da construção de currículos escolares diferen-ciados para as escolas das comunidades, o qual envolve reflexões sobre o pro-cesso de conhecimento histórico e suas formas de transmissão em uma

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perspectiva de educação voltada para o fortalecimento da vida em comunidade.

Complementando tal perspectiva, o historiador Giovani José da Silva, no artigo “Categorias de entendimento do passado entre os Kadiwéu: narrativas, memórias e ensino de história indígena”, discute, com base nas categorias de entendimento do passado entre índios Kadiwéu do Mato Grosso do Sul, a articulação entre o ensino de História e culturas indígenas e a elaboração de memórias e narrativas. O autor, que atuou como professor em uma escola indígena Kadiwéu, coloca sua experiência como ponto importante para refle-xões sobre as formas de conhecimento sobre o ‘outro’ em situações de diálogos e respeito mútuos. Diz o autor que, ao se conhecer como determinado grupo indígena reconstrói o passado e que categorias são utilizadas para narrar/re-memorar tempos pretéritos, percebem-se outras formas de apreensão, com-preensão e representação da história, o que enriquece sobremaneira o ensino da disciplina.

A seção História Hoje na Sala de Aula integra o tema do dossiê e apresenta o relato da experiência de ministrar, no ensino superior, a disciplina optativa “Ensino de história e a questão indígena”, oferecida aos alunos do Departa-mento de História da FFLCH da Universidade de São Paulo pela historiadora Antonia Terra de Calazans Fernandes. A disciplina foi criada com base na Lei 11.645/2008 que ao tornar obrigatório, no ensino fundamental e médio, o trabalho com conteúdos referentes à história dos povos indígenas brasileiros, estabelece igualmente compromissos nos cursos de formação de professores. O relato apresenta as escolhas dos temas para estudo, as atividades, os autores propostos para leituras bibliográficas e algumas reflexões sobre os trabalhos realizados com os estudantes. Destaca ser fundamental, para além dos debates historiográficos sobre o tema, o levantamento das representações dos futuros professores em relação aos povos indígenas, para servir como ponto inicial de reflexões sobre a identificação, entre eles, de valores arraigados historicamente na cultura brasileira. A proposta do curso se fez de maneira a priorizar ativi-dades de contatos com aldeias, avaliações de abordagens da temática em ma-teriais didáticos para que se pudesse refletir sobre alternativas pedagógicas para futuros trabalhos escolares.

Encerrando o dossiê, Antonio Simplicio de Almeida Neto apresenta uma resenha do livro Os índios na História do Brasil, de Maria Regina Celestino de

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Almeida, publicado em 2010 (coleção FGV de bolso, Série História), na pers-pectiva de oferecer outras possibilidades para o cumprimento do que diz a Lei 11.645/2008 em relação ao ensino da história. Como diz o autor da resenha, a obra apresenta importante e denso panorama da temática – dentro dos limites de um livro de bolso – elaborado com base na produção historiográfica mais recente, novas leituras decorrentes de documentos inéditos, abordagens fun-damentadas em novos conceitos e teorias, bem como pesquisas interdis ciplinares.

É nesse sentido que se insere o Dossiê que ora apresentamos, num con-texto de poucos estudos à mão dos professores, sabendo do quanto ainda pre-cisa ser feito diante de uma diversidade de povos originários e cada um justa-mente reivindicando sua singularidade, escondida na generalização histórica que a palavra ‘índios’ produziu.

Desejamos uma boa leitura!

1 BRASIL. Lei 11.645, de 10 mar. 2008. Grifo nosso.2 OIT. Convenção no 169 sobre povos indígenas e tribais em países independentes e Resolução referente à ação da OIT sobre povos indígenas e tribais. 2.ed. Brasília, 2005. p.47-48.

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Os índios na História do Brasil no século XIX: da invisibilidade ao protagonismo1

Indians in the 19th century History of Brazil: from invisibility to protagonism

Maria Regina Celestino de Almeida*

ResumoCom o objetivo de refletir sobre o lugar dos índios na história, considerando sua invisibilidade enquanto sujeitos históri-cos no século XIX e o protagonismo cres-cente revelado pela historiografia atual, o artigo analisa de forma conjunta questões relativas à política indigenista do Impé-rio, à cultura política indígena, ao nacio-nalismo e à etnicidade, enfocando a pro-blemática das controvérsias e imprecisões sobre as classificações étnicas e os confli-tos de terra nas antigas aldeias coloniais.Palavras-chave: política indigenista do Império; cultura política indígena; etni-cidade.

AbstractAiming to reflect on the place of Indians in history, considering their invisibility as historical agents in the nineteenth century and their growing protagonism revealed by current historiography, this article jointly analyzes matters related to the Empire indigenous policy, the in-digenous political culture, the national-ism and ethnicity, focusing on the issues of controversy and inaccuracy on ethnic classifications and land conflicts in the erstwhile colonial indigenous villages.Keywords: Empire indigenous policy; indigenous political culture; ethnicity.

A reflexão sobre o lugar dos índios na história, considerando sua invisi-bilidade enquanto sujeitos históricos no século XIX e o protagonismo crescen-te revelado pela historiografia atual implica, a meu ver, analisar de forma con-junta algumas questões que serão priorizadas neste artigo. Refiro-me à política indigenista do Império, à cultura política indígena, ao nacionalismo e à etnicidade, enfocando a problemática das controvérsias e imprecisões sobre as classificações étnicas e os conflitos de terra nas antigas aldeias coloniais.

Em 1992, no texto Política indigenista no século XIX, Manuela Carneiro

* Departamento de História, Universidade Federal Fluminense. Campus do Gragoatá, Bloco O, sala 503, 5o andar, Gragoatá. 24210-350 Niterói – RJ – Brasil. [email protected]

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da Cunha já abordava essas questões de forma entrelaçada, apontando para a falácia do discurso do desaparecimento dos índios.2 Vivos e atuantes nos ser-tões, vilas, aldeias e cidades do Brasil oitocentista, povos e indivíduos indígenas agiam e reagiam diferentemente às múltiplas formas de aplicação da política para eles traçada. Lutavam e continuavam reivindicando direitos na justiça na condição de índios, enquanto discursos políticos e intelectuais previam e, em muitos casos, já os consideravam desaparecidos, como resultado dos processos de civilização e mestiçagem. Esses discursos justificavam, conforme a política indigenista vigente, a extinção de antigas aldeias coloniais e de suas terras coletivas e, ao mesmo tempo, serviam à construção do nacionalismo, cuja pro-posta era criar a nação em moldes europeus, onde não havia lugar para plura-lidades étnicas e culturais. A proposta assimilacionista, já lançada, desde mea-dos do século XVIII, pelo marquês de Pombal, seria retomada com muito mais ênfase pelos políticos do Oitocentos. Apesar das divergências, predominava a proposta de incorporar os índios ao Império como cidadãos civilizados para servir ao novo Estado na condição de trabalhadores eficientes. Terra, trabalho e guerras associavam-se à questão indígena tão amplamente debatida no século XIX, como destacaram vários autores. Nas sessões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado em 1838, os intelectuais debatiam o tema, comungavam com essas ideias e contribuíam para fortalecê-las, construindo histórias nas quais os índios eram valorizados em períodos anteriores, enquan-to desconsideravam os grupos coevos presentes e atuantes nas sociedades nas quais se inseriam. Razões políticas, ideológicas e socioeconômicas articulavam--se, portanto, na construção de discursos e imagens sobre os índios que con-tribuíam para lhes retirar o papel de sujeitos históricos.

Em nossos dias, essas concepções vão sendo desmontadas. No palco da história, os índios vão, lentamente, passando da invisibilidade construída no século XIX para o protagonismo conquistado e restituído nos séculos XX e XXI por movimentos políticos e intelectuais nos quais eles próprios têm tido intensa participação. Desde a década de 1990, os historiadores no Brasil têm se voltado para o estudo dos índios, valorizando-os como sujeitos dos proces-sos históricos por eles vivenciados. Com base em abordagens interdisciplina-res, as pesquisas atuais centram o foco da análise nos próprios índios e identi-ficam suas formas de compreensão e seus objetivos nas várias situações de contato por eles vividas, levando em conta os interesses e significados diversos

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das atuações políticas, socioeconômicas e culturais dos vários atores em contato.

Dentre as principais proposições teóricas e conceituais propiciadas pela aproximação da História com a Antropologia que têm contribuído para dar aos índios um novo lugar em nossa história, destaco a historicização de alguns conceitos básicos para se pensar sobre relações de contato. Entender cultura e etnicidade como produtos históricos, dinâmicos e flexíveis, que continuamente se constroem através das complexas relações sociais entre grupos e indivíduos em contextos históricos definidos, permite repensar a trajetória de inúmeros povos que por muito tempo foram considerados misturados e extintos. Mu-danças culturais vivenciadas pelos índios ganham outras interpretações e pas-sam a ser vistas não apenas como perda ou esvaziamento de uma cultura dita autêntica, mas em termos do seu dinamismo, mesmo em situações de contato extremamente violentas como foi o caso dos índios e dos colonizadores. O mesmo se pode dizer em relação às identidades indígenas que, transformadas e invisibilizadas, emergem hoje em conjunturas mais favoráveis, graças aos inúmeros processos de etnogênese.3 Tais processos evidenciam a falácia dos discursos de desaparecimento no século XIX. Alguns grupos, sobretudo no Nordeste, recuperam identidades indígenas com base nas antigas aldeias mis-sionárias do período colonial que foram declaradas extintas pelo estado de mistura e civilização dos seus habitantes. Se, como afirmou Pacheco de Olivei-ra, esses processos não surgem do nada, é mister reconhecer que os índios nunca deixaram de existir, mas foram invisibilizados em conjunturas políticas e ideológicas desfavoráveis.4

as abordagens atuais procedem, sem dúvida, das novas perspectivas teó-rico-metodológicas da História e da Antropologia, mas decorrem também dos movimentos sociais e políticos protagonizados pelos próprios povos indígenas. Tal como em outras regiões da América e do mundo, os índios no Brasil, ao invés de desaparecerem como previsto por teorias assimilacionistas, chegaram ao final da década de 1980 crescendo e multiplicando-se. Os direitos indígenas garantidos pela Constituição de 1988 resultam, em grande parte, desses movi-mentos, ao mesmo tempo em que os incentivam.5 Em nossos dias, os povos indígenas estão, cada vez mais, conquistando novos espaços políticos, sociais e acadêmicos. Entre essas conquistas inclui-se um novo lugar na história do Brasil.

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As pesquisas atuais sobre os índios em contato com sociedades envolven-tes versam sobre os mais diversos temas em diferentes espaços e temporalida-des, com significativa prioridade para o período colonial. Embora menos es-tudada, a presença e a atuação indígena na história do século XIX vem se tornando cada vez mais visível em pesquisas sobre diferentes temas. Dentre eles, ressalto a política indigenista do Império; as disputas por terras nas anti-gas aldeias coloniais; os discursos de desaparecimento dos índios; as guerras ofensivas contra os povos considerados selvagens, com destaque para os bo-tocudos e os kaingangs; o indianismo brasileiro e as construções de imagens dos índios na literatura, nas artes e nos discursos de políticos, intelectuais e viajantes; o lugar dos índios na historiografia do século XIX; a exploração da mão de obra indígena em diversas regiões do Império; a incorporação dos índios dos sertões pelo estabelecimento de presídios militares e de novas mis-sões religiosas, administradas sobretudo por capuchinhos; os inúmeros con-flitos em regiões de fronteira, envolvendo índios dos sertões que negociavam com autoridades civis e militares; e a participação indígena nas forças militares, na guerra do Paraguai e nas rebeliões e movimentos políticos nas províncias do novo Império, entre outros.6

Essa listagem não esgota as possibilidades temáticas de estudos sobre os índios no Oitocentos e aponta para sua importância no período. No século XIX, o tema indígena estava na ordem do dia, como demonstram as discussões políticas na Assembleia Constituinte de 1823, na Assembleia Legislativa, nas câmaras municipais e nas sessões do Instituo Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Os intensos debates sobre como lidar com os índios no século XIX não deixam dúvidas sobre sua significativa presença nas províncias do Império.

Política indigenista e cultura política indígena no Oitocentos

A política indigenista do Estado brasileiro incorporou e acentuou a pro-posta de promover a assimilação dos índios e extinguir antigas aldeias coloniais que havia sido introduzida pelas reformas pombalinas, em meados do século XVIII. Embora o Diretório dos Índios, legislação indigenista lançada naquele período, tenha sido extinto pela Carta Régia de 1798, muitas de suas diretrizes

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continuaram vigorando ao longo do século XIX. A ausência de uma política indigenista de caráter geral que só seria estabelecida em 1845, com o Regula-mento das Missões, não impediu que a política assimilacionista fosse mantida e incentivada, dando sequência às propostas de Pombal. Porém, tal como no período anterior, diferentes procedimentos tinham que ser adotados para lidar com populações indígenas muito diversas, com diferentes níveis de inserção nas sociedades envolventes. Para os povos do sertão previa-se o aldeamento, mediante a criação de missões religiosas e presídios militares, com recurso às guerras justas quando se julgasse necessário; para os aldeados, já considerados civilizados, propunha-se a assimilação, com a distribuição de parcelas indivi-duais de suas antigas terras coletivas que seriam extintas com as antigas aldeias. Guerras violentas, criação de novos aldeamentos e extinção de antigos foram práticas que coexistiram e se sucederam ao longo do século XIX. Todas visa-vam a um mesmo fim: a ocupação das terras indígenas e a transformação de seus habitantes em cidadãos e eficientes trabalhadores para servir ao novo Estado.

A chegada da Corte ao Rio de Janeiro, em 1808, e a declaração de guerra justa aos botocudos e posteriormente aos kaingangs não significaram profun-das rupturas em relação a políticas anteriores. A distinção dos índios entre mansos e selvagens presentes na legislação desde o século XVI se acentuou, sem dúvida, com a declaração dessas guerras, porém o Príncipe Regente man-teria a prática de zelar pela defesa dos índios aliados enquanto incentivava o combate aos inimigos. Na verdade, como destacou Langfur, a Carta Régia de 1808 viria apenas sancionar uma situação que já ocorria, pois as guerras contra os índios dos sertões de Minas Gerais nunca deixaram de ocorrer.7

Para os aldeados, a situação não se alterou muito, pois continuavam vendo no Rei, agora mais próximo, o justiceiro ao qual podiam recorrer diante das injustiças dos poderes locais. Não foram poucos os líderes indígenas que se deslocaram à Corte para pessoalmente pedir ao Rei a defesa de suas terras. Os índios aldeados séculos antes, em contato com o mundo colonial, haviam in-corporado a cultura política do Antigo Regime e chegaram ao Oitocentos rei-vindicando antigos direitos que lhes haviam sido concedidos pela Coroa por-tuguesa por sua condição de súditos cristãos e fiéis servidores do rei. Aprenderam a valorizar acordos e negociações com autoridades e com o pró-prio rei, reivindicando mercês em troca de serviços prestados.8

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No longo contato com os vários agentes sociais com os quais conviviam, os índios das aldeias desenvolveram suas próprias formas de compreensão sobre a nova realidade na qual se inseriam, sobre os direitos que lhes haviam sido concedidos e sobre as suas possibilidades de ação para obtê-los. Suas de-mandas fundamentavam-se basicamente em direitos assegurados pela legisla-ção da Coroa Portuguesa por sua condição distinta da dos demais vassalos do Rei. Eram direitos que se ancoravam, portanto, na distinção étnica em relação aos demais vassalos. Assim, a afirmação da identidade indígena construída no interior das aldeias coloniais iria se tornar importante instrumento de reivin-dicação política por parte desses índios.9

Acredito que, ao chegarem ao século XIX, esses índios continuavam agin-do em defesa de suas terras e aldeias de acordo com essa cultura política, pouco condizente com a do Estado nacional em construção, cujos valores se assenta-vam nos ideais de igualdade e liberdade com as limitações próprias do libera-lismo brasileiro. Esses novos valores, que já se manifestavam desde o tempo da Ilustração, traduziam-se para os índios no fim de uma situação jurídica específica que, apesar dos imensos prejuízos, tais como sujeição ao trabalho compulsório e discriminação social, lhes garantia alguns direitos, dentre os quais a terra coletiva. Pela manutenção desses direitos, os índios das aldeias coloniais do Rio de Janeiro, do Nordeste, do Espírito Santo e provavelmente de muitas outras regiões do Brasil iriam se manter unidos até bem avançado o século XIX, desafiando a política assimilacionista que, desde meados do século XVIII, pretendia extingui-los como categoria, acabando com as distinções en-tre índios e não índios.10

Na documentação sobre conflitos de terra é possível constatar que, apesar do intenso processo de mestiçagem, os índios das antigas aldeias mantinham a vida comunitária e o sentimento de comunhão étnica que se manifestava sobretudo nas ações políticas para garantir os direitos que lhes haviam sido concedidos. Com base nas atuais proposições teóricas e conceituais da História e da Antropologia estudos recentes evidenciam que as identidades são plurais e as categorias étnicas são históricas e portadoras de significados que se alte-ram, conforme tempos, espaços e interesses dos agentes sociais, tanto dos clas-sificadores quanto dos classificados.11 Isso nos permite constatar que os índios aldeados podem ter se tornado mestiços sem necessariamente terem deixado de ser índios. Desde meados do século XVIII e principalmente no decorrer do

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XIX, ser classificado de uma ou de outra forma implicava ganhos ou perdas de antigos direitos coletivos, o que sem dúvida incentivou as controvérsias e dis-putas por classificações étnicas tão visíveis na documentação desse período, sobretudo em conflitos de terra. A própria legislação favorecia esses embates, como se verá mais adiante. Por ora, cabe pensar sobre as concepções políticas e ideológicas do Oitocentos que contribuíam para reforçar a classificação dos aldeados como mestiços.

Após a Independência, o novo Estado imperial brasileiro viu-se diante do desafio de criar a nação e o povo brasileiro, até então, inexistentes. Era neces-sário criar no país uma unidade territorial, política e ideológica, gerando uma memória coletiva que unificasse as populações em torno de uma única iden-tidade. A pluralidade étnica e cultural tão valorizada em nossos dias não tinha lugar nessa época, e a ideologia do novo Estado brasileiro baseava-se nos va-lores europeus de modernização, progresso e superioridade do homem branco.12

Aos políticos e intelectuais do Brasil cabia homogeneizar populações ex-tremamente diversas do ponto de vista étnico e cultural, unificando-as em torno de identidades e histórias comuns. Enfrentavam ainda o desafio de fazer frente às teorias de inferioridade do continente americano e de suas popula-ções, em voga na Europa e com as quais eles, em grande parte, concordavam. A permanência da escravidão africana e a presença maciça de negros (escravos e libertos), índios e mestiços com as suas mais variadas denominações (pardos, caboclos, mulatos, cabras etc.) complicava a situação. Como construir uma identidade coletiva que os diferenciasse dos europeus, fortalecesse sua autoes-tima e ainda incorporasse os mais diversos grupos étnicos e sociais presentes nos seus territórios? Tal como ocorreu em outros países da América, a homo-geneização de populações iria se dar no âmbito do discurso. Foi vitoriosa ape-nas no nível das ideias, pois vários grupos considerados extintos continuavam, de fato, existindo.13

A enorme diversidade de populações indígenas no território brasileiro dificultava não só a aplicação de uma política de caráter geral, como também a construção de uma única imagem de índio condizente com os ideais da nova nação. Do ponto de vista político, pregava-se o assimilacionismo, com proce-dimentos diversos, como já vinha ocorrendo desde o período pombalino. Do ponto de vista ideológico, discutia-se a possibilidade de tornar o índio símbolo

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nacional. O desafio era grande e as divergências, muitas. Afinal, os índios ocu-pavam terras, ameaçavam colonos, recusavam-se ao trabalho e lutavam para conservar suas aldeias. Como transformá-los em símbolo nacional se eram considerados inferiores e ameaças ao desenvolvimento e progresso econômico do Estado? Certamente, esses índios não serviam para simbolizar a nação, nem tampouco para compor o projeto de construção da memória e história coleti-vas do novo Estado.

Foi a imagem idealizada do índio que permitiu, no plano ideológico, transformá-lo em símbolo nacional. Essa imagem pouco teria a ver com os reais habitantes dos sertões e das aldeias do Império. Discursos e obras políti-cas, literárias, históricas, científicas e artísticas desse período caracterizaram-se pela idealização dos índios do passado, enquanto ignoravam ou demonizavam os grupos ou indivíduos indígenas ainda muito presentes no território brasi-leiro. Estes últimos, bastante vivos e atuantes no século XIX, eram presença constante nos artigos das revistas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), nos Relatórios dos Presidentes de Província, na correspondência entre autoridades diversas e nas discussões da Assembleia Legislativa e das Câmaras Municipais. Essa documentação não deixa dúvidas sobre a atuação desses po-vos ao longo do século XIX, atuação essa que, como em períodos anteriores, influenciava os rumos das políticas para eles traçadas.

Discutia-se essencialmente se os índios deviam ser integrados de forma pacífica ou violenta. As concepções políticas e ideológicas sobre os índios se associavam e eram fundamentalmente influenciadas pelas realidades econô-mico-sociais do novo Estado. Como destacou David Treece, as representações romantizadas do índio que apareceram de diferentes formas na literatura, na música e na pintura não estavam descoladas da realidade política e social do período (Treece, 2008). Eram, sem dúvida, construções idealizadas, porém estavam ancoradas nos contextos históricos em que foram elaboradas. Os in-telectuais e artistas por elas responsáveis não viviam, absolutamente, alheios às discussões políticas e sociais sobre os índios. Na maioria das vezes, envol-viam-se nelas diretamente pelas funções políticas exercidas e quando não o faziam, suas obras, de um modo geral, influenciavam e eram influenciadas pelas realidades que vivenciavam. Os intelectuais responsáveis pela construção das imagens sobre os índios, bem como os viajantes, cujas descrições contri-buíam para reforçá-las, comungavam, grosso modo, com as ideias de assimilar

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os índios e transformá-los em eficientes cidadãos do novo Império. Seus dis-cursos e representações eram coerentes com a política indigenista do século XIX.

Embora não fossem novidade do século XIX, as discussões sobre práticas de brandura ou de violência para lidar com os índios foram foco de intensos debates nesse período. Sem abordar essa complexa discussão, importa ressaltar a predominância das teorias racistas e discriminatórias entre políticos e inte-lectuais que, grosso modo, concordavam com a ideia da inferioridade dos ín-dios. Divergiam, no entanto, sobre sua potencialidade para alcançar a civiliza-ção, questão que fundamentava as discussões sobre como incorporá-los. José Bonifácio de Andrada e Silva e Francisco Adolfo de Varnhagen destacaram-se nesse debate, e, embora ambos concordassem com a ideia de inferioridade dos índios, posicionavam-se em campos opostos. O primeiro defendia sua huma-nidade e capacidade de civilizar-se, propondo a integração branda, ao passo que Varnhagen afirmava a bestialidade dos índios que, no seu entender, só poderiam ser incorporados e submetidos por meio da guerra e do extermínio.14

Na política oficial do Império iria predominar a proposta de Bonifácio. Seu projeto defendia a política assimilacionista que visava incorporá-los como cidadãos e, embora condenasse o uso da força, reconhecia sua necessidade em algumas circunstâncias. Apesar de aprovado na Assembleia Constituinte, em 1823, não chegou à prática, e a Constituição de 1824 sequer mencionou a questão indígena que se tornou competência das Assembleias Legislativas Pro-vinciais, tendo prevalecido o interesse das oligarquias locais. A política indi-genista do Império caracterizou-se, então, pela descentralização, e os índios, ainda divididos nas categorias de mansos e bravos, tinham, de acordo com Carneiro da Cunha, a possibilidade de escolher entre a ‘civilização’ e o ‘exter-mínio’, ou seja, entre uma submissão branda e uma violenta. Várias leis de caráter local continuariam sendo estabelecidas em prejuízo dos índios, porém, no discurso oficial, prevalecia a recomendação para o uso de meios brandos e persuasivos, reservando-se a violência para os que se recusassem a colaborar.

Para as populações indígenas das aldeias, em contato com a sociedade colonial por um período de três séculos, o desafio era continuar existindo como comunidades no momento em que o novo Estado acentuava a política assimilacionista que visava extingui-los como etnias diferenciadas. A legislação

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indigenista do século XIX incentivava o processo de individualização das terras indígenas com um discurso humanitário que visava integrar os índios em igualdade de condições, transformando-os em cidadãos. Afinal, os ideais de civilização e progresso característicos do novo Estado não comportavam a ideia de índios, nem de vida comunitária. O objetivo era, sem dúvida, extinguir as aldeias, mas de acordo com a lei e respeitando-se os direitos dos índios, enquanto eles fossem considerados como tais.

As propostas assimilacionistas construíam-se de forma a ressaltar as van-tagens que a nova condição de cidadão daria aos índios. Tais propostas eram reforçadas pelas construções dos intelectuais que idealizavam os índios do passado enquanto viam seus contemporâneos como degradados. A solução ideal para eles era, de acordo com esses discursos, integrarem-se à sociedade nacional, tornarem-se cidadãos e terem acesso a propriedades individuais. Va-lores caros aos índios, como vida comunitária e reciprocidade, eram vistos como negativos e obstáculos ao progresso.

Quanto à legislação sobre terras, o Regulamento das Missões manteve os direitos dos índios nas aldeias, decretando ser obrigação do Diretor Geral de-signar terras para plantações comuns, para plantações particulares dos índios e para os arrendamentos. Porém, o regulamento seguia as orientações assimi-lacionistas predominantes. Sobre as aldeias, decretava em seu artigo 1° § 2 que se informasse ao “Governo Imperial sobre a conveniência de sua conservação, ou remoção, ou reunião de duas, ou mais, em uma só”.15 A Lei de Terras de 1850 também estabelecia uma reserva de terras para a colonização de indíge-nas, porém foi o regulamento de 1854 que veio explicitar com mais nitidez a política assimilacionista do Império: reservava as terras para os índios em usu-fruto, afirmando que “não poderão ser alienadas, enquanto o governo Impe-rial, por ato especial, não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim o per-mitir o seu estado de civilização” (Carneiro da Cunha, 1992b, p.223).

Em 1861, a questão dos índios passou à esfera do Ministério da Agricul-tura e Obras Públicas, o que aponta para a associação entre a política indige-nista e questões agrárias. Em várias regiões do Império, sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, a questão indígena tornava-se basicamente uma questão de terras, como destacou Manuela Carneiro da Cunha. O Regu-lamento das Missões de 1845 e a Lei de Terras de 1850, complementada com o regulamento de 1854, reafirmaram o conteúdo do Diretório em dois

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importantes aspectos: incentivavam a proposta assimilacionista e continuavam garantindo o direito dos índios às terras coletivas enquanto eles não atingissem o chamado estado de civilização. Isso dava aos índios das aldeias possibilidades de continuarem reivindicando, por intermédio da lei, os direitos que lhes ha-viam sido garantidos. Essas reivindicações, deve-se lembrar, baseavam-se na afirmação da identidade indígena. Ser ou não ser considerado índio implicava, como visto, ganhar ou perder direitos, sobretudo à terra coletiva, razão pela qual as controvérsias e disputas em torno das classificações étnicas iriam se tornar muito mais acentuadas ao longo do século XIX.

Classificações étnicas e conflitos de terra nas antigas aldeias coloniais

No decorrer do século XIX, incentivados pela política assimilacionista da Coroa portuguesa e depois do Império, as câmaras municipais e os moradores intensificavam suas investidas para apoderar-se das terras e dos rendimentos coletivos das aldeias. Estas eram descritas como decadentes e miseráveis, mas continuavam despertando conflitos, pois os índios insistiam em preservá-las. Misturados e transformados no interior das aldeias, os aldeados, talvez, difi-cilmente pudessem se distinguir de seus vizinhos não índios por sinais diacrí-ticos, laços consanguíneos, caracteres físicos ou traços culturais nítidos, porém não abandonaram suas identidades indígenas. Se, de acordo com Cohen, os grupos têm interesse em permanecer distintos enquanto condições políticas e econômicas estão ligadas a essa distinção, essa parece ter sido uma forte razão para sua resistência à política assimilacionista, que os levou a manter, para usar a expressão de Roberto C. de Oliveira, sua ‘identidade contrastiva’ em relação aos moradores com os quais interagiam e até dividiam o mesmo espaço.16 As contendas nessa época se faziam principalmente pela manutenção do patri-mônio, ao qual tinham direito como grupo: as terras e os rendimentos das aldeias.

Foi principalmente em torno da ação política comum pela manutenção desses direitos que essas identidades, a meu ver, se mantiveram e até se forta-leceram nesse período, contra as pressões que se faziam no sentido de reco-nhecê-los como mestiços. Unificava-os a ideia de pertencer à aldeia e o com-partilhamento de um passado comum que remontava à fundação da aldeia e

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à aliança com os portugueses, bem como a ação política coletiva em busca dos direitos que lhes tinham sido dados.17 Apesar das misturas, afirmavam, como informam os documentos, a identidade indígena que naquele mundo contur-bado lhes garantia a vida comunitária e a terra coletiva. Mantinham o senti-mento de comunhão étnica, desenvolvido na experiência comum do processo de territorialização nas aldeias coloniais, no sentido dado por Pacheco de Oli-veira (1999). Assim, podiam identificar-se ou serem identificados como índios ou como mestiços, conforme circunstâncias e interesses. Mestiços ou índios, os aldeados chegaram ao final do século XVIII e ao XIX agindo com base em uma cultura política que, originária de um processo de mestiçagem, funda-mentava-se na identidade indígena construída nas aldeias coloniais.

Isso pode ser verificado em estudos recentes sobre o Rio de Janeiro, o Espírito Santo e várias províncias do Nordeste. A razão principal que os unia em torno do objetivo de manter as antigas aldeias decorria, a meu ver, do fato de elas ainda constituírem, nesse período, espaço de proteção. Ali, ainda ti-nham garantidos, além da terra e de seus rendimentos, a vida em comunidade. Numa ordem social rigidamente hierárquica e escravocrata, tais direitos de-viam ser muito atraentes. Apesar de transformados, misturados e vivendo em aldeias pobres e decadentes como afirmam muitos relatos, os índios aldeados mantiveram-se como tais durante pelo menos mais um século após as reformas de Pombal. Lutavam (eventualmente com apoio de algumas autoridades civis e eclesiásticas), juridicamente, para manter suas aldeias contra a forte pressão que se fazia no sentido de extingui-las.

Observa-se, então, que controvérsias e contradições sobre classificações étnicas dos índios nas categorias de índios ou misturados (mestiços), já pre-sentes na documentação e em disputas por terras nas aldeias do Rio de Janeiro desde o século XVIII, iriam se tornar muito mais frequentes. Essas controvér-sias envolviam direitos, pois o fato de ser índio permitia manter as terras co-letivas e o patrimônio das aldeias, ao passo que ser mestiço significava perdê--los. Os argumentos dos atores para garantir ou negar direitos aos índios faziam-se, cada vez mais, em torno das classificações étnicas. Para justificar a extinção das aldeias, construía-se o discurso da mistura e do desaparecimento dos índios. Estes últimos, por sua vez, respondiam reivindicando direitos com base na identidade indígena construída no processo da colonização. Para os índios, a igualdade significava o fim de um status jurídico-político específico,

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graças ao qual distinguiam-se dos demais segmentos sociais e que, apesar dos limites, dava-lhes proteção e alguns direitos especiais, sobretudo à terra cole-tiva. Por essa razão, disputas por classificações étnicas podem ser entendidas como disputas políticas e sociais, como destacou Guillaume Boccara (2000).

Na segunda metade do século XIX, a intensa correspondência oficial entre autoridades do governo central, das províncias e dos municípios é reveladora da preocupação do Estado em obter o máximo de informações possíveis sobre os aldeamentos e os índios com o nítido objetivo de dar cumprimento à polí-tica assimilacionista, a ser implementada conforme as situações específicas de cada região. Não é de estranhar, portanto, que o conteúdo desses documentos insistisse tanto na decadência, miserabilidade e diminuição dos índios e suas aldeias.

Em 1850, carta circular aos Presidentes de Província ordenava-lhes o en-vio de informações

sobre os aldeamentos dos índios, declarando as alterações que tenham tido tanto a respeito da população como dos ramos da agricultura, indústria e comércio a que se dedicam com designação das causas que concorrem para a decadência dos mesmos aldeamentos, os meios para as remover, bem como os que parecerem próprios para chamar os selvagens a vida social...18

No mesmo ano, outra circular aos Presidentes de Província tratava do

destino que se deve dar às terras dos índios, visto não os haverem aldeados, e não ter a elas aplicação o Regulamento n. 426 de 24 de junho de 1845, que … deve continuar as providências adotadas para incorporação aos próprios nacionais de todas aquelas terras que não estiverem ocupadas, as quais se devem considerar devolutas… (idem)

O conteúdo desses documentos evidencia o interesse do Estado em obter informações para justificar a extinção das aldeias, de acordo com a lei. Cabe lembrar que o Regulamento de 1845 decretara o direito dos índios à terra nas aldeias, considerando, no entanto, a possibilidade de extingui-las conforme seu estado de decadência, e o regulamento de 1854 estabelecera para os índios o usufruto temporário das terras, até que atingissem o ‘estado de civilização’, quando o governo imperial poderia incluí-los no pleno gozo dos direitos de todos os cidadãos. Isso significava acabar com seus direitos às terras

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coletivas.No Rio de Janeiro, dando cumprimento às ordens do governo central, o

presidente da Província estabeleceu significativa correspondência com as au-toridades municipais, sobretudo juízes de órfãos, para saber se “existem povo-ações de índios, qual o estado de seu aldeamento, nação e patrimônio...”.19 Pediam-se também informações sobre as terras das aldeias e suas medições, bem como sobre os possíveis serviços que os índios porventura prestassem aos moradores e/ou autoridades. Os documentos não deixam dúvidas sobre o in-teresse das autoridades em extinguir as aldeias. Para isso era preciso constatar seu desaparecimento ou estado de decadência, o que se revela em muitos re-latos com referência a antigas aldeias abandonadas muitos anos antes por ín-dios que, de acordo com os informes, viviam dispersos, vagando pelos sertões. Contrariando esses documentos, os índios reivindicavam direitos.

A aldeia de São Lourenço, a primeira estabelecida no Rio de Janeiro, foi extinta em 1866. Desde 1861, a Câmara Municipal de Niterói solicitava à Pre-sidência da Província a incorporação dos terrenos da sesmaria da aldeia, ale-gando serem estes os melhores terrenos do município e que pouco rendiam, sob a administração de pessoas desinteressadas. Alegavam a importância des-ses rendimentos para cobrir despesas da cidade, cujos recursos eram escassos, e que os “indígenas com o andar dos tempos, têm desaparecido, e mesmo os muito poucos que existem, não são puros”.20 Em outubro de 1865 foi dada autorização para que o Presidente da Província extinguisse a aldeia, sob a ale-gação de “que os poucos índios ali existentes com esta denominação se acham nas circunstâncias de entrarem no gozo dos direitos comuns a todos os brasi-leiros...”.21 No ano seguinte, documento, provavelmente da Câmara Municipal negava a pretensão de “intitulados índios, que solicitam a continuação de men-salidades outrora arbitradas” afirmando não ser possível atendê-los “pois o Aviso de 31 de outubro havia extinguido o mencionado aldeamento”, tendo feito desaparecer a “entidade Índios e proveu ao bem estar dos que com essa denominação ainda ali existiam”.22

O Aviso declarou, portanto, o desaparecimento não só da aldeia, mas também dos índios, que apesar de terem sua presença ali reconhecida, ao rei-vindicarem direitos um ano depois, eram declarados inexistentes pelas auto-ridades locais. Outros exemplos poderiam ser citados confirmando que o dis-curso das autoridades construía-se conforme seus interesses em ter acesso às

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terras das aldeias, porém respeitando as exigências da legislação. Assim, aos índios nas aldeias ou em terrenos das aldeias as autoridades informantes acres-centavam advérbios e adjetivos como ‘poucos’, ‘diminutos’, ‘misturados’ ou ‘civilizados’ e os tornavam inexistentes, justificando a extinção das aldeias.

Processo semelhante foi observado por Edson Silva em várias províncias do Nordeste. A rica documentação analisada pelo autor apresenta as mesmas contradições entre as afirmativas de que os índios estariam confundidos com a massa da população e desaparecidos e os documentos dos próprios índios que continuavam reivindicando direitos. Enquanto os relatos da Presidência da Província afirmavam, na década de 1850, a inexistência de aldeamentos indígenas no Ceará, documentação posterior registrava solicitações dos índios por seus direitos. A petição dos índios da aldeia de São Miguel do Una (em Barreiros, Pernambuco) é ilustrativa a esse respeito. Pediam providências por se sentirem perseguidos, pois, segundo eles, depois de terem “recebido suas terras por doação confirmada em Carta Régia de 1698, como recompensa pela participação ao lado das tropas legais nos combates ao Quilombo dos Palma-res...”, elas haviam sido invadidas por outros conquistadores que “circulando a aldeia por todos os lados, cada hum tratou de edificar engenhos, dizendo-se que na Aldeia não existiam mais índios da raça primitiva” (Silva, 1996, p.23). Muitos outros exemplos semelhantes foram apontados pelo autor.

No Espírito Santo, segundo Vânia Losada Moreira, conflitos por terras entre índios de antigas aldeias e câmaras municipais também envolviam dis-cussões sobre classificações étnicas. Os índios da vila de Nova Almeida (antiga aldeia dos Reis Magos), espoliados e enfrentando contínuas usurpações terri-toriais por parte de moradores e câmaras municipais, conseguiram por lei o direito de registrar suas terras e livrar-se da tutela, mantendo a identidade indígena (Moreira, 2002).

Considerações finais

O processo de extinção das antigas aldeias coloniais envolveu, em várias regiões, o apagamento das identidades indígenas por diferentes autoridades e moradores. Esse apagamento era contrariado pela ação política dos próprios índios que, com requerimentos e petições, desafiavam esses discursos afirman-do a identidade indígena e seus antigos direitos obtidos pelos acordos com a

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 236

Coroa Portuguesa. As disputas e controvérsias sobre classificações étnicas, já presentes na documentação desde o século XVIII, tornaram-se muito mais acentuadas no decorrer do XIX, na medida em que eram cada vez mais acio-nadas pelos grupos em disputa para fazer valer seus interesses. As aldeias aca-bariam extintas, porém, após processos longos, repletos de avanços e recuos. Nesses processos, os índios tiveram participação importante, contribuindo, me parece, para retardá-los.

Do século XIX aos nossos dias, inúmeros povos indígenas deixaram de existir como etnias diferenciadas. Porém, muitos deles estão ressurgindo hoje mediante processos de etnogênese pelos quais reafirmam suas identidades in-dígenas e reivindicam direitos, sobretudo à terra coletiva, como se observa no Nordeste e no Espírito Santo. Outros, contudo, desapareceram, como foi o caso dos aldeados do Rio de Janeiro. É instigante, no entanto, vê-los também reaparecer, de certa forma, não só nas histórias que vêm sendo reconstruídas, como também nas memórias de seus descendentes. A aldeia de São Lourenço foi, como visto, extinta em 1866. Contudo, no bairro do mesmo nome, em Niterói, José Luiz de Arariboia Cardoso e Gilda Rodrigues, em 1930 e 2003, respectivamente, assumiram sua descendência dos índios da aldeia e do pró-prio Arariboia, seu primeiro capitão-mor.23 A história oral ainda pode ter mui-to a revelar sobre a memória dos antigos aldeamentos.

Os processos de etnogênese dos nossos dias, somados a essas e outras histórias sobre muitos índios desaparecidos, apontam para a importância de se repensar a presença e a atuação indígena na história do século XIX. No caminho inverso da historiografia do Oitocentos, historiadores, antropólogos e os próprios índios estão, hoje, ainda que lentamente, conduzindo os índios da invisibilidade ao protagonismo histórico. Com isso, contribuem para com-preensões mais amplas e complexas sobre as histórias regionais e sobre a pró-pria história do Brasil.

NOTAS

1 O conteúdo deste artigo encontra-se, em parte, publicado em textos anteriores, sobretudo em: ALMEIDA, M. Regina Celestino de. Etnicidade e Nacionalismo no Século XIX. In: _______. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p.135-167.

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2 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Política indigenista no século XIX. In: _______. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992a. p.133-154.3 Sobre essas questões, ver, entre outros: THOMPSON, E. P. Miséria da teoria. Rio de Ja-neiro: Zahar, 1981. 231p.; MINTZ, Sidney. Cultura: uma visão antropológica. Tempo, Ni-terói (RJ): Eduff, v.14, n.28, p.223-237, 2010; BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, T. (Ed.). O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. p.25-67; HILL, Jonathan. (Org.). History, power and identity: ethnogenesis in the Americas, 1492-1992. Iowa City: University of Iowa Press, 1996. 277p.; BOCCARA, Guillaume. Mundos nuevos en las fronteras del Nuevo Mundo: relectura de los procesos coloniales de etnogénesis, etnificacón y mestizaje en tiempos de globalización. Mundo Nuevo Nuevos Mundos, Revista Eletrônica, Paris, 2000. Disponível em: www.ehess.fr/cerma.Revuedebates.htm.4 PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelabo-ração cultural no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999. 350p.; PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org.). A presença indígena no Nordeste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011. 714p.5 Ao garantir aos índios, pela primeira vez, o direito à diferença, assegurando-lhes educa-ção, saúde e, sobretudo, terra coletiva, a Constituição de 1988 sancionou uma situação de fato, pois os próprios índios afirmavam suas identidades distintas e reivindicavam direitos. Ao mesmo tempo, incentivou a proliferação de movimentos de etnogênese, através dos quais vários povos considerados misturados passaram a afirmar suas identidades indíge-nas, sobretudo na região Nordeste. Sobre isso ver: OLIVEIRA, 1999; MONTEIRO, John M. O desafio da História Indígena no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís D. Benzi (Org.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1° e 2° graus. Brasília: MEC/Mari/Unesco, p.221-228, 1995; MONTEIRO, John M. Tupis, tapuias e historiadores: estudos de História Indígena e do Indigenismo. Tese (Livre Docência) – IFCH, Unicamp. Campinas (SP), 2001; BOCCARA, 2000.6 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1992a; CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Legisla-ção indigenista no século XIX: uma Compilação (1808-1889). São Paulo: Edusp, 1992b. 363p.; SAMPAIO, Patrícia. Política Indigenista no Brasil Imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v.1, p.177-206; SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012. 291p.; PACHECO DE OLIVEIRA, João (Org.) A fabricação social da mistura. In: _______., 2011, p.295-510; SILVA, Edson. ‘Confundidos com a massa da População’: o es-bulho das terras indígenas no Nordeste no século XIX. Revista do Arquivo Público de Per-nambuco, Recife, n.46, v.42, p.17-29, 1996; ALMEIDA, M. Regina Celestino de. Política indigenista e etnicidade: estratégias indígenas no processo de extinção das aldeias do Rio de Janeiro – século XIX. Anuario del IEHS, Tandil: Instituto de Estudios Históricos-Sociales, p.219-233, 2007; MOREIRA, Vânia Losada. Nem selvagens nem cidadãos: os índios da Vila de Nova Almeida e a usurpação de suas terras durante o século XIX. Dimensões, Vitória:

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1850). Petrópolis (RJ): Vozes, 1988. 348p.; QUIJADA, Mónica. El paradigma de la homo-geneidad. In: QUIJADA, Mónica; BERNAND, Carmen; SCHNEIDER, Arnd. Homogenei-dad y nación con un estudio de caso: Argentina, Siglos XIX y XX. Madrid: CSIC, 2000. p.7-57; GUIMARÃES, 1988.13 QUIJADA, Mónica, 2000; MALLON, Florencia. Peasant and nation: the making of postcolonial México and Peru. California: University of California Press, 1995.14 Sobre teorias raciais e discriminatórias, ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 287p.; sobre as propostas de Varnhagen e Bonifácio, ver: TURIM, 2006; GUIMARÃES, 1998; BOEHRER, G. C. A. (Ed.). Apontamento para a civilização dos índios bárbaros do Reino do Brasil por José Bonifácio de Andrada e Silva. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1966. 93p.; DOLHNIKOFF, Miriam (Org.). José Bonifácio de Andrada e Silva: Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 371p.; CARNEIRO DA CUNHA, 1992a.15 Decreto n° 426, de 24 jul. 1845. Regulamento acerca das Missões de catechese e civiliza-ção dos Índios. Apud BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões: política indige-nista no Brasil. São Paulo: Loyola, 1983. p.169.16 COHEN, Abner. Organizações invisíveis: alguns estudos de caso. In: _______. O homem bidimensional: a antropologia do poder e o simbolismo em sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p.115-147; OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade étnica, iden-tificação e manipulação. In: _______. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pionei-ra, 1976. p.131.17 ALMEIDA, 2003; WEBER, M. Relações comunitárias étnicas. In: _______. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 1994. p.267-277.18 Circular aos Presidentes de Província. Ms. AN. Série Agricultura, JA7-4, fl.38.19 Ms. AN APERJ.PP col.115, dossiê 312, Pasta 1, n.3.20 Ms. APERJ P.P. Col.32,dossiê 118. Pasta 1.21 Ms. AN Série Agricultura, IA7 –1, fl 70v.22 Ms. AN série Agricultura, IA7-1, fl.78v.23 OLIVEIRA, Maria Rosalina. Relação de Documentos sobre a Igreja de São Lourenço dos Índios, 2000, inédito; Depoimento de Maria do Carmo Pinto Rodrigues e Gilda Pinto Ro-drigues a Yohana Freitas, Marília dos Santos e Tarso Vicente, dez. 2003. Pesquisa realizada como exercício didático do curso de História Oral. MATOS, Hebe. Projeto: Cidade de Memórias – São Lourenço dos Índios e a cidade de Niterói. Niterói (RJ), Laboratório de História Oral e Imagem/LABHOI/UFF.

Artigo recebido em 20 de junho de 2012. Aprovado em 1o de setembro de 2012.

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jesuíticas do Marañon no século XVII1

Another reduction: the inter-ethnic dynamics in Limpia Concepción de Jeberos, in the 17th

century Marañon Jesuit Missions

Fernando Torres-Londoño*

ResumoNa trilha de apontar o protagonismo dos povos indígenas nos processos de conquista e colonização, o artigo propõe examinar o caso de uma missão jesuítica na Amazônia do século XVII pelos pos-síveis significados atribuídos a ela pelos Jebero, povo indígena que de fato a constituiu. Assim, a composição pluri-étnica da missão é examinada pela dinâ-mica de relações definidas com base na condição de parente, inimigo ou estran-geiro.Palavras-chave: indígenas; Missões; Mayna; Amazônia.

AbstractIn the path of pointing out the protago-nism of indigenous peoples in the pro-cesses of conquest and colonization, this article proposes to examine the case of a Jesuit Mission in the 17th century Ama-zon through the possible meanings as-signed to it by the Jebero people who, in effect, built it. Thus, the multi-ethnic composition of the Mission is examined through the relationships dynamics based on one’s role as relative, enemy or foreigner.Keywords: Indians; Jesuit missions; Maynas; Amazon.

As missões: redução missionária dos índios ou construção múltipla de um novo espaço de relações interétnicas

A visão que se consagrou desde a conquista da América pelos espanhóis foi a de que estes teriam triunfado em razão de diversos tipos de superioridade, como também pelo fato de terem tido a habilidade de tirar vantagem das lutas e divisões internas dos estados e cacicados indígenas. Em paralelo à conquista,

* Departamento de História, Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Ministro Godói, 969, 4o andar, Perdizes. 05014-001 São Paulo – SP – Brasil. [email protected]

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um grande esforço missionário teria conseguido cristianizar diversas popula-ções indígenas que terminaram aderindo ao cristianismo. Já desde o final do XVI, havia consenso tanto no México como no Peru (ou outras áreas dos Andes) de que as missões deviam ser dirigidas àqueles grupos indígenas que não pertenciam às grandes unidades políticas, como os mexicas e os incas, nem aos expressivos cacicados existentes nas áreas das atuais Guatemala, Colômbia e Venezuela. Foi tal visão que levou as missões a se voltarem para as selvas tropicais ou para as áreas desérticas do norte do México e do sul do Peru. Para esses confins foram enviados os primeiros franciscanos e jesuítas, chegando posteriormente outras ordens religiosas.

As missões ou reduções jesuíticas tiveram um papel fundamental nesse processo de conversão, estando presentes em diversas partes do continente. Desde o século XVII, as reduções jesuíticas têm sido descritas com base na crônica missionária como pequenas cidades no sertão ou na selva, com igrejas bem terminadas, praça central e ruas paralelas com casas alinhadas onde vi-viam em perfeita ordem e harmonia, com as famílias indígenas dirigidas pelas suas próprias autoridades. Sob a direção de um ou dois padres os índios tra-balhavam a terra comunitariamente, distribuindo seus ganhos entre a família, a missão e os mais necessitados, como as viúvas e os órfãos. Havia catequese todo dia, missas aos domingos e festas solenes em homenagem aos santos nos seus dias específicos. Aparentemente, além de uma ou outra bebedeira nada restaria da vida nômade, precária e de vadiagem que os jesuítas descreveram como o estilo de vida dos guaranis ou outros povos quando da sua chegada. Assim, graças à sua virtude e ao dedicado trabalho pedagógico, os jesuítas te-riam transformado aquelas ‘feras em homens’. É esta a visão que se recupera das crônicas religiosas e que chega até os nossos livros didáticos, a de que na redução ou missão jesuítica a civilização teria triunfado sobre a barbárie.2

Nos discursos dominantes do século XVII, e que continuaram vigentes no XVIII, XIX e XX, as reduções já se definiam como modelo do que deveria ser o caminho dos índios nômades, sem nenhuma forma de Estado na traje-tória da barbárie à civilização: a saída da selva, a fixação em um lugar, o esta-belecimento de uma aldeia com normas definidas pelos agentes brancos, a sujeição dos índios a esses agentes e a adoção de práticas de trabalho, educação, saúde e higiene europeus.

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Acreditamos que esse paradigma ‘civilizatório’ apresenta os jesuítas e brancos como agentes de um processo que contrapõe civilizados e selvagens, brancos e índios, processo no qual estes últimos eram entendidos como meros receptores passivos de uma civilização à qual não teriam nada a acrescentar. A pergunta que se coloca é a respeito do modo como os diversos povos indí-genas que interagiram com os missionários entendiam as missões, até que ponto compartilhavam da visão dos brancos. Buscando esboçar uma resposta, o que propomos é uma inversão de olhares e de consideração de expectativas, deslocando a ênfase dos missionários para os índios. Realizando esse deslo-camento, o que se quer é proporcionar elementos para entender as missões religiosas como lugares de redefinição das relações interétnicas sob a perspec-tiva dos índios, entendendo que eles também tiveram papel de protagonistas no processo, ou seja, tirando-os do silêncio e da invisibilidade em que têm sido colocados pelas chamadas ‘fontes jesuíticas’ como as cartas e a crônica missionária.3

Também se trata de trazer maior complexidade ao entendimento da con-quista da América nas suas diversas faces, mostrando que as populações indí-genas através de suas próprias dinâmicas relacionais interagiram como sujeitos perante as diversas presenças da colonização, abrindo um amplo leque de ações além de colaborações ou alianças. Tais atuações e modos de se relacionar le-varam a reações, respostas, adaptações, concessões e negociações por parte dos poderes coloniais, muitas vezes mascaradas por discursos e retóricas que as apresentavam sob outros aspectos.4

Desse ponto de vista que desloca o foco da missão do missionário para os índios, acreditamos que as missões foram uma construção conjunta de índios e missionários, tendo para os índios significados diferentes daquele dos padres – praticamente o único até aqui considerado. Para os índios os significados da missão devem ter sido muito relacionados aos povos, às condições geográficas da região e às situações de cada momento de contato. Esses significados não devem ter coincidido com os dos padres, ao menos durante as primeiras duas gerações. Trabalhamos com a hipótese segundo a qual os índios ‘saíram das selvas’ ou ‘desceram do sertão’ – na formulação em português –, ou se assen-taram junto aos padres, porque era isso que lhes convinha naquele momento, e cada povo ou grupo conferia seus próprios significados às relações que esta-beleciam com os missionários. Os índios também teriam seu próprio

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entendimento do que seria permanecer ali e frequentar aquele lugar nomeado pelos padres como missão, com nomes como Santo Inácio, São Francisco etc.

os jebero e o estabelecimento da redução limpia concepción de jeberos

Para mostrar como se teria realizado essa ‘construção conjunta da missão’ serão apresentadas aqui as chamadas missões de Maynas ou do Marañon, nos afluentes do Amazonas, estabelecidas pelos padres jesuítas do colégio de Quito entre 1638 e 1767.5 Serão examinadas em particular as relações estabelecidas entre os missionários e os Jebero, um povo de língua Pano do rio Huallaga, afluente do Marañon no atual Peru. Segundo a documentação missionária, os Jebero foram a base para o estabelecimento da redução Limpia Concepción de Jeberos, que foi a cabeça ou centro das Missões de Maynas organizadas pelos jesuítas espanhóis na governação do mesmo nome e que existiram até a expul-são da Companhia de Jesus dos domínios espanhóis, em 1767.

A narrativa dos contatos e relações que os Jebero estabeleceram com os missionários pode ser recuperada em um ‘informe’ ou descrição redigida em 1661 pelo padre jesuíta Francisco de Figueroa, que nesse momento atuava como superior da missão de Maynas.6 O texto deve ter merecido algumas có-pias e circulado entre os jesuítas de Quito, já que é notória a cópia de parágra-fos por outros escritores da Companhia de Jesus.7 O informe sobre a missão teria sido solicitado pelo provincial e se destinaria não só aos historiadores da província como também aos superiores, para as tomadas de decisões. Particu-larmente no sentido de se posicionar em relação às objeções expostas nessa época por vários padres, tanto de Quito como de Lima, de que as missões amazônicas por se ocuparem de índios selvagens podiam resultar inúteis, con-seguindo poucos frutos e expondo os padres ao perigo de serem assassinados pelos indígenas.

Consciente das dúvidas, resistências e objeções, o padre Figueroa orga-niza um informe destinado a defender as missões. Para dar força ao testemu-nho serve-se das cartas de missionários que havia encontrado no arquivo da missão, transcrevendo algumas na íntegra. Começa por contar as origens das missões com os padres Cugia e De la Cueva, e a seguir apresenta a situação de cada redução em termos de celebração dos sacramentos, ensino da doutrina

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Outra redução: a dinâmica interétnica na Limpia Concepción de Jeberos

e práticas cristãs, organização interna com autoridade indígena e meio de subsistência, tanto dos índios como dos missionários. Depois, faz um balanço das dificuldades encontradas, em particular a queda populacional ocasionada tanto por doenças como a varíola e o sarampo como pelas ‘fugas’ dos índios, apontando também aspectos positivos como o reconhecimento da autoridade dos padres pelos índios e o abandono das guerras entre as nações e da antro-pofagia. Finalmente enumera diversas medidas que permitiriam fortalecer a missão, como a imposição do quéchua, a abertura de caminhos para as comu-nicações, o estabelecimento de uma forja para produzir ferramentas e, é claro, o envio de mais padres para se ocuparem da missão de forma permanente.

O padre Figueroa se ocupa extensamente da Limpia Concepción de Jebe-ros. O padre tinha entrado em contato com os Jebero no início da sua atividade missionária, em 1642; entendia a língua, tinha sido seu missionário e partici-pado com eles em diversas jornadas. Figueroa conta como os Jebero entraram em contato com padre De la Cueva, as principais ocorrências dos primeiros anos da missão e seu funcionamento na época. Nessa parte faz uma descrição detalhada do cotidiano da redução, de sua organização interna, do ensino da doutrina, da administração dos sacramentos, da igreja e da relação que os Je-bero mantinham com seu padre missionário. O missionário justifica esse de-talhamento dizendo que por ser ‘exemplo’ essa descrição, aí descreve todas as outras reduções e, assim, não precisa se repetir. Seu conhecimento dos Jebero se faz também presente quando se refere a eles ao tratar, de forma geral, de vários aspectos da vida e dos costumes, como suas crenças, o relacionamento com a morte e suas guerras.

Esse destaque a uma nação indígena foi comum entre os missionários cronistas e estaria relacionado com o convívio, com as boas relações estabele-cidas e com a importância que lhes era atribuída para a manutenção do traba-lho. Utilizamos aqui o texto do padre Figueroa sabendo bem os diversos filtros que nele interferem. O lugar, as circunstâncias da escrita, os destinatários e a retórica jesuítica do informe foram explicitados em artigo alguns anos atrás.8 Neste artigo o texto de Figueroa será utilizado naquilo que indique a perspec-tiva, os interesses e as expectativas dos Jebero em relação a outros grupos ou nações que eles consideravam parentes ou inimigos.9

A condição de parente está vinculada à relação de parentesco entendida a partir da consanguinidade ou da afinidade, seja ela próxima ou distante.10 O

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inimigo se configura numa situação de antagonismo extremo, de hostilidade perene que coloca em risco a vida dos oponentes, pois o inimigo flecha e mata sua vítima, podendo até chegar a comê-la.

Mediante essas duas formulações grande parte dos povos da Amazônia e também de outras regiões se definem em relação a outros grupos ou nações. O entendimento dessas duas expressões e de suas contínuas reelaborações tem sido, pois, fundamental para o convívio dos índios entre si e deles com os brancos. Entre parentes e inimigos se configura uma terceira posição: o estran-geiro – alguém que não se conhece nem como parente nem como inimigo, mas que pode se tornar tanto um como outro. Na dinâmica das relações nas mis-sões de Maynas essa terceira posição deve ter sido ocupada muitas vezes pelos missionários.

Também serão pontuadas no informe referências a situações ou aspectos que mostrem a relação que os Jebero foram desenvolvendo com os espanhóis (padres e soldados) e a forma como estes teriam se inserido na tensão contínua entre parentes e inimigos.

Tratando das origens das missões, Figueroa conta a chegada dos padres no momento em que os espanhóis combatem os índios Mayna na cidade de Borja, no rio Pastaza, quando estes teriam se insurgido contra a exploração sofrida pelos encomenderos. Nessa parte Figueroa segue as cartas do padre De la Cueva: este conta seus primeiros dias em Borja e menciona a chegada de uma manga de jeberos, os quais estariam ajudando os soldados espanhóis na captura e no castigo dos maynas rebelados. Os Jebero e os Mayna eram, pois, inimigos antes da chegada dos espanhóis, e a inimizade teria levado os primei-ros a se aliarem aos espanhóis contra os segundos. A seguir De la Cueva men-ciona que os Jebero eram conhecidos como ‘grandes matadores caribes’, in-fundindo medo nos outros povos do Pastaza (Figueroa, 1986, p.178). Nessa carta e em outras transcritas por Figueroa, Lucas de la Cueva reitera, pois, essa condição dos Jebero de serem inimigos de muitos povos, introduzindo-os des-sa forma na narrativa missionária. As missões de Maynas teriam se aproveitado da rede de relações preexistentes entre os grupos indígenas, dos quais herda-ram não apenas os contatos com os grupos aliados, mas também as inimizades e as dinâmicas de relacionamentos.

No relato os Jebero estão junto aos espanhóis combatendo um inimigo comum. Mas Mariano de la Cueva diz que percebeu os caciques Jebero muito

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Outra redução: a dinâmica interétnica na Limpia Concepción de Jeberos

atribulados por verem como os espanhóis enforcavam os Mayna, cortavam narizes e esquartejavam seus corpos. Os caciques pensavam que, caso se indis-pusessem com os espanhóis, poderiam ter o mesmo destino. Chama atenção o fato de que os ‘matadores’ que ‘cortavam cabeças e comiam fígados’ tenham ficado perturbados por ver como os espanhóis tratavam seus inimigos. Segun-do a descrição do missionário, os temidos Jebero teriam sentido medo ao ver os espanhóis ‘administrar justiça’. Embora a crônica descreva procedimentos de punição que nenhum leitor europeu acharia estranho, o que de fato estava acontecendo em Maynas era o primeiro momento de contato em que duas sintaxes da guerra se confrontavam e se estranhavam. Segundo o relato do missionário, um inimigo maior estaria começando a se configurar para os Jebero. E tal situação é que teria permitido a aproximação entre De la Cueva e os caciques para ‘os consolar’, ganhando sua confiança.

De uma empatia mútua, surgida segundo o missionário pela percepção de sua bondade por parte dos índios, teria nascido um convite dos caciques para que fosse visitar os parentes no Huallaga e ficasse com eles. O padre teria aceitado essa oportunidade de converter aquela nação, apesar das muitas ob-jeções do cabo da sua esquadra: tratava-se de índios conhecidos por serem matadores, nos quais não se podia confiar. Mas o missionário teria persuadido o cabo de esquadra e após algum tempo se armou uma expedição. Os Jebero conduziram aqueles estrangeiros (quase inimigos) por um labirinto de igarapés e florestas até seus parentes.

O que buscavam os Jebero ao se aproximarem do padre? Iriam se ‘afei-çoar’ a ele e o convidar para ir até seus parentes? Por que era importante para eles levar o padre e os soldados que eles ‘temiam’ até seus parentes? Quais dinâmicas culturais os levariam a querer tratar com os ‘cortadores de narizes’? A expectativa de um ganho de ferramentas em forma de presentes é uma ex-plicação constante em todos os relatos de contato. O reconhecimento por parte dos Jebero de que os padres poderiam atuar como protetores ou mediadores perante inimigos visíveis e invisíveis aponta também para um fator importante em um universo de valorização das lideranças religiosas indígenas. Finalmente, o convite a estrangeiros armados e temidos, os quais bem poderiam ser inimi-gos numa dinâmica de inimizades, configurava uma iniciativa que colocava os Jebero na condução de um processo que poderia facilitar o mútuo entendimento.

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Segundo a carta de De la Cueva, a viagem pelos rios desconhecidos foi marcada pela fome, pelo incômodo e principalmente pelos temores dos espa-nhóis, tanto pelo fato de estarem entrando nos domínios de nações inimigas, como por temerem uma traição por parte dos Jebero, mas finalmente chega-ram às aldeias localizadas nas cabeceiras do Huallaga. Lá, com presentes e manifestações de boa vontade, o padre fez acordos com os caciques: ele per-maneceria com os índios caso estes se mudassem para a parte baixa do curso do rio, onde pretendia reunir vários povos e estabelecer uma redução. Houve resistência de caciques e de mohanes (lideranças religiosas indígenas), mas com promessas de mais ferramentas e da presença protetora do padre os primeiros grupos foram aceitando mudar-se caso encontrassem um lugar apropriado, e depois de uns meses foram chegando outros grupos. Os missionários conclu-íram: “sin duda que costó mucho tiempo y trabajo el reducirlos mucho de agasajo y dádivas, hachas, cuchillos, agujas, puyas, anzuelos, y otras osas que estiman” (Figueroa, 1986, p.179).

Como é próprio desses relatos que descrevem a fundação de reduções, o padre quase sempre fala na primeira pessoa e omite a atuação dos indígenas intérpretes, que por conhecerem a língua e a retórica argumentativa de sua nação, teriam de fato realizado a negociação que permitia a fundação. Fariam parte do grupo mediador e tradutor os caciques e indígenas que alguns meses antes já haviam saído das aldeias para atuar como aliados dos espanhóis na luta contra inimigos como os Mayna, e que no caminho tinham evitado cruzar com os Cocama, também seus inimigos. A carta do padre deixa claro que são esses caciques, que já haviam feito algum tipo de aliança com os espanhóis, os que têm a iniciativa tanto de ir procurar os parentes, como de convencê-los a se mudarem para perto do padre. Assim, a saída dos Jebero de suas aldeias, combinada entre os caciques que já haviam saído para guerrear e os que ti-nham ficado, é a continuidade de uma dinâmica de relações que existia desde antes da chegada do missionário e aponta para a mobilidade praticada pelos Jebero sob a tensão do confronto com o inimigo e a negociação da paz. Essa dinâmica seria tão forte que o grupo que havia saído e se aliado aos espanhóis conseguiu convencer os que ficaram, apesar de as lideranças religiosas indíge-nas arguirem que estavam indo embora para serem escravizados pelos espanhóis.

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Essa dinâmica estará presente também no processo de estabelecimento da redução acordado entre os caciques e os espanhóis. Na redução jesuítica os Jebero passarão a conviver com grupos de seus inimigos, os Mayna, os quais eles haviam derrotado e agora estavam sujeitos aos espanhóis, e também com os Paranapura, que aceitaram se estabelecer junto a eles. Ainda havia na redu-ção outros dois inimigos – os Cutinana e os Achipure, e finalmente os Coca-milla, que não eram inimigos. Ou seja, inimigos antigos aceitaram ou foram obrigados a aceitar a proximidade, ajustaram-se a novas hierarquias e prova-velmente subordinações. Assim, desde o início a redução se configura como um lugar pluriétnico permeado de tensões, o que explica o fato de cada nação fazer questão de viver separada em ‘anexos’, como mencionado na correspon-dência dos padres. Para os povos indígenas a redução era, pois, resultado de um delicado equilíbrio de relações interétnicas que poderia se romper a qual-quer momento.

O contingente populacional da redução e a habilidade guerreira de seus componentes levam as autoridades coloniais de Borja e de outras governações a solicitarem a composição de uma expedição para a guerra contra os Jívaro. Tal expedição acabou sendo composta por soldados espanhóis, Jebero, Mayna e Paranapura. Assim os Jebero se integraram desde o início em uma dinâmica de guerra já conhecida, atuando novamente como inimigos – dos inimigos de seus aliados –, preservando desde a chegada à redução sua identidade de ‘ma-tadores’ e se valorizando diante dos espanhóis e dos próprios inimigos, que os viam combatendo ao lado dos estrangeiros.

A crise e a definição de um novo patamar de relações entre os Jebero e os missionários

Segundo Figueroa, que transcreve cartas de De la Cueva transcorridos alguns anos e já quando a redução estava pronta para se configurar realmente como cristã, com a igreja sendo construída e os índios sendo batizados, o diabo semeou a discórdia que resultou em uma rebelião. Junto aos Mayna e Coca-milla, os Jebero se negaram a viver na redução, conspiraram contra o padre e partiram numa fuga em massa. O padre se salvou da morte, mas ficou sem índios remeiros nem canoas, apenas com um neófito e um rapaz de Moyo-bomba que o acompanharam durante um mês, até que finalmente chegou o

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padre Cugia com um tenente e reforços de soldados. Tanto De la Cueva como Figueroa responsabilizam os índios pela rebelião: estes teriam esquecido tudo o que o padre já havia feito para protegê-los dos espanhóis que os exploravam em Borja.

Uma leitura atenta do texto, que poderíamos chamar de indiciária, mostra que passados 4 anos do estabelecimento da redução, os Jebero estavam des-contentes. As novas obrigações – ter de assistir à doutrina e às missas, por exemplo – os incomodavam, assim como o abandono de antigos costumes – ter mais de uma mulher – e a renúncia às suas guerras e violências. Também consideravam excessivo todo o esforço dispensado na construção da igreja e repudiavam os regimes de obrigações e ‘mitas’ com que o missionário estava regulando seu trabalho, o que os impedia de se ausentarem da redução para visitar parentes, fazer guerras ou desenvolverem atividades regulares de pesca. Tudo isso levou os caciques a se indisporem com o padre, o qual insistiu na obediência à nova ordem e deu oportunidade para que uns Mayna entrassem em atrito com os Jebero, e estes terminaram por se configurarem como um inimigo maior: os espanhóis. As expectativas positivas de ter o padre por perto tinham acabado; o que se queria agora era distância (Figueroa, 1986, p.182).

Também ao contrário do que o missionário informava nas suas cartas, as crenças religiosas antigas se mantinham e era com base nelas que se entendiam com os espanhóis. Assim, na dramática carta que De la Cueva deixou na igreja, prevendo que podia ser morto durante a rebelião, carta que foi posteriormente transcrita por Figueroa, o padre insinua que algumas das pessoas que haviam saído da redução (os padres escrevem ‘fugiram’) teriam ido se ocultar dos es-panhóis numa cidade localizada sob uma laguna, além do que o consumo da campana de zupay (planta alucinógena) os faria invisíveis. A carta associa essa crença ao índio Guamce, uma liderança religiosa que nas suas viagens, ao encontrar os espíritos (o diabo, na perspectiva do padre De la Cueva), se teria transformado primeiro em criança e depois em onça. A rejeição aos espanhóis se elaborava, pois, mediante atualizações de mitos e histórias sagradas (Figue-roa, 1986, p.186).

Esta leitura dos relatos da rebelião nos mostra que os Jebero já assentados, vivenciando o que significava a redução para os padres e sem expectativas de que estes mudassem sua decisão de os controlar, resolveram abandonar a re-dução junto aos Mayna, Cocamilla e Paranapura, conferindo ao ato sentidos

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Outra redução: a dinâmica interétnica na Limpia Concepción de Jeberos

religiosos e políticos e estabelecendo um novo patamar de relação com os espanhóis.

Na crônica de Figueroa o desfecho da rebelião foi simples: depois das perseguições dos espanhóis e dos seus castigos exemplares – enforcamento e escravidão –, expostos à fome das selvas, os Jebero terminaram voltando à redução e se submetendo aos espanhóis e aos padres, permanecendo fiéis até a época em que se escrevia o informe. Nesse sentido, segundo Figueroa, teria sido muito útil a intercessão dos padres para salvar aqueles que se apresenta-vam: quase no momento da execução, estes acabaram sendo ‘perdoados’ pelo tenente que, explicitamente, atribuía tal perdão à bondade dos padres ‘de que se perceberam reconhecidos’. O paradigma da missão-civilização que triunfa sobre a barbárie-selva organiza a narrativa e oculta os possíveis sentidos que os Jebero teriam dado a seu retorno, os quais se expressam a contrapelo da narrativa de Figueroa (1986, p.188).

Quais seriam esses sentidos? Teriam sido os Jebero tão ingênuos a ponto de não perceberem a manobra do tenente e do padre, o primeiro castigando e enforcando e o segundo concedendo o perdão, para ser reconhecido como salvador? As possibilidades de resposta estão nos textos a seguir, que transcre-vemos de Figueroa:

Después de estos lances han quedado los jeberos tan asentados y se han doctrina-do y domesticado tan bien, como digo arriba y son los más fieles para los padres y españoles, sirviéndoles con fidelidad en las armadas y descubrimientos que se hacen para pacificar nuevas naciones y reducirlas al santo evangelio y están por particular merced reservados de mita y tributo, dedicados solamente a las cosas de guerra y servicio de los padres en lo tocante a descubrimientos y reducciones. Entran en este privilegio los Cocamas de Huallaga y los Paranapuras. Con que no sólo se ha les ha seguido provecho para sus almas y su salvación, sino para las de otras naciones a que ayudan y concurren con fidelidad y sujeción. Y son como frontera que tiene la ciudad para su resguardo y de los Padres, para que otras gentes no se atrevan a intentar alzamientos y barbaridades por ven que tienen los españoles gente fiel de quien valerse cuando lo intenten. (Figueroa, 1986, p.188)

No relato de Figueroa a volta à missão resultou da derrota dos Jebero. Há um novo começo para a redução, fundamentado na adoção da doutrina e da ‘domesticação’ dos Jebero, o que supõe a incorporação definitiva na missão e o

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abandono das práticas anteriores, das quais há vários exemplos em outras partes do texto. Esse novo começo se expressa na fidelidade dos Jebero para com os espanhóis e os padres. Porém, o texto de Figueroa é claro e revelador no que se refere à dinâmica de relações interétnicas que estava na base da ‘restauração da redução’: os Jebero, Cocamas e Paranapuras rebeldes voltam ‘perdoados’ para defender a missão dos inimigos dos espanhóis. Isto constitui uma nova reali-dade, definida por reconhecimentos e ‘acordos’ dos dois lados.

Como em outros momentos, Figueroa silencia a respeito dos caciques e intérpretes que teriam participado no acerto das relações que passaram a de-finir o novo funcionamento da redução da Limpia Concepción de Jeberos. As-sim, para a análise textual só temos o registro de Figueroa, no qual os Jebero, junto aos Cocamilla e os Paranapuras, voltam como reais aliados que impõem condições. Essas condições passavam por não serem submetidos a obrigações de tributos e de trabalho impostas pelos espanhóis sobre os índios, chamadas de ‘mitas’. Os Jebero retornam para se dedicarem às ‘coisas da guerra’. Eles voltam à redução para serem a ‘armada de missão’, como já escrevemos anos atrás.11 Ou seja, eles voltavam para seguir sendo Jebero, inimigos temidos por todos. Mais ainda, foi a eles que corresponderam os ‘descubrimientos y reduc-ciones’, quer dizer, o crescimento da missão passou a depender das entradas e expedições dos Jebero.

Porém, são outros interesses, diferentes daqueles dos missionários, os que guiam essa expansão. Tendo endossado sua condição de inimigos de muitos e aberto a possibilidade de convívios não violentos no interior da missão, os Jebero se colocam no topo da hierarquia da composição multiétnica da redu-ção, definindo quem é parente, estrangeiro ou inimigo. Assim, não é a simples aliança ou o aproveitamento de oportunidades (como pensávamos em 2007) que teria levado os Jebero de volta à missão, mas a afirmação de sua identidade e a redefinição a seu favor das relações interétnicas. Voltando para a redução, porém na condição de ser ‘seu resguardo’, os Jebero tiveram reconhecido seu ethos guerreiro e asseguraram o respeito dos estrangeiros com os quais se alia-ram, passando a ver reconhecida a sua forma de ser independente, como tam-bém sua identidade construída sob violência.

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a limpia concepción de jeberos: entre parentes, aucas e estrangeiros

Figueroa se refere à Limpia Concepción de Jeberos nestes termos:

hoy lo es de doctrina cristiana y sirve de ejemplar y ayuda para que otros se reduz-can y hagan cristianos, y habiendo vivido tan a su voluntad y fieras costumbres, al presente están con suma sujeción, que aun para sus paseos en tiempo de tortu-gas y frutas, pescas y otras cosas necesarias a su sustento, piden licencia al padre, quien les señala los días que han de tardar, porque no falten mucho de sus casas. También la piden para sus bebidas, que son de ordinario los domingos y no pa-san de la hora en que les tocan las Ave-Marías. (Figueroa, 1986, p.190)

A ‘suma sujeição’ da presença dos Jebero na redução tem aqui duas con-trapartidas surgidas, evidentemente, no âmbito dos acordos que sustentam a Limpia Concepción de Jeberos. A primeira é a garantia da mobilidade, que re-conhece a liberdade de ir e vir para as atividades econômicas e de sobrevivên-cia. Pelo entendimento entre os missionários e os Jebero, as antigas ausências para responder aos ciclos de pesca no verão (vitais para o equilíbrio alimentar da missão) deixam de ser desobediências e fugas como na crise que conduziu à rebelião e passam a ser acordos, que no âmbito público da redução se expres-sam nos protocolos de ‘pedir’ licença ao padre e de fixar os dias que passam fora da missão.

A segunda é a permanência da festa indígena, a ser realizada aos domin-gos, o mesmo dia da missa, mas na parte da tarde. Como aparece em diversos textos, ela mantém seus elementos estruturantes: o consumo de bebida com as desinibições e comportamentos que ela suscita e que vão do ridículo à violência das brigas; a música e os cantos para chamar os espíritos protetores ou evocar as guerras; as danças que umas vezes unem e outras separam os indivíduos, expressando a unidade e a diferença; finalmente, sua função de atualização da memória dos grupos. Mantidas assim através da integração no calendário da missão, as festas indígenas são fundamentais na dinâmica de relações interét-nicas e de convivência entre parentes, estrangeiros e inimigos e passam a ca-racterizar a vida na Limpia Concepción de Jeberos.

Constituindo a redução mediante esses acordos, os Jebero se dedicaram ao que era sua função fundamental nos primeiros anos, e é disso que Figueroa

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dá conta: descobrimento e pacificação de novas nações para reduzi-las ao evan-gelho. Fizeram isso dando continuidade à sua dinâmica de procurar parentes e combater inimigos. A respeito do primeiro aspecto, diz Figueroa dos Jebero:

Mediante estos indios se ha procurado solicitar otras naciones a que acuden con fidelidad. Así lo hicieron con los cutinanas que es uno de sus anexos. Trataron de irles a hablar, dándose por parientes de ellos, en orden a traerlos a esta reducción de jeberos, con licencia que tenían de la justicia y del padre, porque conviene que semejantes acciones no las hagan sin esas licencias y registros.

Servindo-se de “intérpretes, uno o dos que tenían de la misma nación, hallándolos en sus tierras, les propusieron lo que pretendían en orden a la amistad, convidándoles a que se vinieran a vivir a jeberos” (Figueroa, 1986, p.192).

A aproximação com os Cutinana, pelo que diz Figueroa, foi uma decisão dos Jebero, que fizeram-na por se tratar de parentes. Na dinâmica do novo arranjo que se estava formando, importava que os que eram reconhecidos como parentes ficassem mais próximos e não se tornassem inimigos da redução. Ao decidirem atrair os Cutinana para a redução, devem ter influenciado diversas formas de proximidades e situações internas. Os caciques Jebero devem ter informado os espanhóis, dos quais devem ter obtido ferramentas e outros pre-sentes absolutamente necessários para conseguirem a aproximação e a concor-dância em vir para a redução. Papel importante devem ter cumprido os dois intérpretes por pertencerem de alguma forma aos dois universos de parentes. Fizeram tudo isso sem os espanhóis, mas fazendo-os presentes nas ‘dádivas’ e ferramentas. Ou seja, utilizando a forma de aproximação própria da missão, que combinava o novo e a dinâmica tradicional de relações de cada grupo. Utilizando o valor das ferramentas europeias mas ao estilo indígena, com festas protocolares que celebravam a alegria do encontro com os parentes. O resultado de tudo isso deveria ser a incorporação dos parentes à redução, em um ‘anexo’. Figueroa diz que a aproximação foi bem sucedida, mas que as fomes e as epi-demias diminuíram o anexo dos Cutinana (Figueroa, 1986, p.193).

Se na aproximação com parentes os Jebero foram decisivos e ela se deu rápido, o contato com o inimigo nos marcos da redução exigiu dos indígenas uma mudança de seu entendimento na relação com o inimigo, mudança que

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foi lenta. Os Jebero, como muitos povos amazônicos de ethos guerreiro, enten-diam que perante o inimigo não eram muitas as opções: o ataque mortal, a proteção da distância e da desconfiança e a permanência imperativa da vin-gança. Já para os jesuítas todas as nações, por ‘bárbaras’ que fossem, deveriam ser trazidas para a fé católica, quer pelo convencimento, quer pela força. Nas missões do Marañon, as nações ou povos que resistiam e reagiam com violên-cia, representando perigo para as reduções, eram nomeadas com a palavra quéchua auca que, na tradução em espanhol, é inimigo. Assim, os que ficavam fora da missão, negando-se a reduzir e aldear e ameaçando a redução, eram aucas. Mas, se com diversas estratégias ou situações esses aucas eram reduzidos e introduzidos na redução, eles poderiam tornar-se, para os missionários, ‘ín-dios amigos’ (formulação comum nas crônicas) e parte da missão. Para os Jebero e outros povos guerreiros que depois vieram para as missões como os Cocama, isso significou mudar o entendimento de que o destino do inimigo era a morte, passando a ser a sujeição, captura, controle e assimilação na pro-ximidade e na vida coletiva da missão.

Substituir a morte pela sujeição implicou também a invenção de uma estratégia perante o inimigo, a qual admitia vários estágios e momentos, cada um com fins próprios. Assim se podia fazer guerra (aplicada como castigo pelos espanhóis e praticada como vingança pelos índios); recorrer à intimida-ção pelo medo dos matadores indígenas que devoravam seus inimigos e ao terror dos espanhóis que enforcavam e cortavam narizes; organizar assaltos--surpresa às aldeias inimigas (normalmente à noite, seguindo as táticas de guerrilha indígena) destinados a capturar crianças e adolescentes que, cristia-nizados, se tornariam intérpretes e mediadores num futuro próximo, em ‘apro-ximações de boa vontade’; e realizar esses contatos pacíficos alimentados a ferramentas e presentes em momentos de fragilidade numérica ou anímica do inimigo, depois de sucessivas derrotas ou epidemias.

Concluindo

Os Jebero participaram em todos esses momentos de ‘descobrimentos’ e ampliações da missão, dentro de coletivos interétnicos maiores, ocupando po-sições decisivas como guias, ‘guerreiros de assalto’ e comandos de contato, dando vazão a seu ethos guerreiro e mantendo sua identidade de ‘antigos

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matadores’. Sua participação deve ter sido menor quando se faziam necessárias negociações e acordos, ficando estes a cargo de parentes dos inimigos que já viviam na missão, os quais, por sua vez, os Jebero tinham ajudado a capturar em expedições e operações anteriores.

Incorporando os aucas à missão (onde já conviviam parentes próximos e distantes, antigos e recém-chegados), os Jebero devem ter comandado um se-guro e lento processo de inclusão de estrangeiros mediante o estabelecimento ‘próximo’ de reduções e anexos em condições de relações assimétricas e de diversos graus de inferioridade. Lentamente os antigos aucas, agora subordi-nados às etnias principais das missões, deixavam de ser inimigos para se tor-narem ‘índios amigos’ e, finalmente, com casamentos interétnicos, podiam chegar a ser parentes. Isso se realizou mediante múltiplos processos de assimi-lação tanto de origem indígena como jesuítica, ou elaborados na própria dinâ-mica interétnica da redução pautada pelos Jebero.

NOTAS

1 A pesquisa que originou este texto faz parte do Projeto de Produtividade em Pesquisa/CNPq “Jesuitas y pueblos indígenas en la Amazonia española y portuguesa (1680-1750): representaciones y conflictos”. Essa pesquisa se realiza dentro do grupo Povos Indígenas e História nas Américas, na PUCSP.2 Essa visão pode ser encontrada em obras de autores de referência no estudo das missões jesuíticas, como a de REY F., Jose del S. J. (Org.). Misiones jesuíticas en la orinoquia. San Cristobal: Universidad Católica del Tachira, 1992.3 De forma pioneira essa outra perspectiva da missão jesuítica foi proposta por MELIA, Bartolomeu. El Guaraní conquistado y reducido: ensayos de Etnohistoria. 4.ed. Asunción: Centro de Estudios Antropológicos Universidad Católica, 1997. p.178.4 Para esse tipo de abordagem das missões ver WILDE, Guillermo. Religión y poder em las missiones de guaranis. Buenos Aires: Ed. SB, 2009.5 Para uma visão geral das missões de Maynas, ver: NEGRO, Sandra. Maynas, una misión entre la ilusión y el desencanto. In: MARZAL, Manuel; NEGRO, Sandra. Un reino en la frontera. Lima/Quito: PUCP, Ed. Abya-Yala, 1999. p.270. Para uma abordagem etnológica do início da missão de Maynas ver TAYLOR, Anne Christine. História Pós-colombiana da Alta Amazônia. In: Manuela CARNEIRO DA CUNHA, Manuela (Org.). História dos ín-dios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p.218-219.6 FIGUEROA, Francisco. Informe de las misiones de el Marañon, Gran Pará o río de las

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Amazonas. Monumenta Amazónica. Informes de jesuítas en el Amazonas, 1660-1684. Iqui-tos: Ceta, 1986.7 É o que acontece com a obra de MARONI, Pablo. Noticias auténticas del famoso río Ma-rañón. Monumenta Amazónica B. Iquitos: Ceta, 1988.8 LONDOÑO, Fernando Torres. La búsqueda de la mayor gloria de Dios, en la dinámica argumentativa misionera jesuítica: el Informe de las Misiones del Marañón del padre Francisco de Figueroa de 1661. Revista Theológica Xaveriana, n.162, 2007.9 Sobre a compreensão, elaboração e relacionamento da condição de inimigo entre as so-ciedades indígenas, tem sido muito instigante para nossa pesquisa VILAÇA, Aparecida. Quem somos nós? Os ‘Wari’ encontram os brancos. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006. p.142ss. Ver também: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Imanência do inimigo. In: _______. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002. p.270.10 Sobre parentes, aliados e afins entre grupos amazônicos ver a discussão levantada por CABALZAR, Aloisio. Filhos da cobre da pedra: organização social e trajetória tukuya no rio Tiquié (noroeste amazônico). São Paulo: Ed. Unesp; Isa; Rio de Janeiro: Nuti, 2009. p.104ss.11 LONDOÑO, Fernando Torres. Contato, guerra e negociação: redução e cristianização de Maynas e Jeberos pelos jesuítas na Amazônia do século XVII. História Unisinos, São Leopoldo (RS), v.4, 2007.

Artigo recebido em 20 de junho de 2012. Aprovado em 1o de setembro de 2012.

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Categorias de entendimento do passado entre os Kadiwéu: narrativas, memórias

e ensino de história indígenaThe categories of understanding the past among Kadiwéu:

narratives, memories and indigenous history teaching

Giovani José da Silva*

ResumoA existência da Lei 11.645/2008, que prevê a inserção do ensino de história e culturas indígenas na Educação Básica, por si só pode não ser a solução para acabar com a invisibilidade das popula-ções indígenas dentro e fora das escolas brasileiras, mas representa um passo importante em direção ao reconheci-mento de uma sociedade historicamen-te formada por diversas culturas e et-nias. O artigo discute, com base nas categorias de entendimento do passado entre índios Kadiwéu de Mato Grosso do Sul, a articulação entre o ensino de história e culturas indígenas e a elabora-ção de memórias e narrativas. Ao se co-nhecer como determinado grupo indí-gena reconstrói o próprio passado e que categorias são utilizadas para narrar/re-memorar tempos pretéritos, percebem--se outras formas de apreensão, com-preensão e representação da história, o que enriquece sobremaneira o ensino da disciplina.Palavras-chave: Ensino de História; ín-dios Kadiwéu; passado.

AbstractThe existence of the 11645/2008 Law, which made mandatory the insertion of indigenous history and cultures teaching in the Basic Education, cannot itself be the solution to end the invisi-bility of indigenous peoples inside and outside of Brazilian schools, although it represents an important step towards recognition of a society historically formed by various cultures and ethnici-ties. This article discusses, based on the categories of understanding the past among Kadiwéu Indians from Mato Grosso do Sul, the relationship be-tween the teaching of indigenous his-tory and cultures and the development of memories and narratives. Being aware of how each indigenous group rebuilds its own past and which catego-ries are used to narrate/recall past times, other forms of apprehension, understanding and representation of history are realized, which greatly en-riches the teaching of this subject.Keywords: History teaching; Kadiwéu Indians; past.

*Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campus de Nova Andradina. Caixa Postal 128. 79750-000 Nova Andradina – MS – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 59-79 - 2012

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Giovani José da Silva

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Ainda hoje, quando são lidos alguns livros didáticos de História tem-se a impressão de que as populações indígenas pertencem exclusivamente ao pas-sado do Brasil. Os verbos relacionados aos índios invariavelmente estão no pretérito: ‘caçavam’, ‘pescavam’, ‘dormiam em redes’ etc., e a eles são dedicadas apenas algumas poucas páginas, geralmente na chamada ‘pré-história’ e/ou no ‘cenário do descobrimento’. A partir da chegada dos portugueses ao continente americano, os indígenas desaparecem e os alunos não fazem a mínima ideia do que teria ocorrido nos séculos seguintes aos diferentes grupos (bem como aos seus descendentes) que habitavam as terras que viriam a se tornar o terri-tório brasileiro. Nesse sentido, a existência da Lei 11.645/2008, que prevê a inserção do ensino de história e culturas indígenas na Educação Básica, por si só pode não ser a solução para acabar com a invisibilidade das populações indígenas dentro e fora das escolas, mas representa um passo enorme em di-reção ao reconhecimento de uma sociedade historicamente formada por diversas culturas e etnias, dentre elas as indígenas.

Afinal, o Brasil é um país de rica diversidade pluricultural e multiétnica, embora muitos ainda tenham dificuldade em reconhecer tal situação, quando não a desconhecem quase que completamente ou a escamoteiam de propósito. A sociedade brasileira tem, em sua composição demográfica, diferentes matri-zes étnicas e uma riqueza etnocultural que constituem um patrimônio a ser preservado e respeitado. Sobre a origem dos indígenas, há dúvidas que aos poucos vão sendo esclarecidas, especialmente pela Arqueologia, a Antropolo-gia Física e a História Indígena. A respeito das sociedades nativas da atuali-dade, sabe-se que pertencem a diferentes famílias e troncos linguísticos e for-mam um contingente populacional de menos de 1 milhão de indivíduos autodeclarados, de acordo com o último censo realizado no país pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010.1

Hoje, mais de 180 línguas indígenas são faladas por aproximadamente 240 sociedades diferentes2 que vivem nos mais distintos pontos do país. Seus territórios, em conjunto, recobrem uma área de pouco mais de 13% do Brasil. Toda essa sociodiversidade traduz-se em rituais, cosmologias, tradições, ma-nifestações artísticas e culturais peculiares a cada grupo. A maioria dessas so-ciedades indígenas concentra-se na Amazônia, embora existam numerosas populações no Centro-Sul e no Nordeste. Entretanto, pouco ainda se conhece

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Categorias de entendimento do passado entre os Kadiwéu

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sobre tais diferenças, e o senso comum – como muitos materiais didáticos, aliás – insiste em atribuir a essas populações a genérica e colonial categoria de ‘ín-dios’, como se fossem todos iguais: ‘habitantes de ocas’, ‘adoradores de Tupã’, ‘antropófagos’ etc.

Aos poucos, o Ensino Superior brasileiro está incorporando mudanças que buscam promover um melhor conhecimento a respeito da realidade indí-gena no país, seja no passado ou no presente. Todos os cursos de licenciatura – ou seja, de formação de professores – deveriam atentar para o fato de que a Lei 11.645/2008 não delega apenas aos professores de História a tarefa de en-sinar sobre história e culturas indígenas. O que se vê, contudo, é outra reali-dade: os cursos de História, de Norte a Sul do Brasil, têm procurado suprir a necessidade de oferecer disciplinas, tais como História da África ou História Indígena. Tais iniciativas esbarram na ausência de profissionais qualificados para atender a demanda criada pela lei, e muitos acabam por improvisar, pres-tando um desserviço à educação de crianças, adolescentes e jovens.

Assim, as dificuldades de professores e demais profissionais da Educação Básica consistem, particularmente, em responder à questão de como caracte-rizar com clareza e correção as sociedades indígenas em seus aspectos comuns, ressaltando, entretanto, a singularidade de cada uma delas, sem reforçar este-reótipos e preconceitos. Nesse caso, afirmam especialistas, é fundamental in-dicar a diversidade significativa que há entre as sociedades indígenas localiza-das no Brasil (e em outros lugares das Américas e do mundo), em termos de adaptação ecológica a diferentes ambientes e, também, em termos sociais, políticos, econômicos, culturais e linguísticos.3

O objetivo principal deste artigo é, pois, contribuir para a reflexão sobre os desafios e as possibilidades da História Indígena na Educação Básica, esti-mulando professores e estudantes a pensar sobre as sociedades indígenas que vivem ou viveram no Brasil e o que se escreve a respeito delas. Com base em experiências vivenciadas no estado de Mato Grosso do Sul, entre os índios Kadiwéu, e em suas categorias de entendimento do passado, revela-se possível e necessário abordar nas escolas não indígenas a história dos índios, retirando--os do esquecimento ou do ‘passado perpétuo’ a que ficaram relegados por tanto tempo.

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A literatura científica recente sobre questões indígenas

Como prova dos esforços empreendidos por antropólogos e outros pes-quisadores brasileiros para divulgar, a um público cada vez maior, informações mais corretas e atualizadas a respeito das sociedades indígenas, na década de 1990 foram lançadas inúmeras obras de cunho didático sobre tais questões no Brasil. Destacam-se, nesse panorama, Índios no Brasil4 e A temática indígena na escola.5 Esses importantes trabalhos vieram se somar ao pioneiro livro Ín-dios do Brasil (1993), do antropólogo Julio Cezar Melatti, publicado no início da década de 1970.6 Além dessas obras, destaca-se, também, o trabalho de di-vulgação da antropóloga Joana Aparecida Fernandes Silva (Joana Fernandes), intitulado Índio: esse nosso desconhecido (1993).7

Ainda na década de 1990, no marco das comemorações dos 500 anos da chegada de Cristóvão Colombo às Américas – o chamado V Centenário –, foi lançada a coletânea História dos índios no Brasil (1992),8 organizada pela an-tropóloga Manuela Carneiro da Cunha. A obra contou com a colaboração de antropólogos, linguistas e historiadores, entre outros pesquisadores, e tornou--se uma referência dentro e fora do país.

A respeito do V Centenário, John Manuel Monteiro já observou critica-mente que:

De fato, tanto na sua comemoração quanto no seu repúdio ... colocou em xeque um sem-número de termos já convencionais no léxico do historiador. Para uns, sobretudo os panfletários e os adeptos de uma postura politicamente correta, a solução foi a de banir de vez termos como descobrimento, Novo Mundo e mesmo índios, substituindo-os por neologismos que, frequentemente, incorrem no erro de introduzir novos e maiores equívocos. Outros têm buscado um caminho mais profícuo para suas revisões historiográficas, incorporando perspectivas teóricas de outras disciplinas, tais como a antropologia, a arqueologia e a linguística, en-tre outras, para produzir uma visão crítica e cada vez mais complexa dos proces-sos demográficos, políticos, econômicos, sociais e, sobretudo culturais que resul-taram naquilo que se chama de América Latina.9

No início dos anos 2000 divulgou-se uma série intitulada “Antropologia e Educação”, na qual foram publicados os seguintes títulos: Antropologia, His-tória e Educação, Práticas pedagógicas na escola indígena, Ideias matemáticas

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de povos culturalmente distintos e Crianças indígenas.10 Mais recentemente, Maria Regina Celestino de Almeida lançou Os índios na história do Brasil,11 em que traça um panorama da presença indígena na história da antiga colônia portuguesa, hoje Brasil, entre os séculos XVI e XIX. Em 2011, os arqueólogos Pedro Paulo Funari e Ana Piñon publicaram A temática indígena na escola.12

Há, também, na internet um site mantido pela organização não governa-mental ISA (Instituto Socioambiental) em que se pode encontrar a Enciclopé-dia dos Povos Indígenas Brasileiros, com informações atualizadas e escritas por especialistas.13 Tudo isso mostra que há um esforço empreendido para se reu-nir e oferecer conhecimentos a respeito da presença indígena no passado e no presente do país. Contudo, em que pese à boa qualidade de todas as publica-ções citadas, pode-se dizer que tais questões ainda se encontram distantes das escolas, em todos os quadrantes no Brasil, inclusive em Mato Grosso do Sul, um Estado considerado eminentemente ‘indígena’, onde vivem atualmente os Kadiwéu.

Nas palavras de Funari e Piñon:

A escola, ao longo da história do Brasil, tem cristalizado determinadas imagens sobre os índios que ‘fazem a cabeça’ dos cidadãos presentes e futuros. Com isso, muitas vezes, acabam favorecendo a exclusão ou, pelo menos, o esmaecimento da presença indígena na sociedade e na cultura brasileiras ... Entretanto, se hou-ver vontade política para tanto, é inegável o papel que a escola pode ter no senti-do de atuar para uma maior compreensão do quanto o Brasil deve aos índios e como se enriquece, em termos culturais, com essa experiência. (2011, p.8)

Desde a infância, jovens brasileiros infelizmente ainda convivem com as estereotipadas imagens do ‘índio genérico’ (expressão cunhada por Darcy Ri-beiro) e alimentam inúmeras fantasias sobre o que consideram espécies de ‘fósseis humanos’. Apesar de muitos dos livros didáticos, adotados atualmente no Ensino Fundamental e no Ensino Médio, insistirem em retratar as popula-ções indígenas no Brasil como pertencentes, exclusivamente, ao passado, é mais do que saudável referir-se a essas sociedades no contexto do Brasil con-temporâneo – é necessário. Isso porque, se inúmeros grupos indígenas desa-pareceram no país ao longo de mais de 500 anos – desde a chegada dos portu-gueses e espanhóis a terras americanas –, é verdade também que muitos

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sobreviveram, lutando por direitos históricos e por uma maior visibilidade, a fim de que esses direitos sejam garantidos e respeitados.

Desafios e perspectivas da história indígena no Brasil

Recentemente, em março de 2008, foi sancionada pela presidência da Re-pública a Lei 11.465/2008 que tornou obrigatória a inclusão de aulas de história e cultura das populações indígenas para alunos dos Ensinos Fundamental e Médio de escolas públicas e particulares do país. A medida vem sendo implan-tada de forma gradual nas escolas, sem que haja a necessidade de mudanças radicais nas matrizes curriculares, uma vez que não se criou uma nova disci-plina. A história e a cultura das populações indígenas, assim como das afro--brasileiras e africanas (garantidas anteriormente pela Lei 10.639/2003), tor-nou-se um tema transversal aos já abordados em disciplinas tais como História, Geografia, Artes e Literatura. Espera-se que com essa medida – além de outras – reverta-se, paulatinamente, um quadro sombrio de desconhecimento a res-peito da presença de sociedades que há muito tempo vivem no território bra-sileiro e que sobreviveram física e culturalmente ao longo do tempo, lutando até mesmo contra o próprio extermínio.

Em 1970, Darcy Ribeiro publicou em Os índios e a civilização14 um levan-tamento sobre a situação do conjunto da população indígena no país na pri-meira metade do século XX. Apesar dos erros já verificados por inúmeros pesquisadores na lista de grupos considerados ‘extintos’ por Ribeiro (tais como os Guató, Kinikinau e Ofayé, que vivem atualmente em Mato Grosso do Sul, por exemplo), o estudo consistiu em um instigante ‘roteiro exploratório’, como preferiu designar o próprio autor. Em seu texto, o antropólogo chamou a aten-ção para a situação das populações indígenas no Brasil em dois momentos históricos: em 1900 e em 1957.

Os resultados, bastante desanimadores na época, apontavam para o ace-lerado e contínuo desaparecimento das sociedades indígenas, ideia que já vinha sendo disseminada desde o século retrasado, pois, como afirma John M. Mon-teiro, “Sobretudo a partir do século XIX, a perspectiva que passava a predomi-nar prognosticava, mais cedo ou mais tarde, o desaparecimento total dos povos indígenas”.15 A ideia de extinção dos indígenas ainda persiste com força nas escolas brasileiras apesar de os prognósticos fatais, felizmente, não terem se

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confirmado. Ao contrário do que previu Ribeiro, as sociedades indígenas não desapareceram, pois muitas delas consideradas ‘extintas’ reapareceram no ce-nário étnico do país, nos últimos anos.

Outro equívoco também bastante presente é a chamada ‘aculturação’, uma sedutora ideia de que no contato com a população não indígena os índios foram ‘perdendo’ ao longo do tempo sua cultura, tornando-se ‘menos índios’, portanto. As teorias da aculturação previam o gradual desaparecimento dos grupos étnicos, que seriam incorporados, em menor ou maior grau, ao grupo majoritário não índio. Egon Schaden,16 por exemplo, referiu-se a processos de mudança decorrentes dos contatos entre grupos culturalmente diversos, nos quais a aculturação seria o conjunto de transformações das sociedades indíge-nas em contato com populações não indígenas. De acordo com Fernandes (1993, p.17-18), entretanto, “A teoria da aculturação, muito difundida entre nós, vem sendo questionada pela antropologia desde a década de [19]70”.

À luz da ideia de aculturação desconsidera-se, portanto, o longo período de contato a que foram submetidas diversas sociedades indígenas de todo o país, desde os tempos da colonização ibérica. A intenção é clara: ao se desqua-lificar os indígenas como ‘bugres’, ‘aculturados’ ou mesmo ‘não reconhecidos’, permite-se que essas sociedades sejam usurpadas em seus direitos históricos. Essas informações ainda são repassadas nos bancos escolares, da Educação Básica ao Ensino Superior, e muitas vezes recebem a chancela de pesquisadores que as reproduzem em obras que versam sobre a temática. Desconhecem-se, assim, línguas e culturas, bem como as trajetórias espaciais e temporais vividas por essas sociedades.

A atitude de se qualificar muitas das populações indígenas do presente como ‘aculturadas’, ou seja, como se houvesse populações ‘mais indígenas’ e outras ‘menos indígenas’, remete a uma espécie de escala evolutiva, em que os critérios para a definição de quem é ou não índio passam pela desaparição da língua indígena como língua materna; pelo uso de roupas, calçados e outros elementos exteriores à cultura material tradicional dessas populações; ou, ain-da, pelo uso de recursos tecnológicos modernos, tais como telefones celulares e computadores. Isso sem contar os traços biológicos, que para muitas pessoas são utilizados como critério definidor de quem é indígena ou não no Brasil, até os dias de hoje. Deseja-se, assim, que grupos que vivem em pleno século

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XXI sejam fisicamente semelhantes aos seus antepassados de séculos anteriores e comportem-se exatamente como eles.

Ao se imaginar que essas populações devam exibir comportamentos ou elementos de cultura material de tempos remotos, desconsidera-se pratica-mente toda a trajetória histórica dos indígenas, marcada por resistências, fugas, capitulações, negociações e tentativas de extermínio. Isso tudo sem contar os grupos que se mantiveram isolados ou ocultos sob uma identidade não indí-gena, a fim de evitarem perseguições e poderem, assim, se reproduzir física e culturalmente, ainda que com grandes dificuldades. Contrariando, pois, as expectativas de muitos, nos últimos anos, verifica-se o ‘surgimento’ ou ‘ressur-gimento’ de indígenas, sobretudo na região Nordeste do Brasil.17

Com isso, verifica-se que o número de grupos indígenas no Brasil poderá até mesmo aumentar nos próximos anos, o que caracteriza uma situação inu-sitada e bastante complexa. Apenas para se ter uma ideia, a publicação Povos indígenas no Brasil, veiculada pelo ISA em parceria com organismos nacionais e internacionais, em suas quatro últimas edições – 1996, 2000, 2006 e 2011 – registrou os seguintes números: 206 sociedades indígenas em 1996 (Ricardo, 1996); 216 em 2000 (Ricardo, 2000), 225 em 2006 (Ricardo; Ricardo, 2006) e 235 em 2011 (Ricardo; Ricardo, 2011).18 Isso não significa, absolutamente, que antropólogos ou outros pesquisadores estejam ‘inventando’ etnias pelo Brasil afora, mas que, num curto período de 15 anos, surgiram quase trinta grupos reivindicando para si uma identidade étnica, autoafirmando-se indígenas e alimentando o desejo de serem vistos e reconhecidos como tais. Alguns desses grupos ‘ressurgiram’ em Mato Grosso do Sul, como os Kamba e os Kinikinau, estes últimos convivendo durante muito tempo entre os Kadiwéu.

Em Mato Grosso do Sul, estado da região Centro-Oeste que possui uma das maiores populações indígenas do Brasil, as questões indígenas ainda são tratadas na maioria das escolas da mesma forma como se verifica em muitos outros recantos do país. Em geral, fala-se sobre os índios apenas no mês de abril, próximo ao dia 19, e é comum ainda se repetirem com os alunos antigos ‘rituais’ pedagógicos, tais como enfeitá-los com cocares feitos de cartolina e penas de aves domésticas ou saiotes de estopa. No restante do ano letivo trata--se o indígena com um silêncio perturbador, e o máximo de contato que crian-ças, adolescentes e jovens terão com o tema será por meio da mídia, especial-mente da televisão. Nesse veículo de comunicação, em geral, as imagens das

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populações indígenas estão associadas apenas a desnutrição, violência, suicí-dios, ‘invasões’ etc. Em resumo, assim como em tantas outras escolas de Norte a Sul do Brasil, os alunos sul-mato-grossenses desconhecem a rica diversidade étnica que existe no estado, que conta hoje com pelo menos dez etnias: Atikum, Chamacoco, Guarani (Kayowá e Ñandeva), Guató, Kadiwéu, Kamba, Kiniki-nau, Ofayé e Terena.

Cada um desses grupos possui uma trajetória histórica única e rica em tradições culturais, em que pese o tempo de contato com os não indígenas e as dificuldades de reprodução física e cultural. Há grupos que migraram de outros Estados, como é o caso dos Atikum, que são de Pernambuco e até mesmo de outros países, a exemplo dos Kamba, originários da Bolívia. Há grupos relati-vamente numerosos, como os Guarani e Terena, e alguns compostos por me-nos de cem pessoas, como é o caso dos Ofayé e dos Chamacoco. Há até mesmo os que vivem na luta por serem reconhecidos, pois foram considerados ‘extin-tos’ tempos atrás – Guató e Kinikinau, por exemplo. Dentre os grupos indíge-nas localizados hoje em Mato Grosso do Sul, há também os Kadiwéu, famosos pela cerâmica que suas mulheres fabricam e pela fama de ‘guerreiros’ de seus homens.19

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O autor do presente artigo acompanhou a instalação de escolas entre os Kadiwéu e foi professor dos Ensinos Fundamental e Médio da unidade escolar localizada na aldeia Bodoquena, entre 1997 e 2004. No início havia um grande desafio a ser vencido: a questão da língua. Os Kadiwéu falam um idioma filiado linguisticamente à família Guaikuru, única no Brasil. Homens e mulheres se expressam utilizando distintas variações dialetais dessa língua, o que provoca ainda mais confusão para um não falante.20 Os Kadiwéu se dividem em estratos sociais: os Otagodepodi ou ‘senhores’ (considerados ‘puros’) e os Niotagipe ou ‘cativos’ (descendentes de índios de outras etnias e, portanto, na visão Ka-diwéu, considerados ‘misturados’). Toda essa situação configurou-se numa rica experiência docente, marcada por uma perspectiva fundamental, apreen-dida em um dos textos de Circe M. F. Bittencourt (1994): a de ser possível uma aproximação entre membros de distintas culturas, em um movimento de en-riquecimento mútuo, frutífero tanto para o Ecalailegi (‘não índio’, em língua

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Kadiwéu) como para os Ejiwajegi (‘os verdadeiros índios’) que se encontravam na mesma sala de aula.21

No início, não havia energia elétrica ou água potável na aldeia dos Ka-diwéu, mas não faltavam o desejo e a curiosidade de se conhecer e compreen-der o Outro. Como ressalta Bittencourt:

o conhecimento do ‘outro’ é a possibilidade de aumentar o conhecimento sobre si mesmo, à medida que conhece outras formas de viver, as diferentes histórias vividas pelas diversas sociedades. Conhecer o outro significa comparar situações, e nesse processo comparativo o conhecimento sobre si mesmo e sobre seu grupo aumenta consideravelmente. (1994, p.115)

Contudo, as coisas nem sempre tinham ocorrido assim na história da Edu-cação Escolar daqueles indígenas. O processo de ensino e aprendizagem do componente curricular escolar História entre os Kadiwéu (e com outros tantos grupos indígenas localizados no Brasil) foi marcado pelo insistente uso de téc-nicas de memorização de datas, nomes e fatos completamente alheios à reali-dade em que viviam os indígenas. Além disso, há que se considerar a violência física e psicológica sofrida por eles em âmbito escolar por anos a fio, pelo menos até meados da década de 1990.22 Toda essa situação, somada à proibição de se falar o idioma Kadiwéu dentro da escola, durante décadas, causou um profundo desinteresse por parte da comunidade indígena pela escolarização formal. Havia altos índices de repetência e evasão, demonstrando que o modelo adotado era ineficaz e traumatizante. As primeiras tentativas de mudar essa situação em sala de aula foram frustradas pelas expectativas de pais e alunos de que os castigos continuariam como forma de se ‘educar’, mesmo jovens e adultos. Entretanto, os Kadiwéu foram percebendo, de forma gradual, que a escola poderia ser di-ferente do ‘cemitério’ que a consideravam até então.23

Crê-se ser a principal tarefa de um professor de História em escolas indí-genas (e não indígenas, também), mais do que ensinar datas, nomes, fatos ou conceitos, ajudar os alunos a perceberem que eles fazem parte de uma história e que há diferentes formas de se contar histórias. Além disso, aprende-se tam-bém a pensar historicamente, percebendo como indígenas e não indígenas reconstroem o passado. Os Kadiwéu, por exemplo, acreditam que há ‘histórias de admirar’ e ‘histórias que aconteceram mesmo’.24 A diferença entre elas re-side no fato de que na primeira categoria estão aquelas histórias que

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não precisam de comprovação, pois são contadas para provocar o espanto, a admiração de quem as escuta. Na outra categoria estariam histórias contadas pelos mais velhos e apenas a confiança na palavra destes seria suficiente para que se acredite nelas.

De acordo com a antropóloga Mônica T. S. Pechincha:

Os Kadiwéu diferenciam pelo menos duas categorias de narrativas ... parte delas pode ser classificada imediatamente na categoria de mitos, aquelas que os Ka-diwéu chamam de ‘histórias de admirar’, ou ‘histórias que fazem milagres’, ou ‘exemplos de primeira indiada’. São histórias ‘sagradas’, já que ‘sagrado’ foi um qualificativo atribuído pelos próprios índios. Referem-se a um tempo não locali-zável no tempo cronológico, a não ser como tempo fundante.

Um outro tipo de narrativas seria aquele que reúne histórias que, segundo os informantes, são ‘histórias que aconteceram mesmo’. Nessa categoria, incluem--se as narrativas sobre guerras contra outros povos, a memória de um passado que se apresenta como ‘descrição histórica’ de determinados acontecimentos. (1994, p.80)

Dentre as ‘histórias que aconteceram mesmo’, os Kadiwéu ressaltam no-tadamente a Guerra do Paraguai (1864-1870), que teve intensa participação indígena, infelizmente esquecida pelos manuais didáticos de História do Brasil. O que mais impressiona em relação à memória dos Kadiwéu sobre o conflito platino é a ideia de que a guerra jamais tenha terminado e que a qualquer mo-mento os brancos possam novamente precisar da ajuda dos ‘índios cavaleiros’ para derrotar os inimigos.25

Uma terceira categoria pode ser acrescentada às duas anteriormente apre-sentadas: a História que hoje se aprende nos bancos escolares como disciplina e ‘inventada’ pelos não índios. A característica dessa história escolar seria, segundo os indígenas, a ‘obsessão’ pelas fontes, por documentos escritos como provas a respeito do passado. A história, contida em livros e manuais, super-valorizaria o escrito e desprezaria aquilo que é transmitido oralmente de uma geração à outra. Os Kadiwéu acreditam ser importante conhecer a história ‘inventada’ pelos ‘brancos’ como forma de entenderem melhor as representa-ções construídas pelo Outro sobre tempos pretéritos em outros espaços (a Europa, por exemplo, de onde vieram os portugueses e espanhóis com cavalos e outros animais desconhecidos pelos indígenas).

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Além disso, haveria a possibilidade de existir uma quarta categoria, em que os índios criariam histórias apenas para contarem a pesquisadores ‘bran-cos’, ávidos por informações e que volta e meia perambulam por suas terras.26 Tais perspectivas permitem ao docente e aos alunos vivenciar a escola como uma verdadeira fronteira entre dois ou mais modos de aprender e ensinar, entre mundos distintos que podem e devem dialogar entre si.27 Tal diálogo não ocorre, entretanto, sem alguns atritos, dúvidas, questionamentos e sobressal-tos. Os indígenas, pelo menos desde a década de 1970, têm reivindicado uma escola fundamentada em suas tradições e que revele seus modos peculiares de viverem a vida e representarem-na. Nas palavras do historiador Paulo Hum-berto Porto Borges:

Um possível projeto escolar que represente as tradições desses povos só será pos-sível se os professores forem indígenas e utilizarem metodologia e material elabo-rados a partir de seus próprios referenciais culturais. Os projetos de educação escolar indígena que não compreenderem essa necessidade, serão semelhantes às antigas escolas rurais ‘para índios’ mantidas pela Funai.28

É chegada a hora, portanto, de se tentar uma aproximação maior com o universo sociocultural indígena, procurando enxergar a multiplicidade, a plu-ralidade, a diversidade étnica e cultural existente nele, representada pela exis-tência de mais de duzentas diferentes formas de se viver e representar esse viver. Não apenas a escola indígena pode ser vista como uma fronteira entre dois ou mais mundos distintos, mas a própria instituição escolar não indígena também pode se abrir para o Outro, promovendo o respeito pelas diferenças. Afinal, o diálogo intercultural ocorre precisamente nesse encontro/desencon-tro/confronto entre ideias e lógicas de pensamento distintas, porém não ne-cessariamente excludentes.

Ensino de história em uma escola indígena de educação básica: breve relato de uma ‘aventura’

Os índios Kadiwéu se autodenominam Ejiwajegi e são os descendentes, no Brasil, dos antigos Mbayá-Guaikuru, os célebres ‘Índios Cavaleiros’, tendo em vista a destreza com que utilizavam o cavalo em incursões guerreiras entre

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os séculos XVII e XIX. No começo do século XX já se encontravam nas terras da Reserva Indígena Kadiwéu, uma área de aproximadamente 538.536 hectares demarcada definitivamente desde a década de 1980, no município sul-mato--grossense de Porto Murtinho, região do Pantanal. Hoje, vivem distribuídos em quatro das aldeias localizadas na Reserva: Barro Preto, Bodoquena, Cam-pina e Tomázia.

Sabe-se da existência de escolas presentes nas aldeias Kadiwéu desde a década de 1940. O primeiro contato do autor com esse povo indígena ocorreu em 1997, na maior aldeia da Reserva, a Bodoquena. Saindo de São Paulo, ca-pital, foi para Porto Murtinho a fim de ministrar aulas na rede pública muni-cipal de ensino. Como esteve envolvido com questões indígenas desde o início do curso de graduação em História (concluído na UFMS/Campus de Aqui-dauana, em 1995), foi chamado para avaliar a situação escolar dos índios. Em um ano de contato sistemático observou que as escolas presentes na Reserva eram precárias e não correspondiam aos anseios das comunidades. Passou, então, a colaborar com a Prefeitura para regularizar a situação das escolas, de modo que fizessem parte da Rede Municipal de Ensino de Porto Murtinho.

Em dezembro de 1998 foi criada por Lei Municipal a Escola Municipal Indígena “Ejiwajegi” – Polo, na aldeia Bodoquena, e Extensões nas demais aldeias. Entretanto, não era apenas a regularização da escola que estava em jogo: os índios Kadiwéu e Kinikinau (estes últimos moradores da aldeia São João) mostravam-se descontentes com o fato de que os estudos nas aldeias se encerravam na 4a série do Ensino Fundamental. Quem desejava continuar estudando deveria procurar a cidade e, por essa razão, muitos paravam de estudar. O impasse foi parcialmente resolvido no ano 2000, quando o autor pediu sua transferência para a recém-criada escola. Previam-se dificuldades desde o início, pelo fato de ser um não índio em contato direto em sala de aula com crianças indígenas, falantes de outro idioma e com costumes diversos.

A vinda do sociólogo José Luiz de Souza (Wanixogowe, ‘o pássaro que voa alto’), de Santo André (SP), para acompanhar aquela ‘aventura’ pedagógica ajudou muito. Não havia outros professores não índios dispostos a ministrar aulas na aldeia, por causa das dificuldades (falta de energia elétrica e água potável, difícil acesso etc.) e do preconceito. No tocante à disciplina História, o desafio sempre foi o de mostrar aos Kadiwéu que as culturas indígenas são importantes, revelando os modos de ser e viver desses povos, e que precisam

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ser valorizadas a fim de não caírem no esquecimento e serem substituídas, sem reflexão, pelos usos e costumes dos não índios. Para os Kadiwéu da aldeia Bodoquena a escola sempre havia sido o lugar para se aprender as coisas dos ‘brasileiros’ (é assim que eles se referem aos não índios ou Ecalailegi) e de re-ceber castigos.

Percebia-se neles que sempre esperavam por maus tratos e que o ensino de História ministrado, até então, era marcado pela ‘decoreba’ de datas, fatos e personagens completamente alheios à realidade em que viviam. Não havia, até aquele momento, espaço para a reflexão e nem mesmo para um estudo de quem eram eles próprios ou o que os diferenciava dos não índios. Assim, os objetivos de ensino e aprendizagem iniciais foram: identificar relações sociais no próprio grupo de convívio, na localidade, na região, e outras manifestações estabelecidas em outros tempos e espaços; compreender que as histórias indi-viduais são partes integrantes de histórias coletivas; dominar procedimentos de pesquisa escolar e de produção de textos, aprendendo a observar, colher e sistematizar informações.

Quanto ao conteúdo curricular ensinado, estabeleceu-se o seguinte: como surgiram o povo Kadiwéu e outros povos; como viviam os Ejiwajegi antiga-mente; diferenças entre os índios e entre índios e não índios. Inicialmente, houve conversas sobre os ‘tempos de antigamente’ (essa expressão é utilizada para referências ao passado), e os alunos indígenas foram estimulados a falar sobre tudo o que sabiam. Muitas histórias foram relatadas, acompanhadas de expressões, tais como “Meu avô me contou...”. Com base nisso, resolveu-se que as pessoas mais velhas da aldeia seriam entrevistadas pelos próprios alu-nos. Foram sugeridos, então, seis temas: Moradia, Vestuário, Brinquedos, Ali-mentação, Guerras e Luto, e cada um escolheu um ou mais temas para pesqui-sar. Os alunos foram para as entrevistas e voltaram com muitas histórias, que socializaram com os colegas. Dentre essas histórias, contou-se o mito de cria-ção dos Kadiwéu: eles acreditam terem sido tirados pelo Criador (Aneotedo-goji), assim como toda a humanidade, de dentro de um buraco.

Variações do mito surgiram durante as apresentações dos resultados das entrevistas, e isso estimulou o autor a falar com eles sobre o surgimento da espécie humana. A escola havia recebido um livro didático e aproveitou-se um dos capítulos para conversar sobre o aparecimento de homens e mulheres. Foi interessante perceber que mesmo entre os alunos indígenas protestantes existia

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a ideia de que se homens e mulheres vieram de Adão e Eva, estes devem ter sido tirados de um buraco! Não houve intenção de desqualificar nenhuma das interpretações (mítica, religiosa ou científica), mas de conhecê-las, compreen-dê-las e discuti-las. Após essa atividade, propôs-se aos alunos refletir sobre as diferenças entre as pessoas e entre os grupos humanos.

Os alunos sentiram que o conhecimento sistematizado por eles sobre o povo indígena do qual faziam parte tem tanto valor quanto os conhecimentos adquiridos nos livros dos ‘brasileiros’. Com isso, identificaram relações sociais no próprio grupo de convívio, na localidade e na região em que vivem. Perce-beram, também, modos de vida muito diferentes que os Ejiwajegi desenvolve-ram em outros tempos e espaços. Puderam compreender que as histórias in-dividuais coletadas eram partes integrantes da história dos Kadiwéu. O mais importante é que tomaram conhecimento e aplicaram procedimentos de pes-quisa escolar em História e de produção de textos, em que puderam aprender a observar, colher e sistematizar informações, tornando-se (nas palavras dos próprios alunos) ‘antropólogos de si mesmos’.

A avaliação dos resultados foi feita em sala de aula, quando da exposição oral das entrevistas, da socialização e sistematização dos conhecimentos ad-quiridos e da confecção de desenhos, como também mediante prova escrita bilíngue, em que se solicitou aos alunos uma síntese do que haviam aprendido. Se o diagnóstico inicial não foi exatamente animador, o mesmo não se pode dizer dos resultados obtidos por meio dessa experiência de ensino com os Kadiwéu nas aulas de História. Trabalhando o conceito de diferença, todos compreenderam que não eram inferiores aos não índios, mas únicos e parti-culares. Ao tornarem-se ‘antropólogos de si mesmos’, os Kadiwéu descobriram uma sociedade rica em tradições, que há muito vive em contato com os não índios, que enfrenta problemas com invasores de suas terras até hoje e vive um contínuo processo histórico do qual eles próprios fazem parte.

Anos de castigos físicos e psicológicos na escola, porém, deixaram marcas profundas entre os Kadiwéu. Vencer essa primeira resistência foi outro grande desafio que se impôs ao trabalho como professor não índio. O autor sentiu que havia sido aceito não somente quando homens e mulheres Kadiwéu, pais das crianças e jovens, pintaram as paredes da escola com motivos da arte daquele povo, mas especialmente quando o batizaram de Oyatogoteloco (‘a luz que brilha longe’, no idioma Kadiwéu) e afirmaram que quando seus filhos

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estivessem dando aulas para as gerações futuras, a história de Oyatogoteloco e de Wanixogowe entre eles seria contada dentro e fora da escola.

Os Kadiwéu, enfim, descobriram e sentiram o quanto é bom ser índio e conhecer a própria história. Tornando-se, momentaneamente, estranhos a si mesmos, ganharam confiança para refletir e mostrar o que foram, o que são e o que desejam ser. Com essa verdadeira ‘aventura’ pedagógica foi possível enxergar melhor nos alunos indígenas, tão diferentes dos não índios e ao mes-mo tempo tão semelhantes, a riqueza da diversidade étnica e cultural do Brasil. A experiência rendeu ao autor o Prêmio Victor Civita 2001 – Professor Nota 10, na categoria Escola Pública.

Considerações finais

Escolas em aldeias, índios alfabetizados em suas próprias línguas e por meio de processos próprios de aprendizagem, utilizando-se de telefones celu-lares, conectados à internet e participando de redes sociais: para muitos, ainda, tais imagens não correspondem ao que se espera de um modus vivendi ‘auten-ticamente’ indígena. A imagem estereotipada, veiculada em cartazes nas esco-las públicas e privadas Brasil afora, nas propagandas de televisão ou em cam-panhas públicas, ainda insistem em mostrar índios de tangas, com arcos e flechas, sempre associados à ideia de que fazem parte apenas da natureza, sendo todos puros e dóceis. Porém, no início do século XXI há índios ingres-sando até mesmo na carreira política, realizando cursos de graduação e de pós-graduação, ocupando espaços onde antes sua presença era considerada inimaginável.

A inserção de indígenas na esfera política tem levado muitas pessoas a acreditarem que membros das diversas sociedades indígenas no Brasil não sejam mais índios ‘de verdade’. Enquanto no país se conhece pouco das socie-dades indígenas, a Funai indica a existência de alguns grupos isolados, sem contato intensivo com não índios, na Amazônia. Isso sem contar com os no-vos/velhos problemas que os indígenas enfrentam atualmente: epidemias, in-vasões de terras, alcoolismo, desnutrição, suicídios, êxodo para as cidades, inculcação de valores religiosos não tradicionais etc. Esses problemas com-põem um quadro às vezes sombrio e desesperançoso para esses grupos. Porém, há motivos de esperança: o crescimento demográfico real de muitas sociedades

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indígenas tem sido enorme nas últimas décadas. Como visto, muitas delas, dadas como ‘extintas’ ou ‘em vias de extinção’, ‘ressurgem’ e, ao fazerem isso, se mostram dispostas a lutar pela garantia dos direitos conquistados na Cons-tituição de 1988. Afinal,

Reconstruir a história para construir o futuro é algo que está, sem dúvida, na agenda de uma parte expressiva do movimento indígena atual; porém, é uma ta-refa que exige uma reconfiguração radical das noções ainda prevalecentes na his-tória que se ensina hoje. Assim, o caminho pela frente ainda é longo, até porque ... o caminho para o passado também está cheio de obstáculos.29

Contudo, salienta-se que a ideia de se tratar tais grupos indígenas como ‘ressurgidos’ ou ‘emergentes’ tem desagradado aos próprios índios. Segundo muitos, essas expressões mascaram a dura realidade sofrida por eles próprios e por seus antepassados, ao longo do tempo, tentando sobreviver a toda sorte de dificuldades. As expressões ‘ressurgidos’ e/ou ‘emergentes’ dão a ideia de que determinadas populações teriam ‘desaparecido’ ao longo da conquista e colonização ibéricas (e mesmo em séculos seguintes) e que no final do século XX e início do XXI estariam ‘ressurgindo’ ou ‘emergindo’, em um processo de ‘geração espontânea’! Nada mais falso, quando se verifica, por exemplo, a tra-jetória histórica da população Kamba, dentro e fora das atuais terras sul-mato--grossenses.30 Por essa razão, esse e outros grupos indígenas têm adotado a expressão ‘resistentes’ em diversos documentos oficiais divulgados nos últimos anos, por meio de encontros31 promovidos por organizações governamentais, não governamentais, indígenas e não indígenas:

Os Kinikinau, assim como membros de outras sociedades indígenas do Brasil de hoje, não desejam ser chamados de ‘ressurgidos’, pois entendem que a conotação seja pejorativa e pouco explicativa da situação histórica a que foram submetidos. Preferem, por essa razão, a expressão ‘resistentes’.32

De acordo com algumas lideranças indígenas, a palavra ‘resistente’ ex-pressaria a ideia de que essas populações não desapareceram, ainda que muitas vezes tenham permanecido ocultas, e enfrentaram os processos de colonização e as presenças de não índios em suas vidas, ora guerreando, negociando, fu-gindo, capitulando, escondendo-se ou, ainda, fazendo-se passar por Outros.

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Historicamente, há uma ideia de continuidade por trás da expressão ‘resisten-te’, estrategicamente utilizada pelos grupos na afirmação de suas respectivas identidades étnicas. A sobrevivência de inúmeras etnias, em meio ao desapa-recimento físico e cultural de tantas outras no Brasil, somente na primeira metade do século XX (cf. Ribeiro, 1970), demonstra a força dessa e de outras populações indígenas, tais como os Guató, os Kinikinau e os Ofayé, que já fi-guraram na lista dos grupos ‘extintos’, como foi citado.

Aliás, Mato Grosso do Sul é um dos estados em que há intensos e contí-nuos conflitos entre fazendeiros e indígenas, situação que se arrasta, pelo me-nos, desde o século XIX. Compreender a situação das diversas sociedades in-dígenas presentes no antigo sul do Mato Grosso não é tarefa das mais simples, uma vez que, ao longo do tempo, essas populações estiveram submetidas a um gradativo e violento processo de fixação em pequenas porções de terras. À exceção dos Kadiwéu, que possuem o usufruto de mais de meio milhão de hectares demarcados entre o início do século XX e a década de 1980,33 os de-mais grupos lutam para reaver territórios tradicionais, usurpados há tempos e ocupados por fazendeiros, posseiros, grileiros etc.

Assim, os Ofayé, Terena, Guarani-Kaiowá, Guarani-Ñandeva e Guató vivem em áreas reservadas pelo governo federal, algumas delas passando atual-mente por processos de revisão, para possível ampliação. Já os Chamacoco (também chamados de Ishir) vivem boa parte do tempo no Paraguai, em al-deias próprias, migrando sazonalmente para terras brasileiras. Além disso, os Atikum, oriundos de Pernambuco, encontram-se em terras dos índios Terena, no município de Nioaque, desde meados da década de 1980, e os Kinikinau sofreram uma verdadeira ‘diáspora’, espalhando-se por áreas indígenas ainda na primeira metade do século XX. Os dois últimos grupos citados estão, no momento, mobilizados na reivindicação junto ao órgão indigenista oficial pela conquista de um território que lhes seja próprio. Há, ainda, os que sequer possuem o usufruto de terras consideradas indígenas, como é o caso dos Kam-ba ou Camba-Chiquitano, além dos Layana, Guaná e outros.

Aprender a respeito dessa rica riquíssima diversidade étnica e cultural constitui-se em desafio permanente para professores e estudantes da Educação Básica no Brasil e, particularmente, em Mato Grosso do Sul. Poucas são as obras e textos que tratam genericamente das questões indígenas, sem resvalar na estereotipagem. Há exceções, tais como Breve Painel Etno-Histórico de Mato Grosso do Sul, do historiador e arqueólogo Gilson Rodolfo Martins,34 e Povos

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Indígenas no Mato Grosso do Sul: viveremos por mais 500 anos, lançado em 1993 pelo pesquisador Olívio Mangolim.35 Além desses, os textos “Línguas indígenas em Mato Grosso do Sul, Brasil: entre a insistência da manutenção e a iminência da desaparição”, de autoria de Giovani José da Silva,36 e “Sujeitos e saberes da Educação Indígena” 37 são uns dos poucos a tratarem das questões indígenas em Mato Grosso do Sul para um público não especializado. Aumen-tar o número de obras desse gênero é também um desafio a ser enfrentado pelos pesquisadores no diálogo com aqueles que trabalham e estudam na Edu-cação Básica em todo o Brasil.

NOTAS

1 Cf. em www.ibge.gov.br.2 RICARDO, C. A.; RICARDO, F. (Ed.). Povos indígenas no Brasil 2006/2010. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2011. 763p.3 LOPES DA SILVA, A. (Org.). A questão indígena na sala de aula: subsídios para profes-sores de 1o e 2o graus. São Paulo: Brasiliense, 1987. 253p.4 GRUPIONI, L. D. B. (Org.). Índios no Brasil. Brasília: MEC, 1994. 279p.5 LOPES DA SILVA, A.; GRUPIONI, L. D. B. (Org.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1o e 2o graus. Brasília: MEC/Mari; São Paulo: Ed. USP, 1995. 575p.6 MELATTI, J. C. Índios do Brasil. 7.ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. UnB, 1993. 220p. O antropólogo, professor da UnB (Universidade de Brasília), mantém um site, conhecido como “página do Melatti”, em que o leitor poderá encontrar informações atualizadas a respeito das sociedades indígenas nas Américas: www.juliomelatti.pro.br/. Além disso, John Manuel Monteiro, historiador e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), mantém na Internet uma página intitulada “Os índios na história do Brasil”: www.ifch.unicamp.br/ihb/.7 FERNANDES, J. O índio: esse nosso desconhecido. Cuiabá: Ed. UFMT, 1993. 149p.8 CARNEIRO DA CUNHA, M. (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Compa-nhia das Letras; SMC; Fapesp, 1992. 611p.9 MONTEIRO, John M. Confronto de culturas. In: AZEVEDO, F. L. N. de; MONTEIRO, J. M. (Org.). Confronto de culturas: conquista, resistência, transformação. São Paulo: Edusp, 1997. p.19-20, grifos no original.10 LOPES DA SILVA, A.; FERREIRA, M. K. L. (Org.). Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global; Fapesp; Mari, 2001a. 396p.; LOPES DA SILVA, A.; FERREIRA, M. K. L. (Org.). Práticas pedagógicas na escola indígena. São Paulo: Global; Fapesp; Mari, 2001b. 378p.; FERREIRA, M. K. L. (Org.). Ideias matemáticas de

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povos culturalmente distintos. São Paulo: Global, 2002. 336p.; e LOPES DA SILVA, A.; MACEDO, A. V. L. da S.; NUNES, Â. (Org.). Crianças indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: Global; Fapesp; Mari, 2002. 280p.11 ALMEIDA, M. R. C. de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 167p.12 FUNARI, P. P.; PIÑON, A. A temática indígena na escola: subsídios para professores. São Paulo: Contexto, 2011. 128p.13 Cf. www.socioambiental.org.br.14 RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970. 495p.15 MONTEIRO, John M. O desafio da história indígena no Brasil. In: LOPES DA SILVA, A.; GRUPIONI, L. D. B. (Org.). A temática indígena na escola: novos subsídios para pro-fessores de 1o e 2o graus. Brasília: MEC/Mari; São Paulo: Ed. USP, 1995, p.221-228. p.222.16 SCHADEN, E. Aculturação indígena. São Paulo: Pioneira, 1969. 334p.17 OLIVEIRA, J. P. de (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2.ed. Rio de Janeiro: Contracapa, 2004. 361p.18 RICARDO, C. A. (Ed.). Povos indígenas no Brasil 1991-1995. São Paulo: Instituto Socio-ambiental, 1996. 871p.; RICARDO, C. A. (Ed.). Povos indígenas no Brasil 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. 831p.; RICARDO, C. A.; RICARDO, F. (Ed.). Povos indígenas no Brasil 2001-2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006. 879p.; e RICAR-DO; RICARDO, 2011, cit.19 JOSÉ DA SILVA, G. (Org.). Kadiwéu: senhoras da arte, senhores da guerra. Curitiba: CRV, 2011. 211p.20 SANDALO, F. Estratificação social e dialetos prosódicos na língua Kadiwéu. In: JOSÉ DA SILVA (Org.), 2011. p.149-161.21 BITTENCOURT, C. M. F. O ensino de História para populações indígenas. Em Aberto, Brasília, ano 14, n.63, p.105-116, jul.-set. 1994.22 JOSÉ DA SILVA, G.; LACERDA, L. T. A educação escolar indígena em perspectiva his-tórica: os Kadiwéu e a “pedagogia da violência” (segunda metade do século XX). In: CON-GRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 3., 2004, Curitiba. Anais... Curi-tiba: Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2004.23 O uso dessa expressão era comum entre os Kadiwéu ao se referirem à escola dos ‘tempos de antigamente’. Nota-se que na tradição oral Kadiwéu, o cemitério (apiigo) é um lugar indesejado, posto que seja o local das almas errantes, o que torna bastante interessante (e intrigante) a representação.24 Cf. PECHINCHA, M. T. S. Histórias de admirar: mito, rito e história Kadiwéu. 1994. 202 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília (UnB). Brasí-lia, 1994.

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25 JOSÉ DA SILVA, G. Notícias da guerra que não acabou: a Guerra do Paraguai (1864-1870) rememorada pelos índios Kadiwéu. Fronteiras, Dourados, v.9, n.16, p.83-91, 2007.26 Tal categoria foi sugerida informalmente pelo prof. dr. John Manuel Monteiro, da Uni-camp, durante o XXIII Simpósio Nacional de História, em jul. 2005, na Universidade Esta-dual de Londrina (UEL). Desde então o autor vem procurando desenvolver tal ideia (JOSÉ DA SILVA, 2007).27 TASSINARI, A. M. I. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: LOPES DA SILVA; A.; FERREIRA, M. K. L. (Org.). Antropologia, história e educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Fapesp; Global; Mari, 2001. p.44-70.28 BORGES, P. H. P. Ymã, ano mil e quinhentos: relatos e memórias sobre a conquista. Campinas (SP): Mercado das Letras; Cascavel (PR): Unipar, 2000, 168p. p.14.29 MONTEIRO, J. M. Armas e armadilhas: história e resistência dos índios. In: NOVAES, A. A outra margem do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.237-249. p.247.30 JOSÉ DA SILVA, G. A presença Camba-Chiquitano na fronteira Brasil-Bolívia (1938-1987): identidades, migrações e práticas culturais. 2009. 291f. Tese (Doutorado em Histó-ria) – UFG (Universidade Federal de Goiás). Goiânia, 2009.31 Dentre outros importantes encontros, citam-se o “I Encontro Nacional dos Povos Indí-genas em Luta pelo Reconhecimento Étnico e Territorial” (Olinda, PE, 15 a 19 maio 2003) e o “Seminário dos Povos Resistentes: a presença Indígena em MS” (Corumbá, MS, 10 a 12 dez. 2003).32 JOSÉ DA SILVA, G.; SOUZA, J. L. de. O despertar da fênix: a educação escolar como espaço de afirmação da identidade étnica Kinikinau em Mato Grosso do Sul. Sociedade e cultura, Goiânia, v.6, n.2, p.149-156, 2003. p.155.33 JOSÉ DA SILVA, G. A construção física, social e simbólica da Reserva Indígena Kadiwéu: memória, identidade e história. 2004. 144f. Dissertação (Mestrado em História) – UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Campus de Dourados. Dourados, 2004.34 MARTINS, G. R. Breve painel etno-histórico de Mato Grosso do Sul. 2.ed. rev. e ampliada. Campo Grande: UFMS, 2002. 98p.35 MANGOLIM, O. Povos indígenas em Mato Grosso do Sul: viveremos por mais 500 anos. Campo Grande: Cimi/MS, 1993. 119p.36 JOSÉ DA SILVA, G. Línguas indígenas hoje em Mato Grosso do Sul, Brasil: entre a insis-tência da manutenção e a iminência da desaparição. In: SOUZA, A. A. A. de; FRIAS, R. B. (Org.). O processo educativo na atualidade: fundamentos teóricos. Campo Grande: Uni-derp, 2005. p.183-192.37 JOSÉ DA SILVA, G.; LACERDA, L. T.; NINCAO, O. S. Sujeitos e saberes da Educação Indígena. In: LACERDA, L. T.; PINTO, M. L. (Org.). Educação, diversidade e cidadania: sujeitos e saberes dos processos e das práticas pedagógicas. Dourados: UEMS, 2011. p.87-98.

Artigo recebido em 20 de junho de 2012. Aprovado em 1o de setembro de 2012.

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Educação escolar indígena: a escola e os velhos no ensino da história kaingang

Indigenous school education: the school and the elderly in the teaching of Kaingang history

Juliana Schneider Medeiros*

ResumoA educação escolar indígena específica e diferenciada vem sendo construída por diversos povos indígenas do país desde a promulgação da Constituição Federal (1988), marco de sua conquista pelo di-reito à diferença. O artigo apresenta re-sultados de uma pesquisa de mestrado baseada em uma etnografia dos Kain-gang da Terra Indígena Guarita (Rio Grande do Sul), tendo como cenário principal a escola indígena Toldo Cam-pinas, no setor Estiva. Com base nas au-las de História e nas conversas com os velhos, apresentam-se reflexões sobre a relação dos velhos com a escola, buscan-do entender qual o papel desses ‘conta-dores de histórias’ na transmissão da história kaingang. Palavras-chave: educação escolar indíge-na; escola kaingang; ensino de História.

AbstractThe specific and differentiated indige-nous school education has being devel-oped by various indigenous peoples of Brazil since the Federal Constitution promulgation (1988), landmark in the conquest of their right to be different. This paper presents the results of a Mas-ter’s research through the ethnography of a Kaingang community in the Guarita Indigenous Reservation (Rio Grande do Sul), in which the main setting for the study was the indigenous school Toldo Campinas, in the Estiva sector. Based on the History classes and on talks with the elderly, this study presents a discussion on the relationship between the elderly and the school, trying to understand the role of these ‘story tellers’ in transmit-ting the kaingang history. Keywords: indigenous school educa-tion; Kaingang school; History teaching.

A educação escolar é hoje uma realidade para milhares de indígenas no Brasil. A maioria das Terras Indígenas (TI) do país possui escolas onde suas crianças estudam diariamente. Números atuais referentes ao estado do Rio

*Núcleo de Pesquisa em Educação Indígena da UFRGS. Faculdade de Educação/UFRGS, Prédio 12201, Av. Paulo Gama, s/n. 90046-900 Porto Alegre – RS – Brasil. [email protected]

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Grande do Sul, onde se realizou a pesquisa, apresentam 6.327 estudantes em 78 escolas.1 A atual escola indígena pretende-se uma escola dos povos indíge-nas, pensada e construída por eles com base em seus anseios e suas necessida-des. Porém, nem sempre foi assim. O contato dos povos indígenas com a edu-cação escolar remonta ao período colonial, quando missionários jesuítas vieram às Américas com o intuito de conquistar novos fiéis para a Igreja cató-lica. Ao longo de toda a história do país, a escolarização dos indígenas, dirigi-da ora por ordens religiosas ora pelo Estado, teve como objetivos principais civilizá-los e prepará-los para o trabalho. Do modo como ela funcionou até recentemente, esteve a serviço do assimilacionismo e contribuiu para desarti-cular os modos de vida indígenas e aniquilar as línguas nativas.

Nos anos 1970, inserida em um movimento de luta pela demarcação das terras indígenas e pelo reconhecimento e preservação das diferenças étnicas, a educação escolar indígena passou a ser tema de encontros e discussões que sistematizaram o que viria a constar futuramente na legislação específica refe-rente à escola indígena.2 Foi esse momento de intensos debates, ao final da ditadura militar, que possibilitou a forte atuação dos indígenas na Assembleia Constituinte e abriu uma nova fase para a educação escolar indígena, com a aprovação da Constituição de 1988. Muitos direitos importantes foram con-quistados, como o direito à diferença, que pôs fim à política assimilacionista do Estado, garantindo legalmente aos povos indígenas o respeito à sua orga-nização social, a costumes, línguas, crenças e tradições, e o direito a uma edu-cação específica e diferenciada, ao reconhecer o uso de línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.3 A partir daí desencadeou-se um movi-mento de afirmação da educação escolar indígena, por meio de leis, da criação de setores específicos para a gestão dessa modalidade de escola e do envolvi-mento de lideranças, professores e intelectuais indígenas na condução desse processo.

De acordo com essa nova legislação, a escola indígena deve ser comunitá-ria, intercultural, bilíngue, específica e diferenciada.4 Comunitária, porque a participação da comunidade em todo o processo pedagógico é fundamental para a construção da escola: na definição dos objetivos, dos conteúdos curri-culares, do calendário escolar, da pedagogia, dos espaços e momentos da edu-cação escolar. Intercultural, pois a escola deve reconhecer e manter a diversi-dade cultural e linguística de sua comunidade, além de promover uma situação

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de comunicação entre experiências socioculturais, linguísticas e históricas diferentes. Bilíngue, visto que deve ensinar o português, para possibilitar o diálogo com o mundo não indígena que os rodeia, mas, principalmente, a língua materna da comunidade indígena – para garantir a sua manutenção e, sobretudo, porque é por meio da língua originária que se expressa e se mani-festa a cultura. Específica e diferenciada, porque deve ser concebida e planejada como reflexo das aspirações particulares de cada povo indígena e com auto-nomia em relação à construção de sua escola. A maioria dos povos indígenas hoje vê a escola como uma aliada: para aprender os códigos do ‘mundo dos brancos’ (tendo como principal exemplo a aquisição da língua portuguesa), de modo a se instrumentalizar para as lutas indígenas; e também para tentar re-verter o processo de ocidentalização e desestruturação cultural que sofreram até então, fortalecendo suas culturas.

As reflexões apresentadas neste artigo resultam de uma pesquisa de mes-trado realizada com os Kaingang da Terra Indígena Guarita com base em uma descrição densa5 que teve como cenário principal a escola indígena Toldo Campinas, no setor Estiva. A TI Guarita está localizada no norte do estado do Rio Grande do Sul, nos municípios de Tenente Portela, Redentora e Erval Seco, distante cerca de 500 quilômetros de Porto Alegre. A TI está organizada em 12 setores que se distribuem ao longo de mais de 23 mil hectares de terra. Nela vivem 5.397 pessoas,6 sendo uma parte minoritária delas Guarani. Os Kaingang dessa região estabeleceram contato permanente com os não índios em meados do século XIX, quando uma frente de expansão invadiu seus territórios tradicionais. A partir daí sua história foi marcada por constantes tentativas de dominação, exploração e ocidentalização. Depois de séculos de uma política indigenista integracionista e de uma escola que tinha por objetivo destruir os modos de vida indígenas e torná-los civilizados, partícipes de um projeto ora colonial, ora imperial, ora nacional, os Kaingang buscam construir uma escola diferente, que valorize sua cultura, sua língua, seu modo de vida e sua história.

A pesquisa teve como foco principal o ensino de História na escola kain-gang. Procurei descobrir que história se ensina na escola Toldo Campinas, onde o professor é indígena. Ensina-se a história kaingang? O professor leva as narrativas tradicionais para a escola? Os mais velhos têm algum papel no ensino de História na escola? Apresento aqui reflexões sobre a relação dos

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velhos com a escola, buscando entender qual o papel desses ‘contadores de histórias’ na transmissão do passado kaingang às novas gerações frequentado-ras da escola.

As aulas de história

De acordo com o Regimento Coletivo das Escolas Estaduais Indígenas Kaingang (2003) a escola indígena deve valorizar as tradições e as histórias kaingang, com o intuito de afirmar sua identidade étnica. Isso pode ser cons-tatado neste trecho: “Nesta perspectiva, a escola busca o resgate histórico--cultural das comunidades, visando a valorização da cultura e das leis internas da comunidade, para garantir ao nosso povo o direito de ser diferente do não índio e também a manutenção de nossos costumes”.7 Esse documento não menciona diretamente a matéria de História como responsável por esse ‘res-gate histórico-cultural’. Os planos de estudos de História da escola Toldo Cam-pinas, no entanto, apresentam temas kaingang em seus conteúdos. Alguns exemplos são: As relações dos Kaingang com o poder público nos séculos XVIII-XIX; A ocupação do território Kaingang pela sociedade luso-brasileira; As demarcações e retomadas de terras das comunidades Kaingang; Guerra da coroa portuguesa contra os Kaingang e os Xokleng; Rota para as missões: pe-netração paulista no Alto Uruguai no século XIX.

O acompanhamento das aulas de História do professor indígena Lairton Melo, principalmente das exposições e das atividades propostas por ele, per-mitiu constatar que as histórias kaingang são apenas tangenciadas na escola e que a maioria dos temas relacionados diretamente aos Kaingang previstos nos planos de estudos não é abordada em aula. De modo geral, o que se ensina nas aulas de História é o conteúdo do livro didático. Em entrevista questionei o professor indígena Bruno Ferreira, coordenador pedagógico da escola Toldo Campinas e professor de História em uma escola de outro setor: “O que se ensina na matéria de História?”. “No jeito que está só ensinam o que tem no livro didático; não se ensina além disso”, respondeu-me o professor. “Então na matéria de História não se trata dos Kaingang nunca?” interroguei outra vez. “Não se trata dos Kaingang! ... Os professores não estão preparados para fazer isso, eles não conhecem isso, na verdade”.

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Em primeiro lugar, é preciso destacar que os temas kaingang ainda não constituem conteúdos escolares das escolas não indígenas e, por isso, não há materiais disponíveis em que os professores possam se basear para planejar suas aulas. As escolas indígenas, em geral, disponibilizam aos professores ape-nas os livros didáticos comuns às escolas não indígenas do país. Esses livros geralmente apresentam uma única versão da história e desconhecem as histó-rias dos diferentes povos indígenas do Brasil. Apesar dos avanços nas pesquisas historiográficas nos últimos 20 anos e da incorporação de muitos deles aos livros escolares, a apresentação de uma versão escrita oficial da história nacio-nal se mantém, desconsiderando as diferentes formas de memória e de trans-missão de histórias.

Isso significa que trabalhar com temas da história kaingang depende mui-to do próprio professor e de sua formação. Ou seja, se ele não possui formação específica para professor indígena, irá reproduzir o modelo de aula que ele próprio vivenciou enquanto estudante de escolas/universidades não indígenas, onde aprendeu os ‘legítimos conhecimentos escolares’. Cursos específicos para indígenas, além de apresentarem uma historiografia mais atualizada sobre os Kaingang – em geral não trabalhada em cursos para não índios – procuram instrumentalizar esses professores a pensarem a história de uma forma dife-renciada e a perceberem a importância dos conhecimentos e das memórias tradicionais. Esses cursos visam estimular que os professores busquem o diá-logo com a comunidade para que ela lhes ensine a história que não está nos livros. Sem o contato com essa bibliografia diferenciada, mas principalmente com as histórias e as tradições contadas pelos velhos, as aulas continuarão reproduzindo a história do livro didático, embora o professor seja indígena.

A pesquisa demonstrou, no entanto, que há uma vontade e uma disposi-ção do professor Lairton em abordar a história dos povos indígenas e dos Kaingang e que, por vezes, ele encontra frestas por onde insere elementos dessas histórias. Um exemplo disso é a clara predominância do estudo do pe-ríodo colonial, abordado no 6o, 7o e 8o ano. Acredito ser esse um indício da preocupação do professor em trabalhar a ruptura que ocorreu no modo de vida tradicional dos povos indígenas quando da chegada dos europeus à América – embora o contato dos Kaingang com os não indígenas de forma mais per-manente tenha se dado somente a partir da metade do século XIX. É recorrente o uso de quadros comparativos entre o antes e o depois do contato e de

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expressões como ‘a chegada dos brancos’, ‘o descobrimento’, ‘os 500 anos’. Observei também que o professor busca constantemente incluir os ‘índios’ em sua narrativa histórica, mesmo quando não fazem parte do conteúdo que está sendo trabalhado. Em uma aula do 8o ano, em que o tema era o ciclo da cana--de-açúcar e a introdução da mão de obra africana, o professor mencionou os ‘índios’ diversas vezes: os ‘índios’ já estavam no Brasil quando os portugueses chegaram e assim foram designados pelos colonizadores, ‘porque achavam que era tudo igual’; os ‘índios’ estabeleceram relações de escambo nos primeiros anos de contato; os ‘índios’ foram os primeiros trabalhadores dos engenhos; muitos ‘índios’ foram escravizados e outros tantos foram mortos. O reconhe-cimento identitário do professor em relação aos indígenas do período colonial é uma forma de “continuidad del pasado americano en el presente”.8 Pois, segundo Rodolfo Kusch, ocorreu na América um processo de “fagocitación de lo blanco por lo indígena”, ou seja, um englobamento do ser europeu pelo estar americano, de modo que o habitante desse continente mestiço permanece in-dígena em seu subsolo (Kusch, 2009, p.179).

Com base nas minhas observações em aula e na entrevista que realizei com o professor Lairton, pude constatar que ele possui conhecimento da tra-dição e de histórias kaingang – provavelmente por ter aprendido de seus pais e avós –, porém não consegue transformá-las em conteúdo escolar. Para in-gressar esse tipo de conhecimento na escola é preciso antes reconhecer o valor que possui para então sistematizá-lo e dar a ele uma forma escolar. Esse traba-lho só pode ser feito pelos próprios professores kaingang, e um lugar para fazer isso são os cursos de formação específica. Cursos de formação para professores indígenas vêm trabalhando nesse sentido, propondo reflexões que permitam aos professores-cursistas valorizarem os conhecimentos da cultura e que os incentivem a buscar saber mais junto à comunidade. Eles são necessários para potencializar o ensino de conhecimentos kaingang na escola e o desenvolvi-mento de processos próprios de aprendizagem dentro do espaço escolar.

O professor Lairton contou-me que quando consegue inserir elementos da história dos Kaingang em suas aulas, ele os traz principalmente de relatos que escutou: “Na verdade, quando eu faço alguns relatos em relação aos Kain-gang, principalmente algumas análises que a gente vê, normalmente é por ouvir ... Do mesmo jeito que se faz uma pesquisa. Tu tens que ouvir para en-tender se é verdade ou não”. Mas faz questão de salientar que muitos deles são

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confirmados por bibliografia – o que demonstra sua preocupação em ensinar algo referendado como conhecimento escolar. “Mas há relatos também em livros de historiadores ... Então aquilo que está escrito não está fugindo à rea-lidade das coisas ... esse relato de universidades, de historiadores vem a con-frontar e garantir mais que é verdade que isso existiu”. As palavras de Lairton demonstram uma mistura de verdades: as da oralidade e as da escrita. A ciência costuma levar em conta apenas a verdade registrada no papel, e a força disso é sentida na fala do professor que faz questão de afirmar que se podem com-provar os relatos orais na bibliografia. Mas ele também fala das histórias orais, dizendo que ouvi-las é como realizar uma pesquisa – o que nos leva a pensar na relação da escola com os velhos e as suas histórias.

A escola e os velhos no ensino da história kaingang

Se a história dos Kaingang é um tema apenas tangenciado na escola, como vimos, onde as crianças aprendem sobre o passado de seu povo? A primeira hipótese seria: ouvindo dos mais velhos. Os povos indígenas são sociedades que tradicionalmente transmitem os conhecimentos pela oralidade. Nessas sociedades orais há especialistas da memória, também chamados de guardiões da memória, que são, em geral, pessoas mais velhas da comunidade, mais vi-vidas e, portanto, com mais conhecimento. Detentoras de saberes, elas são responsáveis por repassá-los às próximas gerações.9 No contexto atual de con-tato intenso com a sociedade nacional, em que a escrita já é uma realidade na vida dos povos indígenas brasileiros, em que a escola ocupa um papel central no dia a dia das comunidades, isso de fato acontece?

O jovem, a criança aprende muito de ouvir relatos, histórias de acontecimentos que já houve. Mas normalmente quando isso acontece é por causa de uma ques-tão, talvez de um momento. Ele não está todo o dia com uma historinha lá para contar. É por momentos. Aconteceu tal fato, se acontece, alguém vem e diz “olha isso aconteceu há um tempo atrás, acontecia, ou é histórico, uma vez nós fazía-mos assim” ... Por exemplo, no domingo à tarde passado, nós estávamos discutin-do com esse mesmo que tu entrevistou, o Adelino da Rosa. Ele estava na minha casa e nós estávamos debatendo sobre a Guerra do Paraguai. (Lairton Melo, en-trevista, 4 out. 2011)

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O fragmento da entrevista realizada com o professor Lairton revela que isso ainda acontece. Mas apenas ‘por momentos’. Deitar à noite ao redor do fogo para ouvir histórias serem contadas pelos avós já não faz mais parte da rotina de jovens e crianças Kaingang. O fogo de chão está sendo substituído pelo fogão à lenha ou pelo fogão a gás.10 A longa jornada de trabalho muitas vezes não permite que isso aconteça. Em muitas famílias a televisão faz parte do cotidiano noturno. Em outras, esse espaço é ocupado pelo culto na igreja. Há também a falta de interesse das pessoas em buscar os velhos para ouvir seus relatos, embora eles ainda aconteçam, como o próprio professor Lairton co-mentou em seu depoimento.

Luís Emílio, velho sábio que mora em São João do Irapuá, outro setor da TI Guarita, contou-me em visita que lhe fiz que “muito poucos ainda contam histórias sentados ao redor do fogo”. Explicou que isso não acontece mais como antigamente por causa das transformações no modo de viver dos Kain-gang causadas pelo ‘avanço do progresso’. Antes viviam da caça e da coleta e hoje vão ao mercado comprar os alimentos. Por essas palavras de Luís Emílio, pode-se reconhecer que frente à desordem trazida pelo Ocidente, imposta, mas também tomada por opção, a tradição kaingang se atualiza e se reordena to-mando uma nova forma, que adota novidades mas conserva certos elementos fundamentais.11 Apesar das mudanças na vida dos Kaingang, “certos pais e avós ainda contam histórias para os filhos, para os netos, histórias dos bichos”. O professor Lairton confirma que esse costume ainda é mantido, mesmo que em menor frequência e talvez revestido de outras formas, como se pode obser-var em mais um excerto da entrevista:

Eu acho que hoje, agora mesmo na atualidade, eu acho que a influência de outras coisas separou essa parte. Mas está sendo conservado ainda. E em determinados lugares bastante conservado. Principalmente pelas pessoas que são mais adultas. O jovem eu acho que está saindo, está indo um pouquinho mais para o lado das novidades ... Essa [a criança] participa ali. Essa está ali ainda. Agora o jovem, eu digo 13, 14, 15, 16 anos, ele já não está mais ali naquela convivência. Ele está se soltando mais para outras oportunidades que tem de participar. Mas eu acho que a parte mais adulta ainda permanece bastante. Não sei se tu notou quando tu caminhou pela nossa aldeia aqui, nosso setor, que ainda tem agrupamentos. Tem um ou dois sempre conversando no local. Uma mulher fazendo uma trança de um balaio, um outro arranjo, mas alguém estava ali próximo daquilo ali. Nem que es-

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tiver só olhando, mas estava ali ... Se visitam bastante. Mas esse visitar já está do mesmo formato. Os mais adultos se visitam, mas os mais jovens já não está inte-ressado muito nisso. Ele vai se interessar, mas as novidades atraem bastante. (Lairton Melo, entrevista, 4 out. 2011)

O professor Bruno parece mais cético quanto a isso. Ele pensa que as crianças não estão aprendendo histórias dos Kaingang fora da escola. Chegou a essa conclusão com base em uma atividade de aula sobre o panelão12 que tentou realizar com seus alunos do Pau Escrito, setor da TI Guarita onde é professor de História. “Eu disse: ‘Podem perguntar para o pai de vocês, tentem saber com eles’. Só que quando trazem para discutirmos, não conseguem trazer nada. Os pais não estão contando isso para as crianças e eu, enquanto profes-sor, não consigo avançar muito também”. É importante salientar que esse acontecimento foi muito traumático para os Kaingang e, considerando que a memória é seletiva e produzida desde o presente, muitas pessoas da comuni-dade talvez não queiram recordá-lo e por isso não contem histórias sobre esse tempo. Também é possível que a dificuldade esteja ligada à forma de condução da tarefa por parte do professor, ao modo que ele instrumentalizou os alunos para buscarem essas histórias em casa.

Se as gerações mais novas já não vivenciam essa contação de histórias, os adultos relatam que quando eram crianças esse espaço ainda era muito pre-sente, o que demonstra que são as mudanças das últimas décadas que trans-formaram essa realidade. “Quando eu era pequeno, meu avô contava história para nós. Geralmente vinham os netos. Hoje não se faz isso mais. Dificilmente você vai chegar em uma casa de noite, vai estar lá um índio sentado, contando história para as crianças. Não vai achar isso acontecendo”, relatou-me Bruno em entrevista. O professor Lairton conta com detalhes como eram essas noites na sua juventude.

quando os velhos se reuniam, eu lembro bem, com meu pai, com meus vizinhos que eram meus parentes, eles iam até a meia-noite conversando. Os adultos. E os mais pequeno corriam até umas horas e depois dormiam e ficavam. Ninguém estava preocupado com o outro dia. Se a gente era um pouquinho mais velho, já tinha uns 14, 15 anos, a gente ficava, antes de eles irem dormir, nós não ia dormir e fi-cávamos ouvindo as histórias deles. Mas normalmente, a turma maior não estava ali, tava brincando, tava fazendo alguma coisa fora disso aí, perto do fogo ... Mas

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quando surgia história nova, aí o grupo vinha. Se era a mesma história o grupo não vinha ... Nem que fosse uma mentira, mas ele vinha ali ... Tu me perguntou quando era isso, em que momento e onde. Onde seria, hoje está difícil, mas ainda tem, seria na casa de alguém, normalmente acontece na casa de um que tem um pouco mais de calma. Existe no povo Kaingang umas pessoas que sempre ficam ali, que eles sempre estão lá e as pessoas chegam lá por si ... Uma vez a gente che-ga lá e ele está lá, alguma coisa estão fazendo, se tiver uma comida para comer come, se não tiver está bom também. E ali essas coisas acontecem. (Lairton Melo, entrevista, 4 out. 2011)

Estas declarações mostram que atualmente o espaço para os velhos con-tarem histórias, assim como faziam no passado, está bastante reduzido e mo-dificado. Levando em conta essa realidade e o fato de que são eles os principais detentores dos saberes tradicionais é que os documentos referentes à escola kaingang já previam uma relação dos velhos com a escola. Segundo o Regi-mento Coletivo das Escolas Estaduais Indígenas Kaingang, a metodologia de ensino-aprendizagem proposta para a escola kaingang “embasa-se no respeito à tradição oral das comunidades, valorizando o saber dos mais velhos e incen-tivando a que eles participem da escola relatando as histórias de seus antepas-sados – como era viver na terra indígena antigamente – para que, no decorrer do tempo, essas histórias sejam transmitidas de geração para geração, preser-vando a cultura kaingang”.13 A Proposta Político-pedagógica de Referência das Escolas Indígenas Kaingang Estaduais do Rio Grande do Sul também é bas-tante clara quanto ao envolvimento das pessoas mais velhas da comunidade com a vida escolar. “Nas escolas indígenas, onde o trabalho com a língua ka-nhgág está sendo de forma restrita, o tempo das aulas deve ser aumentado para que o professor possa não só trabalhar a língua escrita, mas também possa ensinar os costumes, contar histórias e fazer visitas aos mais velhos”.14 Andila Nivygsãnh Inácio, professora kaingang, em artigo sobre a educação escolar indígena, alerta seus colegas a esse respeito:

É preocupada com os professores indígenas que faço este trabalho porque, se eles quiserem ser bons professores kaingang, eles terão que ouvir os nossos ‘velhos’! Pois é neles que está a essência da escola diferenciada. São, pois, a base para um Projeto Político-Pedagógico. O professor kaingang precisa resgatar e valorizar as formas tradicionais kaingang de repassar os conhecimentos para os jovens, por-

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que essas formas não são meros métodos em fase de experimentação, mas sim metodologias aplicadas, avaliadas e aperfeiçoadas através dos tempos. Saberes estes não disponíveis em nenhuma universidade, mas apenas, na memória dos nossos velhos, adormecida e anestesiada pelo sofrimento da discriminação e do preconceito de uma sociedade que não soube reconhecê-los.15

No entanto, quando perguntei aos professores de História se realizavam atividades em conjunto com os moradores mais velhos da comunidade, seja convidando para ir à escola, seja indo ao encontro deles, ambos me responde-ram negativamente. A conversa que tive com Adelino da Rosa, outro velho do setor do Irapuá que conhece as histórias kaingang, corrobora essa informação, pois ele não relatou a procura por parte de professores da escola local. Quando perguntei se o buscavam para ouvir histórias, Adelino contou que os alunos da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica (UFSC) que mo-ram no Irapuá procuraram-no recentemente e agora estão realizando um tra-balho conjunto estudantes-comunidade com base em um diálogo com os ve-lhos. Isso mostra a importância dos cursos de formação específica para professores indígenas. Foi com base nas reflexões realizadas no curso, no en-tendimento do valor que possuem os saberes da oralidade, que os professores--cursistas perceberam a necessidade de se buscar com os velhos os conhecimen-tos tradicionais. Uma passagem do meu diário de campo ajuda a elucidar por que a escola não costuma fazer esse tipo de trabalho com os velhos:

Na aula de Valores Culturais o professor Lairton passou um vídeo que contava uma história de pescadores. Seu objetivo era mostrar que as histórias orais não são contadas exclusivamente em sociedades indígenas, mas também em comuni-dades de pescadores. Comentou com os alunos que eles poderiam ir falar com velhos para escutar histórias também. Quando acabou a aula, perguntei ao profes-sor se ele pretendia pedir a algum velho que contasse uma história, ou convidan-do-o para ir à escola ou levando a turma até sua casa. Ele respondeu que é muito difícil fazer esse tipo de coisa. Disse que se fosse levar a turma para falar com a Vó Tonha [velha conhecedora dos remédios do mato], ela não ia dizer nada, porque ela acha que o professor, se é professor, tem que saber das coisas para ensinar. Disse que as pessoas têm medo do uso que a escola pode fazer dos seus conheci-mentos. Ainda me deu outro exemplo. Se a Clair fosse pedir para alguém ensinar a fazer balaio, essa pessoa ia se recusar a ensinar, pois afinal a Clair é professora de Artesanato e deveria saber fazê-lo. (Diário de Campo, 27 set. 2011)

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Em primeiro lugar, é preciso salientar que há um descompasso cosmoló-gico entre a escola, instituição característica do mundo ocidental, e o modo de vida kaingang. Embora seja comum a sociedade ocidental atual naturalizar e universalizar a existência da escola – atribuindo a ela a responsabilidade pela educação –, a escola tem uma história própria que precisa ser considerada para que se possa entendê-la. A escola começou a se constituir como a conhecemos hoje a partir do século XVI, quando do estabelecimento da Modernidade. Das transformações políticas, econômicas, sociais e culturais do período surgiram novas ideias e concepções que permitiram o surgimento dessa escola. De acor-do com Varela e Álvarez-Uría, algumas dessas novidades foram: a definição de um estatuto de infância; a emergência de um espaço específico destinado à educação das crianças; o aparecimento de um corpo de especialistas da infância dotados de tecnologias específicas e de ‘elaborados’ códigos teóricos.16 Crianças foram colocadas em um lugar fechado, submetidas a diversos tipos de controle no espaço e no tempo, onde especialistas, denominados professores, passaram a transmitir determinados conhecimentos com base em certos métodos de ensino: “Essa maquinaria, além de inventar espaços específicos para a educação das crianças e dos jovens, foi decisiva para a invenção de saberes e seus respec-tivos especialistas, encarregados de dizer como educar, ensinar, vigiar e regular essas crianças e esses jovens”.17

Nesse período, em que a Europa humanista enuncia os primeiros sinais do pensamento científico moderno, surge uma nova lógica de disciplina na sociedade – adotada e desenvolvida pela escola na sua plenitude. A escola constitui-se a partir de toda uma maquinaria que disciplinariza não só os cor-pos, mas também os saberes. Segundo Veiga-Neto, as disciplinas “são partições e repartições – de saberes e de comportamentos – que estabelecem campos especiais, específicos, de permissões e interdições, de modo que elas delimitam o que pode ser dito/pensado e feito (‘contra’ o que não pode ser dito/pensado e feito)” (Veiga-Neto, 2008, p.47). Ou seja, a escola atua normalizando as prá-ticas e os saberes – determinando o que é normal e o que é anormal – de modo a homogeneizar as diferenças. No campo dos saberes, a escola seleciona os conhecimentos, definindo quais são os legítimos conteúdos escolares. Essa seleção baseia-se nas verdades da ciência e da razão, que ordenam e fragmen-tam os conhecimentos, transformando-os em temas escolares a serem traba-lhados nas diferentes disciplinas que são transpostas para a escola.

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O povo kaingang, como outras sociedades tradicionais, possui seus pró-prios meios de produzir e transmitir os conhecimentos, num processo educa-cional baseado na oralidade que permeia a vida cotidiana das pessoas de modo integral. Possuem uma concepção de mundo unificada e totalizante, conside-ram a sociedade como um todo, em que a educação não se separa, espacial e temporalmente, das demais práticas.18 O saber “é dividido a partir de graus de iniciação que o elevam, e não a partir de uma setorização de conhecimentos” (Balandier, 1997, p.156). No pensamento indígena não existe separação entre razão e emoção, ciência e intuição, e o saber refere-se “exclusivamente al hecho puro de vivir” (Kusch, 2009, p.320). Por isso, quanto mais tempo se vive, quan-to mais velho se é, mais saber se tem acumulado. Além do velho sábio, outra figura importante na formação indígena é o xamã. Segundo Rodolfo Kusch, rito e saber mantêm uma estreita relação, pois por meio do ritual o saber é revelado ao xamã. A distância entre as cosmologias indígena e ocidental é definitivamente grande; portanto, por mais que os indígenas se apropriem da escola, ela sempre será portadora de outra concepção de mundo e, por isso, representará um espaço de conflito constante.

Outra questão que suscita o registro do diário de campo diz respeito ao limite de diálogo entre a escola e a comunidade. Essa dificuldade pode estar relacionada ao fato de a gestão escolar ser não indígena. A direção nas mãos de professoras ‘brancas’ distancia a escola da comunidade e, de certa maneira, representa uma barreira para a apropriação da escola por parte dos professores kaingang. A instituição escolar, em sua origem, já pertence a outra forma de estar no mundo; sob o comando dos não indígenas é provável que se mantenha o distanciamento em relação à comunidade, que continuará a vê-la como algo alheio a seu modo de vida, apesar de fazer parte de seu dia a dia. Acredito que, se a escola for pensada e administrada pelos próprios professores kaingang – ou, pelo menos, em conjunto com eles –, será possível diminuir a distância entre os dois mundos, do ser europeu e do estar indígena. Quem sabe, assim, a escola poderá ser um lugar de encontro entre essas duas concepções, um lugar de fronteira, um verdadeiro espaço de interculturalidade que respeite os modos de ser indígenas e não um instrumento de ocidentalização, como em muitos aspectos ainda é.

Lairton também citou uma possível desconfiança das pessoas em relação à escola. Apesar de a maioria das pessoas com quem tive contato terem

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demonstrado estarem contentes com a escola, provavelmente existe certo receio quanto à instituição escolar, sobretudo dos mais velhos, que viveram um longo período de maus tratos e preconceito. O século XX, para o Kaingang, foi mar-cado pela vergonha de ser índio, de falar a sua língua, de realizar seus rituais, de ensinar os saberes ancestrais. Depois de muito tempo ouvindo que seu modo de vida e seus conhecimentos não tinham valor, ainda se percebe certa apreen-são por parte das pessoas no trato com o que vem de fora, com o que é ‘ociden-tal’. Pude perceber isso ao longo de minha pesquisa, certa desconfiança sobre os usos e destinos do meu trabalho – apesar de ter sido, de modo geral, bem recebida por todos.

Mais um ponto da fala do professor que merece reflexão é a ideia de que os professores – e a escola –, por possuírem um estatuto de sabedoria reconhe-cido pela sociedade (não indígena e também indígena), já detêm todos os co-nhecimentos. O velho Luís Emílio comprova a suspeita de Lairton de que os velhos se negariam a contar histórias e a ensinar determinados saberes kain-gang aos professores por pensarem que eles já deveriam dominar esses assun-tos: “Os professores têm que saber ensinar essas coisas”. Ele considera impor-tante que as crianças dominem as histórias kaingang, porém defende que “a história dos antigos tem que ser ensinada na escola” (grifos meus). Ele se po-sicionou contrário à ideia de os velhos irem à escola para contar histórias ou de os professores levarem os alunos à casa dos velhos. Aqui é importante des-tacar que a vida em sociedade para os Kaingang tem como valor fundamental a reciprocidade – o que leva a pensar que os velhos talvez não tenham interesse em fazer esse trabalho conjunto com as escolas porque não receberiam nada em troca. O prestígio e a remuneração ficariam com os professores. Então me pergunto: como os professores vão ensinar as histórias de antigamente na es-cola se eles não as conhecem? De alguma forma os professores têm que apren-der essas histórias. Essa atitude de alguns velhos de transferir para a escola a responsabilidade pela transmissão dos saberes não seria resultado da perda de espaço que estariam sofrendo, certo ressentimento por estarem sendo ‘substi-tuídos’ pelos professores? Afinal, como os professores indígenas, que ainda não são velhos, podem ter conhecimento para ensinar? Parece faltar uma peça nesse quebra-cabeça. Ou talvez continue faltando para sempre, pois as incom-preensões entre os modos de vida indígenas (sem a escola) e não indígenas (criadores da escola) são inerentes à existência de uma escola indígena.

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Outra questão que pode ajudar a entender por que não ocorre um diálogo legítimo entre os velhos e a escola é a questão da língua, apontada pelo profes-sor Bruno. Um ponto a se considerar é que as histórias são e existem em kain-gang e, portanto, só possuem sentido pleno se contadas na língua nativa. Tam-bém é preciso notar que a maioria dos velhos, especialistas nessas histórias, têm o kaingang como língua materna e, por isso, compreendem e se comuni-cam melhor nesse idioma. Diante disso surgem as dificuldades: para conversar com um velho e conhecer as histórias é preciso falar ou pelo menos compreen-der kaingang.

E aí, quem sabe seja a dificuldade de estar contando essas histórias, dentro da escola kaingang, quem sabe a dificuldade seja o fato de o professor não falar a lín-gua kaingang ... Porque, quando eu vou conversar com as pessoas velhas, as pessoas mais de idade, para saber alguma coisa, eu preciso falar em kaingang com ele, não tem outra opção. Tenho que falar para que ele consiga me dizer as palavras mais adequadas para cada coisa, porque ele vai buscar na memória dele essas palavras, e na memória dele, essas palavras não estão traduzidas lá. Ele sabe do jeito que ele conseguiu armazenar na memória dele. Então, ele vai poder contar daquele jeito. Então, mesmo quando eu faço entrevista com os velhos, mesmo eu sendo Kaingang eu tenho dificuldade, porque tem muitas palavras que eles usam que eu não sei também. Então, isso dificulta o professor de História a fazer isso. (Bru-no Ferreira, entrevistas, 1o e 3 out. 2011)

A situação até agora descrita é de impasse: a escola não ensina as histórias kaingang e os velhos estão cada vez mais perdendo esse espaço na comunidade. O Regimento Coletivo das Escolas Estaduais Indígenas Kaingang (2003) e a Proposta Político-pedagógica de Referência das Escolas Indígenas Kaingang Estaduais do Rio Grande do Sul (2000) determinam que a escola kaingang deve instituir uma relação de diálogo intenso com as pessoas de mais idade e mais conhecimento na comunidade. No entanto, no presente momento pude cons-tatar que isso não é uma realidade na escola Toldo Campinas. O professor de História da escola demonstra conhecer o que está estabelecido nos documentos e concorda com a ideia. Em entrevista perguntei: “Se a história dos Kaingang fosse ensinada na escola, o que aconteceria com o espaço dos velhos e das pes-soas conhecedoras da comunidade? Se mantém, desaparece? Complementa o da escola?”.

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Mas aí que a escola entra no processo. Acho que aí a escola tem que dar o espaço e oferecer essa oportunidade para que aquela pessoa que tem o conhecimento adquirido no viver de sua existência tenha a oportunidade de estar aqui. Ou te-nha a oportunidade da escola estar lá ... eu acho também que a escola tem que ser melhor relatada do povo kaingang ... Na verdade, a escola tem que ajudar a dar um levante nisso e quem tem o conhecimento dizer “olha, nós éramos assim, fomos assim e seremos assim”. (Lairton Melo, entrevista, 4 out. 2011)

“A escola tem que ajudar a dar um levante nisso” afirmou o professor Lairton. Nesse mesmo sentido pensa o professor Bruno. Para ele, o espaço dos velhos deve ser preservado na sua forma mais tradicional e a escola pode con-tribuir para isso. Bruno não acredita que o caminho para uma escola kaingang específica e diferenciada seja apenas levar os conhecimentos kaingang para dentro da escola, na forma de conteúdo escolar, como nas disciplinas de Ar-tesanato e Valores Culturais, mas sim fazer uso de processos próprios de aprendizagem para ensinar as crianças – sem abrir mão da educação tradicio-nal fora da escola. Conforme o professor Bruno, esse movimento de colocar sob responsabilidade da escola a transmissão desses conhecimentos faz que os saberes dos velhos percam valor, que essa forma de ensinar deixe de ter im-portância, na medida em que a escola já adquiriu um estatuto de “detentora dos conhecimentos verdadeiros” entre os índios. Para ele, a escola não pode assumir o lugar dos velhos da comunidade, ela deve mostrar que a história dos velhos também é verdadeira e não tem menos valor que a do livro. Ele consi-dera que a escola indígena tem o papel de valorizar os saberes kaingang e, dessa forma, estimular que a criança busque-os com a comunidade. A função da escola “é ensinar você a buscar isso. E um velho, quando ele te conta, ele está te ensinando direto ali; a fonte é ele. E a escola está ensinando você a buscar essa fonte para que você saiba a partir dele”. De acordo com Bruno, do mesmo modo pode ser feito nas aulas de História: o professor pode encorajar seus alunos a buscarem as histórias kaingang com a comunidade.

A escola precisa de apossar um pouco dessas histórias para contar. Senão ela vai ficar sem memória, a comunidade, o povo aqui vai ficar sem memória. Se os ve-lhos não contarem como surgiu essa vila aqui, as crianças não vão saber. E hoje você não consegue reunir as crianças na casa de um velho para contar ... Ela [a

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escola] poderia incentivar isso nas crianças, ou para que as crianças procurassem as pessoas, quisessem saber. (Bruno Ferreira, entrevista, 3 out. 2011)

Constatei em minha convivência na escola que temas kaingang não são objetos centrais de estudo nas aulas de História. No entanto, a etnografia per-mitiu descobrir que as histórias kaingang estão vivas. Tive a oportunidade de conhecer dois velhos, guardiões da memória, Luís Emílio e Adelino da Rosa, moradores do setor Irapuá, que me apresentaram a pontinha de um mundo rico em histórias. Que histórias são essas? Elas estão sendo transmitidas? Pode--se estabelecer alguma relação entre essas histórias e a escola? Antes de respon-der a essas perguntas é preciso refletir sobre o que é história. A concepção de história do professor Lairton é reveladora:

Eu acho que história é tudo aquilo que vive, mas história não está ali fixada em determinado lugar. Eu acho que ela se renova com o tempo. Acho que tudo é história, na verdade ... História, na verdade, é a vida da sociedade, é o que a socie-dade é, é a história dela ... História do Kaingang é tudo aquilo que relata o Kain-gang. É os contos, é as lendas. Ninguém fala história, por específico história, “História é isso do povo Kaingang”. História para o povo Kaingang é os territó-rios, é as demarcações, é as ervas, é os medicamentos, é o casamento, tudo isso é história para o povo. É as lendas, os acontecimentos que houve, as guerras. Tudo isso é história. (Lairton Melo, entrevista, 4 out. 2011)

A descrição de Lairton do que seria história vai ao encontro do conceito de grande história de Rodolfo Kusch. Segundo o autor, essa é a história da humanidade, da sobrevivência da espécie humana desde o seu surgimento. Ela está em oposição à pequena história, aquela que começa a ser construída na Europa a partir da modernidade e que conta os feitos humanos. Nas palavras do autor,

Una forma más profunda de ver la historia sería dividirla en cambio entre la gran historia, que palpita detrás de los primeros utensilios hasta ahora y que dura lo que dura la especie, que simplemente está ahí, y la pequeña historia que relata sólo el acontecer puramente humano ocurrido en los últimos cuatrocien-tos años europeos, y es la de los que quieren ser alguien. (ibidem, p.153, grifos no original)

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Para Kusch, a pequena história é a história tal como se configurou no século XIX, sob a perspectiva do positivismo. É essa história que se inicia na Europa nos princípios da modernidade, que tem suas origens na cidade e que considera relevante só aquilo que favoreceu a cultura dinâmica e urbana, ou seja, remonta à Antiguidade Clássica, por reconhecer a herança cultural desses povos deixada para a civilização ocidental, e trata a Idade Média como um período de trevas a ser esquecido. A história que se crê ciência e classifica de Pré-História tudo aquilo que antecede o início das cidades, da escrita, do co-mércio. A história como disciplina escolar, que conta a evolução das elites que representam o ser no mundo, essa forma de viver que busca transformar e modificar o meio e a natureza. No caso da América, é a história que se inicia a partir da conquista europeia do continente e ignora o passado indígena milenar.

Já a grande história é a história da humanidade. Traça o itinerário real do homem porque não tem indivíduos (figuras de líderes e heróis), mas comuni-dades. Pensa o acontecer humano no plano da espécie e reduz os descobrimen-tos técnicos, as expansões e o poderio do homem a episódios menores. Res-ponde à simples e muito profunda vivência humana em seu estar. É a história dos povos indígenas, dos povos tradicionais, dos operários, das massas. A grande história é a história do viver em comunidade, da conexão entre vida e natureza e de toda uma série de conceitos vitais que o Ocidente concretiza em termos demasiado limitados ou até exclui de sua perspectiva. Ela supõe muito mais elementos, porque representa o estar aqui indígena, que vive conectado com o meio e suas adversidades e por isso possui uma margem de possibilida-des muito maior que a elite que, por sua vez, está conectada a sua cidade e a suas técnicas.

Buscando pensar um ensino de História diferenciado na escola kaingang, adoto o conceito de grande história, pois entendo que a história que é atual-mente ensinada na escola, a do livro didático, é a história dita ‘científica’. Ela se resume à pequena história e, por isso, exclui as narrativas do povo kaingang. De acordo com a professora kaingang Márcia Gojtẽn Nascimento existem pelo menos três tipos de narrativa na cultura kaingang:

Primeiro temos as denominadas gufã, que quer dizer ancestral. São narrativas que contam as origens, nos tempos ancestrais, e relatam fatos de tempos mais

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antigos. Dentro do gênero gufã temos também as fábulas. Temos também as nar-rativas chamadas ti si kãme que são as histórias antigas e verdadeiras. Outro gê-nero, que corresponde às narrativas engraçadas – inventadas, mentiras – é co-nhecido como venh ó.19

Em minhas visitas aos velhos do Irapuá, escutei diversas histórias – muitas do gênero gufã. Histórias da participação dos Kaingang na Guerra do Paraguai, na Revolução Federalista, na Revolução de 1923; do cacique Fongue; da criação do aldeamento Guarita; das guerras com os Kanhgág ju;20 da chegada dos pa-dres; da criação da primeira escola em São João do Irapuá. Ouvi relatos do tempo em que os bichos falavam; do costume de enterrar o umbigo no lugar onde se nasce e depois voltar para morrer no mesmo local; do uso de remédios do mato pelo pai e pela mãe no nascimento dos filhos; de métodos anticon-cepcionais tradicionais. Narrativas que poucos velhos ainda sabem e quase não se contam mais, nem em casa, nem na escola. Isso leva a certa preocupação por parte dos velhos, como nos disse Adelino: “Falta chegar mais próximo dos indígenas mais de idade, se entrosar com as pessoas que são mais de idade para buscar mais o conhecimento. Assim como vocês estão fazendo. Amanhã ou depois eu não estou aí. Morri, me fui. Mas alguém está aí para [contar]”. A seguir reproduzo minha versão de uma das histórias que escutei:

Tinha um macaco comendo milho. Mas um milho caiu por uma fresta dentro de um toco de árvore. O macaco tentou pegar, mas não conseguiu. Pediu para o to-co e ele não lhe deu. Então disse que ia chamar o machado. Mas o machado não quis dar uma machadada no toco. Então disse que ia chamar o fogo. Mas o fogo não quis queimar o machado. Então disse que ia chamar a água para apagar o fogo. A água não quis ir apagar o fogo. Então disse que ia chamar o tigre para tomar a água. O tigre não quis ir tomar a água. Então ele disse que ia chamar o caçador. Aí o tigre foi atrás da água, a água foi atrás do fogo, o fogo foi atrás do machado e o machado cortou o toco ao meio e o macaco recuperou seu milho. (Luís Emílio, entrevista, 3 out. 2011)

Luís Emílio não consentiu que eu gravasse nossa conversa, por isso, tive de recorrer à minha memória, e assim escrevi a história do macaco. De acordo com a classificação das narrativas kaingang indicada por Márcia Nascimento, esse relato do tempo em que os bichos falavam se enquadraria no que ela cha-mou de gufã, pois é uma fábula dos tempos antigos. Um detalhe

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chama a atenção nessa história dos tempos antigos: a presença do machado. A incorporação dessa tecnologia ocidental à fábula, mostra que a tradição também é movimento: “Ela está dissociada da mera conformidade, da simples continui-dade por invariância ou reprodução estrita das formas sociais e culturais; a tradição só age enquanto portadora de um dinamismo que lhe permite a adap-tação...” (Balandier, 1997, p.38). Nesse processo, a tradição confere sentido ao novo e se reelabora. Essa narrativa do macaco possui uma continuidade que resiste ao acontecimento e dele se apropria. Jack Goody21 ao estudar os LoDagaa do Togo (África) descobriu que, após o contato com os europeus, eles passaram a situar o surgimento do ferro junto da criação da humanidade e da maioria dos elementos de sua cultura. As narrativas tradicionais sobrevivem de geração em geração, sempre sujeitas a novos fatos que geram adaptações e recriações.

Em conversa com o professor Bruno, ele revelou preocupação com as narrativas dos bichos que falavam. Apesar de não possuir um claro entendi-mento delas, pois na época em que as ouvia de seu pai não dava valor, acredita que elas tenham uma mensagem a passar e que os Kaingang devam buscar saber mais sobre tais histórias. Num primeiro momento em que conversamos sobre o assunto, ele afirmou pensar que esse tipo de narrativa não pertencia à dimensão da escola e que deveria ser contada pelos velhos no espaço familiar. No entanto, no decorrer da pesquisa, percebi que sua própria noção de história foi se transformando. Se a princípio ele defendia com veemência que a disci-plina de História da escola indígena específica e diferenciada deveria ensinar a história dos Kaingang, incluindo-os na narração linear dos fatos que contam a construção do Brasil, com o tempo notei que ele já passava a enxergar todas essas narrativas kaingang com outros olhos, valorizando esse saber, mesmo que diferente da História com H maiúsculo. Se as discussões sobre o ensino de História na escola, propiciadas pela desordem que trouxe minha pesquisa no cotidiano da escola e do professor, levaram a uma mudança de perspectiva por parte de Bruno, penso que, se aos professores indígenas forem oportunizados momentos de reflexão (como nos cursos de formação), muita coisa pode mu-dar nesse movimento de construção da educação escolar indígena.

De modo geral, há pouco espaço destinado à transmissão das narrativas kaingang, tanto na escola como fora dela. Na escola Toldo Campinas predomi-na a pequena história e a narrativa do livro didático. O professor de História, no entanto, encontra algumas brechas onde consegue inserir algo do que já

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ouviu/viveu e mostrar que existe outra história, a kaingang, embora não se sinta plenamente autorizado para ensiná-la. Fora da escola, em casa, há pouco espaço para a transmissão das histórias kaingang e os velhos já não têm o mesmo valor de antigamente. Entretanto, minha pesquisa constatou que as histórias ainda estão vivas. Esse é o panorama que encontrei em minha etnografia. Como agir frente ao processo de ocidentalização que ainda atua através da escola indígena, fortalecendo a história oficial e encobrindo outras histórias e outras formas de narrar histórias? De que modo lutar para que as narrativas kaingang sobrevi-vam e sejam transmitidas às próximas gerações? Quem são os responsáveis por ensiná-las? Como fazer da escola uma aliada nesse empreendimento? Essas são perguntas sobre as quais os professores, os velhos e a comunidade kaingang juntos devem pensar. Precisam refletir sobre o papel da escola indígena que se propõe específica e diferenciada nesse desafio para a manutenção e a transmis-são das histórias kaingang. “É preciso que se pense em estratégias para trazê-las de volta aos ouvidos dos mais jovens, para que se encantem nesse mundo onde o real e a magia seguem entrelaçados” (Nascimento, 2010, p.78).

NOTAS

1 Censo Escolar da Educação Básica. MEC/Inep, 2011.2 FERREIRA, Mariana Kawall Leal. A educação escolar indígena: um diagnóstico crítico da situação no Brasil. In: SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall Leal (Org.). Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. 2.ed. São Paulo: Global, 2001.3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Art. 231 e Art. 210, § 2o.4 BRASIL. Referencial Curricular Nacional para Escolas Indígenas. Brasília: MEC, 1998.5 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio Janeiro: Livros Técnicos e Científi-cos Ed., 1989.6 Esses dados da Funasa estão publicados na página da internet do Instituto Socioambien-tal. INSTITUTO SOCIOMABIENTAL/POVOS INDÍGENAS NO BRASIL. Terra Indíge-na Guarita. Disponível em: ti.socioambiental.org/#!/terras-indigenas/3680; Acesso em: 10 jul. 2011.7 RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Educação. Regimento Coletivo das Esco-las Estaduais Indígenas Kaingang, 2003. p.5, grifos meus.8 KUSCH, Rodolfo. Obras completas. Rosário: Ed. Fundacion Ross, 2009. p.3. Rodolfo Kus-ch (1922-1979) foi um filósofo argentino que se dedicou a estudar a América na sua ances-

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tralidade, defendendo a existência de um pensamento ameríndio próprio com raízes no modo de estar no mundo característico do indígena americano.9 LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi, v.1. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.10 Em muitas casas já não é possível fazer fogo de chão, pois são construídas sobre um as-soalho de madeira. Mas, como alternativa, a maioria dessas famílias possui um galpão ao lado de casa onde podem fazer o fogo na forma tradicional.11 BALANDIER, Georges. A desordem: elogio ao movimento. Rio de Janeiro: Bertrand Bra-sil, 1997.12 Panelão é o termo utilizado pelos Kaingang para se referirem ao sistema de exploração da mão de obra indígena imposto pelo Serviço de Proteção aos Índios.13 RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Educação. Regimento Coletivo das Esco-las Estaduais Indígenas Kaingang, 2003. p.5, grifos meus.14 RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Educação. Proposta Político-Pedagógica de Referência das Escolas Indígenas Kaingang Estaduais do Rio Grande do Sul, 2000. p.3, grifos meus.15 INÁCIO, Andila Nivygsãnh. Venh Kanhrãn. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida; VENZON, Rodrigo Allegretti (Org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas (RS): UFPEL, 2010. p.23.16 VARELA, Julia; ALVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Revista Teoria & Educação, Porto Alegre, n.6, p.68-96, 1992.17 VEIGA-NETO, Alfredo. Crise da modernidade e inovações curriculares: da disciplina para o controle. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO (ENDIPE), XIV. Anais... Porto Alegre, v.3, p.35-58 , 2008. p.40, grifos no original.18 BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo’e. Enquanto o encanto permanece! Proces-sos e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. Tese (Doutorado) – Programa de Pós--Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005.19 NASCIMENTO, Márcia Gojtẽn. Ẽg vĩ ki kãmén sĩnvĩ han: as artes da palavra no kaigang. In: BERGAMASCHI, Maria Aparecida; VENZON, Rodrigo Allegretti (Org.). Pensando a educação kaingang. Pelotas: UFPEL, 2010. p.85.20 Kanhgág ju é o termo em kaingang para designar o povo Xokleng, inimigos históricos dos Kaingang.21 GOODY, Jack. O roubo da história: como os europeus se apropriaram das ideias e inven-ções do Oriente. São Paulo: Contexto, 2008.

Artigo recebido em 20 de junho de 2012. Aprovado em 1o de setembro de 2012.

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Da Escola Isolada Mista da Vila do Espírito Santo do Curipi à escola diferenciada entre

os Karipuna: entrelaçamentos na história da educação escolar indígena

From the isolated mixed school of Vila do Espírito Santo do Curipi to the differentiated school among the Karipuna:

intersections in the history of the indigenous school education

Edson Machado de Brito*

ResumoO presente texto, baseado na minha tese de doutorado, apresenta a educação ka-ripuna do Amapá no contexto da edu-cação escolar indígena diferenciada na Aldeia Espírito Santo, no processo de implantação e funcionamento da Escola Isolada Mista da Vila do Espírito Santo do Curipi, situada na Terra Indígena do povo Karipuna, na região do Oiapoque, na década de 1930. O tema se entrelaça com a história da educação escolar indí-gena no Brasil, pontuando as mudanças ocorridas a partir dos anos 1980, princi-palmente em decorrência das conquis-tas constitucionais e da legislação subse-quente, que aponta possibilidades para uma educação escolar diferenciada.Palavras-chave: história da educação es-colar indígena; história da educação; educação indígena; Karipuna.

AbstractThis text, produced based on doctoral dissertation, presents Amapa’s Karipu-na education in the context of the diffe-rentiated indigenous school education in Espírito Santo Village, in its process of introduction and running of the Mi-xed Isolated School of Espírito Santo of Curipi Village, located in Karipuna’s In-digenous Reservation, in the region of Oiapoque river, in the 1930s. This sub-ject intersects with the history of indige-nous school education in Brazil, sho-wing the changes which began in the 1980s, mainly due to constitutional achievements and its subsequent legisla-tion, pointing out possibilities for a di-fferentiated indigenous school educa-tion.Keywords: history of indigenous school education; history of education; indige-nous education; Karipuna.

*Coordenador da Licenciatura Intercultural Indígena e professor de História Indígena no Instituto Federal de Educação e Tecnologia da Bahia – Campus Porto Seguro. BR 367, km 57,5 – Fontana I. 45810-000 Porto Seguro – BA – Brasil. [email protected]

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A Escola da Vila do Espírito Santo do Curipi

A escola faz parte da realidade dos Karipuna da aldeia do Espírito Santo desde a década de 1930, quando o Estado brasileiro decidiu pela ocupação efetiva da fronteira nacional na região do Oiapoque, no atual estado do Amapá, tendo como guardiões da fronteira os povos indígenas, os quais deveriam ser ‘abrasileirados’ para o cumprimento de tal tarefa. A escola fundada na aldeia do Espírito Santo no dia 1o de fevereiro de 1934, denominada Escola Isolada Mista da Vila do Espírito Santo do Curipi, por iniciativa do governo do estado do Pará, iniciou a sua atividade com 57 alunos e funcionou até 1937, como demonstra Arnaud.1 A Escola trataria não apenas do ‘abrasileiramento’ dos Karipuna, mas também de sua ‘elevação aos níveis da civilidade e do progres-so’, por intermédio da transmissão de valores novos, que promovessem o pa-triotismo, o civismo, a higiene e a preparação para o mundo do trabalho produtivo.

O contexto em que a escola foi criada interliga aspectos políticos e sociais do plano local ao plano nacional. No plano local havia a preocupação com a efetiva ocupação da fronteira nacional e a formação dos indígenas para serem os guardiões da fronteira territorial, o que incluía a formação patriótica, cívica e para o trabalho, e do ponto de vista nacional estava em andamento o plano de educação voltado para o progresso da nação. A escola era uma novidade na aldeia, iniciando uma interferência que se desdobraria no estabelecimento de uma tensa relação com a comunidade local.

Partindo da constatação de que ela remonta à década de 1930, é possível observar aspectos que fazem lembrar o projeto escolar em andamento no país no período em questão, estabelecendo semelhanças da escola indígena com a escola não indígena, reportando tais semelhanças ao conceito de forma escolar, segundo o qual:

se caracteriza por um conjunto coerente de traços – entre eles, deve-se citar, em primeiro lugar, a constituição de um universo separado para a infância; a impor-tância das regras na aprendizagem; a organização racional do tempo; a multiplica-ção e a repetição de exercícios, cuja única função constitui em aprender e apren-der conforme as regras ou, dito de outro modo, tendo por fim seu próprio fim.2

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Carvalho (2003) apresenta concepção semelhante, segundo a qual a for-ma escolar envolve “a organização espacial, o lugar do professor, a disposição dos alunos, o movimento dos grupos na classe e no pátio; a organização tem-poral, o emprego dos dias, das horas e mesmo dos minutos de aula; a repar-tição disso que chamamos tão justamente de disciplinas”.3 É possível verificar na recém-fundada Escola do Curipi aspectos que estão presentes nas escolas convencionais projetadas durante o governo Getúlio Vargas no país. Estão presentes os ideais homogeneizadores e disciplinadores próprios da época em questão. Nela, as crianças passaram por um processo de uniformização tanto nas formas de vestir como em uma ordem que transpirava a disciplinaridade e a ordem, integrando a escola da aldeia ao ideal da ‘regeneração’ e ‘superação do atraso’.

No contexto nacional, é importante destacar que na década de 1930 estava em marcha no país um projeto educacional que defendia a ideia de ‘transfor-mar a sociedade pela educação’, tirando o Brasil do atraso agrário/rural para colocá-lo no caminho do progresso. A proposta se apresentava como ‘regene-radora das populações brasileiras’ e racionalizadora do mundo do trabalho, combatendo a ‘amorfia social’, por uma ‘reforma dos costumes’. A reforma do sistema do ensino brasileiro, orientada pelos pressupostos da ‘pedagogia nova’, tinha caráter homogeneizador e conformador da sociedade, pautando os seus procedimentos na disciplina e na ideia de regrar a liberdade, visando à cons-trução de ‘uma nova civilização’. A prática regionalista da velha oligarquia brasileira foi paulatinamente substituída pelo projeto de padronização do en-sino e de centralização das atividades escolares, pela defesa da unidade de programas, de material didático, de normas e diretrizes educacionais.4

Apesar dos embates entre os grupos políticos divergentes, o modelo de educação que se instaurou após 1930 no país foi a expressão e manifestação do novo padrão econômico e social que se instalava naquela época. O projeto de Estado Nacional, de centralização e integração política e econômica, tinha a educação como base para instituir-se, visando formar física e mentalmente o ‘novo homem’ propagado pelo Estado. A escola tinha como função ‘normati-zar’ as pessoas primando por uma sociedade civilizada e ordeira, por meio de uma educação que conformasse as pessoas aos princípios defendidos pelo Es-tado (Carvalho, 2003).

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Além de estar inserida nesse contexto político-educacional, a criação da Escola da Vila do Espírito Santo está contextualizada em outro aspecto rele-vante: a questão da fronteira internacional com a Guiana Francesa. Desde o século XVII o norte do Amapá foi alvo de disputas, no primeiro momento envolvendo a Coroa portuguesa e a França e, após 1822, envolvendo o Estado brasileiro e a França. Tensões e confrontos bélicos frequentes entre amapaen-ses e franceses na região foram encerrados com a celebração do Tratado de Berna (pactuado entre o Brasil e a França), assinado em dezembro de 1900, definindo o rio Oiapoque como o limite da fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa. Ricardo5 esclarece que foi especialmente no contexto pós-Tratado de Berna que o Estado brasileiro se voltou para a formulação e execução do projeto de nacionalizar a fronteira brasileira no Oiapoque e abrasileirar os povos indígenas da região para torná-los guardiões da fronteira.

Expedito Arnaud (1989) demonstra que após a expedição oficial ao Oia-poque comandada na década de 1920 pelo então general Cândido Rondon, o Estado brasileiro decidiu pelo minucioso controle da população indígena local, visando transformá-los em efetivos cidadãos brasileiros e guardiões da fron-teira com a Guiana Francesa. Para atingir tais objetivos, a escola foi uma das instituições de maior alcance, pois nela os Karipuna aprenderam a língua por-tuguesa, abandonando a língua utilizada até então, o patuá. No entanto, a ação da escola não se restringiu à obrigatoriedade da língua portuguesa; ao mesmo tempo foi imposta a proibição dos rituais próprios daquela cultura e a intro-dução dos ritos cívicos e hábitos próprios da sociedade brasileira. Os agentes escolares penalizavam com castigos corporais os indígenas que insistissem em manter os seus hábitos e as tradições originárias.

Nesse contexto de nacionalização da fronteira, os Karipuna foram dire-tamente atingidos pelo Estado brasileiro. O relato de Rondon é esclarecedor:

Assim foi o grande etnólogo Curt Nimuendajú encontra-los, em 1925, com uma população de mais ou menos 150 almas; nesse estado encontrei-os também, em 1931, contando a essa altura 196 pessoas.

População ordeira, boa e trabalhadora, fabricando já 60% da farinha produzida na região, são de suas plantações as saborosas laranjas e tangerinas que vem ao Oiapoque.

Em 1934, o Cel. Magalhães Barata, então interventor federal do Pará, entre as incontáveis escolas que criou no estado, criou também 3 entre os índios Galibir,

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Pariucur e Caripuna, sendo que esta última, pelo grau de adiantamento em que se achavam os índios, deu ótimos resultados. Este é o motivo por que, entre os Caripuna, existem alguns que leem e escrevem, embora pouco.

A ação do Serviço de Proteção aos Índios tem sido benéfica e a ela muito se deve o progresso econômico e cultural dessa gente, que faz questão de ser índia e que ainda conserva muitas das suas tradições e costumes.6

Fica evidente que o Estado brasileiro passou a intervir sistematicamente na vida dos Karipuna. A escola fundada entre eles, em 1934, à qual Rondon se reporta, foi instalada no bojo do projeto de nacionalização daquela fronteira. Eneida Assis7 conclui que a escola instalada na Vila do Espírito Santo funcio-nava como um ‘centro de controle’ que visava integrar os Karipuna à comu-nhão nacional, colaborando com a fixação deles em território brasileiro, uma vez que frequentemente os Karipuna conviviam dispersos nas cidades da Guia-na Francesa e na região do Oiapoque. Paralelamente, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) estimulou o desenvolvimento e a diversificação das atividades produtivas entre os Karipuna, mediando a comercialização entre indígenas e não índios, evitando que os primeiros fossem explorados (Arnaud, 1989, p.19).

Sobre a escola entre os Karipuna, Arnaud (1989) informa que à época da sua fundação, em 1934, havia 57 alunos, e que entre outras atividades pedagó-gicas as crianças cantavam diariamente o Hino Nacional e tinham aulas de civismo. Tassinari afirma que “a escola que funcionava no Curipi, inicialmente na aldeia do Espírito Santo e logo transferida para Santa Isabel, tinha sinais cotidianos de ordem, respeito às autoridades e aos símbolos nacionais”, assim como informa sobre os “antigos métodos da palmatória e da proibição do uso do patois na sala de aula”.8

Arnaud9 esclarece que a escola fundada entre os Karipuna, assim como as demais escolas criadas no Uaçá, em 1934, tiveram duração curta, tendo encer-rado as atividades em 1937. No entanto, Rondon observa que a escola entre os Karipuna deu ótimo resultado, “pelo grau de adiantamento em que se acha-vam” aqueles indígenas (Rondon, 1953, p.282).

Dona Acelina Forte, Kariouna de 75 anos, em entrevista concedida em 2008, informou que foi aluna da primeira escola fundada na aldeia, em 1934. Narrando as suas memórias do tempo de aluna, ela descreve que:

Naquele tempo era bom. Não era igual hoje que os pequenozinho ficam solto por

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aí. Tinha que estudar, saber os números, tinha que ler. A professora Verônica era pessoa boa, mas ela era braba. Ela tinha uma régua de pau que batia na mão de quem não aprendesse o que ela ensinava. Eu estudei a terceira série com ela e le-vei muitas palmadas para aprender.

O depoimento de dona Acelina deve ser considerado sob duas perspecti-vas, pelo menos: em primeiro plano deve-se considerar que a professora Ve-rônica atuou por várias décadas na região do Uaçá, o que abre a possibilidade de dona Acelina ter sido efetivamente aluna de dona Verônica em algum tem-po. De outro ponto de vista, deve-se pensar a memória como uma construção dinâmica que se atualiza nas relações sociais e no tempo. Como se verá adiante, em diversas entrevistas os depoentes convergem no sentido de elogiar a pro-fessora Verônica, fato que pode ter colaborado na construção da memória de dona Acelina.

Outro depoimento, complementar, foi concedido em julho de 2009 pelo senhor Manuel dos Santos, de 88 anos, que não soube identificar com precisão o tempo cronológico dos fatos que narrou, mas forneceu inúmeras informa-ções significativas sobre a escola na aldeia do Espírito Santo nos anos iniciais de funcionamento. Diz ele:

Não lembro quanto tempo estudei, mas lembro que só tinha até a 5a série, depois não tinha mais nada pra estudar. A escola não era lá em cima onde é hoje, ela era em outro lugar. A dona Verônica ensinava de tudo, ela era muito inteligente, ela ensinava matemática, português e outras coisas. Era a Funai que trazia ela pra cá e ela batia com uma palmatória, batia na mesa, na mão da gente, mas ao menos a gente aprendia. As coisas dos índios não podia fazer na escola, ela não deixava. Foi bom que aprendemos a língua dos brasileiros.

A professora foi contratada pelo governo do estado do Pará e depois pelo SPI para vir trabalhar na região do Curipi – e não pela Funai, como expressou o senhor Manuel Santos –, pois conforme Tassinari, a professora atuou no Curipi “por quase trinta anos” (2003, p.357), portanto, não exerceu a docência durante a ditadura militar, quando foi criada a Funai, uma vez que ela chegou à região na década de 1920.

De toda forma, as narrativas dos entrevistados evidenciam a implantação de um modelo de educação escolar pautado em práticas conservadoras que,

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no entanto, não foram recebidas com animosidade, pois todos mostraram sim-patia pela professora. Segundo Tassinari (2003), a professora Verônica tinha grande aceitação entre os Karipuna, sendo até reconhecida como ‘nossa pa-rente’ por eles. Ela chegou ao Curipi em 1924, sendo originária da região de Vigia, estado do Pará, e aceita pela comunidade, segundo afirma Tassinari: “Não conheci um Karipuna que não tenha elogios para a professora Verônica, mesmo da parte de ex-alunos, elogios dos antigos métodos da palmatória e da proibição do uso do patois na sala de aula” (2003, p.361). Em nome da escola, a professora determinou ainda a proibição das práticas xamânicas, sob pena de severos castigos corporais, como atestam os próprios depoentes.

De fato, contraditoriamente, os mais velhos falam das proibições e enten-dem claramente que a escola implantada na aldeia interferiu na organização social da comunidade, mas afirmam o tempo todo que aquilo foi positivo no aprendizado de novos conhecimentos, necessários à realidade local, uma vez que os Karipuna mantêm relações comerciais e políticas com o entorno, desde o século XIX.

No entanto, mais importante do que a constatação do vínculo institucio-nal da professora Verônica é a análise das suas ações pedagógicas e dos desdo-bramentos da sua presença na aldeia do Espírito Santo por décadas. Por mais que dona Verônica tivesse a confiança dos Karipuna e fosse considerada por eles como uma ‘pessoa inteligente’, a realidade é que ela esteve à frente do projeto de educar para ‘abrasileirar’, uma política educacional que, no limite, se assemelha ao projeto jesuítico nos meios indígenas à época colonial, res-guardando as devidas diferenças. Assis (1981) explica que as professoras que atuavam na região do Curipi tinham o poder de decisão administrativa e cur-ricular nas escolas, e na escola da aldeia do Espírito Santo dona Verônica es-tabeleceu a obrigatoriedade de todos falarem a língua portuguesa, não apenas na escola, mas em toda a aldeia.

Além das evidências expressas nos depoimentos dos velhos Karipuna da aldeia do Espírito Santo, a bibliografia sobre a temática evidencia a extensão da influência da professora Verônica no meio Karipuna. Tassinari (2003) es-clarece que “a escola, no Curipi, não pode ser entendida como uma instituição externa e alheia às vontades dos grupos, mas foi incorporada, na professora Verônica, como parente, como parte da família” (p.359). Nessa perspectiva, a escola naquela aldeia assume uma contradição, pois as práticas pedagógicas

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desestruturadoras das tradições locais passaram a ser vistas com bons olhos por grande parte dos Karipuna. Tassinari observa que a professora Verônica era uma profissional carismática, criativa, sensível e enérgica. Daí, a autora faz a seguinte inferência:

Logo, pode-se entender a aceitação por parte das famílias da maioria das regras e imposições trazidas pela escola não apenas como uma relação de ‘opressão’ entre governo/SPI e as famílias indígenas, sendo estas últimas o polo passivo da rela-ção. Pelo contrário, houve engajamento ativo das famílias no projeto de escola e mesmo as políticas de ‘abrasileiramento’ foram vistas como alternativas para ‘me-lhorar’, ‘progredir’. (2003, p.360)

Além dos argumentos já apresentados, é importante considerar que a re-gião do Curipi é de difícil acesso, distante dos centros urbanos e dos órgãos de decisão. Ainda hoje os professores são muito respeitados entre os indígenas, sejam professores indígenas ou não índios. Esses esclarecimentos elucidam a força política que a professora Verônica exercia sobre os Karipuna durante as décadas de 1920, 1930 e 1940. Mas é evidente que em última instância o poder da professora emanava do Estado, assim como as regras e metodologias peda-gógicas utilizadas nas escolas das aldeias. O Estado brasileiro declarava que o seu projeto entre os Karipuna pretendia ‘abrasileirar’, fazer ‘progredir’ e ‘su-perar o atraso pelo trabalho produtivo’, implantando ‘novos modos de vida’.

Assis (1981) considera que as ações pedagógicas utilizadas por dona Ve-rônica contribuíram de forma decisiva para que a comunidade Karipuna na aldeia do Espírito Santo deixasse de ensinar o patuá para as crianças, fato que levou não apenas ao abalo das tradições Karipuna como um todo, mas também ao quase total abandono da língua nativa durante décadas.

Apesar do curto funcionamento na sua primeira fase, até 1937, a escola entre os Karipuna, na avaliação do governo do estado do Pará e do SPI, tinha apresentado ótimos resultados, demonstrados no fato de que alguns daqueles indígenas ‘aprenderam a ler e escrever’ (Rondon, 1953, p.282). Provavelmente a escola não teve continuidade por falta de recursos financeiros e apoio técnico, pois apesar da presença do SPI na região, a sua ‘atuação ocorre de modo su-perficial’ nessa fase. Por intermédio de um Delegado, limitou-se a intermediar as transações comerciais dos povos indígenas com os não índios, não tendo a instituição assumido efetivamente a educação escolar na região.

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Portanto, as atividades das escolas da região do Uaçá, particularmente entre os Karipuna, foram suspensas entre os anos de 1937 e 1948, período que coincide com a implantação do Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial e a criação do Território Federal do Amapá. Ressalta-se que o projeto educacional implantado na Escola do Curipi e seus desdobramentos nos anos seguintes são pautados por parâmetros nacionais, ou seja, o civismo, a educação física e o incentivo aos trabalhos manuais são aspectos comuns em todas as escolas du-rante o governo Vargas, independentemente de serem indígenas ou não. Por-tanto, qualquer tipo de opressão era igualmente comum a todos.

No entanto, considerando a história dos povos indígenas, é importante voltar os olhos para a particularidade Karipuna da aldeia do Espírito Santo, destacando dois aspectos relevantes para análise em termos da presença da escola: primeiro, trata-se de um povo indígena, com língua e tradições parti-culares, portanto, diversas do restante da comunidade nacional; segundo, trata--se de um povo situado numa região de permanentes conflitos de limites ter-ritoriais, nos quais o Estado nacional decidiu intervir por intermédio da escola.

Seguindo as análises sobre a atuação da escola na região do Uaçá, Arnaud (1984) afirma que a partir de 1942 o SPI se tornou mais atuante na localidade, assumindo a responsabilidade pela escola entre os indígenas, tendo estado ela anteriormente sob responsabilidade do governo do estado do Pará. O autor descreve algumas atividades desenvolvidas pelo órgão junto aos povos indígenas:

criou uma ajudância na Vila do Espírito Santo (hoje cidade do Oiapoque) e ins-talou um posto de nacionalização na confluência do Uaçá com o Curipi (Incru-so), passando desde então a aplicar uma série de planos tendo em vista o desen-volvimento da lavoura e da pesca, o estabelecimento da pecuária e de indústrias, a criação de um entreposto comercial para transacionar com os índios, e a pres-tação de assistência sanitária e escolar. (Arnaud, 1984, p.21)

O SPI criou em 1948 uma escola entre os Karipuna, na localidade em que hoje está a aldeia de Santa Isabel (em frente à aldeia do Espírito Santo, do outro lado do rio), reintroduzindo a escola na localidade. Arnaud afirma que desde então a escola manteve uma média de 75 alunos, de 7 a 17 anos, e que a sua estrutura curricular seguia o roteiro do Território Federal do Amapá, incluindo

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“o ensino de orações cristãs, hinos patrióticos e das festas cívicas nacionais” (1989, p.103). Tal proposta curricular estava pautada na ‘pedagogia da nacio-nalidade e do civismo’, prevista no Regulamento do SPI, aprovado pelo De-creto 736, de 6 de abril de 1936. O autor acrescenta que esses ensinamentos “foram ampliados através do aprendizado de costura à máquina para as me-ninas e do plantio de hortas para ambos os sexos” (ibidem, p.103).

Seu Manoel dos Santos, em entrevista concedida em julho de 2009, lem-brou-se da escola que funcionou na aldeia de Santa Isabel: “Lá os meninos ti-nha aula de horta e de artesanato, as mulheres também iam pra horta, mas aprendia a cozinhar, costurar e fazer outras coisas de mulher ... Todo dia eles cantavam o hino nacional e marchavam pela aldeia”. Portanto, verifica-se que além das influências da política nacional para a educação brasileira, as escolas indígenas na região do Uaçá estavam submetidas a outros aspectos e interesses, entre eles, as políticas indigenistas do SPI e as ações do Estado para a segurança nacional em território de fronteira internacional. Obviamente, todas essas ações ocorriam de forma integrada, e não isoladamente.

Arnaud ressalta que a partir da década de 1950 a representação do SPI local sofreu um drástico corte em seus recursos financeiros, pois o SPI nacional decidiu concentrar os recursos da Instituição na resolução de conflitos abertos no sul do Pará, entre indígenas e seringueiros, o que provocou o desdobramen-to de dois problemas imediatos na região do Uaçá: a precarização salarial dos servidores e a sua constante rotatividade, uma vez que pediam dispensa em razão dos baixos salários, mesmo os professores. Segundo o autor, as iniciativas para a resolução dos problemas por parte do administrador local do SPI não foram bem sucedidas, mas de toda forma Arnaud afirma que “no setor escolar, os trabalhos não sofreram interrupção, havendo a frequência nas duas escolas se mantido com médias idênticas às da fase anterior (75 alunos)” (1989, p.107). As duas escolas às quais Arnaud se reporta são a escola Karipuna de Santa Isabel e a escola do povo Galibi.

A partir de 1964, as escolas indígenas do Uaçá passaram a contar com professores contratados pelo governo do Território Federal do Amapá, me-diante convênio firmado com o SPI visando resolver o problema da carência de profissionais. No entanto, a rotatividade desses profissionais continuou em razão de sua pouca experiência junto às comunidades indígenas (Arnaud, 1989). Os professores ficavam algum tempo na aldeia e desistiam por causa do

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isolamento e das diferentes formas de vivência na localidade, típicas dos povos do Uaçá, fato que pode ser entendido como um indício em dois sentidos: em primeiro plano o Estado mantinha abertamente a política da ‘assimilação’ dos povos da região, pela manutenção da escola e de professores que não conhe-ciam e nem respeitavam as diversidades sociolinguísticas; num outro plano, observa-se o caráter reativo e a potência dos povos indígenas e dos Karipuna, em especial, que mantinham suas fronteiras identitárias a ponto de amedrontar os ‘forasteiros’ ou ‘brasileiros’, como eles mesmos denominam. Fica evidente que o antigo projeto de extinguir as diferenças mediante a ‘assimilação dos povos indígenas à comunhão nacional’ nunca foi uma tarefa simples ou sem resistência por parte desses povos.

A respeito da situação das escolas no Uaçá, Ricardo (1983) se posiciona de maneira diferente da proposição de Arnaud: verifica que entre 1950 e 1967 as escolas na região do Uaçá funcionaram de forma precária e irregular. A partir do final da década de 1960, com a presença da Funai na região em par-ceria com o governo do Território Federal do Amapá, a escola entre os Kari-puna passou a contar com mais recursos e contratação de pessoal. A partir de 1970 a Funai oficializou, por convênios, a transferência definitiva da educação escolar indígena no Amapá para o governo do Território, que através da sua Secretaria de Educação assumiu toda a estrutura educacional das escolas das aldeias, até mesmo a definição curricular para as escolas Karipuna, mas sem considerar a especificidade indígena, como lembra Assis (1981).

Segundo Tassinari,10 em 1976 foi criada uma nova escola na aldeia do Espírito Santo, a qual viria a se chamar posteriormente de Escola Estadual João Teodoro Forte. A partir de 1978 as escolas indígenas do Amapá adotaram o novo programa curricular para as escolas de zona rural de 1a a 4a séries, o qual incluía Comunicação e Expressão (Português), Matemática, Ciências, Integra-ção Social e Estudos Sociais.

Ricardo (1983) diz que o entrosamento da Funai com o governo do Ter-ritório Federal do Amapá se deu apenas a partir da década de 1980, tendo como parceiro a Secretaria de Educação do Município do Oiapoque, introdu-zindo os Projetos Mobral e Casulo nas escolas indígenas.

Diante do exposto, é possível perceber as ambiguidades da escola implan-tada entre os Karipuna, em 1934, e seus desdobramentos nas décadas seguintes. A perspectiva crítica fundada na proposta da educação escolar indígena

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diferenciada, que busca fortalecer e valorizar as tradições indígenas no diálogo intercultural, concebe que a escola fundada na aldeia do Espírito Santo e as suas ações pedagógicas prolongadas até a final da década de 1980 foram desar-ticuladoras das formas tradicionais de organização desse povo, negando os princípios da educação propriamente Karipuna. O funcionamento daquela escola com os seus mecanismos punitivos, a separação entre meninos e meni-nas em espaços diferentes e a obrigatoriedade em falar o português, entre ou-tros aspectos, explicitam a imposição de um modelo educacional de homoge-neização cultural e etnocêntrico.

Educação Escolar Indígena Diferenciada

A educação escolar indígena diferenciada é um projeto em construção na sociedade brasileira. Conforme demonstra Dias da Silva (1997), a proposta é necessária, pois:

Como se sabe, ao longo da história, temos exemplos que evidenciam os resulta-dos desastrosos que distintos programas de ‘educação para índios’ acarretaram para as populações indígenas ... Penso que é preciso ir além do ‘respeito ao outro’. O respeito entre as culturas, o ‘dar lugar e espaço às diferenças’, é um passo – de-cisivo – mas que não esgota o delicado processo de construção de uma sociedade plural.11

A autora concebe a educação escolar indígena diferenciada como um ins-trumento “que pode vir a ser algo que contribua para a vida dos povos indíge-nas (operando não sem riscos e contradições) apesar de sua história e objetivos integracionistas” (ibidem, p.64).

Atualmente o Estado brasileiro e as agências promotoras da educação escolar indígena defendem um modelo de escola indígena diferenciada que fortaleça e valorize as tradições desses povos, tendo o bilinguismo, a intercul-turalidade e a especificidade como bases fundamentais da escola. No entanto, há uma tensão entre o discurso declarado e as práticas efetivas, pois quase sempre o que a lei estabelece não é respeitado pelo poder público.

A educação escolar indígena diferenciada pode ser inicialmente definida como a busca da alternativa à educação escolar indígena de viés colonizador.

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Gersem Luciano12 concebe a educação escolar indígena diferenciada como um instrumento de respeito aos complexos sistemas de pensamentos e modos de produzir e de organização social que os povos indígenas criam e reelaboram ao longo do tempo. Tais conhecimentos devem ser potencializados com o diálogo com os demais conhecimentos não indígenas. O entendimento de Luciano con-verge com a sugestão de Mindlin (1994), que defende a proposta de que:

O ponto de partida para todo o conteúdo a ser ensinado aos índios é a cultura indígena – valorizar o que são, fazer deles pesquisadores do próprio mundo e do saber dos mais velhos, extrair os fios antigos de um conhecimento e formas de vida que estão sendo abandonados.13

Os autores citados apontam caminhos inovadores e diferentes das políti-cas públicas que o Estado projetou para os povos indígenas até o final do século passado, quando teve início o movimento pela educação escolar indígena diferenciada.

Os debates em torno da escola que atenda aos interesses dos povos indí-genas e que valorize os seus conhecimentos está em pauta desde o final da década de 1970, sendo tema de debate tanto pelo poder público como pelo movimento indígena, em colaboração com as organizações indigenistas. A partir da década de 1970, a população indígena brasileira iniciou o processo de reorganização, avançando significativamente na conquista de espaços so-ciais e políticos. Ângelo (2002) considera que as mobilizações e organizações dos povos indígenas, com o apoio dos setores democráticos do país, iniciaram um movimento sistemático para contrariar as ações do Estado brasileiro em termos do projeto integracionista. Paulatinamente o movimento indígena foi se fortalecendo e organizando as suas lutas em busca da autodeterminação e da conquista da cidadania, iniciando timidamente o debate em torno da escola demandada pelos próprios povos indígenas.

A partir da década de 1980, os movimentos em torno da Constituinte indicavam novos rumos para a política indigenista no Brasil. A Constituição promulgada em 1988 definia nos artigos 210, 215 e 231 os parâmetros que a educação escolar indígena deveria seguir. Abria-se formalmente a possibilida-de da educação escolar indígena diferenciada, com objetivos e formas de fun-cionamento específicos, diferentes das escolas não indígenas. A proposta da educação escolar indígena diferenciada prioriza o ensino na língua originária,

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respeitando a especificidade de cada povo, o que significa dizer que não há um formato unitário de educação escolar indígena diferenciado para todos os po-vos, daí o seu caráter específico e comunitário.

A partir da Constituição Federal de 1988 a educação escolar indígena passou a receber um tratamento diferenciado por parte do Ministério da Edu-cação, ou melhor, o Decreto 26/1991 transferiu a responsabilidade pela educação escolar indígena da Funai para o Ministério da Educação (MEC). Dessa maneira o MEC assumiu a coordenação das ações educacionais junto aos povos indígenas no país, em parceria com as secretarias estaduais e muni-cipais de educação e instituições de ensino superior, tanto em termos de finan-ciamento e cooperação técnica, quanto em relação à definição de diretrizes curriculares, estabelecendo a necessidade do diálogo franco e participativo com as comunidades indígenas nas definições curriculares. Faz parte das políticas de educação escolar indígena diferenciada a criação de programas de formação específica para professores indígenas e de publicação de materiais didáticos diferenciados, além da elaboração de programas específicos para o atendimen-to das necessidades das escolas indígenas.

A Portaria Interministerial 559/1991 deliberou sobre a criação da Coor-denação Nacional da Educação Escolar Indígena e dos Núcleos de Educação Escolar Indígena no âmbito das Secretarias Estaduais de Educação, com repre-sentação de entidades indígenas, bem como estabeleceu as orientações gerais da educação escolar indígena diferenciada, intercultural, bilíngue e específica. Dois anos depois, o MEC publicou o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI),14 objetivando oferecer subsídios para a formulação de planos de aulas e projetos pedagógicos para as escolas indígenas.

Os avanços legais direcionados à educação escolar indígena diferenciada prosseguiram com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Bra-sileira (LDB), Lei 9.394/1996.15 O parágrafo terceiro do artigo 32 “assegura às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos pró-prios de aprendizagem”, e os artigos 78 e 79 estabelecem que:

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integra-dos de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

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I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas e ciências;

II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias.

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no pro-vimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.

§ 1o Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.§ 2o Os programas a que se refere este artigo, incluídos nos Planos Nacionais

de Educação, terão os seguintes objetivos:I – fortalecer as práticas socioculturais e a língua materna de cada comunidade

indígena;II – manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à

educação escolar nas comunidades indígenas;III – desenvolver currículos e programas específicos, neles incluindo os

conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;IV – elaborar e publicar sistematicamente material didático específico e dife-

renciado.

No bojo dos debates sobre os direitos constitucionais e particularmente os direitos formalmente constituídos, referentes à educação escolar indígena diferenciada, aflora um otimismo quanto às possibilidades da educação escolar como instrumento de fortalecimento e valorização dos povos indígenas. A partir da Constituição Federal de 1988 e da LDB desencadeou-se um amplo corpo legal regulamentando a educação escolar indígena diferenciada. A Re-solução no 3 (CNECEB), de 10 de novembro de 1999, por exemplo, fixa as diretrizes para o funcionamento das escolas indígenas.16 Conforme estabelece a Resolução, as escolas indígenas deverão respeitar a realidade de cada povo, criando currículos que atendam a diversidade desses povos. O parágrafo único do 6o artigo estabelece a garantia de os professores indígenas realizarem a sua formação em serviço. O documento define que a educação escolar indígena diferenciada deverá ocorrer em sistema de cooperação das três esferas

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governamentais (União, estados e municípios), e que os municípios deverão ofertar a educação escolar indígena se tiverem interesse e condições de ofertar.

Outro documento que formaliza a educação escolar indígena diferenciada estabelecendo os parâmetros de seu funcionamento é o Decreto 6.861/2009, que reafirma os compromissos dos documentos anteriormente apresentados, especialmente a Resolução no 3 de 1999, criando os territórios etnoeducacio-nais. O documento esclarece que

cada território etnoeducacional compreenderá, independentemente da divisão político-administrativa do País, as terras indígenas, mesmo que descontínuas, ocupadas por povos indígenas que mantêm relações intersocietárias caracteriza-das por raízes sociais e históricas, relações políticas e econômicas, filiações lin-guísticas, valores e práticas culturais compartilhados. (artigo 5°, parágrafo único)

Paralelamente ao processo de formalização da educação escolar indígena diferenciada, ocorre um acirrado debate nacional sobre a temática nas acade-mias e nos meios sociais, com a produção de uma extensa bibliografia sobre o tema e criação de órgãos públicos específicos para administrar essa modalidade de escola, tanto no nível nacional quanto no local, nos estados e municípios.

Analisando as possibilidades da educação escolar indígena, Ângelo17 de-fende que a melhor escola indígena é aquela pensada, elaborada e gerida pela própria comunidade, que respeite os interesses e a forma de organização de cada povo. Essa perspectiva confronta com o velho modelo das escolas indí-genas que pretenderam ‘civilizar’, catequizar ou ‘integrar’ os indígenas à co-munhão nacional, impondo normas e um currículo escolar desvinculado da realidade indígena.

Atualmente, a legislação que rege a educação escolar indígena no Brasil aparentemente se distanciou do ideal de ‘integrar’, ‘assimilar’ e catequizar. A retórica do Estado aponta para o respeito à diversidade desses povos, tendo a escola como o espaço para a valorização e o fortalecimento dos seus modos de organização social. No entanto, a realidade nem sempre está em sintonia com o que determina a legislação. A esse respeito, Meneses observa que

a educação indígena vive dilemas e conflitos entre a ‘teoria’ e a ‘prática’. Por um lado, tem-se uma legislação ambiciosa e sedutora, que promete proteger e incen-

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tivar as diversas culturas indígenas, resgatando suas línguas, promovendo seus valores e admitindo suas diferenças e, por outro, há uma implementação precária das propostas diferenciadas, muito distantes do idealizado pelas leis e com gran-de dificuldade de se afastar do modelo nacional de educação.

Um dos aspectos questionáveis da real natureza ‘diferenciada’ dos projetos pedagógicos da educação indígena é a insistente ênfase na alfabetização dos po-vos indígenas.18

Alguns estudos têm chamado a atenção para as dificuldades e os limites da implantação da educação escolar indígena diferenciada. Dalmolin (2004), por exemplo, aponta o pouco empenho do poder público na questão, ao passo que Dias levanta a problemática da “introdução da escrita, enquanto nova forma de expressão” (1997, p.60) e os perigos de a tradição oral ser suplantada. A autora conclui: “A tradição oral é a única linguagem que não se pode saque-ar, roubar, repetir, plagiar, copiar...” (ibidem, p.60).

Dias da Silva (1997) apresenta como uma das maiores tensões no campo da educação escolar indígena diferenciada a utilização da escrita, em que estão em campos diferentes duas formas de linguagem: “a tradição cultural, onde a grande força é a oralidade, versus a nova forma de expressão e registro, a es-crita” (ibidem, p.59). A autora afirma que um dos desafios dessa proposta educacional é conciliar as duas formas de linguagem, sem prejuízo para a tra-dição originalmente indígena, a oral. Outro aspecto colocado pela autora é o tema da interculturalidade, em que o diálogo entre os diferentes povos deve se dar numa situação de segurança, pois a “dialogicidade não se constrói enquan-to posição de entreguismo ou retirada, nem é estabelecida entre vencidos e vencedores” (ibidem, p.61). Nesse sentido, talvez não seja possível uma edu-cação escolar intercultural enquanto os povos indígenas estiverem em situação de vulnerabilidade em termos territoriais, por exemplo.

Sobre a possibilidade do diálogo intercultural na escola indígena, Repetto (2008) observa que:

Não adianta pensar em interculturalidade na educação se o sistema não cumpre suas obrigações com materiais para que o diálogo ocorra; isto significa investi-mento na formação de profissionais da educação, investimento em infraestrutura adequada aos interesses e realidade dos povos, não apenas impor escolas padro-nizadas e envio de merendas estragadas ou pouco valorizadas pelas culturas, e

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ainda materiais escolares homogeneizantes e fora da realidade, significa que che-gue a merenda e que seja de qualidade, dentro do conceito de qualidade de cada povo e comunidade.19

O autor lembra que o diálogo intercultural não é simples e que a educação intercultural indígena não pode se pautar apenas em pressupostos conceituais e epistemológicos; mais que isso, serão necessárias ações políticas e investi-mentos financeiros efetivos, caso contrário a proposta se limitará ao campo do discurso.

Dalmolin20 reconhece que apesar das dificuldades e do pouco empenho do poder público, a educação indígena diferenciada alcançou conquistas já visíveis, se comparada com a perspectiva da ‘escola para os índios’ que por séculos funcionou com a intenção de integrar os povos indígenas à comunhão nacional. No entanto, Luciano insiste em que a educação escolar indígena diferenciada parte da premissa de que é necessário superar o já falido modelo de educação integradora.

A educação escolar indígena diferenciada é um processo de incipiente implementação que depende da vontade política do poder público e da adoção de medidas concretas para a sua efetiva realização. Do ponto de vista das po-líticas curriculares, a proposta deve ser entendida somente como um instru-mento que já faz parte da realidade escolar indígena desde a chegada dos por-tugueses ao Brasil, podendo tomar outros caminhos, com mais proximidade em relação à realidade dos povos indígenas, diferente do viés integracionista historicamente assumido pelo Estado. Certamente não será a escola quem en-sinará o indígena a ser o que ele é; ela pode apenas colaborar, criando práticas curriculares que levem em conta as histórias e os modos de organização social próprios desses povos. A escola não será a redentora das tradições indígenas, e é improvável que ela abandone todos os ranços herdados da escola catequi-zadora e ‘civilizadora’.

No Amapá, a proposta da educação escolar indígena diferenciada está em debate desde o final da década de 1980. A promulgação da Constituição Fede-ral de 1988 transformou o Território Federal do Amapá em estado da Federa-ção e, em 1991, a recém-criada Assembleia Legislativa daquele estado promul-gou a Constituição estadual, estabelecendo no seu artigo 330, parágrafo terceiro:

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Art. 330. O Estado proporcionará às comunidades indígenas o ensino regular, na língua indígena original da comunidade e em português, devendo o órgão esta-dual da educação desenvolver programas de formação de professores indígenas bilíngues para o atendimento dessas comunidades.

O texto constitucional é bastante claro na formulação dos parâmetros da educação escolar indígena diferenciada voltada aos povos indígenas daquele estado.

Do ponto de vista do protagonismo indígena, lideranças e professores indígenas realizavam assembleias frequentes para debater sobre a educação escolar indígena diferenciada. Em 1995 ocorreu a criação da Associação dos Professores Indígenas do Oiapoque (Opimo), uma organização que se encon-tra fortalecida atualmente no Amapá.

Na aldeia Karipuna do Espírito Santo os debates aconteciam, tendo como articulador principal o Karipuna Fernando Forte, que em entrevista concedida em outubro de 2009 deu este depoimento:

Apesar do nosso distanciamento em relação aos centros urbanos, nós, povos in-dígenas do Oiapoque estamos muito organizados, estamos entre os índios mais bem articulados do Brasil. Desde o início das discussões sobre a educação dife-renciada nós estamos acompanhando tudo, realizando encontros locais e viajan-do para os encontros nos outros estados e em Brasília. Queremos nossa escola forte e nossos filhos cada vez mais sabidos, sem deixar a cultura de lado.

Conforme demonstra Ricardo (1983), desde a década de 1980 o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) vinha realizando experiências educacionais diferenciadas na escola da aldeia do Espírito Santo, expressando a necessidade de valorizar e fortalecer as tradições Karipuna, com a produção de materiais didáticos próximos à realidade local e a formação de professores indígenas para atuar nas escolas das aldeias.

Portanto, a escola da aldeia do Espírito Santo vem acompanhando os debates sobre a proposta da educação escolar indígena diferenciada desde o início da sua projeção, o que não significa nem de longe que a escola naquela aldeia esteja numa situação tranquila de implantação e execução da proposta diferenciada.

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NOTAS

1 ARNAUD, Expedito. O índio e a expansão nacional. Belém: Cejup, 1989.2 VINCENT, Guy et al. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n.33, p.7-47, jun. 2001. p.37-38.3 CARVALHO, Marta M. C. A escola e a República e outros ensaios. Bragança Paulista (SP): Edusf, 2003. p.314.4 SCHWARTZMAN, Simon. (Org.). Estado Novo, um auto-retrato (Arquivo Gustavo Ca-panema). Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.5 RICARDO, Carlos A. Povos indígenas no Brasil. São Paulo: Cedi, 1983. (v.3, Amapá/Nor-te do Pará).6 RONDON, Candido M. S. Índios do Brasil das cabeceiras do rio Xingu, dos rios Araguaia e Oiapoque. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura, 1953. v.II, p.282.7 ASSIS, Eneida Correia de. Escola Indígena: uma frente ideológica? Dissertação (Mestra-do) – PPGAS, UnB. Brasília, 1981.8 TASSINARI, Antonella Maria I. No bom da festa: o processo de construção cultural das famílias Karipuna do Amapá. São Paulo: Edusp, 2003. p.361.9 ARNAUD, Expedito. Os índios Palikur do rio Urucauá: tradição tribal e protestantismo. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1984. (Publicação avulsa, 38).10 TASSINARI, A. M. I. Da civilização à tradição: os projetos de escola entre os índios do Uaçá. In: SILVA, Aracy Lopes; FERREIRA, Mariana K. Leal (Org.). Antropologia, História e educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001.11 DIAS DA SILVA, Rosa H. Povos indígenas, Estado Nacional e relações de autonomia: o que a escola tem com isso? In: In: MATO GROSSO. Secretaria de Estado da Educação. Urucum, jenipapo e giz: a educação escolar indígena em debate. Cuiabá: Entrelinhas, 1997. p.66.12 LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/Secad; Museu Nacional, 2006.13 MINDLIN, Betty. O aprendiz de origens e novidades: o professor indígena, uma expe-riência da escola diferenciada. Estudos Avançados, São Paulo, v.8, n.20, jan.-abr. 1994. p.235.14 BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. Brasília, 1998.15 BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases Educação Brasileira. Brasília: Senado Federal, 1996.16 BRASIL. Resolução 03/99/CNE: Fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das es-colas indígenas. Brasília: MEC, 1999.17 ÂNGELO, Francisca Novantino P. de. A educação e a diversidade cultural. Cadernos de

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educação escolar indígena (3o grau indígena), Barra do Bugres: Unemat, n.1, v.1, p.34-40, 2002.18 MENESES, Gustavo H. Conhecimento e poder: dilemas e contradições na educação es-colar indígena. Revista de Estudos e Pesquisa, Brasília: Funai/CGEP/CGDTI, v.2, n.2, dez. 2005. p.128.19 REPETTO, Maxim. A formalização das propostas pedagógicas das escolas indígenas e a construção de cidadanias diferenciadas. Cadernos de educação escolar indígena, Barra dos Bugres: Unemat, v.6, n.1, 2008. p.45.20 DALMOLIN, Gilberto Francisco. O papel da escola entre os povos indígenas: de instru-mento de exclusão a recurso para emancipação sociocultural. Rio Branco: Edufac, 2004.

Artigo recebido em 20 de junho de 2012. Aprovado em 1o de setembro de 2012.

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Entrevista: Gersem José dos Santos Luciano – Gersem BaniwaPelotas (RS), 15 de maio de 2012, durante o

II Fórum Internacional da Temática Indígena

Maria Aparecida Bergamaschi*

Gersem José dos santos luciano é doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB), Baniwa, nascido na aldeia Yaquirana, no Alto Rio Negro, Amazonas. Professor indígena, integrou o Conselho Nacional de Educação (CNE) e esteve à frente da Coordenação da Educação Escolar Indí-gena, no Ministério da Educação (Secad/MEC).

Vamos começar nossa conversa pedindo que faças uma breve apresentação da tua trajetória de formação e atuação na área de educação escolar indígena.

O meu primeiro contato com a escola foi com missionários, com a escola colonizadora, propriamente dita: era uma escola para educar, civilizar e do-mesticar os índios numa época em que o objetivo da escola para os índios era isso: pacificar para integrar. A escola era para domesticar a nova geração de indígenas para se tornarem pessoas e cidadãos obedientes às imposições do Estado. Por outro lado tive a oportunidade de frequentar, do ponto de vista colonial, boas escolas que são as escolas salesianas. A região do Alto Rio Negro sempre teve forte presença dos missionários salesianos com suas escolas, e isso me permitiu estudar até o Ensino Médio nessas escolas. São escolas muito boas, do ponto de vista da escola tradicional branca.

Depois, a segunda experiência foi com a discussão e experimentação de tentativas de mudança dessa escola tradicional colonial para uma escola que pudesse principalmente reconhecer, respeitar e valorizar os conhecimentos, as tradições, os valores e os conhecimentos indígenas. A grande diferença, em minha opinião, da escola colonial tradicional e da escola hoje pretendida pelos

*Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Av. Paulo Gama, 110. 90040-060 Porto Alegre – RS – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 127-148 - 2012

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Maria Aparecida Bergamaschi

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povos indígenas é isso, que a escola indígena respeite e valorize também os conhecimentos e as culturas indígenas. Não está em discussão a importância do acesso aos conhecimentos da escola tradicional, o que se quer é a valorização dos dois saberes, indígena e não indígena, no mesmo nível de importância.

A outra experiência foi no campo da política pública, ainda muito cedo. Assim que terminei a Graduação na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), atuei 3 anos como secretário de Educação do município de São Ga-briel da Cachoeira (AM), entre 1997 e 1999. Eu era muito jovem, pouco en-tendia e pouco conhecia o ambiente da política governamental. O que eu sabia e queria eram basicamente duas coisas: uma, que era muito estranha aquela escola que existia na época na região, que proibia as línguas indígenas, as tra-dições e os conhecimentos dos povos indígenas. Essa escola perseguia os velhos pajés e os sábios indígenas. Outra coisa que sabia era a necessidade de mudar aos poucos essa escola. Foi com esses objetivos e sentido que atuei. Foi uma grande aprendizagem e também grande desafio de transformar as escolas ru-rais, como eram chamadas as escolas implantadas nas aldeias com o currículo colonial, integracionista e perseguidor dos conhecimentos e culturas indígenas, para escolas indígenas autogeridas, com currículos interculturais e bilíngues. Para isso inicialmente tivemos que elaborar e aprovar todo o arcabouço legal e normativo educacional do município, para depois iniciarmos as mudanças curriculares, pedagógicas e de gestão das escolas indígenas.

Os 4 anos na Secretaria de Educação foram fundamentais para os com-promissos posteriores. Nós mudamos totalmente a diretriz política do muni-cípio, que era um município comum, com leis seguindo as diretrizes e as po-líticas nacionais, sem nenhuma diferenciação para os povos indígenas, que representam 90% da população do município. Durante os 4 anos à frente da Secretaria de Educação do município, conseguimos mudar todo o arcabouço legal para possibilitar a construção de escolas diferenciadas. Escolas que não proibissem mais as línguas e que passassem a valorizar os conhecimentos in-dígenas. Começou-se a discutir material didático específico nas línguas indí-genas, isso numa época em que, mesmo na academia, esse tema era muito pouco discutido. Pouca gente se dedicava a esses temas e não tinha literatura: nossa missão era uma espécie de aventura.

O retorno para a aldeia, depois dessa experiência, foi para experimentar isso na prática, o que foi muito interessante porque ao mudar o arcabouço

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político e jurídico do município, achava que era muito simples de implemen-tar. Fomos verificar que não é bem assim: primeiro, porque não é fácil do ponto de vista técnico e pedagógico. Todo o processo colonial tinha formado a cabeça dos próprios indígenas a gostar daquele modelo de escola colonial, e desconfiavam desse novo discurso de escola indígena, de escola valorizando os conhecimentos, as tradições. Era muito comum ouvir: “Não, mas para que a gente vai tratar da nossa língua na escola, nós já falamos a língua. Queremos aprender o inglês, o espanhol, o português” e assim por diante. Dessa maneira eu sempre tive uma posição muito equilibrada com relação à necessidade das mudanças – sempre acreditei e atuei nessa perspectiva –, mas respeitando os tempos, inclusive, considerando o processo longo de colonização, de imposi-ção de visão de mundo, além das pedagogias dos colonizadores que acabaram de alguma maneira sufocando as pedagogias indígenas.

Depois disso, continuei atuando junto com o poder público, em algumas políticas públicas, não só com a educação, mas atuei algum tempo com proje-tos comunitários, projetos de desenvolvimento e de sustentabilidade ou sim-plesmente projetos comunitários alternativos para comunidades indígenas. Assim fui percebendo o outro lado das questões e dos desafios da luta indígena, que me levaram para o campo das universidades: graduação e pós-graduação. Atuando na esfera da política pública, senti muita necessidade das ferramentas técnicas e teóricas, não só para estabelecer um diálogo com os técnicos, os gestores e os dirigentes da administração pública, mas também para dar conta da tarefa técnica e administrativa. Entre 2000 e 2004, por indicação do movi-mento indígena amazônico, coordenei uma complexa tarefa de conceber, es-truturar e organizar uma linha de financiamento para as comunidades e orga-nizações indígenas no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, que foi o Projeto Demonstrativo dos Povos Indígenas (PDPI/MMA), que exigiu um conhecimento do mundo não indígena na área técnica para cumprir essa mis-são. O PDPI foi um projeto negociado pelo movimento social indígena por ocasião da Conferência Mundial do Meio Ambiente, a RIO-92 ou ECO-92, para apoiar e estimular iniciativas inovadoras no campo do desenvolvimento autossustentável das comunidades indígenas da Amazônia Brasileira, que con-tou com apoio técnico e financeiro do G7 (Grupo dos sete países mais ricos do mundo), sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente do Brasil. E foi

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em função dessa necessidade que eu fui parar na universidade, fazendo gra-duação e pós-graduação.

Resumindo um pouco a minha experiência com a escola, por um lado, parti da experiência da escola stricto sensu colonial, aquela escola bem tradi-cional, branca, mas sempre com essa visão de que teria que ser feita alguma mudança para dar lugar e espaço aos conhecimentos, aos valores e às realidades indígenas. Minha atuação foi muito forte no campo de políticas públicas, por isso a minha visão tem a ver com a necessidade dos índios aproveitarem as coisas boas da escola e da universidade para estabelecer uma relação menos assimétrica com a sociedade dominante e construir correlações de forças me-nos desiguais. A possibilidade da defesa e do avanço dos direitos indígenas hoje tem muito a ver com tudo isso. Esse é um pouco o meu perfil, e é dessa forma que procuro contribuir com os atuais processos de discussões e de construção de políticas públicas no campo da educação escolar indígena.

É essa trajetória que te leva para o Ministério da Educação?

Em função dessa experiência fui parar no Ministério da Educação. Primei-ro no Conselho Nacional de Educação (CNE) pela necessidade de implementar as orientações normativas do CNE para as escolas indígenas. Fiquei 2 anos no CNE e foi uma experiência importante, não pelo que deu para fazer em 2 anos, mas como oportunidade de conhecer como funciona, o que pensa a elite pen-sante da educação brasileira. Isso para mim foi fundamental. A gente só pode entender os desafios da educação brasileira e particularmente da educação in-dígena, que se propõe ser alternativa, ser diferente, mas que enfrenta enormes dificuldades e limitações, se entendermos como a elite brasileira (da educação) pensa a educação no Brasil, quais são suas orientações e suas visões.

O CNE é um laboratório de diversidades de pensamento, pois são 24 conselheiros e eu era um deles, mas apresenta certa hegemonia de pensamento em alguns aspectos, como por exemplo, na defesa do universalismo das polí-ticas públicas, para não pôr em questionamento a unidade nacional ou sobe-rania nacional. Porém, isso não é para gerar pessimismo, muito menos tristeza, ou ainda pensar que é tão difícil o trabalho com a educação escolar indígena, só porque os intelectuais e pensadores não indígenas não vão permitir ou co-laborar. Pelo contrário, são desafios que nos estimulam a pensar e organizar estratégias mais eficientes na construção das políticas inovadoras. A partir

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dessa atuação fui parar na Coordenação Geral da Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação com objetivo de discutir e organizar uma agenda de trabalho que pudesse viabilizar passos necessários rumo a uma política de educação escolar indígena mais próxima dos desejos das comunidades indíge-nas. Foi um momento em que o movimento indígena estava muito inquieto, porque mesmo com as conquistas da Constituição de 1988 relativas ao direito à educação própria e à educação diferenciada, depois de passados 15 anos, pouco havia mudado na prática das escolas. O desafio era pensar instrumentos administrativos e pedagógicos que pudessem facilitar e avançar na efetivação desses direitos. Para organizar e estruturar esses instrumentos tomamos a de-cisão de fazer isso ouvindo e envolvendo os povos indígenas, por isso nossa primeira medida tomada foi organizar e realizar a I Primeira Conferência Na-cional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI), com a participação direta das escolas-comunidades por meio das conferências locais e regionais, e final-mente a conferência nacional. A Conferência definiu claramente a agenda nacional para a política nacional de educação escolar indígena, cuja primeira fase seria a implantação dos Territórios Etnoeducacionais, como uma nova referência espacial e institucional das políticas, dos programas e das ações do Estado, e como meta final o estabelecimento de um Sistema Próprio de Edu-cação Escolar Indígena, capaz de garantir a implementação das escolas indí-genas diferenciadas e autônomas.

Esses foram os desafios enfrentados durante os 4 anos de trabalho no MEC e que foram muito importantes para perceber as possibilidades e limita-ções das políticas públicas no campo da educação escolar indígena e que per-mitiram chegar a algumas conclusões muito relevantes para, de novo, voltar ao movimento indígena e pensar como desobstruir essas dificuldades.

A trajetória escolar para mim sempre foi estratégica, desde a escola da aldeia. Depois tentei avançar com essas experiências nas políticas públicas de modo mais geral. Sempre tentei colaborar com a organização e a estruturação legal e administrativa da política de educação escolar indígena, ao mesmo tem-po ou intercaladamente voltar para a aldeia e experimentar na prática os novos ideais, as novas orientações e as normas renovadas. Ou seja, pensando as po-líticas muitas vezes como gestor, auxiliando na gestão dessas políticas, mas também, em tempos intercalados, ir a campo e à escola indígena para viver a prática. Eu acho que isso é fundamental. Eu acho, por exemplo, que os

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pensadores na academia e os gestores e técnicos governamentais deveriam fazer isso, e nem todos o fazem. Sei que muitas pessoas da área de antropologia também iniciam estudando teorias e depois vão a campo, onde passam a con-viver com os índios para conhecer e experimentar a vida indígena e comprovar ou negar suas teorias, ideais e hipóteses. Porque muitas vezes é muito simples e cômodo imaginar, pensar, supor como são as coisas de fato. Outra coisa é quando você pensa transformar essas ideias em ações concretas, numa aldeia e numa escola indígena real.

Como enxergas o panorama da educação indígena hoje no Brasil – que de alguma forma já apresentas? Como avalia as possibilidades para essa educação e como se articula à educação escolar? Uma coisa é a escola indígena e outra a educação indígena, a educação ameríndia, diferenças que apontas na tua fala.

Em termos de panorama da educação indígena eu não diria que é um panorama desolador. A educação tradicional sofreu abalos e perdas muito grandes no processo de colonização por meio da escola colonial. Mas muitas culturas, conhecimentos, valores e pedagogias indígenas continuam existindo, operando e garantindo a continuidade histórica dos povos indígenas, como povos cultural e etnicamente diferenciados. No entanto, é importante reco-nhecer que muitas culturas, conhecimentos e valores indígenas se perderam por imposição da escola.

O esforço hoje é para que a escola não faça mais isso, e, ao contrário, passe a contribuir com a valorização e perpetuação dos modos próprios de educação dos povos indígenas, e já podemos observar resultados muito positivos, como a valorização das línguas indígenas, dos saberes orais dos mais velhos. Hoje as escolas pelo menos não proíbem e nem perseguem mais os conhecimentos, as culturas e as tradições indígenas. Isso já em si é um grande avanço. Mas, mes-mo a escola não sendo mais negadora e perseguidora das culturas indígenas, ainda não é suficiente para recolocar o papel das pedagogias tradicionais no mesmo patamar das pedagogias escolares na vida das pessoas e coletividades indígenas. É um processo mais longo. O desafio da escola indígena atual é encontrar esse ponto de equilíbrio, valorizar os saberes indígenas no mesmo nível da valorização dos saberes científicos e tecnológicos, que em geral cha-mamos de educação intercultural. Mas isso não é apenas tarefa da escola, como

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instituição do Estado ainda que em mãos indígenas, mas principalmente da família, da comunidade e do povo indígena.

Penso que não é a escola que vai resolver a questão da educação tradicio-nal ou da identidade indígena, nem é seu papel, embora deva dar sua contri-buição. Um exercício que precisa ser feito é pensar a escola como instrumento de conexão da vida da aldeia com o mundo exterior e a família e o povo como responsáveis pela educação interna, como tem sido desde os primórdios da vida indígena, como dois espaços distintos, mas conectados, articulados e or-ganicamente coordenados. Já no campo da educação escolar, entendo que nós tivemos de fato muitas conquistas, muitos avanços, mas nem sempre as comu-nidades indígenas conseguem enxergar os avanços, em várias direções. Uma delas, que eu já falei, é o avanço do direito. Nós temos um arcabouço de leis, de normas, de orientações pedagógicas que são muito avançadas, inclusive muito avançadas considerando o panorama da educação indígena no mundo ou, principalmente, na América Latina. A ampliação da oferta escolar junto às aldeias é outra conquista. A crescente produção de material didático específico e bilíngue e os processos crescentes de formação de professores indígenas, que já representam 96% atuando nas escolas das aldeias, representam outros im-portantes avanços. Além disso, o surgimento de escolas indígenas razoavel-mente autônomas em termos de gestão pedagógica e administrativa representa outra relevância estratégica, pois são elas que podem fazer a necessária e ade-quada conexão entre a educação escolar e a educação tradicional. Isso é uma conquista, não é uma dádiva. Foi o resultado de muita luta, de muita mobili-zação, de muito trabalho do movimento indígena e seus aliados e parceiros. A academia participou muito disso, pelo menos muita gente da academia, de diferentes campos, da educação, da antropologia, da sociologia.

Esse arcabouço jurídico e as experiências inovadoras de escolas indígenas são ferramentas importantes que precisamos reconhecer e valorizar muito, porque são conquistas. Porém, são conquistas que não estão garantidas, pois, em algum momento, podemos perdê-las no campo do direito, daí a necessi-dade de constante vigilância. Eu acho que tem outro avanço concreto, gerado a partir dessa legislação, que são as possibilidades de cada povo poder construir suas experiências de educação escolar. Isso também é uma coisa muito positiva, principalmente se levarmos em consideração que as escolas indígenas, do pon-to de vista de recursos humanos, estão nas mãos dos índios. Isso porque na

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atualidade, 96% de professores atuando nas escolas indígenas são indígenas, e a grande maioria dos gestores e técnicos também são indígenas. As escolas indígenas já não são mais de monopólio exclusivo dos brancos ou do governo. Cabe, portanto, aos índios se apropriarem dessas escolas, transformá-las e gerenciá-las segundo suas demandas e interesses, como instrumento de em-poderamento, protagonismo e autonomia.

Nessa direção, já temos hoje no Brasil dezenas ou centenas de diferentes experiências, de modelos e de processos diferentes de construção e organização da escola indígena, com uma variedade enorme, nem sempre valorizada, sis-tematizada e divulgada. Essas experiências vão desde escolas razoavelmente autônomas, com pouco domínio ou orientação do poder público: experiências tocadas pelas comunidades indígenas. Até recentemente as escolas Yanomami não tinham o reconhecimento do Estado e, no entanto, funcionavam com sua lógica, com seu tempo, com sua organização curricular. Os professores não eram contratados, mas tinham apoio de algumas ONGs para desenvolverem seus trabalhos. E hoje eles têm escolas com padrões curriculares diferenciados, bancadas pelo poder público. Temos também um grande número de escolas que continuam seguindo um modelo clássico da escola tradicional e muitas vezes por desejo da comunidade indígena, e isso é legítimo.

Trabalhar com essa ideia da participação, do protagonismo, da democra-cia, da liberdade dos índios também requer coerência no reconhecimento de seu protagonismo como sujeitos de direitos e vontades legítimas que precisam ser respeitados, mesmo quando tomam decisões que contrariam o senso co-mum do politicamente correto. Nem sempre a escola que é vista muitas vezes como um modelo branco é uma coisa ruim. Às vezes não interessam outros modelos de escola, e muitas comunidades indígenas têm essa clareza. Essa é uma discussão que sempre travei dentro do MEC e no Brasil como um todo: a gente tem que parar de fazer essa avaliação, esse julgamento do ideal de uma escola indígena. Ninguém tem esse modelo, nem no pensamento, nem na ação. E nem os povos indígenas têm clareza disso ou não querem ter clareza disso. Cada comunidade indígena tem a sua escola, algumas com um viés mais tradi-cional, colonial, porque assim querem em um determinado tempo histórico. Em outro momento podem mudar de decisão e fazer outras escolhas que cor-respondam às suas realidades em constantes mudanças. Eu sempre ouvi de grandes lideranças indígenas com expressão nacional como Megaron

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Tchukarramãe Kayapó ou Paulinho Paiakan, que possuem largas experiências de lutas no Pará, quando a gente pergunta a eles, “O que vocês querem da es-cola?”, “Para que vocês querem a escola?”, eles não vão demorar um segundo para responder com clareza e segurança: “Nós queremos a escola para ensinar nossos filhos falar português, aprender matemática, para poder dialogar com chefe branco, com os dirigentes brancos”. Você não vai ouvir “nós queremos escola para ensinar nossa língua, nossa tradição”. Essa diversidade é uma expe-riência grande que temos no Brasil e que cada vez mais vai se consolidando.

E se queremos falar de quantidade de avanços e conquistas, isso também é representativo, o poder público pode conseguir, para o bem ou para o mal, universalizar a oferta, formando e contratando professores, construindo esco-las, oferecendo transporte escolar e produzindo e distribuindo material didá-tico. Ainda com condições muito precárias, mas hoje dificilmente se encontra uma aldeia sem algum tipo de escola. Aqui me refiro ao processo educativo e não somente à escola, entendida como espaço físico, porque, curiosamente, um terço das escolas indígenas no Brasil não tem sede e muita gente diz: “Não, mas isso significa um péssimo quadro para a política brasileira”. Nem sempre: Por que escola indígena tem que ter prédio?

Aliás, eu acho que a escola indígena não deveria ter prédio – prédio como nós pensamos, de alvenaria, que é isso que o poder público faz. Então, é bom ter muito cuidado com isso. Você imaginar que um terço das escolas não tem prédio e achar que isso é uma política péssima? Nem sempre. Oxalá se a inexistência desses prédios pudesse ser uma coisa positiva, porque os índios não queriam copiar o modelo, porque queriam um processo de educação mais dinâmico, que não precisasse ter um prédio, mas fazer isso na aldeia, aproveitando os espaços que a aldeia possui, espaços comunitários, espaços de cerimônias, ambientes de trabalho, da pescaria, da caça, do dia a dia, momentos dos rituais, dos contos que acontecem. Obviamente que também não dá para usar esse argumento para que o poder público não faça o que tem que fazer. Se a comunidade de fato opta e quer uma escola com infraestrutura boa ao modelo branco, é um direito, e o poder público tem que fazer. Não há discussão com relação a isso.

Sem precarizar!

Exatamente! O que não dá é para transformar a escola indígena em insti-tuição precária, de segunda categoria. Tem algumas comunidades indígenas

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que de fato batalham para não ter os prédios físicos, como no modelo branco oferecido pelo poder público, principalmente pelo Ministério da Educação por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Muitas vezes o discurso que se faz generaliza demais. Leva-se em consideração o nú-mero de escolas que não têm prédio para qualificar o nível da política. Isso de certa maneira vai forçando a própria visão indígena de que “se eu não tenho um prédio bonito é porque a minha escola não presta” ou que “a nossa educa-ção não funciona e não presta”. Os povos indígenas nunca construíram prédios para fazer ou ter educação, mas sempre tiveram boa educação, capaz de garan-tir suficiente sociabilidade e convivência de todos os indivíduos e grupos étni-cos ao longo de milhares de anos. A ideia de prédio escolar como nota de avaliação da educação é questionável e acaba fazendo uma ingerência perversa, induzindo as comunidades indígenas a pensarem que o sinônimo de boa escola indígena é um prédio bonito, não importam os conteúdos, as pedagogias e as metodologias trabalhadas. E muitas vezes se esquece de discutir o processo e as experiências pedagógicas em si.

Eu diria que nós conseguimos avançar muito, principalmente na questão da oferta escolar, e, com isso, o direito está sendo consolidado na medida em que o poder público cada vez mais vem assumido seu papel. Agora, tem enor-mes desafios, desde infraestrutura, material didático, organização curricular, tempo curricular. Tem um enorme conservadorismo na política pública como tal e, sem dúvida, de difícil solução. Há uma resistência muito grande do sistema nacional, dos sistemas estaduais, dos sistemas municipais em fazer o seu papel técnico, administrativo, jurídico, político, normativo, em reconhecer as diversas experiências inovadoras de escolas indígenas. Isso é real. É impor-tante reconhecer as limitações e os problemas da administração e da política pública estatal que é monoculturalista, que sempre pensa políticas genéricas para o país e para a sociedade, sem levar em consideração as diversidades socioculturais que os constituem, para serem superadas e equacionadas. Esse é o principal desafio que a política pública enfrenta, com alguns sinais de melhora, de abertura, mas ainda é um enorme gargalo, que eu acho que tem que ser ainda muito trabalhado.

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Um movimento que percebemos visível, principalmente no meio acadêmi-co, é a presença de estudantes indígenas no ensino superior, que já é forte, é intensa. Percebemos uma vontade dos jovens, das lideranças indígenas, de in-gressarem no ensino superior. Como é essa relação entre a educação indígena e o ensino superior? Como vês esse panorama dos indígenas no ensino superior hoje, no Brasil, que é forte na graduação e que já começa a aparecer também, com certa presença destacada, nos mestrados e doutorados, em especializações?

A conquista do ensino superior representa o momento histórico marcante que vivemos hoje, resultado de lutas do movimento indígena e da sociedade brasileira nos últimos anos. É uma dessas conquistas importantes no campo do direito indígena. Eu diria que a chegada dos índios à academia é resultado dessa luta e representa um dos avanços mais importantes. Só para ter uma ideia, o número de indígenas que estão no ensino superior é o mesmo dos que estão no ensino médio – o que é uma coisa extremamente preocupante para o ensino médio. Significa que estamos em uma velocidade enorme de acesso ao ensino superior, mas muito pequena no ensino médio. Eu acho que o forte interesse dos indígenas com o ensino superior mostra esse novo tempo da visão e atitude dos povos indígenas no Brasil. É bom registrar que até há pouco tempo – e pouco tempo que eu digo são 30 anos – não havia essa decisão dos índios pela escola. As comunidades indígenas, em sua grande maioria, não valorizavam a escola. A escola era como se fosse uma assistência do governo ou de suas assessorias, geralmente ONGs, antropólogos ou Igrejas, que ofere-ciam a escola na aldeia. Nos últimos 30 anos os povos indígenas no Brasil, no meu entendimento, tomaram essa decisão de apostar na educação. E a chegada muito forte à universidade faz parte dessa aposta: escola pode ser um instru-mento importante para o presente e para o futuro desses povos, em todos os aspectos, seja para maior interação com o mundo envolvente, com o mundo não indígena de forma mais ampla possível, o que mostra o grande interesse pelo diálogo e por uma convivência, mas também há interesses específicos, como melhorar as condições de vida nas aldeias.

Quando a gente fala com os caciques indígenas ou com os pais dos alunos indígenas, eles são muito práticos no que querem da academia e da escola, que é acesso a conhecimentos, técnicas, tecnologias que facilitem e que os ajudem a enfrentar os desafios na aldeia. Isso é outra coisa que às vezes não se leva

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muito em consideração. Às vezes se desenha a vida na aldeia como uma vida ideal, quase paradisíaca, uma vida boa, uma vida tranquila, mas não é. Viver na aldeia, e isso há milhares de anos, sempre foi enfrentando muitas dificul-dades. Muitas vezes com grandes problemas de alimentação, grandes sacrifí-cios de trabalhos pesados e de altos riscos. Essas dificuldades econômicas de subsistência não existem somente por conta do processo acelerado de desen-volvimento econômico predatório e capitalista, elas sempre existiram muito antes. A vida sazonal dos índios é sempre intercalada de diferentes momentos de precariedade e abundância alimentar, razão pela qual há a prática do no-madismo como busca por melhores espaços de oferta de alimentos. Sempre houve muito esforço e sacrifícios por parte dos povos indígenas para a sobre-vivência, do ponto de vista do investimento físico, do trabalho forçado, do trabalho pesado em suas aldeias e territórios. Os povos indígenas almejam melhorar isso, melhorar sua alimentação e as condições de trabalho.

Por exemplo, era muito difícil você trabalhar fazendo roças, derrubando uma árvore com machado de pedra: você levava semanas para derrubar uma árvore. Então é muito mais fácil fazer isso com machado de ferro ou como é hoje em dia em algumas aldeias, de motosserra. As relações socioculturais e econômicas feitas por meio de visitas entre aldeias e povos, que significavam empreender longas e distantes viagens durante semanas ou meses, hoje em dia se fazem até entre aldeias de diferentes municípios, de diferentes estados ou até mesmo entre países, em algumas horas ou dias de carro, barcos ou aviões. Antigamente essas viagens eram feitas a pé, por meios terrestres, ou em canoas por meios fluviais, ao longo de meses e meses, muitas vezes enfrentando chu-vas, fome, doenças, acidentes naturais. Hoje pode ser feita com carro, com barco motorizado.

É importante perceber como os povos indígenas têm esse interesse, e é um direito. Portanto, a escola e a universidade entram como um instrumento que pode ajudar a melhorar e facilitar o bem viver dessas comunidades. É importante ter clareza de que não dá para conceber a vida na aldeia como uma vida suficientemente feliz, em que não há nenhuma demanda, nenhuma pre-cariedade, nenhuma dificuldade, como às vezes parece ser. Muitos historiado-res e antropólogos românticos ainda alimentam essa visão: os índios não de-veriam sair da aldeia porque eles estão felizes na aldeia. Quem diz isso, vá viver

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na aldeia! Vai perceber o quanto o sofrimento é grande. Eu tive essa oportu-nidade de viver.

Uma das razões pelas quais meus pais, na década de 80, saíram da aldeia para uma pequena cidade, que é São Gabriel da Cachoeira, foi a dificuldade de criar e sustentar os filhos. Isso porque com a melhoria da saúde e da educação a população cresceu muito. Toda vez que a população cresce, vai piorar as condições de vida, porque a demanda é muito maior pela caça e pela pesca, e a reprodução natural dos recursos, por si só, não garante. Uma das razões de ir para a cidade foi isso, porque a avaliação era essa: é muito melhor a gente ser assalariado na cidade e poder comprar todo dia uma sardinha enlatada, um ovo para comer, do que na aldeia, onde você pode passar dois, três ou quatro dias sem comer nada, porque não tem. O pai de família precisa empreender longos períodos de caça a regiões cada vez mais distantes, e por tempos longos, que às vezes significa 3, 4 ou mais dias de caça, durante os quais sua família fica na aldeia totalmente desprovida de qualquer alimento.

O ensino superior é isso. Obviamente que essa é a base da demanda, mas tem outras demandas que são mais sofisticadas, que entram na estratégia muito mais política das lutas dos povos indígenas, como, por exemplo, melhorar a cidadania. Então o acesso às políticas públicas depende desse domínio cada vez maior do mundo da universidade e do mundo escolar, para melhorar as condições de vida nas aldeias e possibilitar que os indígenas não precisem abandonar suas aldeias e terras para se aventurar nas cidades, como vem acon-tecendo. Os povos indígenas sempre preferem permanecer em suas aldeias e em seus territórios, desde que as condições de vida sejam melhoradas. A edu-cação escolar é uma dessas políticas públicas esperadas nas aldeias e que ajuda a evitar ou diminuir o êxodo indígena, pois ela é uma dessas demandas que os povos indígenas apresentam, e se não é atendida nas terras indígenas, as famí-lias indígenas vão atrás dela nos centros urbanos.

Mas as outras políticas públicas também são necessárias, como as de saúde e autossustentação. Obviamente que há a luta mais política em vista de um diálogo mais produtivo, mais construtivo com os dirigentes da política pública. Acho que isso é fundamental. É o que os indígenas sempre chamam: “Olha, a gente tem sido até agora muito tutelado, dependente dos brancos, agora preci-samos conquistar e exercer a nossa autonomia”. Por trás de todo esse esforço vem o desejo da autonomia. Mas que autonomia? Autonomia política? Não!

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Autonomia de vida, autonomia de viver. Como se enfrenta hoje o problema de saúde? Grande parte do problema de saúde nas aldeias tem a ver com a falta de profissionais da saúde para ir às aldeias. Os médicos brancos dificilmente conseguem ir para as aldeias, mesmo que se paguem salários altíssimos eles não vão. Nesse caso, nós temos que formar nossos médicos. Nós precisamos defen-der nossas terras e para isso precisamos de advogados, mas dificilmente encon-traremos advogado branco e por isso temos que formar nossos advogados in-dígenas. Nós precisamos melhorar nossa produção econômica na roça, então é importante a gente ter técnicos para ajudar nisso. Eu diria que há, sim, uma estratégia de valorização e de aproveitamento instrumental e estratégico da escola e da universidade para formar esses técnicos. E isso é só um começo.

Uma vez que chegamos à universidade, a decorrência é ocupar a univer-sidade e seguir por diante, porque isso é uma coisa muito boa para os índios e deveria ser uma coisa boa para a universidade também, pois vai diversificando e enriquecimento os conhecimentos. As universidades ainda aproveitam muito pouco dos conhecimentos, da sabedoria que os índios levam consigo para a universidade. Eu não tenho a menor dúvida do inverso: os povos indígenas aproveitam tudo. Eu tenho ouvido falar isso pelo Brasil afora, dos professores que trabalham com os estudantes indígenas. O interesse que os alunos indíge-nas apresentam pela sua formação acadêmica é sempre muito maior do que o interesse dos não índios. Eles querem ficar 4 ou 5 anos e aproveitar tudo que podem, porque têm na cabeça que tudo vai servir para ajudar a comunidade deles. A comunidade vai cobrar dele, então ele tem que aproveitar tudo. É claro que muitos não vão voltar para a aldeia, e isso é comum, é natural. Eu não vejo nenhum problema, é um direito e acontece em todas as culturas. Agora, o mesmo não acontece com as universidades, acho que esse tipo de investimento ainda precisa melhorar. Porque se houver reciprocidade no aproveita-mento dos diferentes saberes indígenas e não indígenas na academia, todo mundo ganha com isso. Se um dia a gente conseguisse, por exemplo, aproveitar bem complementarmente os conhecimentos dos índios com relação a plantas medicinais e da medicina tradicional com a medicina científica, todo mundo sairia ganhando, índios e não índios. Nossa, que riqueza teríamos! No entanto, não se faz isso. Há desafios nesse sentido.

Mas ainda há outro aspecto importante na conquista do ensino superior pelos povos indígenas, que é a estratégia para o empoderamento político e

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técnico para a própria transformação e qualificação da escola indígena. Se a escola foi, ao longo de todo o período colonial, utilizada pelos colonizadores para dominar os povos indígenas, agora os próprios povos indígenas, por meio de seus professores, gestores e técnicos indígenas, devem transformar essa escola de acordo com suas demandas, projetos presentes e futuros, estratégias e interesses coletivos. Acredito muito que os professores indígenas graduados, mestres e doutores irão gradualmente transformando, moldando e aperfeiço-ando as atuais escolas indígenas em verdadeiros instrumentos de luta e de defesa de seus direitos, a partir de novas formas de organização curricular, tendo como base as metodologias e pedagogias indígenas.

Considerando então as possibilidades de a sociedade não indígena apren-der com e sobre os povos indígenas e em relação à Lei Federal 11.645/2008, uma lei que implica muito os professores de História do Brasil, como vês a implemen-tação dessa lei? Como ela se relaciona com o movimento indígena? De alguma forma, sua implementação pode repercutir também na relação entre povos in-dígenas e não indígenas. Nesse sentido, o que dirias?

Eu acho que a Lei 11.645 é um instrumento fundamental para combater principalmente o preconceito e a discriminação, porque estou convencido de que a origem principal da discriminação e do preconceito é a ignorância, o desconhecimento. Não se pode respeitar e valorizar o que não se conhece. Ou pior ainda, não se pode respeitar ou valorizar o que se conhece de forma detur-pada, equivocada e pré-conceitualmente. Nesse sentido, a primeira tarefa é desconstruir pré-conceitos históricos plantados nas mentes das pessoas ao lon-go de centenas de anos de colonização. Essa desconstrução de pré-conceitos é uma verdadeira deseducação, ou seja, aprender a reconhecer os erros aprendi-dos na própria escola. Só depois do processo de deseducação será mais fácil uma nova reeducação com base em novos princípios e visões de mundo capazes de construir uma nova realidade social, cultural, econômica, política e espiritual menos eurocêntrica e com lugares para todos os povos, culturas e saberes com os quais a escola trabalha, os quais ela precisa valorizar e dar conta.

A escola é a instituição e o lugar privilegiado e estratégico para reduzir ou eliminar a intolerância, o preconceito, a discriminação e o racismo entre pes-soas e povos. A Lei 11.645 é, portanto, uma excelente oportunidade e possibi-lidade para isso. Agora, nós temos alguns desafios. Embora seja um instrumento

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importante, nós não estávamos preparados para isso porque veio um pouco cedo, do ponto de vista da construção mental, do imaginário. Veio mais como possibilidade. “Nós” quem? Tanto nós indígenas, quanto a sociedade não indí-gena. Isso foi uma luta aproveitada do movimento negro, pela articulação afro-descendente, e a gente conquistou esse direito muito importante. Espero resul-tados mais concretos em médio prazo. Contudo, é fundamental, porque vai ajudar ou já está ajudando a oferecer mais informações e conhecimentos sobre os povos indígenas de forma mais correta. No campo da educação, em termos de material didático, isso é fundamental e deve ser muito trabalhado.

Temos grandes desafios: primeiro, não temos materiais didáticos educati-vos! E me parece que é difícil produzir material didático para atender essa orientação normativa, pela própria complexidade que é. Veja: nós estamos fa-lando de informações, de conhecimentos sobre os índios, para não índios. En-tão, o primeiro desafio é como os povos indígenas vão se apropriar dessa fer-ramenta para divulgar seus conhecimentos, seus valores, suas culturas e tradições. Ainda não vejo o movimento indígena mobilizado para isso. Essa é a principal dificuldade. A primeira pergunta é: “O que os povos indígenas que-rem que os não índios saibam deles?”. Isso já é um enorme problema, porque teremos muitas dificuldades para os próprios índios definirem isso, diante da grande diversidade de povos, realidades locais e contextos históricos. São os índios que devem definir o que querem e como querem ser conhecidos pela sociedade nacional. “Que tipo de conhecimento querem divulgar?” Aos povos indígenas, muitos conhecimentos seus não interessam que os brancos fiquem sabendo, pois nem internamente são de domínio público, como são os conhe-cimentos dos pajés. Teremos muitas dificuldades para classificar quais são os conhecimentos que podem ser levados ao conhecimento dos não índios.

O segundo desafio é a produção de material de divulgação. Nesse nível, a experiência dos últimos anos no campo da produção de material didático foi muita na área do letramento, da alfabetização. Temos hoje mais de duzentos títulos, sendo oficiais e reconhecidos pelo Ministério da Educação como ma-terial didático sobre indígenas para escolas indígenas, mas tudo na área do letramento. Ocorre que para a orientação da Lei 11.645 terão que ser materiais didáticos bem mais trabalhados, porque fundamentalmente são para atender a educação básica e fortemente o ensino médio, onde a juventude tem mais interesse no tema. É muito difícil produzir isso. Acho que o Ministério da

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Educação, os estados, por pressão do Ministério Público, estão se virando para ver se conseguem esse material didático. Sei que o Ministério da Educação está se esforçando pelo menos para oferecer um primeiro kit para os sistemas de ensino, que trate desse tema. Já tem alguns materiais que podem ser mais bem aproveitados. Ainda não são materiais especificamente pensados para isso, mas que já serviriam: alguns mapas da etno-história, alguns livros que falam dos processos de formação de professores e alguns que tratam da realidade mais geral dos povos indígenas e que já podem ser utilizados. Mas eu acho que só em médio prazo teremos mais materiais didáticos para isso. E só com bons materiais didáticos na mão das escolas dos não índios, de fato, que os alunos não indígenas poderão ter acesso a esse material, com maior qualidade e, aí esperar impactos e resultados mais positivos. Mas sem dúvida nenhuma é um instrumento extremamente importante que temos que abraçar com seriedade, porque é o caminho para diminuir a discriminação e o preconceito, oferecen-do, principalmente à nova geração de cidadãos das escolas, jovens e crianças, informações qualificadas sobre os povos indígenas de forma correta. É também a forma mais prática de desmistificar e desconstruir alguns estereótipos que foram criados, inclusive na escola, por meio de livros didáticos pensados do ponto de vista dos colonizadores e dominadores.

Uma liderança Guarani, falando da implementação da Lei 11.645/2008, anunciou a necessidade de três movimentos: (1) criar uma sensibilização entre os professores para a temática indígena e (2) efetivar um movimento de estudo da história e da cultura indígena – assim como se estuda a história de outros povos –, mas ele apontou um terceiro movimento, sobre o qual gostaria de ouvir tua opinião: a história indígena contada pelos próprios indígenas. Nesse senti-do, poderíamos considerar os estudantes indígenas no ensino superior, nos cur-sos de História. Como avalias essa perspectiva, que leva em conta a autoria indígena e a formação de professores?

O que você falou é fundamental por ser um dos primeiros desafios, que é a formação de professores. O Brasil enfrenta um problema histórico e macro-estrutural em termos de formação de professores. Pois se há uma fraqueza muito grande na política brasileira com relação à educação de modo geral, é a formação de professores. Para que a Lei 11.645 ganhe efetividade esse é o ponto de partida, porque não adianta trabalhar material didático se não trabalhar a

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formação desses profissionais. O Brasil tem dois instrumentos, um é a forma-ção inicial que habilita o professor indígena, tanto no nível do magistério mé-dio quanto no magistério superior, e o outro é a formação continuada. Tem que trabalhar isso. Agora, isso é um processo cultural grande, que tem que ser adequado, transformado. Para isso o primeiro passo é pensar os processos de formação de professores com a organização curricular voltada para atender a perspectiva da Lei 11.645, ou seja, incluir a história indígena, os conhecimentos e as realidades indígenas. Eu acho que essa ideia de produção da história con-tada pelos próprios índios, sem dúvida nenhuma, é o melhor caminho, pela legitimidade que o sustenta. Agora, os índios que estão na academia são fun-damentais para isso, porque têm que se articular para formar redes de estudos e de pesquisas, inclusive de elaboração de material didático e paradidático. Agora, não pode ser desvinculado das comunidades, e esse é outro desafio. Eu acho que isso também melindra mesmo quem é indígena. Porque, por exem-plo, se um grupo de professores indígenas de determinado povo forma uma rede, forma um grupo de estudo, de pesquisa e começa a escrever, por exemplo, vai escrever sobre o seu povo. Você deu o exemplo do povo Guarani. Mas vai falar de que Guarani? Você tem Guarani em sete, oito estados ou mais ainda, em três ou quatro países. Pode-se falar do Guarani como um todo? Por exem-plo, o Guarani de uma aldeia só vai poder falar do Guarani daquela aldeia.

Estou falando isso em termos de dificuldade de dar conta da diversidade interna dos povos indígenas a partir das políticas públicas. O ideal seria que cada aldeia pudesse produzir o seu material. Como é que ele quer contar a sua história para os não índios? O grande problema é que isso teria que ser trabalhado de aldeia por aldeia, porque eu vivi algumas experiências com meu próprio povo Baniwa. Nenhum Baniwa ou nenhum grupo Baniwa hoje tem autorização ou legitimidade para falar sobre os Baniwa. E os Baniwa estão dispersos na Colôm-bia, na Venezuela e no Brasil. Eu vi isso acontecer muito naquela região.

O Instituto Sócio Ambiental (ISA) ajudou a elaborar vários livros muito bons que capacitaram e formaram grupos de indígenas. Os índios escreveram e publicaram suas histórias e mitos. Quando publicados, eu nunca vi esses livros ganharem vida. Ficaram guardados. Por quê? Imediatamente os outros grupos diziam “Isso aí não é assim, não foi contado assim, isso aí é do clã tal, do grupo tal...”. Então existem essas dificuldades, é preciso que os que trabalham com política pública entendam isso, para não frustrar os outros e não se frustrarem.

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Não é um caminho simples trabalhar com a diversidade. Agora, o caminho é esse, formar redes de trabalho. Tem que considerar os contornos geográficos, políticos, étnicos para atuar nesse campo. O que estou dizendo com isso é que é um trabalho bonito, mas que é muito complexo. A gente tem que ter muita paciência no trabalho, porque só com muito tempo poderemos avançar, pois não é uma coisa que dá para tomar certas medidas de cima para baixo, de uma hora para a outra, mesmo envolvendo indígenas. A referência dos indígenas na universidade, sem dúvida, é fundamental, como sujeitos, agentes e lideranças futuras do movimento indígena e da luta dos povos indígenas. Eu não tenho a menor dúvida disso, da força e da responsabilidade que vão ter. Daí uma grande preocupação nos seus processos de formação. Quanto mais as universidades colaborarem aperfeiçoando, adequando, dando qualidade à formação – que não é apenas a qualidade acadêmica, interna, mas associar isso aos diferentes pro-cessos que eles vivem junto às suas comunidades.

Do ponto de vista pragmático, podemos dizer que somente os indígenas têm a legitimidade de decidir sobre o conteúdo da história indígena, como sujeitos, portanto, do seu ponto de vista. Mas para que isso aconteça é neces-sário construir condições, principalmente no ambiente das universidades, onde se encontra acumulada uma grande variedade de riquíssimos acervos sobre a história indígena, que precisam ser apropriados pelos indígenas e rein-terpretados por eles. Outro apoio necessário é do poder público, ou seja, dos sistemas oficiais de ensino, para garantir as condições técnicas e financeiras para a produção e divulgação em escala desses materiais.

Vejo, portanto, uma rede em forma de tripé para garantir a efetividades desse propósito. O primeiro elemento é o protagonismo indígena tendo como referência os estudantes e pesquisadores indígenas conectados às suas comu-nidades. O segundo elemento é a academia incluindo necessariamente os pes-quisadores que trabalham com os povos indígenas, como parceiros, aliados e assessores no empreendimento. O terceiro elemento é o poder público, por meio do apoio técnico e financeiro, mas não só isso, com o compromisso po-lítico de garantir o cumprimento da norma em todas as escolas, por meio de formação de professores, de distribuição de materiais didáticos e, principal-mente, por meio do convencimento dos sistemas de ensino no cumprimento de suas tarefas.

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Inclusive para pensar sua identidade, porque no meio da academia essa identidade também é demandada.

Exato. A academia é um espaço extremamente rico e aberto. Nesse senti-do, acho importante, porque a academia permite fazer muita coisa. Não é como uma ONG ou como uma Igreja, que são completamente diferentes, fechadas, você não consegue fazer nada a não ser dentro das ideologias e doutrinas que impõem. A academia é aberta, assim como você vai encontrar muitos que não querem saber de índio ou que são anti-indígenas, você vai encontrar pessoas sensíveis e que podem estabelecer diálogos e processos interessantes de cons-trução. Isso tem que ser valorizado, e os jovens indígenas vão com muita sede para isso. Eu acho que em breve vamos ter os primeiros resultados, e espero que sejam bem positivos para essa geração de jovens acadêmicos que são mui-tos. Hoje se estima em dez mil. É muita gente! Espero que isso ajude a fortale-cer a luta dos índios, não só pela identidade e cultura, mas também na luta pelos direitos coletivos dos povos indígenas e de outros segmentos sociais his-toricamente excluídos. A academia ajuda a entender melhor todo o processo histórico vivido e enfrentado pelos povos indígenas, e nesse mergulho histó-rico, analítico e crítico, em geral os jovens indígenas se reencontram, se recons-tituem e se consolidam consciente e criticamente enquanto membros perten-centes a uma história, a uma coletividade étnica particular e a um projeto de sociedade local, regional, nacional e planetário.

Mais alguma coisa que achas relevante dizer? Uma perspectiva para o futuro?

A educação escolar indígena vive hoje um momento muito interessante. Foram duas ou três décadas de laboratório, de experimentação de modelos, de processos educativos que pudessem ir além das experiências coloniais de es-cola. E essa diversificação de experiências, que em alguns lugares são chamados de escolas pilotos, de escolas alternativas, de escolas indígenas, de escolas di-ferenciadas, trouxe muita aprendizagem. Nós estamos vivendo agora no Brasil um momento de consolidação dessas experiências projetando o futuro. Vimos que algumas possibilidades são muito idealistas e, por isso, não se sustentam do ponto de vista prático, de como as comunidades indígenas pensam e como elas querem construir seus processos educativos, escolares ou não. Nessa

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consolidação eu acho que tem algumas coisas muito interessantes. Uma delas, trazida pela única Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena da his-tória do Brasil, que foi realizada em Brasília em 2009, é que algumas políticas precisam ser aprofundadas. Por exemplo, essa linha de estruturação das escolas indígenas, agora com esse novo viés, da autonomia na gestão, do protagonismo indígena, cada vez mais vem fortalecendo as pedagogias indígenas, os proces-sos próprios de aprendizagem, o que é fundamental. Mas há uma necessidade de melhor estruturação dessa política por meio de algumas propostas: uma é organizar melhor o financiamento. O financiamento da educação escolar é crescente nos últimos anos, mas com pouco efeito na ponta, então isso precisa ser adequado. O segundo é uma novidade na política da educação, que é a ideia da escola autônoma e diferente. Percebemos que os sistemas de ensino que nós temos hoje não são capazes de atender isso. Não é por vontade, é pelas condi-ções técnicas e políticas. Os sistemas de ensino dos municípios, dos estados e da União nunca foram pensados para dar conta dessa diversidade, mas sim para pensar a nação, o município, o estado. Daí cada vez mais todo mundo é convencido de que há a necessidade de pensar uma organização de sistema próprio de educação escolar indígena.

Isso dialoga com a perspectiva dos territórios étnico-educacionais...

Exatamente. Na perspectiva de pensar um sistema próprio para a educa-ção escolar indígena precisamos superar a dependência dos sistemas instala-dos, que são os sistemas dos municípios, dos estados e da União, para criar outro sistema específico, porque a própria legislação diz: “São garantidos aos índios os processos próprios de ensino-aprendizagem”. Esses processos pró-prios precisam de um sistema próprio, senão cai-se sempre na contradição e na dicotomia oferecida pelos sistemas tradicionais dos brancos, que podem ser interessantes para os brancos, mas não para os índios. Uma base para esse sistema próprio são os territórios etnoeducacionais quando criam uma nova forma de configuração do planejamento e da forma de pensar e organizar os serviços públicos educacionais voltados para as comunidades indígenas.

Nessa nova configuração do planejamento e gestão da política de educa-ção escolar indígena, devem-se levar em consideração as configurações etno-territoriais dos povos indígenas que não correspondem às configurações polí-tico-territoriais dos municípios, dos estados e da União, ou seja, as formas

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‘como’ e ‘com quem’ eles organizam suas relações, suas demandas, suas estra-tégias e suas alianças e parcerias. Os territórios etnoeducacionais apontam claramente para o reconhecimento das tão sonhadas autonomias indígenas em seus territórios, na hora de pensar, organizar e implementar políticas públicas educacionais, com envolvimento, participação, protagonismo e controle dos beneficiários indígenas. Como é que se pode trabalhar a especificidade do di-reito, da cultura, da tradição e dos processos educativos próprios dos povos indígenas, dentro da configuração dos estados e dos municípios? A ideia é que se tenha uma nova configuração espaço-tempo, uma nova configuração de sistema jurídico-administrativo, de normas, de regras e de financiamento pú-blico. Portanto, a meta em médio e longo prazo é constituir esse novo sistema, que é uma longa batalha a acontecer, que curiosamente, como eu disse, a po-lítica educacional brasileira é uma das políticas mais conservadoras no campo das políticas públicas no Brasil. Quem trabalha nesse campo sabe perfeitamen-te que é. Por exemplo, a política de saúde tem muitos problemas, mas a política de saúde resolveu essa coisa de sistema há 20 anos. A saúde indígena é um sistema próprio, lógico que articulado ao Sistema Único de Saúde, porque é um sistema ou subsistema dentro da estrutura do Estado, mas com financia-mento próprio e com sua organização espaço-temporal própria, que são os Distritos Sanitários. Para isso é necessário criar e organizar novos processos administrativos, para atender as realidades específicas das comunidades e ter-ras indígenas. Processos de contratação de professores indígenas, de constru-ção de escolas indígenas, de serviços de transporte escolar de alunos indígenas não podem ser os mesmos processos utilizados para as escolas urbanas e rurais de não indígenas. Se isso não for mudado, os povos indígenas continuarão sendo excluídos das políticas, e suas escolas e processos educativos ficarão si-tuados em níveis baixíssimos de indicadores de qualidade, como continua sendo. Há ainda muita resistência, porque o conservadorismo da elite que pensa a educação é fenomenal. Se você pensar uma educação diferenciada, para eles você estará questionando a soberania nacional. Não há coisa mais ridícula, mais conservadora e mais atrasada nesse debate, mas é assim que a nossa elite da educação brasileira pensa e age. Vai ser, portanto, uma luta longa. Por outro lado, no Ministério da Educação já tem gente que acredita e que concorda com isso, então vai ser uma boa briga nos próximos anos.

Entrevista recebida em 20 de junho de 2012. Aprovada em 1o de setembro de 2012.

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Livro didático de História: representações do ‘índio’ e contribuições para a alteridade

History textbook: representations of the ‘Indians’ and contributions to alterity

Maria de Fátima Barbosa da Silva*

ResumoA Lei 11.645/2008 objetiva contribuir para a construção de uma educação que valorize as relações étnico-raciais no sentido do resgate das identidades, incentivando o respeito entre os gru-pos que compõem a nossa sociedade e o questionamento do mito da ‘demo-cracia racial’. O acréscimo da temática indígena não implica apenas o acrésci-mo de conteúdos, mas também novas abordagens, novas metodologias, no-vos objetos na História Ensinada. Em síntese, implica uma História que rompe com a tradicional visão euro-cêntrica e propõe a desconstrução de estereótipos. Este estudo destaca os efeitos da Lei 11.645/2008 no livro di-dático e sugere como este pode ajudar na construção das identidades, fortale-cendo os vínculos identitários dos es-tudantes e contribuindo para uma maior alteridade. Palavras-chave: ensino de História Indí-gena; livro didático; alteridade.

AbstractThe Brazilian law number 11.645/2008 aims to contribute to the construction of an education which values ethnic-racial relations in the sense of recovery of iden-tities, stimulating the respect between the groups that make up our society and the questioning of the myth of the ‘racial de-mocracy’. The addition of the indigenous theme does not only imply the addition of contents; but also new approaches, new methodologies, new objects to the Taught History. In short, it implies a His-tory which breaks with the traditional eurocentric view; and, besides this, it holds a concern about the deconstruction of stereotypes. In this study, we intend to highlight which were the effects of the 11.645/2008 law on the Textbook and how this may help the construction of identities. The apparent changes on the Textbook for it to adjust to the objectives of the law and how these objectives may strengthen the students’ identity bonds as well as contribute to a greater alterity. Keywords: teaching of Indigenous His-tory; textbook; alterity.

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 151-168 - 2012

*Professora da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC – RJ). Rua da Ajuda, 5. Centro. 20040-000 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. [email protected]

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Este artigo pretende analisar como o tema das diferenças étnico-raciais vem sendo tratado, atualmente, nos livros didáticos de História, no contexto de aplicação da Lei 11.645/08, com vistas a discutir o impacto dessa abordagem no processo de construção de identidades dos grupos indígenas.

Entendemos que identidade e diferenças são dois processos profunda-mente imbricados, como afirma Vera Maria Candau:

É importante ressaltar que a identidade se associa intimamente com a diferença: o que somos se define em relação ao que não somos … As afirmações sobre iden-tidade dependem da diferença, a diferença depende da identidade. Identidade e diferença são inseparáveis … as diferenças são construídas socialmente e subja-centes a elas, se encontram relações de poder. O processo de produção da dife-rença é um processo social, não algo natural ou inevitável.1

Continuando com a sua exposição, os autores definem assim o conceito de diferença:

Associamos diferença ao conjunto de princípios de seleção, inclusão e exclusão que norteiam a forma pela qual indivíduos marginalizados são situados e consti-tuídos em teorias, políticas e práticas sociais dominantes. Com base nessas dife-renças, formam-se grupos distintos ‘nós’ e ‘eles’, dos quais o primeiro usualmente corresponde ao hegemônico, ao ‘normal’, ao ‘superior’, ao socialmente aceito, ao exemplo a ser seguido. Já o grupo dos ‘eles’ é integrado pelos excluídos – os ‘anor-mais’, ‘inferiores’, ‘estranhos’, ‘impuros’, que precisam ser mantidos à distância em seus ‘devidos’ lugares. (Moreira; Candau, 2008, p.44-45)

A Lei 11.645/2008 contribuiu para uma necessária discussão a respeito das discriminações a que foi sendo submetido esse grupo formado pelos ‘eles’, buscando equalizar as desigualdades engendradas com base nessas diferenças socialmente construídas. Segundo o parecer CNE/CEB 11/2000,

Toda a legislação possui atrás de si uma história do ponto de vista social. As dis-posições legais não são apenas um exercício dos legisladores. Estes, junto com caráter próprio da representatividade parlamentar, expressam a multiplicidade das forças sociais.2

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Essa lei tornou obrigatório o ensino e o “estudo da cultura e da história afro-brasileira e indígena” em escolas brasileiras da educação básica, públicas ou particulares.

Anteriormente, o presidente Lula assinou em seu primeiro ano de man-dato a Lei 10.639/2003. Seu dispositivo visava incluir naquele momento apenas a ‘temática africana’, tornando esse conteúdo componente curricular, prefe-rencialmente nas disciplinas de língua portuguesa, história e artes.

É importante destacar que a Lei 10.639/2003 emergiu do próprio anseio da sociedade, como uma resposta às ações do movimento negro. Não foi im-posta ‘de cima para baixo’, refletiu as lutas dos movimentos sociais. A inclusão da temática indígena no texto da Lei 11.645/2008 também resultou das inicia-tivas dos movimentos indígenas e indigenistas.

Obviamente, não é apenas por força da lei que esses conteúdos serão ope-racionalizados na prática, no cotidiano das escolas. De modo geral, é possível constatar que os professores que já adotavam práticas pedagógicas que privi-legiavam o respeito às diferenças e uma educação para a promoção nas relações étnico-raciais continuaram adotando essas práticas; os que não adotavam tais práticas pedagógicas não se viram compelidos a adotá-las como resultado de uma imposição legal. O livro didático, como se verá adiante, pode contribuir para a operacionalização desses conteúdos.

A Lei 11.645/2008 é fruto de muitas disputas e representa um passo im-portante para as relações étnico-raciais, por vários motivos: traz não só a pos-sibilidade de representação de grupos que, historicamente, foram ou margina-lizados ou vítimas de estereótipos, mas também uma mudança na própria concepção da História, tradicionalmente ‘europeizante’, com a qual nos acostumamos.

Daí já é possível vislumbrar algumas dificuldades na aplicação dessa lei, ou por falta de fontes, ou pela dificuldade de superação do modelo de História que sempre esteve presente nos currículos oficiais, não só na educação básica, mas até mesmo no ensino superior de História. Entre os objetivos desse en-sino consta a formação inicial dos professores que irão atuar no Ensino Fun-damental e Médio. A nova lei implica a revisão de conteúdos curriculares, iniciativa que deveria partir das próprias universidades para melhor atingir a educação básica.

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Objetivando iniciar o atendimento ao dispositivo legal, os editais do Pro-grama Nacional do Livro Didático (PNLD)3 começaram a cobrar a adequação dos detentores dos direitos autorais que desejassem constar do seu guia. No edital de 2008 já era possível observar as exigências em relação às temáticas indígenas e africanas. No aspecto geral, já estariam desclassificadas as obras que “veiculassem preconceitos de condição econômico-social, étnico-racial, gênero, linguagem e qualquer outra forma de discriminação”.4

No edital de 2011 podemos observar que, em relação aos critérios comuns para todas as disciplinas, permanecem os mesmos princípios necessários à construção da cidadania, em relação a essa temática: respeito à pluralidade e à legislação vigente, e não veiculação de estereótipos e preconceitos. Porém, quanto aos critérios de eliminação e qualificação dos livros, especificamente da disciplina de História, podemos observar estes avanços: quanto ao Manual do Professor (MP), deveria conter orientações sobre a História da África e da cultura afro-brasileira, e a respeito da temática indígena deveria orientar os estudantes sobre os temas de Identidade e Diferença.

Dada a impossibilidade de analisarmos todas as coleções de História apro-vadas pelo PNLD-2011 em razão do próprio caráter deste trabalho acadêmico, optamos por eleger uma coleção que, segundo o guia PNLD-2011, foi classifi-cada quanto à abordagem da temática indígena e africana, tanto no livro do aluno quanto no Manual do Professor, como de ‘conteúdo-crítico reflexivo’.

Essa definição ‘crítico-reflexivo’ se deve ao fato de o guia PNLD-2011 adotar alguns critérios para classificar os livros didáticos sem buscar uma clas-sificação valorativa ou a emissão de um juízo de valor, pois o guia deixa claro que, em última análise, a escolha do livro didático depende da realidade em que o professor irá utilizá-lo.

De qualquer forma, para efeito de orientação e facilitação na escolha, o guia dividiu os livros didáticos segundo alguns aspectos (perfil dos exercícios, perfil do texto base e perspectiva curricular, entre outros). Quanto à temática indígena e africana, tanto no livro do aluno quanto no MP o guia dividiu as coleções em duas categorias: informativo e crítico-reflexivo.

Os livros de caráter ‘informativo’ buscaram adequar-se às exigências do edital de seleção 2011 que iriam constar do guia, porém,

sem que tal tratamento seja, necessariamente, vinculado a uma reflexão crítica

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integral e voltada à problematização do tempo presente ou mesmo ao tratamento longitudinal e complexo das relações temporais, seja da História das populações indígenas, seja da História da África e situação dos afrodescendentes no Brasil. Com isso, predomina, para o estudante, uma relação de possibilidade de aquisi-ção informativa e uma condição de análise de tais temáticas ainda, predominan-temente, de modo vinculado direta ou indiretamente à cronologia eurocêntrica. (GUIA PNLD-2011, p.24)

Enquadram-se na categoria ‘crítico-reflexivo’ aqueles em que:

A abordagem de tais temáticas para além da fixação e prescrição de novos con-teúdos para o aluno, o que significa imprimir uma problematização complexa entre passado e presente no tocante aos assuntos envolvidos nas exigências e prescrições legais. Tal cenário torna possível, aos alunos, a constituição de um quadro reflexivo mais amplo e denso no tocante à compreensão das contradi-ções, das mudanças e continuidades históricas, da ação dos sujeitos e da emer-gência de atitudes derivadas de uma consciência histórica capaz de engendrar a ação social … Com relação às orientações para o professor sobre o tratamento da legislação contemporânea se distinguem por sua capacidade de auxiliar, efetiva-mente, o trabalho de formação do professor. Recortes nessa direção aparecem em bases historiográficas atualizadas e com densidade teórico-metodológica, além da presença de leitura complementar e indicações pertinentes de fontes de atua-lização, bem como bibliografia consistente e igualmente atualizada. Além disso, conferem ênfase especial na discussão de tais temáticas, compreendendo a neces-sidade de o manual do professor ser uma ferramenta capaz de contribuir para o processo de formação continuada do professor. Ainda são em número minoritá-rio e correspondem a 25% do total. (Guia PNLD-2011, p.24 grifo nosso; ver Grá-ficos 1 e 2 e Quadro 1)

O foco principal desta análise é observar como as orientações oficiais para os conteúdos da história indígena foram inseridas na coleção, no sentido de se promover uma educação que considere outras matrizes que não apenas a eu-ropeia. Além disso, essa educação deve estar em harmonia com a promoção de uma sociedade mais justa e livre de preconceitos, tendo como produto final cidadãos mais conscientes de seu papel, capazes de enxergar e compreender o outro nas suas diferenças.

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É preciso salientar que de todas as 16 coleções aprovadas, apenas quatro conseguiram ser consideradas como de conteúdo crítico-reflexivo pelo PNLD-2011. O dado nos alerta para a necessidade urgente de reelaboração do saber escolar nesses manuais e de ampliação do olhar crítico do professor, no sentido de avançarmos de um conteúdo informativo na direção de uma refle-xão mais crítica sobre a temática.

Dessas quatro coleções, optamos por analisar a do professor Alfredo Bou-los: História, sociedade e cidadania, da Editora FTD. Essa escolha se deve ao fato de essa coleção, apesar de abordar os conteúdos da História em ordem cronológica – orientação que atualmente é alvo de várias críticas –, ainda assim conseguir obter avaliação positiva do guia PNLD.

O próprio autor justifica a escolha desse tipo de abordagem. Ele afirma que a organização de conteúdos de forma cronológica e integrada permite situar os fatos no tempo, bem como observar sua duração, sucessão e simulta-neidade. Além disso, essa abordagem permite a retomada de assuntos em ou-tros capítulos distribuídos ao longo da coleção, como acontece, por exemplo, com o próprio conceito de ‘tempo’ – este é apresentado no primeiro livro da coleção e, novamente, no capítulo sobre revolução industrial do terceiro livro, para que os alunos compreendam os diversos ritmos em várias sociedades.5

Parece-nos que essa coleção demonstra que mesmo numa visão mais tra-dicional da História, sobre um recorte cronológico e linear, é possível intro-duzir uma visão crítica, longe de estereótipos e de uma visão eurocêntrica, aproveitando-se também de outras temporalidades. Ou seja, a adoção da pers-pectiva cronológica linear não elimina uma visão crítica dos conteúdos, que não é necessariamente incluída numa perspectiva temática.

Este trabalho também é fruto de uma inquietude, pois sabemos que em muitos lares o livro didático chega como o único livro a que muitas crianças e adolescentes terão acesso. Justamente por serem pessoas em processo de de-senvolvimento, é de extrema importância o cuidado com o conteúdo a que esses jovens estarão expostos. Por exemplo: tais conteúdos irão reforçar ou diminuir o preconceito e a discriminação? O livro didático é, assim, um im-portante veículo para discursos capazes de contribuir para a construção de significados sobre as relações étnico-raciais e, dessa forma, impactar a consti-tuição de identidades.

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Ao empreendermos tal estudo, consideramos que é central o modo como a narrativa histórica trata a questão das diferenças étnico-raciais em cada con-texto. Isso engendra duas outras questões importantes: primeiramente, a des-construção do ‘mito da democracia racial’, o que irá nos permitir a formação de cidadãos conscientes da diversidade cultural verificada em nosso país; em segundo lugar – e como decorrência do primeiro aspecto –, é preciso que esses estudantes se vejam representados nas narrativas, entendam a diferença como um direito que lhes é inerente, ao mesmo tempo em que devem respeitar a diferença do outro.

A escolha por uma metodologia para este trabalho foi tão minuciosa e rigorosa quanto a escolha do objeto. Nesse sentido, optamos por fazer uma pesquisa qualitativa com base na metodologia de análise de conteúdo. Essa metodologia nos permitiu definir as nossas categorias de análise a fim de com-preendermos como o livro didático (LD) está dialogando com a demanda da inclusão dessas temáticas.

A análise de conteúdo já vem sendo utilizada desde o final do século XIX e, a partir da segunda metade do século XX, vem desenvolvendo diferentes abordagens, sobretudo “na exploração qualitativa de mensagens e informa-ções”.6 Com base nessa metodologia pretendemos analisar, interpretar e des-crever os resultados desta pesquisa buscando atingir um grau de observação da nossa fonte (o LD) que ultrapasse uma leitura comum. Buscaremos captar o sentido simbólico, nem sempre expresso no texto. Para isso, dividimos o material de estudo em unidades menores, que são as categorias de análise.

apresentação e análise da coleção história, sociedade e cidadania

Análise de conteúdo

Algumas advertências, embora óbvias, se fazem necessárias, antes de avançarmos na análise do LD em questão. A primeira delas diz respeito à subjetividade: embora a metodologia que buscamos adotar nos ajude a limitá--la, estará sempre presente quando se trata de pesquisas qualitativas, sobretudo aquelas que consideram a leitura de textos. Toda leitura, aliás, é suscetível a uma infinidade de interpretações.

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Outra consideração óbvia é que partimos de algumas escolhas, nem sem-pre ajustáveis a outros olhares. Toda escolha acaba, necessariamente, impli-cando perdas, embora estas se tornem justificáveis pelo aprofundamento que pretendemos estabelecer nos fragmentos de texto da análise.

A análise de conteúdo operacionaliza-se, basicamente, pela categorização do texto em unidades menores, as quais devem ser ‘válidas’, ‘exclusivas’, ‘con-sistentes’, ‘objetivas’ e ‘fidedignas’. Além disso, o conteúdo de cada categoria deve ser ‘homogêneo’.

Ao criarmos as categorias para nossa análise, partimos da teoria; sobre essa fundamentação alcançaremos a interpretação, ultrapassando uma mera descrição da coleção. Em outra vertente, “a teoria emerge das informações e das categorias” (Moraes, 1999), constrói-se uma teoria com base nos dados, e essa teoria passa a ser também uma interpretação.

Tais categorias emergiram também do próprio texto da lei, além da teoria, quais proporcionando a compreensão da nossa problemática. O que a lei pre-tende é, entre outras coisas, provocar uma discussão a respeito das relações inter-raciais no Brasil. Nesse sentido elegemos três categorias, que se encon-tram estrategicamente inseridas no centro dessa discussão: 1) ‘encontros’; 2) o conceito de desenvolvimento e a hierarquização das culturas; e, por fim, 3) textos, documentos e imagens que possibilitem a construção de referenciais identitários positivos.

O limite disponível para este trabalho nos leva a apresentar apenas uma das três categorias:

Encontros

A categoria ‘encontros’ nos permite compreender as perspectivas dos di-ferentes grupos étnicos que compõem a nossa sociedade:

Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais dís-pares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo, num novo modelo de estruturação socie-tária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos.7

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Também se procurou elucidar como o LD deu voz a cada uma dessas ‘ma-trizes raciais díspares’, se tais vozes estão explícitas, ocultas ou mesmo se foram negadas; se mesmo em se tratando de encontros, o que ainda permanece é a voz daquele grupo que regeu esse ‘novo modelo de estruturação societária’.

A inclusão desta categoria de análise se deve à própria constituição étnica da nossa nação. Esses encontros não foram casuais, foram marcados, como todos sabemos, pelo signo da violência. O que queremos ouvir, consultando o LD, é a versão daqueles que foram ‘vencidos’, retirados do seu espaço natural de convivência (sejam indígenas ou africanos) e inseridos numa nova lógica econômica que defendia a exploração como forma de enriquecimento.

Mais do que procurar vítimas ou culpados, mocinhos ou bandidos, esta-mos à procura dos discursos textuais que marquem uma ruptura com essa visão dicotômica e contribuam para que o educando compreenda que tais relações foram construídas por sujeitos históricos e foram, portanto, frutos de negociações, de resistências e também de conformações; que esses encontros não aconteceram apenas em um momento específico e reapareceram em ou-tros (por exemplo, durante a montagem da colonização e, depois, nas lutas pela demarcação de terras), e sim que estão presentes no fluxo contínuo da própria história. Queremos interrogar o LD também sobre a capacidade de enunciar para os estudantes as permanências e as descontinuidades das tensões sociais no Brasil.

A coleção História, sociedade e cidadania está dividida em quatro volu-mes, um para cada ano do segundo segmento do Ensino Fundamental. Propõe--se a apresentar o conteúdo de história de forma integrada e em ordem crono-lógica. Assim, o estudante, ao dominar o conceito de linha do tempo, tema dos capítulos iniciais, que envolvem a introdução aos estudos da História, estará apto a identificar fatos simultâneos em outros espaços, o que nos ajudará na categorização desses encontros, promovendo uma ruptura com a tradição do-minante, pela qual os ‘índios’, por exemplo, só passariam a ter uma história a partir da chegada do europeu.

Ao se apropriar do conceito da simultaneidade, o professor poderá de-monstrar para seus estudantes que os índios também são portadores de uma história ‘pré-chegada dos portugueses’, e os temas apresentados em ordem cronológica permitem visualizar isso quando se coloca a história desses povos ao lado da história de outros povos.

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Claro que essa forma de divisão não é apenas um estilo narrativo, mas um recurso didático.

Em relação à temática indígena, o primeiro volume reservou o Capítulo 5 para trabalhar “A pré-história brasileira”. Do ponto de vista dos encontros, podemos observar que o autor salienta os ritmos de duração histórica marca-dos de forma diferente da história universal (de cunho europeu), demonstran-do que os antigos habitantes de nosso território não estavam em posição de inferioridade em relação aos povos conquistadores, apenas apresentavam um modo de viver diferente. O autor alerta para a necessidade de se conhecer melhor a história desses povos que são os verdadeiros ‘descobridores do Brasil’, e também para o perigo de se homogeneizarem grupos indígenas com culturas distintas.

O segundo volume possui como recorte cronológico dois períodos histó-ricos: o período medieval e a modernidade. Tanto para a questão indígena quanto para a africana, não são enunciados pontos de encontro entre as cul-turas no primeiro período.

O autor até se reporta a uma história anterior à chegada dos portugueses, mas sem delimitação de data, tanto para os africanos quanto para os indígenas. Isso pode confundir o estudante, primeiro por não se elucidar o ‘quanto antes’ é o tempo dessa chegada; segundo, por recair no mesmo erro já cometido por muitos autores de livros didáticos de história: considerar que durante a Idade Média só havia história para os europeus.

O autor considera outras civilizações, como os bizantinos e os chineses, durante a medievalidade, mas omite os povos indígenas e africanos no mesmo período – algo compreensível pela ausência de fontes e também por questões editoriais.

Em relação à temática indígena, ainda no segundo volume, no capítulo intitulado “Povos indígenas no Brasil” o autor se coloca criticamente perante dois aspectos: a vitimização pela qual os índios são geralmente apresentados nos livros didáticos, e a homogeneização das suas culturas:

Os indígenas já viviam nas terras onde hoje é o Brasil milhares de anos antes da chegada dos portugueses. Apesar disso, com poucas exceções, aparecem nos li-vros escolares. E, muitas vezes, são mostrados apenas como vítimas, e não como sujeitos da História.

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Além disso, diferentes povos indígenas são muitas vezes chamados pelo no-me de índio, como se fossem todos iguais. (Ribeiro, 1995, v.2, p.202)

Em relação ao encontro dos índios com os europeus, o autor desconsidera outras palavras além de ‘catástrofe’ para caracterizar os efeitos desse encontro. Catástrofe é algo geralmente associado aos eventos da natureza. O que se ob-serva a partir desse encontro é uma verdadeira barbárie, na qual os ‘índios’ foram sendo expropriados. O autor assinala os efeitos clássicos, tais como as epidemias trazidas pelos europeus, a superioridade bélica europeia e a escra-vização dos indígenas, e ainda provoca os estudantes com interrogações:

Mas afinal, o que os povos indígenas têm em comum? Em que são diferentes uns dos outros? Qual o significado da terra para eles? Quais os principais problemas enfrentados por eles no passado? Quais enfrentam hoje? (Ribeiro, 1995, v.2, p.202)

O diálogo com o presente é uma preocupação constante em toda a cole-ção. Com esse diálogo o autor pretende provocar uma aproximação dos alunos com a realidade dos índios brasileiros. Ao abordar a questão fundiária, os alunos podem também reconhecer pontos de convergência com a realidade indígena e observar como para o índio, ao contrário dos europeus, a terra é de quem nela trabalha, não um objeto negociável, uma mercadoria. Muitas áreas possuem, para os índios brasileiros, uma dimensão sagrada que supera qual-quer valor material.

Outra diferença que o LD destaca para os estudantes refere-se à dimensão e ao significado do trabalho. Para os índios, o trabalho não é uma forma de diferenciação social pela renda, mas sim por sexo e idade.

O autor dedicou três capítulos do terceiro volume para tratar, especifica-mente, das questões indígenas e africanas, basicamente em relação ao mo-mento da ‘montagem da nossa colonização’, mas também reportou a partici-pação desses povos em outros contextos. Isso favorece o rompimento com algo já mencionado: o fato de muitos livros didáticos associarem a participação do negro e do índio, por exemplo, apenas nos primórdios da colonização, o que pode ocasionar uma perda da visão do processo histórico em relação a esses atores sociais.

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Em relação ao terceiro volume, cabe destacar ainda alguns dados: seu capítulo de abertura apresenta a montagem da nossa colonização e falha por não abordar as resistências dos nativos do Brasil diante da chegada portuguesa. É nítida a perspectiva da historiografia tradicional, que os apresenta como dóceis e ingênuos.

Porém, o autor apresenta uma ruptura com a visão da história tradicional ao afirmar que os nativos do Brasil foram utilizados nos engenhos da cana-de--açúcar. Para o professor, pode ser interessante levar o estudante à percepção de que ocorreu outro encontro, desta vez envolvendo dois grupos explorados – os negros e os índios –, ambos em posição de subalternidade se comparados aos seus colonizadores, como se vê na Tabela 1.

O autor apresenta as razões para o declínio do uso da mão de obra indí-gena e os fatores que levaram à expansão do tráfico negreiro. Ainda que evi-dencie como razão principal a rentabilidade do tráfico negreiro, não enuncia claramente as formas de resistências efetuadas pelos grupos indígenas, as quais podem também ter contribuindo para o declínio da escravização indígena. O estudante pode desenvolver a percepção de uma história que é quase sempre fruto das decisões dos grupos dominantes, sem a atuação dos demais, uma vez que não se enuncia a resistência dos grupos indígenas como um dos fatores que contribuíram para a adoção da mão de obra africana. Estes escravos tam-bém efetuaram movimentos de resistência que iam do suicídio ao ‘fazer corpo mole’, além de formarem quilombos, entre outras formas de resistência.

É importante que o estudante compreenda a existência de uma mentali-dade de época que ‘coisificava’ os diferentes em nome do lucro – algo que também não se coloca em evidência na publicação analisada. E os estudantes, na perspectiva de hoje, podem incorrer em anacronismos ou mesmo na emis-são de um juízo de valor que limite a sua compreensão desse contexto históri-co. Igualmente, não se apontou a base de legitimação para que indígenas e africanos fossem escravizados, não se apresentou, por exemplo, a importância do discurso religioso para validar essas práticas.

Conforme já mencionado, o autor reservou um capítulo inteiro para a questão indígena no segundo volume, no qual aborda o modo de viver dos indígenas antes da chegada dos portugueses e estabelece pontes entre o passado e o presente.

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Percebemos a sucessão de conflitos durante todo o período histórico abor-dado do terceiro volume – da montagem da colonização até o Segundo Reina-do. O livro reporta-se apenas à História do Brasil, já que a coleção apresenta o conteúdo de modo integrado, e é nítida a intenção predatória dos europeus nesse encontro. E o autor não deixa de retratar a participação de indígenas e africanos nos movimentos clássicos de reivindicações e resistências, tais como as guerras guaraníticas e a conjuração baiana.

Embora a lei tenha introduzido a necessidade de uma revisitação histo-riográfica sobre as questões indígena e africana, o que para muitos autores de livros didáticos tem-se traduzido em uma enorme dificuldade, o autor condu-ziu com propriedade um aprofundamento com base nas revisitações historio-gráficas, demonstrando farto conhecimento e incorporando muitas das des-cobertas recentes. Contribuiu, assim, de modo significativo para ampliação e divulgação do saber, realizando a difícil tarefa de transposição didática do saber acadêmico para o saber escolar. Na seção ‘para saber mais’ do Capítulo 7 do terceiro volume, “A marcha da colonização na América Portuguesa”, por exemplo, o autor demonstra essa aproximação entre o saber acadêmico e o saber escolar. Ao operar com esses novos conhecimentos o autor não apenas oferece aos estudantes o acesso ao saber atualizado, mas também contribui para motivá-los nos caminhos rumo à pesquisa:

Durante muito tempo, pensou-se que a maioria dos índios escravizados pelos bandeirantes foi vendida a colonos do Rio de Janeiro e da Bahia – regiões onde havia falta de trabalhadores, depois que os holandeses passaram a dominar o tráfico negreiro. Mas uma pesquisa recente, do professor John Manuel Monteiro, comprovou que somente uma pequena parte dos indígenas capturados foi vendi-da para o Rio de Janeiro e a Bahia. A maior parte deles foi vendida para as fazen-das de trigo existentes em São Paulo.8

Identificamos alguns equívocos de cunho mais conceitual do que propria-mente historiográfico, como por exemplo a permanência da nomenclatura ‘índios’ para os povos do Brasil e ‘ameríndios’ para os povos da meso-América, como se ambos não fossem habitantes do continente americano. Embora efe-tue a crítica à homogeneização que essa nomenclatura oferece, o autor acaba por reproduzi-la inúmeras vezes.

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O autor não representa os indígenas do Brasil com base em algumas visões canônicas, como a da indolência. Contudo, embora assinale a grande rentabi-lidade do tráfico negreiro, enfatiza o domínio de técnicas que os indígenas desconheciam, das quais os africanos tinham amplo conhecimento, e assim acaba por reproduzir outra dessas visões canônicas (contradizendo-se): a de que o trabalhador indígena fora substituído pelo africano por causa da igno-rância do primeiro. Isso pode levar os estudantes a um equívoco por induzir uma noção de inferioridade dos indígenas em relação aos povos imigrados da África, ao mesmo tempo em que se subestimam os interesses em jogo.

Buscamos na análise, interpretação e descrição dessa categoria enunciar os pontos de convergências e divergências no encontro entre essas matrizes. E mesmo compartilhando da ideia de Darcy Ribeiro, de que o encontro ‘se dá sob a regência dos portugueses’, procuramos também destacar as resistências e negociações e não apenas as dominações, frutos da própria dinâmica social.

Esperamos, também, ter evidenciado o quanto o LD em análise, apesar de repetir alguns pontos de vista tradicionais no ensino de história, contribuiu para a formação de uma consciência histórica que ultrapassa a visão tradicio-nal, ao evidenciar lutas e resistências.

Considerações finais

A demanda aberta pela inclusão das temáticas indígenas e africanas no currículo escolar da Educação Básica, tanto no ensino público como no priva-do, vem abrindo novos horizontes e possibilidades, mas também tem demons-trado o quanto ainda precisamos nos debruçar sobre essas questões para que elas recebam o tratamento merecido.

Muitas mudanças ainda precisam ocorrer, e não apenas na Educação Bá-sica. É imprescindível incluir no ensino universitário – no currículo daqueles que, futuramente, estarão atuando na Educação Básica – as bases para uma educação que prime pelas relações étnico-raciais.

No LD que foi o alvo de nossos estudos já percebemos algumas mudanças em decorrência da introdução da lei. Outras ainda se fazem urgentemente necessárias, como por exemplo, o ‘encontro’ entre as matrizes indígenas e

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africanas, pois, de modo geral, cada uma dessas etnias é apresentada de ma-neira isolada e sempre em relação ao modelo europeu.

No desenvolvimento deste trabalho procuramos adotar a posição de que as identidades passam por um processo de construção. Compartilhamos o pensamento de Stuart Hall9 ao afirmar que elas não são rígidas, são fluidas e híbridas. A Lei 11.645/2008, fruto das lutas sociais, aponta um espaço para construção de uma identificação com outras matrizes que não a europeia. Essa lei vai possibilitar – assim esperamos – o respeito, o entendimento de como se dimensionam as diferenças e o combate às desigualdades. Estas são apenas algumas faces dessa construção que não se faz apenas por força da lei, mas que se efetua sobre os jogos de interesses e disputas com os quais deparamos nas nossas relações cotidianas.

Nesses embates está em pauta a centralidade da dimensão histórica com a busca das raízes e das origens dessas matrizes pela evocação de um passado que legitime tais identidades. A história e o ensino de história passaram a ser essenciais na recuperação da cidadania dos grupos que ao longo da construção do saber histórico e do próprio desenvolvimento de nossa nação foram, de um modo ou de outro, marginalizados.

O saber histórico escolar possui algumas especificidades, entre elas, como vimos, o fato de colaborar na formação dos indivíduos, sobretudo crianças e adolescentes, que ainda se encontram em processo de desenvolvimento. Existe, portanto, uma necessidade subjacente de se compreenderem os discursos ideo-lógicos que podem estar embutidos na própria concepção de história e nos materiais didáticos.

O LD tem se mostrado um importante recurso didático – nem por isso isento de ideologia – para a mediação que ocorre entre o saber acadêmico e o saber escolar. Além disso, é um importante meio para a divulgação das dire-trizes curriculares.

Concluímos, pois, que a Lei 11.645/2008 constitui um ótimo ponto de partida para uma sociedade em que o racismo deixe de ser uma prática comum nas relações cotidianas, ainda que muitas barreiras precisem ser superadas. A coleção História, sociedade e cidadania transpôs com sucesso algumas dessas barreiras, outras ainda requerem o olhar atento do professor, o mediador des-ses conhecimentos. Para tanto é necessária uma formação também pautada na promoção da igualdade entre as raças.

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Maria de Fátima Barbosa da Silva

ANEXOS

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Livro didático de História: representações do ‘índio’ e contribuições para a alteridade

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Tabela 1 – Trabalhadores no Engenho Sergipe em 1572

Fonte: Boulos Jr., 2006.

Gráfico 1 PNDL 2011 – Formas de abordagem

da temática e História da África – em %

Gráfico 2

PNDL 2011 – Orientações ao professor sobre o tratamento da temática indígena e História da África – em %

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Maria de Fátima Barbosa da Silva

Revista História Hoje, vol. 1, nº 2168

NOTAS

1 CANDAU, Vera Maria. Multiculturalismo e educação: desafios para a prática pedagógica. In: MOREIRA, Antônio Flávio; CANDAU, Vera Maria (Org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis (RJ): Vozes, 2008. p.44.2 BRASIL. Conselho Nacional de Educação/Câmara da Educação Básica. Diretrizes Curricu-lares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Brasília: MEC/SEF, 2000. p.12.3 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) é uma política do Estado Brasileiro que por intermédio de editais busca promover a qualidade de ensino com base nos livros didáti-cos. Tem sido um instrumento muito eficiente na divulgação das diretrizes curriculares, co-mo se verá adiante.4 Edital PNLD-2008, p.31.5 BOULOS JR., Alfredo. História, sociedade e cidadania. 4v. São Paulo: FTD, 2006. Manual do Professor, v.1, p.7.6 MORAES, Roque. Análise de Conteúdo. Revista Educação, Porto Alegre, v.22, n.37, p.7-32, 1999.7 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Compa-nhia das Letras, 1995. p.19.8 MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Pau-lo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.120.9 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. p.13.

Artigo recebido em 18 de março de 2012. Aprovado em 3 de agosto de 2012.

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A Educação Superior de Indígenas no Brasil contemporâneo: reflexões sobre as

ações do Projeto Trilhas de ConhecimentosIndigenous Higher Education in Contemporary Brasil:

reflections on the actions of the Trails of Knowledge Project

Antonio Carlos de Souza Lima*

Resumo O objetivo do artigo é refletir sobre os de-safios implícitos nos debates acerca da formação de indígenas no ensino superior no Brasil contemporâneo. Considera-se para isso a busca dos movimentos indíge-nas pela obtenção de conhecimentos ne-cessários para redefinir a presença indíge-na no Estado no Brasil e para entender as formas político-sociais não indígenas, de modo a superá-las. Essa reflexão se faz so-bre a experiência do Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de In-dígenas no Brasil, desenvolvido de 2004 a 2010 no Laboratório de Pesquisas em Et-nicidade, Cultura e Desenvolvimento (La-ced) do Museu Nacional-UFRJ, financia-do pela Fundação Ford.Palavras-chave: povos indígenas; educa-ção superior; Fundação Ford.

AbstractThe aim of this paper is to reflect upon the implicit challenges on the debate on indigenous higher education in contemporary Brazil. The paper con-siders the indigenous movements struggles to acqueire knowledge so that they can modify Brazilian State. It is done through the analysis of the ac-tions of an applied project developed by a research team at the Research Lab-oratory on Ethnicity, Culture and De-velopment, at the Museu Nacional, Federal University of Rio de Janeiro, from 2004 to 2010 in Brazil, funded by the Ford Foundation.Keywords: indigenous; higher educa-tion; Ford Foundation.

O objetivo do presente texto é refletir sobre os desafios implícitos nos debates acerca da formação de indígenas no ensino superior no Brasil contem-porâneo. Considera-se aqui a busca dos movimentos indígenas pela obtenção

*Departamento de Antropologia – Museu Nacional. Quinta da Boa Vista, s/n, São Cristóvão. 20940-040 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Fontes de financiamento: Fundação Ford, Faperj, Finep, CNPq. [email protected]

Revista História Hoje, v. 1, nº 2, p. 169-193 - 2012

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Antonio Carlos de Souza Lima

Revista História Hoje, vol. 1, nº 2170

de conhecimentos necessários para redefinir a presença indígena no Estado no Brasil e para entender as formas político-sociais não indígenas, de modo a superá-las. Essa reflexão se faz sobre a experiência do projeto Trilhas de Co-nhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil, desenvolvido de 2004 a 2010 no Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimen-to (Laced)/Departamento de Antropologia/Museu Nacional-UFRJ. Trata-se, portanto, de mostrar como, no momento atual da(s) história(s) indígena(s) em nosso país, a reconfiguração imaginária do Brasil como país pluriétnico impõe a necessidade de dominar conhecimentos e formas de transmissão de saber, sem que se abandonem nem se escolarizem valores, tradições culturais e histórias diferenciadas.

Breves informações sobre os povos indígenas no Brasil contemporâneo

Mais de duas décadas após a promulgação da Constituição de 1988, com sua declaração do Brasil como um país pluriétnico, é possível dizer que o ‘cidadão comum’, o ‘brasileiro médio’ e a ‘opinião pública’, esses constructos de existência imaginária, têm parcas informações sobre os povos indígenas no Brasil, reflexo da formação obtida desde o ensino fundamental até o ensino médio e muitas vezes (quando se chega a tanto) perpetuadas no nível univer-sitário, tanto na graduação quanto na pós-graduação. A escola como institui-ção é não apenas incapaz de se contrapor à avalanche de preconceitos do senso comum, perpetuados pela mídia impressa e audiovisual, mas também desinteressada e desatualizada sobre o que se passou e o que se passa na his-tória indígena nos limites internos e externos do país, nas fímbrias e lindes do Estado nacional, considerado ou como ente jurídico ou como ente imaginário. Leis à parte, os conteúdos curriculares continuam a ser dispostos de modo a encerrar em verdadeiros guetos do conhecimento os conteúdos relativos a um Brasil real que nunca cabe suficientemente bem nas promessas de um futuro – mas isso seria matéria extensa, para outro texto.1

O fato é que muito pouco se sabe – ou se quer saber – sobre os 817.963 indivíduos que se autodeclararam indígenas para os pesquisadores do IBGE no Censo de 2010, divididos em cerca de 230 povos, falando 180 línguas

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A Educação Superior de Indígenas no Brasil contemporâneo

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distintas, compondo 0,4% da população brasileira e distribuídos por todos os estados da Federação.2

As variadas formas de ação política dos povos indígenas viabilizaram mudanças significativas tornadas lei na Constituição de 1988 e expressas na ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, e têm sido marcos contra desmandos dos poderes públicos que em todo esse período não cessaram de existir. Esses povos pensam e reagem a tais imagens com indignação e com a clareza de que precisam se fazer presentes na esfera pública brasileira. Sabem que para isso precisam estar preparados, como di-zem muitas vezes, substituindo arcos e flechas, bordunas ou enxadas e macha-dos por canetas, computadores e diplomas.

Como resultado de muita luta travada desde os anos 1970 até hoje, os indígenas tiveram suas demandas por terra materializadas em 678 terras in-dígenas dispersas por quase todos os estados da Federação, numa área total de 112.703.122 hectares.3 Na região da Amazônia Legal localizam-se 414 des-sas terras, num total de 110.970.489 hectares que ocupam 21,73% desse espa-ço do território brasileiro, segundo estimativas do Instituto Socioambiental. Nessa região do Brasil também se concentra a maioria das ‘organizações in-dígenas’ nas quais, sobretudo após a Constituição de 1988, os índios buscam se articular para a luta política e para o monitoramento das ações de Estado a eles direcionadas.

As terras indígenas perfazem em torno de 13,1% de todas as terras brasi-leiras e são das mais ricas – e das mais cobiçadas – em recursos naturais (bio-diversidade e recursos minerais), das raras áreas preservadas num país cada vez mais devastado pelo extrativismo selvagem, pela exploração mineral, pelas queimadas de florestas que as transformam em carvão ou abrem pasto para gado e espaço para a cana e a soja do agronegócio. Na prática, muitas delas estão invadidas, e os povos indígenas nelas encerrados não têm contado com políticas governamentais de suporte à sua exploração em moldes sustentáveis.4

Os líderes indígenas sabem dessas conquistas, mas sabem também de sua relatividade e do quanto podem ser precários esses grandes avanços. Essas lideranças sabem o quanto o conhecimento público da questão indígena é superficial, mesmo nos grandes centros onde a ‘opinião pública’ – cuja cons-tituição/imaginação não cabe discutir aqui – lhes é favorável, e como essa ignorância justifica toda sorte de violências.

A Educação Superior de Indígenas no Brasil contemporâneo

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Se esse é o cenário atual, não custa lembrar que nos últimos 40 anos di-versas foram as mudanças nas relações entre o Estado nacional brasileiro e os povos indígenas habitantes autóctones desta porção do continente americano, cuja presença histórica é um dos vetores constituintes do nosso país, ainda que denegado, seja pela romantização seja pela elisão. De uma política desen-volvimentista marcada por um assimilacionismo desenfreado, chegamos até a demarcação sob a figura jurídica de terras indígenas dessas extensas partes do território brasileiro, a partir dos anos 1990. Deixaram de ser grupos ou bandos integralmente submetidos ao Estado brasileiro na condição de legal-mente tutelados, isto é, apenas parcialmente responsáveis por seus atos e ne-cessitados, para efeitos da estrutura jurídico-administrativa brasileira, da mediação e da condução de um tutor, equiparados assim, em termos de Di-reito Civil, aos brasileiros não indígenas menores de 18 e maiores de 16 anos. Passaram, por efeito da Constituição de 1988, a ser reconhecidos como civil-mente capazes de se representarem juridicamente por meio de suas organiza-ções, e tiveram seu estatuto de povos reconhecido por força da ratificação pelo governo brasileiro (Congresso Nacional) da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, em junho de 2002.

São agora coletividades reconhecidas como povos que contam com de-mandas por sustentabilidade e desenvolvimento diferenciado, por projetos e parceiros (dentre essas organizações de intervenção indigenista – as ditas ONGs indigenistas, hoje altamente profissionalizadas e exercendo funções de governo –, agências de cooperação técnica governamentais e não governa-mentais bi ou multilaterais, dentre as quais redes ambientalistas conservacio-nistas e seus parceiros nacionais) que legalmente devem ser ouvidos a cada decisão que os afete. No meio dos movimentos indígenas e suas organizações evidencia-se, assim, a incorporação do léxico (neo)desenvolvimentista como modo de expressar necessidades amplas e interesses multifacetados num ce-nário de tentativas (externas) de mudança social induzida e (internas) de transformações aceleradas, com grandes decalagens entre as gerações indíge-nas. O protagonismo indígena, expressão cara aos movimentos indígenas e que marca sua busca por autonomia nos processos sociais em que estão envolvi-dos, é a moeda corrente do momento. Como efeito mais geral, tem-se a sin-gular despolitização da ação de representantes indígenas e sua tecnificação, tão ao gosto do mundo do desenvolvimento.5

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Nestas quatro décadas cruzam-se, portanto, fios que podem nos conduzir ao entendimento do complexo da questão indígena no Brasil contemporâneo, desanimador à primeira vista, no plano governamental, em face de períodos como o dos anos 1990 e início dos anos 2000, em aparência tão promissores de mudanças e novas perspectivas, mas que todavia deixaram pouco ou nada institucionalizado. A recuperação de um pouco da história das relações entre povos indígenas e Estado brasileiro pode ajudar a perceber, ainda que super-ficialmente, o regime de preconceitos que se manifesta contra esses povos de diversas formas e foi capturado claramente pela pesquisa “Indígenas no Brasil – demanda dos povos e percepção pública”. Grande é a ignorância do brasi-leiro médio, seja das grandes cidades, seja do interior, acerca dos modos de vida indígenas no país.

A novidade que merece destaque – ainda que seja necessário entender alguns de seus principais dilemas – é o associativismo indígena, que não se iniciou com a Constituição de 1988, mas teve desde então um estímulo con-siderável. O movimento indígena e suas inúmeras formas de expressão insti-tucional, sobretudo no modelo não autóctone das já mencionadas organiza-ções indígenas (OIs), tem feito a diferença essencial desde os anos 1970-1980. As OIs têm amplitudes de ação muito distintas – desde as que representam aldeias ou as de corte étnico (representando um povo) até as de âmbito regio-nal, passando por grandes redes de organizações, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab, www.coiab.com.br/) ou a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul), a Articulação dos Povos Indígenas do Pantanal e Região Centro-Oeste (Arpi-pan), ou a tentativa de reuni-las na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Todas elas seguem padrões distintos de tentativas anteriores como a da União das Nações Indígenas (UNI), criada em 1980 e que na prática se desarticularia no imediato pós-Constituinte.6 As funções das organizações in-dígenas eram inicialmente voltadas para a defesa de direitos e para a ação política. Elas foram se tecnificando ao longo dos anos 1990, sendo direciona-das à operação de projetos e planos não explicitados de transformação mais abrangente.

Os ganhos e perdas desses processos ainda estão por ser sopesados ade-quadamente. Eles não só aportaram muitos novos conhecimentos,

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mas também implicaram a assunção de responsabilidades para as quais essas organizações de distintos matizes e naturezas, âmbitos e especializações, não estavam preparadas. Tampouco elas vêm sendo adequadamente subsidiadas na aquisição de capacidades variadas, necessárias a novos papéis e ao intenso trabalho de participação política. Os movimentos indígenas têm sido críticos da descontinuidade imposta pelo formato projeto, o qual determina uma es-pécie de contrato entre um financiador e uma organização. São previstos con-juntos de ações a serem executadas com certas finalidades, sob valores e prazos precisos, sendo o processo de formalização de um projeto uma negociação penosa – e muitas vezes extremamente criativa – entre facções e gerações de um ou mais povos.

O mais importante, porém, está no que o texto constitucional tem signi-ficado para a formulação de outra ideia de Estado como suporte para a ima-ginação social, em que o reconhecimento dos direitos dos indígenas desem-penha papel de destaque.7 A Constituição de 1988 tem se caracterizado, com a Convenção 169 da OIT, em horizonte de construção de outras práticas ad-ministrativas e, consequentemente, no respeito a esses povos como agentes de sua história, na construção de espaços políticos à sua necessária participação. Esses elementos foram essenciais à quebra da visão unitarista que defendia a necessidade da tutela, supondo-a como essencialmente protetora, e propõem novos horizontes a pedaços ponderáveis do que chamei de ‘arquivo colonial’.8

Um convívio mais estreito com os movimentos indígenas mostra que no bojo do surgimento e da formação de um intenso ativismo constitui-se uma intelectualidade indígena que tem o potencial (pois tenta fazê-lo em múltiplas escalas) de transformar as relações entre o Estado e as suas coletividades. Tal intelectualidade tem buscado pensar e repropor relações com os ‘mundos dos brancos’ e vem se formando na luta política tanto quanto nas universidades e faculdades não indígenas, produzindo sínteses e interpretações que vêm bus-cando espelhar as orientações que partem de suas coletividades de origem. Esse ativismo possui – com todas as suas limitações e contradições – uma percepção mais fina do que são ‘os mundos dos brancos’ e o Estado nacional. É capaz, no limite, de reconhecer aspectos positivos e negativos tanto nas coletividades indígenas quanto nos mundos não indígenas, estabelecendo as-sim bases mais sólidas para a luta política e alianças em que os indígenas es-tejam dotados de reais bases para a autonomia.

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O ensino superior de indígenas: elementos para pensar

Contra esse pano de fundo muito impressionisticamente delineado nos parágrafos anteriores, alguns trabalhos têm surgido como tentativas de, em diálogo, construir melhores canais de formação e informação que permitam aos indígenas atuar na esfera pública prescindindo de mediadores não indíge-nas. A busca por qualificação que é apresentada como parte do interesse indí-gena pela formação no ensino superior é também uma busca por entender e dominar a avassaladora entrada das políticas públicas nas aldeias indígenas, até mesmo em aspectos os mais recônditos como o do parentesco e das relações intergeracionais. É o novo regime de poder em que a participação dos indíge-nas nas agências de Estado brasileiras é um imperativo que coloca desafios variados, como já mencionado brevemente. Na prática, essa luta por autono-mia se entretece com as formas tutelares e coloca a necessidade de se conhecer de ângulos variados as políticas governamentais incidentes sobre os povos indígenas, contando ou não com sua presença efetiva nas etapas de formulação e implementação dessas ações governamentais. Percebe-se, portanto, que é preciso proceder a estudos em que analisar o Estado no tocante às políticas indigenistas implique analisar os povos indígenas como nelas entramados.

Essa intelectualidade indígena em surgimento e consolidação, em diálogo com as transformações (quiçá mudanças) estatais, vem formulando concep-ções que partem de seu aprendizado – distributivamente variado – em suas tradições culturais e do que tais tradições, nos contextos locais e regionais específicos de seus povos no presente, propiciam como chaves de leituras das intervenções de Estado em seus modos de vida. Mas se tal é o ponto de partida, parece-me que esses intelectuais indígenas vêm buscando adquirir a capacida-de de extrapolar seus contextos e formular interpretações em diálogo com outros contextos locais e regionais, nacionais e internacionais, sobre as relações entre povos indígenas e Estado. Em suma, acham-se em jogo modos indígenas de entender e conceber as formas e os processos estatais.

Alguns trabalhos vêm sendo realizados, pautados pela percepção de que analisar o fenômeno estatal e escrever sobre ele é também (re)construí-lo como realidade, e que formar indígenas para atuar criticamente em face do passado tutelar é agir no sentido dessa busca por mudança, elaborando a experiência teórica à luz da intervenção e de trabalhos aplicados. Isso significa, também,

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não intervir sem pensar, reelaborar criticamente e submeter-se em especial à interlocução com os próprios intelectuais indígenas.

Aqui será abordada a experiência de fomento à presença indígena em universidades e de produção de subsídios para esse fim realizada pelo Laced/DA/Museu Nacional, em projeto financiado pela Fundação Ford intitulado Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil (PTC), desenvolvido sob a coordenação de Antonio Carlos de Souza Lima e Maria Macedo Barroso de 2004 a 2010, mas com desdobramentos até o presente.9 O PTC foi concebido como ação temporária de uma equipe de pesquisadores sediada numa universidade, pela qual uma equipe sediada numa Instituição de Ensino Superior (IES) pública atuaria por diversos meios no sentido de contribuir para o fomento do ensino superior de indígenas. Sua realização deu-se nos quadros da Pathways to Higher Education Initiative (PHEI) da Ford Foundation (FF).10

A Fundação Ford é uma fundação filantrópica – no sentido em que se usa a ideia de filantropia no contexto anglo-saxão – sediada nos Estados Unidos da América, e que hoje atua em diversos países em padrões de governança muito próximos aos de outros mecanismos internacionais de financiamento. Estabelecida em 1936 por Edsel Ford, filho e sucessor de Henry Ford, criador da Ford Motor Company, seu objetivo hoje é financiar programas de promo-ção da democracia, de redução da pobreza e de geração de compreensão in-ternacional.11

Ao longo de sua história, com ampla atuação nos países da América La-tina, a Fundação Ford doou consideráveis quantias para projetos e estabele-cimento de instituições e formação especializada de quadros de diversos níveis mundo afora. Ainda hoje apresenta importância notável em muitos países e em muitas questões, como se evidencia na visibilidade com que tem contado o Programa Internacional de Bolsas (International Fellowships Program), aqui no Brasil executado pela Fundação Carlos Chagas (FCC), ou na discussão sobre cotas para negros nas universidades.12

É certo que podemos encontrar muitos problemas na filantropia interna-cional e na norte-americana em especial. Eles existem. Mas a verdade é que concretamente diversas iniciativas só se tornaram realidade porque essas fun-dações colocaram recursos e deram condições para que segmentos das elites intelectuais do país criassem aquilo que as elites político-financeiras não tinham

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interesse em criar.13 Na área de ciências sociais, a Fundação Ford foi – e em certos casos ainda é – essencial na estruturação de inúmeros centros de investi-gação e linhas de pesquisa. De fato, alguns dos primeiros cursos de pós-gradu-ação do Brasil nessas áreas foram financiados com recursos da Fundação Ford.

Da parte do Laced, o PTC teve como antecedentes uma série de investi-mentos realizados desde o final dos anos 1990, tanto em pesquisa pura quanto em pesquisa aplicada, os quais redundaram em publicações, organização de seminários e elaboração de modelos de cursos de pós-graduação que hoje se disseminam por intermédio de seus participantes, muitos dos quais financia-dos pela FF.14 Foram exatamente esses investimentos que os tornaram aptos, na avaliação de integrantes do escritório da Fundação no Brasil, em 2002, a serem subsidiados num projeto voltado para a formação de lideranças indíge-nas e de ‘populações tradicionais’, uma forma bastante específica de ação afir-mativa, para se usar uma expressão na época ainda pouco generalizada. Visa-va-se empoderar as coletividades que se queria atingir por meio dessas lideranças, usando para tanto as estruturas universitárias como espaços de formação que poderiam ser tornados receptivos a esse formato.

O primeiro movimento nessa direção foi um concept paper apresentado pela equipe do Laced por solicitação, em 2002, do assessor do Programa de Meio Ambiente e Desenvolvimento da FF no Rio de Janeiro, o economista norte-americano José Gabriel Lopez. Esse concept paper foi aprovado como pré-proposta do escritório da FF do Brasil, mas ainda sem nenhuma vinculação ao Laced. Por ele, 1,2 milhão de dólares foram reservados para o trabalho no Brasil com indígenas e outras populações tradicionais.

Em junho de 2003 o PTC achava-se pronto para ser submetido à avaliação final da sede da FF em Nova York e posto em prática. O câmbio do dólar para o real era então a US$1,00=R$ 3,23. Por conta de mudanças nas diretrizes da Pathways to Higher Education Initiative e de alterações na composição da equipe do escritório do Rio de Janeiro da FF, a equipe do Laced (até aquele momento liderada também por João Pacheco de Oliveira Filho, que em função de tal instabilidade a deixou, dedicando-se desde então a outros trabalhos) viu-se forçada a rever integralmente o projeto no segundo semestre de 2003.

O PTC foi inicialmente desenhado de modo a contribuir para a produção de políticas governamentais voltadas para o acesso, a permanência e o suces-so de estudantes indígenas e de outras populações tradicionais no Ensino

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Superior, vistos como via imprescindível ao empoderamento de coletividades territorializadas no Brasil. A intenção era proceder a uma ampla série de reu-niões e seminários entre segmentos de IES públicas e comunitárias, organiza-ções e lideranças indígenas e segmentos governamentais, de modo a se pro-duzir uma rede articulada de iniciativas dispostas nacionalmente e voltadas ao acesso e à permanência de estudantes indígenas, com especial atenção pa-ra as demandas de formação dos quadros dos movimentos indígenas. O PTC não pretendia atingir meramente indivíduos, ainda que também se conside-rassem os indígenas residentes em centros urbanos, mas pensava nesse e em todos os casos numa necessária conexão com os movimentos sociais, em es-pecial com o movimento indígena em suas variadas facetas. Suas atividades iniciaram-se formalmente em 1º de fevereiro de 2004, e sua primeira etapa encerrou-se em março de 2007. A segunda etapa iniciou-se em abril de 2007 e está em curso neste momento, implicando uma ampla mudança de concep-ção. Houve, assim, 14 meses de preparação prévia entre a elaboração do con-cept paper e a concepção de uma proposta baseada em um desenho inicial da PHEI, cujo ponto de partida se deu em 2001.

Durante esse período, por diversas determinações foi revista a intenção de atingir e facilitar o acesso ao espaço universitário a outras ‘populações tradicio-nais’, notadamente aquelas no contexto amazônico, e o projeto centrou-se ape-nas em cenários indígenas. De um projeto voltado para empoderar coletividades formando lideranças, viu-se limitado à tarefa de ‘propiciar a mudança das ins-tituições universitárias’ a fim de promover transformações sociais mais amplas mediante a capacitação de indivíduos. Tal cerceamento resultou do predomínio de uma linha de entendimento dos problemas educacionais e da eficácia poten-cial das ações afirmativas sobre outra corrente, internamente à FF em sua sede estadunidense. A execução do PTC foi assim um permanente exercício de de-monstração dos erros de avaliação dessa linha no caso brasileiro.

Durante sua primeira etapa (2004-2007), o PTC teve como objetivos principais:

1) fomentar iniciativas de ação afirmativa, de caráter demonstrativo e modelar, desenvolvidas por universidades, destinadas a dar suporte ao etnodesenvolvimento dos povos indígenas no Brasil mediante a formação de indígenas no nível universitário;

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2) fomentar a capacitação de profissionais universitários para lidarem com estudantes indígenas no nível universitário e que se propusessem a intervir em suas instituições para transformá-las no sentido da de-mocratização do acesso e da permanência em seus cursos de indiví-duos integrantes de povos indígenas, fazendo-o em diálogo com suas coletividades e variadas formas de articulação;

3) acompanhar e influenciar as políticas governamentais do ensino su-perior, no plano federal e estadual, principalmente, de modo a que as experiências universitárias desenvolvidas nos quadros do projeto ad-quirissem sustentabilidade e replicabilidade.

Para isso a equipe sediada no Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (Laced)/Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro:

1) coordenou um processo de seleção de propostas por demanda incenti-vada, dirigido a núcleos de docentes em universidades, os quais se pro-puseram a desenvolver iniciativas voltadas para a educação superior, capazes de estimular e viabilizar: a) o acesso de indígenas a cursos uni-versitários; b) sua permanência neles; e c) sua titulação no terceiro grau;

2) acompanhou os núcleos docentes selecionados, avaliando-os de mo-do participativo e integrado na tarefa de criar e manter programas destinados a alunos indígenas portadores do título de conclusão do ensino médio, buscando sua preparação para o exame vestibular e seu acompanhamento tutorial na universidade. Os programas deveriam estar orientados à formação de profissionais voltados prioritariamen-te para o mercado de trabalho configurado pelas políticas governa-mentais dirigidas aos povos indígenas no Brasil, como forma de reco-nhecimento de seus direitos diferenciados, oportunidades para as quais as organizações indígenas têm demandado a preparação de es-tudantes oriundos de seus povos;

3) coordenou esforços em rede entre esses núcleos, no sentido de acumu-lar e potencializar a capacidade operacional e investigativa que pudes-se contribuir para a mudança das instituições de ensino superior, de

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modo a torná-las plurais e democráticas e, simultaneamente, mais qualificadas e melhores, assim como sua prática mais conhecida;

4) participou de processos, em parceria com organizações indígenas, de acompanhamento e debate das políticas governamentais que afetaram os povos indígenas no que elas demandassem de profissionais indíge-nas capacitados no nível do terceiro grau, de modo a influenciá-las, construindo as bases sociais da sustentabilidade dessas iniciativas;

5) coordenou investigações sobre esse processo de intervenção social antropologicamente orientada sobre as políticas governamentais para educação superior de indígenas, bem como sobre as instituições de ensino superior em seu cotidiano organizacional, de modo que fosse gerado o conhecimento crítico necessário à ampliação dos efeitos do processo.

O desenvolvimento do PTC pode ser mais bem descrito por meio do agrupamento de suas muitas atividades. Durante o período 2004-2007 o PTC teve como suas principais realizações:

1) ações de incentivo à demanda: o estabelecimento de inúmeros conta-tos com universidades e organizações indígenas desde o início de 2004 e até o final de 2005, incentivando-se a apresentação de duas propostas plenamente aprovadas envolvendo três universidades, compondo-se experiências modelos em uma universidade federal (a Universidade Federal de Roraima – UFRR, por meio de seu Núcleo (hoje Instituto) Insikiran de Formação Superior Indígena), uma universidade estadual (a Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS) – ambas públicas e não pagas – e uma universidade privada confessional (a Universidade Católica Dom Bosco – UCDB). Duas outras propostas (uma enviada duas vezes) de universidades e uma pré-proposta de outra universidade, todas federais, não foram plenamente desenvolvi-das por desistência em face das exigências apresentadas às suas primei-ras formulações. Foram feitos, porém, inúmeros outros contatos;

2) o monitoramento, desde 2005 até 2007, do trabalho dos núcleos con-tratados, por meio de visitas periódicas, leitura e análise de relatórios

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com um Comitê Assessor do PTC, idealizado pela Fundação Ford para dirimir quaisquer dúvidas;

3) a organização, com recursos da doação da FF e do Fundo de Inclusão Social/Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de um se-minário nacional sobre o ensino superior de indígenas, realizado em Brasília em 30 e 31 de agosto de 2004, intitulado “Desafios para a educação superior dos povos indígenas no Brasil”, com ampla parti-cipação de organizações e intelectuais indígenas, setores governamen-tais, organizações não governamentais, organismos de fomento e docentes universitários, do qual se gerou uma publicação que se man-tém muito atual. A realização do seminário estimulou as Secretarias de Educação Superior (Sesu) e de Educação Continuada, Alfabetiza-ção e Diversidade (Secad) do Ministério da Educação (MEC) a toma-rem posição, finalmente, no tocante à educação superior de indígenas, o que gerou o lançamento, um ano depois do edital, do chamado Programa de Apoio à Educação Superior e Licenciaturas Indígenas (Prolind), em 2005;15

4) ao longo de 2005 e até o final de 2006, o PTC contratou a elaboração de livros paradidáticos destinados especialmente à formação superior de indígenas: a implementação do PTC e a avaliação dos impactos sobre o movimento indígena da formação de pós-graduados indígenas no Brasil mostrou a importância de se disponibilizarem textos para processos de formação de indígenas e não indígenas no tocante a va-riadas dimensões da vida social desses povos. Tal gênero de textos usualmente tem sido escrito por não indígenas. Julgou-se que, quando possível, isso deveria ser revertido em favor de autores indígenas, for-necendo novos eixos de reflexão para os jovens indígenas em forma-ção, de modo a que possam construir uma imagem positiva de uma ‘intelectualidade indígena’ engajada e reflexiva com que se identificar. Montou-se então a série “Vias dos Saberes”, executada pelo PTC no nível de direção editorial, projeto gráfico e editoração e veiculada sob a forma de e-books no sítio web do projeto.16 Estabeleceu-se, porém, uma parceria com a Secad/MEC e com a Unesco para imprimi-los na “Coleção Educação Para Todos”, com recursos do BID, em tiragens de 5 mil exemplares de cada volume, destinados à distribuição nacional

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para escolas indígenas, alunos indígenas de cursos universitários de todas as carreiras, organizações indígenas, ONGs indigenistas, biblio-tecas públicas etc. Seu conteúdo servirá de base também a módulos de um curso de capacitação a distância de gestores universitários e de gestores das secretarias municipais e estaduais de educação, as quais são as executoras da educação fundamental de indígenas no país. O primeiro livro da série é uma introdução geral aos aspectos da vida dos povos indígenas no Brasil contemporâneo, escrita por uma de suas principais lideranças de projeção nacional, o já citado Gersem Luciano Baniwa, integrante do CA/PTC e Mestre em Antropologia, ex-bolsis-ta do IFP e diretor-presidente do Centro Indígena de Estudos e Pes-quisas (Cinep). O segundo livro da série, escrito pelos antropólogos João Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ) e Carlos Augusto da Rocha Freire (Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio – MI/Funai) é um trabalho sem similar até hoje em nossa produção acadê-mica, apresentando de modo crítico e didático a presença indígena na história do Brasil como base para revisão do sistema de preconceitos vigente até este momento. Permite que, por exemplo, não se pense que indígenas não tenham nem direitos nem demandas por cursos univer-sitários. No terceiro livro, sobre direitos indígenas, somou-se a uma coordenadora não indígena, Ana Valéria Araújo – secretária executiva da ONG Fundo Brasil de Direitos Humanos, advogada especializada no direito indigenista brasileiro, por longos anos advogando em casos concretos e trabalhando no acompanhamento da formação de estu-dantes indígenas em direito –, à presença de quatro advogados indí-genas: dentre eles um, Paulo Celso de Oliveira Pankararu, mestre em Direito e ex-bolsista do IFP, assessor do Centro Amazônico de Forma-ção Indígena da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazô-nia Brasileira (Cafi/Coiab); Joênia Batista de Carvalho Wapichana, advogada da organização indígena Conselho Indígena de Roraima, e que neste ano iniciará a preparação para o mestrado em direito com uma bolsa de IFP; Lucia Fernanda Belfort Kaingáng (também esta mestre em direito), diretora-executiva do Instituto Indígena Brasileiro Para Propriedade Intelectual; Vilmar Moura Guarany (mestrando com bolsa do IFP), advogado da Fundação Nacional do Índio, agência

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indigenista governamental, e o renomado pesquisador e ativista dos direitos indígenas no plano internacional, o indígena norte-americano S. James Anaya, professor da Faculdade de Direito da Universidade do Arizona.17 Cada um deles desenvolveu temas de seu interesse e grande importância para os direitos dos povos indígenas. O último dos livros da série é um manual de linguística como também não existe na pro-dução intelectual brasileira, destinado ao estudo de línguas indígenas e do bilinguismo, escrito pelo Linguista da UFRJ Marcus Antonio Re-sende Maia, um dos primeiros a trabalhar com conteúdos de português como segunda língua na formação de professores indígenas;

5) a produção de um site, desde 2004, com informações relativas ao en-sino superior de indígenas, já em sua segunda versão no momento, e a implantação e a alimentação da lista de discussão eletrônica “Edu-cação Superior de Indígenas” na base do Yahoo! que vem sendo mui-to utilizada;18

6) a produção de um vídeo intitulado “Trilhas de conhecimentos” a par-tir da experiência dos estudantes indígenas do Mato Grosso do Sul, realizado com a participação dos estudantes e cujo material bruto lhes foi enviado para outros filmes futuros, já intensamente utilizado em palestras, conferências e reuniões como instrumento de sensibilização;

7) a participação no comitê de avaliação do Prolind em agosto de 2005 e no seu seminário de avaliação em novembro de 2006;

8) a promoção, em parceria, de dois seminários financiados com um resíduo de recursos destinados a núcleos universitários, após as sub-doações para a UFRR, a UCDB e a UEMS:

8.1) por meio de uma subdoação ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará, importante centro na área de direitos humanos, detentor de mecanismos de ação afir-mativa, organizou-se um seminário sobre o ensino de direito para indígenas no Brasil, o qual gerou um site, um vídeo e um documento a ser publicado;

8.2) por meio de uma subdoação à Universidade Federal da Bahia, centro de referência na área do sanitarismo, organizou-se um

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seminário sobre a formação de indígenas na área de saúde, o qual também produziu um site e tem no prelo o seu relatório final;19

9) o estímulo à reflexão sobre a relação entre indígenas e educação em particular com o suporte financeiro a pesquisas para teses de douto-rado e à publicação da coletânea em espanhol organizada por Maria-na Paladino e Stella García, publicada na Argentina, intitulada Edu-cación escolar indígena: investigaciones antropológicas en Brasil y Argentina (Buenos Aires: Antropofagia, 2007);

10) um intenso trabalho de advocacy em diversas frentes, procurando apresentar elementos para se pensar os problemas da formação de indígenas no ensino superior de diversos ângulos – sobretudo aquele da permanência e da inserção profissional futura dos estudantes.

Na segunda etapa do PTC (2007-2009), ainda mantendo o trabalho de assessoramento aos núcleos, os objetivos foram:

a) contribuir para o preparo das universidades públicas e privadas no Brasil para que melhorassem sua capacidade de promover políticas institucionais para o acesso, a permanência e o sucesso de indígenas em cursos de nível superior por meio do treinamento de integrantes de seus quadros docentes e técnico-administrativos;

b) contribuir para a capacitação de organizações indígenas para que pes-quisem, monitorem e avaliem a implantação das políticas governa-mentais e institucionais para o ensino superior de indígenas, de mo-do a que se tornassem aptas a debater esses temas, com ênfase especial no reconhecimento dos conhecimentos tradicionais indígenas e em seu valor para a gestão de territórios de suas coletividades;

c) produzir reflexões críticas sobre o próprio processo de implantação do projeto e a conjuntura em que tal se deu, as dinâmicas estabeleci-das nos núcleos e possibilidades futuras;

d) contribuir para produção de conhecimentos acerca da criação de po-líticas governamentais e institucionais voltadas para a promoção de mecanismos de acesso e permanência de indígenas em universidades públicas e privadas no país.

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Nessa segunda etapa, participantes da equipe produziram dissertações de mestrado (Almeida, 2008; Paulino, 2008) e uma tese de doutorado (Barroso--Hoffman, 2008, publicada em 2009 e premiada como melhor tese de antro-pologia para o ano de 2008 pela Capes), prepararam-se três livros em vias de publicação, assim como foi desenvolvido, remunerando para a parte técnica desse processo a FGVOnline, um curso a distância de capacitação de gestores de governo e de instituições de ensino superior. Ainda nesta segunda etapa, o PTC contribuiu para a estruturação e passou a atuar como assessor do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas, com o qual o Laced mantém uma parceria de trabalho.20

Em momento posterior, não mais com recursos da Pathways to Higher Education Initiative, cuja existência efetivamente se encerrou, o escritório da Fundação Ford no Rio de Janeiro concedeu ao Laced dois outros financiamen-tos. Um deles refere-se ao projeto intitulado “Educação Diferenciada, Gestão Territorial e Intervenções Desenvolvimentistas. Pesquisa, Sistematização de conhecimentos, Produção de material didático”. Durante o período de vigên-cia desse projeto, além de manter-se trabalhando em parceria com o Cinep e em contato com o núcleo de Mato Grosso do Sul estruturado na primeira etapa do PTC, o Laced produziu mais dois volumes de cunho paradidático para publicação em parceria com o MEC, um intitulado Saúde indígena: uma introdução ao tema, concebido e organizado por Luiza Garnelo e Ana Lucia Pontes (Fiocruz), também nesse caso contando com a participação de autores indígenas, e um intitulado Gestão territorial em terras indígenas no Brasil, organizado por Cassio Noronha Inglez de Souza e Fabio Vaz Ribeiro de Al-meida, em conjunto com Maira Smith, os três ex-técnicos do PDPI – Projetos Demonstrativos dos Povos Indígenas/Ministério do Meio Ambiente, e com Guilherme Martins de Macedo, no momento perito técnico da Agência de Cooperação Técnica Alemã (GIZ) para o Tratado de Cooperação Amazônica no tocante aos assuntos indígenas.21 Surgiram dois outros livros, de cunho mais instrumental: 1) um, já publicado, sobre o panorama das políticas gover-namentais para os povos indígenas, ensinando os estudantes indígenas a pes-quisar e informar-se sobre elas, de autoria dos antropólogos Luis Roberto De Paula, Professor da Licenciatura Intercultural para Professores Indígenas da UFMG, e Fernando de Luis Brito Vianna; 2) outro retraçando o itinerário da política de educação indígena ao longo do período dos dois governos de Luís

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Revista História Hoje, vol. 1, nº 2186

Inácio Lula da Silva, de autoria de Mariana Paladino (Faculdade de Educação/UFF) e Nina Paiva Almeida (Funai), em editoração.22

O outro projeto, intitulado “A Educação Superior de Indígenas no Brasil: Investimento”, efetivamente iniciado em novembro de 2011, foca na avaliação dessa década de investimentos no tocante à formação superior de indígenas, na continuidade da assessoria aos movimentos indígenas, seja pela participa-ção em espaços de formação dos quadros de movimentos indígenas, em par-ceria com o Cinep, e na produção e disponibilização ampla de subsídios didá-ticos via internet em forma escrita e audiovisual, assumindo-se agora plenamente a direção de subsidiar a formação de intelectuais indígenas. Ên-fase especial está sendo dada à formação de profissionais indígenas na área da comunicação, já que as mídias são área de combate importante dos movimen-tos indígenas.

Em todas essas iniciativas a variação do dólar – moeda em que são feitas e a que são indexadas as doações da Fundação Ford – provocou inúmeros tropeços durante a maior parte do tempo, por conta da queda do câmbio, para a execução de projetos envolvendo um largo circuito de agentes e tarefas demoradas e custosas, apenas sinteticamente referidas aqui. Em especial, o componente relativo à reflexão sobre a experiência desenvolvida e sobre seus inúmeros aspectos viu-se prejudicado e limitado, tendo influído parcialmen-te nos resultados pretendidos para a bolsa de produtividade no período de 2009-2012, levando a outros investimentos. Estive, portanto, nos últimos 8 anos em diálogo direto, refletindo e agindo com esse panorama governamen-tal e também indígena.

Resultados presentes e limitações

A presença de indígenas em IES, sejam elas federais, estaduais, comuni-tárias ou privadas stricto sensu, tem-se colocado como realidade nos últimos 10 anos. Quando, em agosto de 2004, a equipe executora da primeira etapa do projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil realizou o seminário “Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil: políticas públicas de ação afirmativa e direitos culturais diferenciados”, o representante da Fundação Nacional do Índio, única agência de Estado a ter informações mais concretas, ainda que com pouca ou

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nenhuma sistematicidade, estimou em algo por volta de 1.300 indígenas o número dos que cursavam o ensino superior, situados em geral em IES parti-culares de baixa qualidade.23 A Coordenação de Educação Escolar Indígena, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da Educação, estima hoje em 8 mil o número de estudantes indígenas em IES de todos os tipos.

Entre 2001 – quando em 9 de janeiro foi aprovado o Plano Nacional de Educação, o primeiro após o artigo nº 214 da Constituição Brasileira de 1988 e após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, no qual es-tava previsto o imperativo da formação superior de professores indígenas – e 2011, quando outro plano deveria entrar em vigor, simultaneamente muito e muito pouco aconteceu, quer no âmbito governamental, quer no plano das instituições de ensino, quer ainda no dos movimentos indígenas. De positivo e como conjuntura de fundo ao longo desses anos, em especial após a confe-rência de Durban, o debate em prol de ações afirmativas nas universidades públicas, liderado especialmente pelas demandas do movimento negro e nelas focado. Tal demanda, ainda que não tenha obtido a posição de uma política de governo federal e só agora tenha tido sua constitucionalidade declarada, sem que isso indique maiores ações governamentais nessa direção, facultou uma crescente abertura de ações afirmativas sob a forma quase tão somente de cotas para o acesso dos estudantes afrodescendentes, indígenas, portadores de necessidades especiais e provenientes das redes públicas aos cursos de uni-versidades estaduais e federais. Isso propiciou e potencializou o movimento espontâneo de busca do ensino superior por parte de estudantes indígenas.

De positivo ainda, deve-se destacar que graças à própria realização do se-minário de 2004 e em larga medida pelo trabalho de advocacy realizado pela equipe do PTC, que acabou se disseminando de modo muito mais amplo, ainda que pouco percebido como ligado a um trabalho intenso e cotidiano dessa equi-pe, o governo federal criou o Programa de Formação Superior e Licenciaturas Indígenas (Prolind), já mencionado. Pesa(va) sobre o MEC a tarefa de facultar possibilidades de acesso à titulação em nível superior a professores do ensino médio (indígenas e não indígenas), de modo a superar os índices baixíssimos de qualificação do pessoal docente no Brasil, com ação conjunta da então Secad e da Secretaria de Ensino Superior (Sesu). Hoje estão em ação 26 licenciaturas interculturais para formação de professores indígenas.

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De negativo, há que o governo federal não tomou nenhuma iniciativa no sentido de estabelecer ações governamentais de longo prazo ou de caráter permanente – aquilo que a vulgata política chama de políticas de Estado – no sentido de fomentar a educação superior de indígenas, ainda que esta seja uma demanda cada dia mais presente no cenário das demandas indígenas. Não há suporte à resolução do principal problema dos estudantes indígenas na uni-versidade: recursos para sua manutenção, esquemas de acompanhamento à sua formação dentro de universidades como tutorias etc., nem tampouco for-mas de adaptação dos currículos universitários às demandas por conhecimen-tos surgidas desde as realidades dos povos indígenas em sua vida cotidiana. Hoje existem cursos universitários de formação em diversas áreas do saber ligados ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST); eles crescem em número e operam com organicidade. No tocante aos povos indígenas, entre-tanto, estamos bem distante disso.

O próprio Prolind foi implantado por meio de três editais, o que torna o fluxo de recursos extremamente instável. Embora a dinâmica de editais possa conduzir a pensarmos que seja mais fácil realizar um processo de avaliação consistente, isso não tem acontecido. A passagem aos recursos orçamentários das universidades parece estar se dando de modo muito desnivelado. Sem uma agenda claramente formulada com que Estado e movimentos indígenas se comprometam, ainda que os problemas estejam identificados e as soluções prefiguradas, inclusive a partir de algumas experiências como as dos progra-mas no Brasil financiados pela Fundação Ford com recursos da PHEI, torna--se praticamente impossível aferir alguma eficácia real e reorientar processos educacionais em seus aspectos políticos e administrativos, seja no plano de práticas de governo, seja no de práticas institucionais. Programas como o Prouni e o Reuni, que de diferentes maneiras atingem estudantes indígenas, não apresentam como parte de seus resultados quaisquer subsídios que per-mitam pensar efetivamente os indígenas no ensino superior.24

Assim, prevalece em todas as esferas de ação um nível muito primário de reflexão sobre o acesso, a permanência, o sucesso ou o fracasso em cursar e concluir um curso universitário e, com base nele, conseguir uma capacitação técnico-política e/ou uma inserção profissional que mantenha conexões com as identidades indígenas enquanto tais. A ênfase excessiva e descabida na con-tinuidade dos estudos em nível de pós-graduação, que com frequência marcou

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alguns programas Pathways em outros países da América Latina, numa asso-ciação indevida e limitada com oportunidades (elas mesmas muito restritas) facultadas pelo International Fellowship Program, acabou por obscurecer a necessária pergunta sobre o destino dos egressos de todos esses programas e cursos.

Também os movimentos e organizações indígenas têm falhado em per-ceber uma mudança acentuada no perfil geracional dos seus potenciais mili-tantes. Não mais lideranças formadas nas aldeias com base em processos de socialização pautados em suas tradições, mas sim jovens formados em escolas, com grande trânsito entre aldeias e cidades, detentores de uma gama ampla de conhecimentos e desejosos de uma inserção pública que se paute não só pela vitimização (real diante de inúmeros conflitos) e pelos relatos de atos violentos e carências, mas também por registros positivos de conquistas, mui-tas delas no âmbito universitário-profissional, o que por vezes parece sobre-pujar a identificação como indígenas. Longe de certo ‘espírito sindicalista’ típico das organizações de professores indígenas, onde o culto do diploma e a exibição de graus passaram a ser dominantes, seguindo os tons dominantes do próprio processo educacional brasileiro, muitos graduandos e graduados indígenas estão preocupados em como se inserir profissionalmente de manei-ra compatível com a manutenção positiva da identidade indígena e o orgulho étnico. É preciso reconhecer que a própria luta pela terra tem assumido novos contornos, que a demanda por fomento a alternativas de sustentabilidade se mistura aos novos espaços buscados por essa geração formada em escolas e no trânsito entre aldeia e cidade. São profissionais formados em domínios de saberes não indígenas, mas cuja única real possibilidade de atuar, sem deixar a identificação étnica, passa, ambiguamente, pela condição de indígena.

Nesse tipo de articulação, propiciada pela suposta melhoria de vida pela via educacional, cruzam-se muitos processos e motivações que, para além de um relativo simplismo vigente no campo da educação – e da educação escolar de indígenas em especial –, precisam ser registrados, entendidos e elaborados como vetores de possíveis formas de reorientar ações de governo, de institui-ções e das próprias organizações indígenas. Assim, por exemplo, a busca por melhoria de renda e de status que tem conduzido muitos indígenas a tentarem, Brasil afora, a posição de professores, dentre outras, precisa ser sopesada em

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face da precariedade de sua formação e de outros parâmetros, como maior ou menor capacidade de lutas pelos seus direitos em função dessa posição.

Trata-se, pois, da história no seu movimento, plena de possibilidades e desafios, espaço de luta e construção, de mudanças e sedimentações, um ân-gulo privilegiado para se entender a vida indígena contemporânea no Brasil.

NOTAS

1 A Fundação Perseu Abramo realizou no ano de 2011 uma extensa pesquisa de opinião coordenada pelo professor Gustavo Venturi (USP), intitulada “Indígenas no Brasil: de-mandas dos povos e percepções da opinião pública”, que “mostra um retrato idealizado dos povos indígenas por parte da maioria dos/as brasileiros/as: baixo conhecimento sobre a realidade dos povos indígenas, sobre seus principais problemas e conflitos, sobre seus direitos e ameaças às terras indígenas. Traz ainda as percepções dos índios que vivem nas cidades em relação a temas como intolerância, preconceito e discriminação”. Disponível em: www.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/pesquisas-de-opiniao-publica/pesquisas-reali-zadas/indigenas-no-brasil-demandas-dos-pov; Acesso em: 18 set. 2012. Seus resultados geraram um livro (no prelo) acerca dos temas que abordou.2 Os dados do censo de 2010 no tocante à população indígena estão disponíveis em: www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf; Acesso em: 18 set. 2012.3 Dados elaborados pelo Instituto Socioambiental, disponíveis em: pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/situacao-juridica-das-tis-hoje; Acesso em: 18 set. 2012.4 Se considerarmos esse ponto, os condicionantes apresentados pelo STF no caso de Rapo-sa Serra do Sol assumem uma dimensão muito preocupante. Veja-se sobre esse ponto CARNEIRO FILHO, Arnaldo; SOUZA, Oswaldo Braga de. Atlas das pressões e ameaças às terras indígenas da Amazônia Brasileira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2009. A Fun-dação Joaquim Nabuco prepara, sob a coordenação de João Pacheco de Oliveira, uma nova versão do Atlas das Terras Indígenas do Nordeste (Rio de Janeiro: Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil/Museu Nacional-UFRJ, 1993), e o Centro de Trabalho Indige-nista tem um importante conjunto de trabalhos na temática territorial, em especial sobre a questão guarani no sul do Brasil.5 Sobre os efeitos despolitizantes das intervenções desenvolvimentistas, ver, dentre outros: FERGUSON, James. The anti-politics machine: “Development”, Depoliticization and Bu-reaucratic Power in Lesotho. Minneapolis & London: University of Minnesota Press, 1994. Dentre muitos títulos sobre desenvolvimento, ver: ESCOBAR, Arturo. Encountering deve-lopment: the making and unmaking of the Third World. Princeton: Princeton University Press, 1995; e RIST, Gilbert. The history of development: from Western origins to global faith. London: Zed Books, 1999.

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6 Para uma análise importante produzida desde dentro do movimento indígena por um de seus principais pensadores e atores, com larga experiência em posições institucionais dis-tintas em organizações indígenas e representando-o em instâncias participativas e postos burocráticos na administração pública brasileira: BANIWA, Gersem José dos Santos Lu-ciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre o índio brasileiro de hoje. Rio de Janeiro: Trilhas de Conhecimentos/Laced; Brasília: MEC/Secad; Unesco, 2006. (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes). O autor é índio Baniwa, mestre e doutor em Antropologia pela UnB.7 Cf. ABRAMS, Philip. Notes on the difficulty of studying the state. Journal of Historical Sociology, v.1, n.1, p.58-89, 1988.8 Sobre a tutela como forma de exercício de poder, veja-se: SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação de Estado no Brasil. Petrópolis (RJ): Vozes. 1995.9 O Laced é um laboratório universitário de pesquisas e intervenções coordenado por João Pacheco de Oliveira Filho e Antonio Carlos de Souza Lima, no âmbito do Setor de Etnolo-gia e Etnografia/Departamento de Antropologia/Museu Nacional-UFRJ. (Ver www.laced.etc.br). Para o referido projeto: www.trilhasdeconhecimentos.etc.br. Sobre os referidos pesquisadores: Souza Lima (lattes.cnpq.br/0201883600417969) e Macedo Barroso (ex--Barroso-Hoffmann, lattes.cnpq.br/0346342034718575). Acessos em: 18 set. 2012.10 Para a Fundação Ford: www.fordfound.org. A Pathways to Higher Education Initiative foi uma iniciativa global – forma de dispor recursos com certos objetivos, desenvolvida por um período determinado e com recursos finitos – da FF, cujos contornos podem ser vistos em: www.fordfoundation.org/pdfs/library/pathways_to_higher_education.pdf. Acesso em: 18 set. 2012.11 Para breves informações oficiais acerca da Fundação Ford em sua versão oficial: www.fordfound.org/about/history/overview. No caso brasileiro, as famílias de elite ou institui-ções que surgiram a partir de empreendimentos industriais ou financeiros por elas contro-lados, só muito recentemente começaram a desenvolver atividades dessa natureza, embora na verdade muito distintas e, em geral, pouco comprometidas com a transformação social. Acesso em: 18 set. 2012.12 Sobre o International Fellowship Program, responsável pela doação de recursos sob a forma de bolsas de estudo para formação ao nível pós-graduado de indivíduos oriundos dos ‘segmentos sub-representados’ (afrodescendentes, mulheres, povos indígenas etc.) de sociedades em 23 países, com o fito de influir na mudança de perfil da ‘liderança mundial’, no curto, médio e longo prazos: www.fordfoundation.org/about-us/special-initiatives/ifp. Para a execução em território brasileiro: www.programabolsa.org.br/index.html; Acesso em: 18 set. 2012.13 Isso foi especialmente verdade no campo da educação em geral e no campo da educação superior no Brasil. Um exemplo foi a criação de cursos de enfermagem no Brasil, implan-

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tados com recursos da Fundação Rockefeller no início do século XX, como mostra CAS-TRO-SANTOS, Luiz Antonio de. Power, ideology, and public health in Brazil (1889-1930). Tese (Doutorado) – Harvard University. Cambridge (Mass), 1987.14 Ver, dentre outros, as publicações SOUZA LIMA, A. C.; BARROSO-HOFFMANN, Ma-ria, 2002a, b, c, disponíveis em: www.laced.etc.br/livros.htm; os seminários “Bases para uma nova política indigenista”, I e II, disponíveis em: www.laced.etc.br/seminarios.htm; e os cursos de pós-graduação realizados em parceria com a Universidade Federal do Amazo-nas (www.laced.etc.br/cursos_laced_ufam.htm) e com a Universidade Federal de Roraima (www.laced.etc.br/cursos_laced_ufrr.htm). Acessos em: 18 set. 2012.15 Ver www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/Desafios.pdf; Acesso em 18 set. 2012. Sobre a atuação da Sesu, por intermédio de seu Departamento de Política da edu-cação superior (Depes): BONDIM, Renata. Acesso e permanência de índios em cursos de nível superior. In: RICARDO, Beto; RICARDO, Fany (Ed.). Povos Indígenas no Brasil: 2001-2005. p.161-162. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006. Para o Prolind: www.mec.gov.br/prolind; Acesso em: 18 set. 2012.16 Ver: www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm; Acesso em: 18 set. 2012.17 Sobre o Museu Nacional e seu programa de antropologia: www.ppgasmuseu.etc.br; so-bre o Museu do índio: www.museudoindio.org.br; sobre o FBDH: www.fundodireitoshu-manos.org.br/index.jsp; sobre a Coiab: www.coiab.com.br/index.php; sobre o CIR: www.cir.org.br/; sobre o Inbrapi: www.inbrapi.org.br/diretoria.php; sobre a Fundação Nacional do Índio: www.funai.gov.br/; Acessos em: 18 set. 2012.18 Ver: br.groups.yahoo.com/group/superiorindigena/; Acesso em: 18 set. 2012.19 Ver, respectivamente, www3.ufpa.br/juridico/ e www.unindigena.ufba.br; Acessos em: 18 set. 2012.20 SOUZA LIMA, Antonio Carlos; MACEDO BARROSO, Maria (Ed.). Abrindo trilhas I: contextos e perspectivas – Pontos de partida para a educação superior de indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. E-papers; Laced-Trilhas de Conhecimentos, 2012; SOUZA LI-MA, Antonio Carlos; MACEDO BARROSO, Maria (Ed.). Abrindo Trilhas II: o projeto Trilhas de Conhecimentos e o ensino superior de indígenas no Brasil – Uma experiência de fomento a ações afirmativas. Rio de Janeiro: Ed. E-papers; Laced-Trilhas de Conheci-mentos, 2012 (no prelo); e SOUZA LIMA, Antonio Carlos; PALADINO, Mariana (Ed.). Caminos hacia la educación superior: los programas Pathways de la Fundación Ford para pueblos indígenas en México, Peru, Brasil e Chile. Rio de Janeiro: Ed. E-papers; Laced--Trilhas de Conhecimentos, 2012 (no prelo); para o curso online: www5.fgv.br/fgvonline/mn/index.asp?idc=00, também acessível pelo site de Trilhas de conhecimentos. Quanto ao Cinep: www.cinep.org.br/. Acesso em: 18 set. 2012.21 O livro coordenado por Garnelo e Pontes está disponível para download em laced.etc.br/site/acervo/livros/saude-indigena/. Sua impressão, assim como o fornecimento de elemen-

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tos mínimos necessários à finalização do livro sobre gestão territorial, vem sendo procras-tinada pela atual gestão da Secad, hoje transformada em Secadi, sendo o ‘i’ de Inclusão, resultante que é da estranha – e tacanha – fusão de ‘educação para a diversidade’ e ‘educa-ção especial’, onde esta tem pesado em detrimento das funções antes desenvolvidas no to-cante à educação de jovens e adultos, na educação do campo, de quilombolas e de indíge-nas. Acesso em: 18 set. 2012.22 DE PAULA, Luis Roberto; VIANNA, Fernando de Luis Brito (2011). Mapeando políticas públicas: guia de pesquisa de ações federais. Rio de Janeiro: Laced; Contra Capa Ed., 2011. Disponível em: laced.etc.br/site/acervo/livros/mapeando.pdf; Acesso em: 18 set. 2012.23 SOUZA LIMA, A. C.; BARROSO-HOFFMANN, M. (Ed.). Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil: políticas públicas de ação afirmativa e direitos culturais diferenciados. Rio de Janeiro: Laced/Museu Nacional, 2007, especialmente p.85-111. Disponível em: www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/arquivos/Desafios.pdf; Acesso em: 18 set. 2012.24 “O Prouni – Programa Universidade para Todos tem como finalidade a concessão de bolsas de estudo integrais e parciais em cursos de graduação e sequenciais de formação específica, em instituições privadas de educação superior. Criado pelo Governo Federal em 2004 e institucionalizado pela Lei nº 11.096, em 13 de janeiro de 2005, oferece, em contra-partida, isenção de alguns tributos àquelas instituições de ensino que aderem ao Progra-ma.” Disponível em: prouniportal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=124&Itemid=140; Acesso em: 18 set. 2012. Quanto ao Reuni: reuni.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=25&Itemid=28, onde se lê: “A expan-são da educação superior conta com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), que tem como principal objetivo ampliar o acesso e a permanência na educação superior. Com o Reuni, o governo federal adotou uma série de medidas para retomar o crescimento do ensino superior público, criando condi-ções para que as universidades federais promovam a expansão física, acadêmica e pedagó-gica da rede federal de educação superior. Os efeitos da iniciativa podem ser percebidos pelos expressivos números da expansão, iniciada em 2003 e com previsão de conclusão até 2012”; Acesso em: 18 set. 2012.

A Educação Superior de Indígenas no Brasil contemporâneo

Artigo recebido em 30 de julho de 2012. Aprovado em 30 de agosto de 2012.

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Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de

enfrentamento do etnocídio ‘cordial’1

Hidden Stories ‘on hold’: the Tembé ‘from Santa Maria’, strategies for facing the ‘cordial’ ethnocide

Jane Felipe Beltrão*

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 195-212 - 2012

*Programas de pós-graduação em Antropologia e Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto, Av. Augusto Corrêa, no 1. Bairro do Guamá. 66075-900 Belém – PA – Brasil. [email protected]

Resumo

Os Tembé, ditos ‘de Santa Maria’, até re-centemente não eram reconhecidos como Tenetehara, situação que, de certa forma, ainda perdura. Por mais de 100 anos suas histórias permaneceram ‘em suspenso’, como uma das faces do etnocídio ‘cordial’. Há pouco mais de 10 anos, eles começa-ram a ouvir e a aprender narrativas pro-duzidas por terceiros sobre si e, na luta por vencer a invisibilidade, passam a se afirmar Tembé pagando o alto preço da ‘resistência’. Discutem-se a partir dos in-terlocutores (1) as histórias ‘herdadas’ (produzidas por terceiros para auxiliar a luta); (2) as narrativas indígenas sobre os trajetos feitos até Santa Maria; e (3) a apropriação que os Tembé fazem da ‘he-rança’ e das narrativas produzindo os fios da ‘resistência’ identitária, até mesmo re-querendo que antropólogos produzam a sua história, como se eles não pudessem

Abstract

The Tembé, said to be ‘from Santa Maria’, were until very recently not acknowledged as Tenetehara and somehow are still not recognized as such. Their stories have re-mained ‘on hold’ for over 100 years as one of the outlooks of the ‘cordial’ ethnocide. Just over 10 years ago, they began to hear and learn narratives produced by others about them, and in the fight for beating invisibility they started to call themselves Tembé, paying a high price for the ‘resis-tance’. This paper discusses from the speakers (1) the ‘inherited’ stories (pro-duced by others to aid their fight; (2) the indigenous narratives about the paths taken to Santa Maria; and (3) the appro-priation the Tembé make out of the ‘in-heritance’ and the narratives producing the identity ‘resistance’ strings, including the requirement for anthropologists to make their history, as if they could not

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Os Tembé ‘de Santa Maria’, o território indígena e o projeto nacional

Para conhecer os Tembé que se encontram, no atual município de Santa Maria do Pará, em território brasileiro, faz-se necessário considerar o projeto de construção nacional desenvolvido, no final do século XVIII e no início do XIX, como complemento à homogeneização produzida pela ação missionária com apoio do Estado português durante o período colonial.

No Brasil, o suposto uso da força contra os povos indígenas estava pros-crito, pois a proposição política era ampliar e proteger as fronteiras nacionais conquistando, por meio da colonização, os territórios em poder dos indígenas. Era a execução do etnocídio ‘cordial’. O Pará não fugiu à regra, como informa Palma Muniz:

foi resolvido enfrentar o importante problema social da catequese [dos indíge-nas] disseminados na zona dos rios Capim e Guamá [território indígena Tembé Tenethehara], sem outro caloulo que o sacrifício e a lucta, sem mais outro fim que a chamada ao grêmio christão e catholico de almas perdidas nas selvas, e le-var a outros tantos brasileiros abandonados, não só os contornos da civilização, como assegurar-lhes todas as protecções da nossa legislação. (1913, p.5)2

José Paes de Carvalho, considerado político ‘de visão’ e à época governador do estado do Pará, avalizou os Capuchinhos Lombardos da Missão do Norte, situada no Maranhão, no Brasil, a implantar Núcleo Colonial Indígena no Pará, com finalidade especial de “cathequese dos silvícolas” (Muniz, 1913, p.6).

Inicialmente os Capuchinhos percorreram o rio Capim, encontrando muitos indígenas Tembé e Timbira, entretanto a distância de Belém compreen-dia 18 dias de viagem rio acima, fato que inviabilizava o estabelecimento da Missão pretendida. Ao regressar do Capim os Capuchinhos receberam

apresentar sua versão. Teríamos aí novas formas de fazer História? Palavras-chave: história dos povos indíge-nas; resistências; pertenças; identidade ét-nica; etnocídio ‘cordial’.

produce their version. Would these be new ways of making History? Keywords: History of indigenous peoples; ‘resistance’; belongings; ethnic identity; ‘cordial’ ethnocide.

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“dedicado pedido dos índios situados nas nascentes do rio Maracanã, para visitar os seus aldeiamentos, localizados entre as margens do rio da Prata, affluente esquerdo daquelle, Jeju affluente direito do mesmo, e o proprio Ma-racanã” (Muniz, 1913, p.7).

Diante do irrecusável convite, os Capuchinhos não tardaram em ter com os “índios dessa zona, que viviam em relações de amizade com os do rio Gua-má e Capim, são da mesma raça dos Tembés do Guamá constituídos em famí-lias”, como informa Muniz (1913, p.7).

O caminho percorrido, desta feita, ofereceu viabilidade à proposta do Núcleo Colonial Indígena, pois este distava seis dias de Belém e a Estrada de Ferro de Bragança alcançava a vila de Castanhal, fato que deixava a questão das comunicações razoavelmente solucionada.

Eram propósitos da Missão Capuchinha, segundo a Lei 588 de 23 de junho de 1898: (1) ministrar ensinamentos da catequese católica; (2) da instrução elementar; e (3) dos trabalhos agrícolas. Para dar cumprimento à Lei, os Ca-puchinhos se estabeleceram no então município de Santarém Novo, às mar-gens do rio Prata, segundo rezava o contrato assinado com o governo do Es-tado do Pará por um período de 15 anos.

Entre os planos do Núcleo estavam previstas as instalações físicas com-preendendo: edifícios para a Igreja e próprios administrativos; internatos es-colares para meninos e meninas (indígenas e órfãos); casas de colonos; campos experimentais; engenho de cana e estação de ‘ferro carril’.3

Pela descrição, é possível pressupor os impactos da Missão Capuchinha, especialmente, considerando que a área era território indígena e quilombola de amplas dimensões no século XIX. O etnocídio instalou-se célere com a implantação do Povoado do Prata, pois ele foi ‘assentado’ em território Tembé.

Palma Muniz descreve o território, informando:

resa a tradição, encontrada entre os índios que em tempos idos, talvez em eras coloniaes ainda, a região das nascentes do Maracanã, então não taladas pelas in-cursões civilisadoras, serviu de refugio a escravos fugidos, tanto das terras do rio Guamá, como das costas atlanticas, e de Belém e suas cercanias, que, internando--se nas mattas, desaparecem para sempre. (1913, p.16)

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Prossegue o historiador:

existiu néssas paragens um célebre mocambo de negros que cultivavam a terra e viviam da caça, fazendo de quando em vez correrias nos povoados e fazendas das circumvizinhanças, deixando atraz de si a rapina, o assassinato e outros crimes, acolhendo-se aos seus reductos, que defendiam de qualquer espionagem e co-nhecimento, tendo feito pagar com a vida todo aquelle que se aventurou a conhe-cer-lhes a localização. (Muniz, 1913, p.16)

A considerar as observações de Palma Muniz a área era conflagrada e, segundo as indicações, localizava-se acima do Prata e denominava-se Santa Maria de Belém, à margem direita do rio Maracanã. A repressão aos negros amocambados foi enérgica – leia-se dizimadora –, produzindo grande mor-tandade e destruindo o mocambo.

O suposto ‘desaparecimento’ do mocambo levou os indígenas a se asse-nhorearem da zona – provavelmente acolhendo os negros que sobreviveram à repressão – formando aldeia que distava uma légua da Colônia do Prata, que segundo Muniz (1913) era conhecida como Aldeia Velha, hoje de saudosa memória no relato dos mais velhos que, vez por outra, falam do lugar com alguma nostalgia baseada na lembrança de histórias contadas de geração a geração. Da concentração em Santa Maria os indígenas se espalharam e, assim, foram encontrados pelos Capuchinhos.4 Portanto, os donos da terra ‘rearran-javam’ o território em função das vicissitudes produzidas pelo embate com os invasores.

Diz ainda o cuidadoso historiador sobre os amocambados que o tempo se encarregou de fazer crescer o ‘célebre mocambo’, o qual teria chegado a compreender mil almas, fato que os levou a ‘construir uma aldeia’ que abriga-va: escravos fugidos, criminosos evadidos da justiça e, mais tarde, índios, in-corporados após a destruição. Muniz (1913) refere-se de forma explicita às comunidades multiétnicas – pouco estudadas – existentes em território para-ense e na Amazônia, as quais se afiguravam ‘poderosas’ e que o Estado não podia suportar.5 Daí decorre a insistência em morigerar os povos que viviam entre os rios Guamá e Maracanã, pois o território supostamente pertencia ao Pará, mas fugia das mãos do Estado.

No local onde os Capuchinhos produziram a infraestrutura do Prata encontravam-se: (1) as casas, em número de cinco ou seis, dos índios da família

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Miranha; (2) em Anselmo, à margem esquerda do rio Maracanã, viviam os Tupanas; (3) a família Braz morava no Jeju, afluente da margem direita do rio Maracanã; e (4) em Arrayal, nas nascentes do rio Jeju, ficavam a família dos Leopoldinos, e segundo Muniz “todas estas familias pertenciam a tribú Tembé e viviam em contínua relação entre si, e ultimamente [à época da construção do Prata] com civilisados, por intermedio dos respectivos chefes” (1913, p.16-17).

Em pleno território indígena, frei Carlos de São Martinho implantou a “Cruz redemptora da humanidade”, em 14 de setembro de 1898, dando início à cordialidade catequética que conduz ao etnocídio.

Os Tembé, portanto, sempre estiveram em Santa Maria, mas a cidade chegou a eles, inicialmente como Núcleo de Colonização Indígena, depois elevada à categoria de Vila e, mais adiante, a sede de município. A cidade ocupou a aldeia dos Braz e dos Leopoldinos, famílias consideradas as mais antigas entre os Tembé.

Do etnocídio ‘cordial’

As informações sobre o projeto dito civilizador dão conta do bom anda-mento dos trabalhos de catequese, apesar das dificuldades do estado do Pará em honrar os compromissos mantidos com os Capuchinhos Lombardos, em face do declínio do ciclo da borracha.6

É Paes de Carvalho7 quem deixa registrado no Livro do Núcleo, implan-tado pouco mais de dois meses antes, o seguinte:

apraz-me significar o meu contentamento ao testemunhar o zelo e caridade com que é conduzido o serviço de catequese, do qual o Governo do Estado espera bons resultados a beneficio dos indígenas, que cumpre chamar ao grêmio da ci-vilização. Desde já pode-se prejulgar do futuro auspicioso, que aguarda esta obra humanitária da colonização dos indígenas a qual logro decidido interesse. (apud Muniz, 1913, p.20)

O governador entusiasmou-se, provavelmente, com a faina produzida com a abertura de novas estradas, a discriminação de lotes, a construção de

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casas de colonos e o início da construção das edificações, pois isso significava colocar sob jugo os Tembé.

A febre de apostolado de frei Carlos de São Martinho interveio junto às famílias indígenas morigerando-as, pois – segundo os Capuchinhos – os ‘de-feitos morais’ dos indígenas, aliados a outros adquiridos na convivência com os ‘civilizados de última categoria’, não favoreciam o processo civilizador do Estado e da Ordem. Para conseguir tal intento o frei tomou de amizade os adultos, usou de palavras afetuosas procurando educar crianças e jovens com ensinamentos diários e pelos exemplos da fé, como informa a documentação. Era a pedagogia ‘cordial’ que conduzia ao etnocídio.

O projeto civilizador introduziu 25 famílias de colonos entre as 55 famílias indígenas, estendendo o raio de ação para além dos limites do Prata, alcançan-do as vilas de Jambuassu e Castanhal. A estratégia era retirar indígenas crianças e jovens das famílias de origem, impedindo-as de ser educadas entre os pais. No caso dos não indígenas, recolhiam-se apenas os órfãos, que, no século XIX e até meados do século XX, não eram ‘órfãos de fato’, entre eles estavam crian-ças concebidas fora do matrimônio – consideradas bastardas – e, também, aquelas geradas por mães solteiras.

A ocupação do território indígena não foi tranquila, houve “várias tentati-vas de revolta, por parte de alguns [índios] já mais velhos e por isso difíceis de reduzir” (Muniz, 1913, p.26), registradas nas reclamações dos missionários. Os Capuchinhos informam que o “defeito conhecido aos nossos índios [é] a vin-gança, sempre decorrente de actos que suppoem ferir-lhes os interesses e a dig-nidade” (Muniz, 1913, p.26). Alguns rebeldes são nominados na documentação: Calixto (tupanas), Francisco Braz e Antonio Braz (ambos Tembé), que, segundo os Lombardos, eram dados à embriaguez. Supõe-se que a situação de violência pela ação da catequese no Prata gerou problemas, os quais, talvez pela repressão feroz, não produziram baixas entre os ‘soldados de Cristo’ a serviço do Estado.

Outros momentos de conflito podem ser conhecidos nas minuciosas ano-tações de Palma Muniz, embora minimizadas, pois o escriba tinha interesse, como engenheiro da Secretaria de Obras Públicas e Viação, em divulgar os feitos do governo do Pará de forma a indicar o sucesso das ações. Diz ele que:

as luctas corporaes entre os indígenas nas horas de embriaguez, a que se entrega-vam eram outras tantas provas á paciência do diretor do núcleo, que sempre ti-

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nha que intervir no apaziguamento, a bem da boa ordem publica, dentro da sua jurisdição. (1913, p.27)

Supõe-se que boa parte dos conflitos tenham origem no enclausuramento de indígenas meninas, meninos e jovens nos internatos do Núcleo, apartados que eram das famílias originais. O internamento rompe com as formas de educar dos Tembé e de quaisquer outros povos indígenas, mas a ação era to-mada como necessária à catequese e à civilização, pois especialmente as mu-lheres eram consideradas indispensáveis à família e tidas como base da ‘nova’ organização social imposta, pressuposto que coincide com a avaliação de Wa-gley e Galvão (1955) sobre um incidente de Alto Alegre em Barra do Corda, no Maranhão, em 1910.

Outra fonte de descontentamento que se infere do texto são os longos períodos em que os operários do Núcleo ficaram sem remuneração em razão da crise no governo do Pará. Como conter os descontentamentos? Diz Muniz que a situação exigia “prudência especial, além de uma força moral muito importante” (1913, p.35):

por falta de pagamento de salários e empreitadas tinha já havido em 10 de Feve-reiro de 1901 algumas desordens, nas quaes se registrou o assassinato do feitor Tertuliano Damasceno, victima do seu dever, para manter a ordem publica, do qual foi autor Manuel Rodrigues, vulgo Acapú,8 que evadiu-se, fugindo á justiça. (1913, p.36)

No período, o internato funcionava em barracas cobertas de cavacos – condições provisórias e instáveis –, fato que produzia desconforto e provavel-mente descontentamento entre internos e também entre operários, portanto a situação teria de ser controlada pelos administradores com mão de ferro, que na visão do citado autor chama-se ‘prudência e moral’. Chamado de um modo ou de outro, o descontentamento produz conflito.

Muitos são os boatos de supostos ‘assaltos dos índios’ ao Núcleo, segundo as anotações de Muniz, o qual também informa diligentemente a superação das ameaças e a volta à ordem. Os conflitos são atribuídos sempre à embria-guez dos indígenas nucleados.

A paz aparente no Núcleo devia-se ao ‘temor ao Ser Supremo’ que, segun-do o cônsul espanhol em visita ao local, em 3 de agosto de 1902,

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és lo que reina en neste logar. He tenido lugar de apreciar el adelanto de estes se-res, que no ha mucho, llamabanse salvejes, y huy, gracias á esa misericórdia nata en la religión del Martir del Golgota, entrar al seno del mundo civilizado, arran-cados á los antros del obscurantismo por las sabias, siempre sabias crencias. (Mu-niz, 1913, p.43)

As histórias ‘em suspenso’ e os novos caminhos

Os Tembé referem o ‘tempo antigo’,9 dos pais e dos avós, em histórias que ficaram na memória e são pouco conhecidas, pois ficaram ‘em suspenso’ du-rante mais de 70 anos, período em que dizer-se indígena era assinar a sentença de morte. Edmilson informa:

é uma coisa que a gente não esquece, do dia a dia da gente, da vida, porque a gente quando se entendeu de gente era uma coisa melhor de que hoje, que na-quele tempo não era que nem hoje ... aonde eu nasci, era uma vida mais tranqui-la, tinha muita caça, muito peixe, então nos só fizemos atravessa do rio, que é esse rio o Jeju a da lá daquele rio adonde eu nasci, no município de Santarém Novo, então só fazia atravessa o rio, a mãe da gente já dizia que desse outro lado do rio tinha índio, mas só que nem ela sabia qual era o povo que tava desse lado, ela só sabia que tinha uns parente, ‘tem uns parente desse lado’, a gente nunca teve con-tato pra gente revê essas questão, pra gente juntá, pra gente lutá pelos direitos da gente que a gente tinha e tem até hoje. Então a gente foi crescendo, foi crescendo de lá, e a gente foi saindo pra trabalhá, os meus irmãos mais velho foram saindo e vieram pra trabalhar pra cá e aqui descobriram que aqui a gente tinha parte da família da gente.10

O interlocutor refere as aldeias próximas ao rio Maracanã e as relações com os parentes do outro lado do rio que se estende até o Guamá. O interlo-cutor prossegue sua narrativa oferecendo detalhes da ocupação do território pelos não indígenas:

era tudo nosso [entre o rio Maracanã e o Guamá], mas só que infelizmente não tinha como prová, era quem chegava, ia fazendo casa e a gente, a gente que é ín-dio, a gente não tem, a gente não tem, não tem o negócio ... assim – ah! faz aqui, aí quando tivé a casa dele o cabra manda sair. A gente tem o coração, a gente se mandar fazer uma casa ali é pra viver até o fim da vida, sem vender sem ter aque-

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le negócio, mas infelizmente nem todo mundo pensa isso né? Aí chegava aí sem canto pra fazer casa, aí fazia a casa e depois o cabra já vendia pra outro, aí já tinha aquele problema de crescer mais as suas terras né, aí pensava que fazia só num canto, já ia crescendo, já ia crescendo o olho, aí nessa arrumação é o que está hoje, aí todo mundo sem, sem terra, muitas vez, não tem nem o que comê, falta de terra e a poluição no rio. (grifos meus)

A julgar pelas informações de Nimuendajú (1981 [1944])11 os Tembé ha-bitavam próximo à ‘costa atlântica’ entre o Pará e o Maranhão, pelos rios Ma-racanã, Capim, Guamá, Gurupi, Pindaré e Mearim, chegando às cabeceiras dos referidos rios, dividindo o território com os Tupinambá, Guajajara, Kaa-por, Guajá e Amanayé. Os registros são feitos desde o século XVII por viajan-tes, missionários que se embrenharam nas matas da região entre o Maracanã e o Mearim.

Os registros sistemáticos feitos pelos estudiosos são do início do século XX, mas as etnografias substanciais sobre o Tenetehara versam sobre os grupos que habitam o Gurupi e apenas referem rapidamente os demais Tembé/Tene-tehara. Entre os trabalhos destacam-se: Nimuendajú (1915),12 Metraux (1928),13 Lopes (1932)14 e, no início da segunda metade do século XX, Wagley e Galvão (1955).15

O certo é que a área antes referida é território indígena, como relembra Edmilson. E a discussão sobre ‘ser ou não Tembé’ prende-se ao fato de que

a própria experiência do passado, a transformação de uma grande massa indíge-na no caboclo contemporâneo, através de um processo que se iniciou com a cate-quese, a escravização do índio pelo colono, e a miscigenação, é ainda escassa-mente conhecida. (Wagley; Galvão, 1955, p.10)

Os autores indicam a homogeneização forçada de pessoas indígenas trans-formando-as em ‘caboclos contemporâneos’ pelo fato de estarem “em contato com brasileiros e portadores de cultura europeia, desde longo tempo” (Wagley; Galvão, 1955, p.11). Situação que aos olhos dos especialistas era célere, a ponto de preverem que o “processo de transformação dos Tenetehara em caboclos estará em vias de se completar no espaço de uma geração ou pouco mais” (ibidem, p.185).

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O processo de (suposta) indiferenciação apontado por Wagley e Galvão (1955) passa pela chamada ‘caboclização’ ou ‘tapuização’ dos povos nativos que, se não conduz à extinção física, passa por danoso processo que lhes retira a língua original como instrumento de comunicação e, aos poucos, a substitui por outras línguas ou pela língua geral Nhengatu, da mesma maneira como se havia substituído grande parte das instituições, normas e valores por outros que não diziam respeito à cultura indígena em particular, decorrendo de cul-tura genérica e empobrecida, fruto da situação colonial e/ou da variante mis-sionária, como ensina Moreira Neto (1988).16

Se os especialistas enxergam a homogeneização, os vizinhos e os adversá-rios dos Tembé não pensam diferente, mas os protagonistas de Santa Maria não se deixaram vencer pela ‘profecia antropológica’ e hoje requerem reconhe-cimento e respeito aos seus direitos.

Os tempos da memória eram difíceis, pois, como informa Moisés,

a malária pegou matô tudinho [pessoas indígenas], acabou com os índios veio [velhos] e eu vim me embora, era os Moreira tudinho, aí eu vim embora, aí tinha a veia [velha] Augustinha e voltei pra trás, morreu primeiro o Joaquim Brás. Vô fica só por aqui aí quando ... cheguei lá a veia [velha] morreu também, aí fiquei sozinho, dos índio mesmo legítimo mesmo que ficou aqui, ficô só eu, ficô outro mas foi pra lá pro 48, chegô lá se meteu na cachaça que era braba, o cara tocô [tocou] um tiro de 38 [revólver] no peito que atravessô pra costa, trouxeram de lá e enterraram pra cá...17

As narrativas tembé consideram a ‘suspensão da história’ e produzem um contraponto à história escamoteada que integra, hoje, o conjunto de estratégias políticas que o movimento indígena assume mediante a Associação Indígena Tembé de Santa Maria do Pará (Aitesampa).18

Os relatos de hoje dizem respeito a quem é ou não ‘filho da terra’, ‘cabo-clo’, ‘caboclinho’, ‘família de índio’, ou ainda gente dos Braz, dos Leopoldinos ou lá do Anselmo, lugar da aldeia velha que são ‘tudo de sangue mesmo’. Na elaboração, os indígenas e os não indígenas narram histórias sobre os mais velhos que teriam sido ‘pegos a laço’ ou ‘a dente de cachorro’, pois estavam embrenhados na mata para fugir dos não indígenas que insistiam em morige-rá-los, como os missionários.

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O cacique Miguel (família dos Leopoldinos) da aldeia Areal conta que um dos seus amigos que era ‘neto de índio puro’ narrou que sua mãe fora pega a dente de cachorro pelos caçadores de Belém, e com o pai teria acontecido o mesmo, os ‘caçadores de índio’ os entregaram, ainda em tenra idade, aos pa-dres capuchinhos. Reforçando a narrativa, diz que onde eles moravam – fugi-dos dos Capuchinhos – era no Anselmo, “um barracão sem fim, [tinha] só índio puro, todos os parentes dele, avós e bisavós ... tão tudo sepultado naquele cemitério...”.19 Miguel prossegue, ensinando:

nós todos somo índio, porque nós todos somos nascidos e criados nessa área, nessa terra ... aqui é a terra dos nossos avós, bisavós e tetravós, aqui a terra era grande, [mas] porque morreram tudo, aí dividiram ... tudo são meus parentes, são tudo meus parentes...

Faz-se oportuno observar que o apropriar-se das narrativas do ‘tempo antigo’ ou das ‘histórias contadas sobre si’20 diz respeito à ‘escrita da história’ como possibilidade de provar quem são eles. No caso, a prova é tanto pra si como para os demais. ‘Para si’ porque muitos ainda duvidam da possibilidade de serem reconhecidos como Tembé ou de se identificarem como indígenas. Para os demais, pelo fato de requererem reconhecimento de direitos à terra enquanto povo etnicamente diferenciado, atitude que produz conflitos e ne-gações, pois muitas vezes são tomados como ‘ressurgidos’, ‘novos’ e ‘remanes-centes’, formas pejorativas as quais rejeitam e tentam corrigir.

A situação encontrada não é exclusiva dos Tembé de Santa Maria. Ao realizar um trabalho entre os Tembé do Alto rio Guamá – Reserva Indígena Alto Rio Guamá (Riarg) – na década de 1990, Sara Alonso informa:

O reconhecimento de ser ‘índio’ mas ‘misturado’, que é um dos elementos que dão sentido à sua experiência social e histórica [dos Tembé do Alto Rio Guamá], permite estabelecer um vínculo com ‘o tempo dos antigos’ que supõe a criação do ‘natural’ (‘a origem’, ‘a raiz’) e do ‘novo’. Aparente contradição ou paradoxo que é resolvido com a proposta de unificação cultural, definida pela ideia de que todos ‘somos do mesmo sangue’ ou ‘da mesma parentela’. ‘Naturalizando’, assim, a existência social do grupo. Há uma noção de continuidade histórica que pres-supõe uma atribuição de limite temporal e espacial à ‘unidade Tembé’. (Alonso, 1999, p.50)

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O processo vivenciado pelos Tembé na Riarg é em alguns aspectos dife-rente do que experimentam os ‘de Santa Maria’, mas permite refletir sobre o assunto. Pela luta empreendida com a ‘ajuda’ de muitos os Tembé estudados por Alonso (1999) são referência política e de ‘autenticidade’ do ser Tembé. Como em meio à disputa os Tembé ‘de Santa Maria’ precisam ‘neutralizar’ as ‘histórias contadas sobre si’, nas escolas não indígenas da região os parentes do Alto Rio Guamá são fonte de inspiração e reconhecimento para os paren-tes ‘de Santa Maria’.

No caminho dos ‘de Santa Maria’ os protagonistas encontram como alia-dos os missionários do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) que vêm contribuindo para a ‘construção de histórias para si’.21 Algumas versões se constituem em ‘breviários de luta’.22 As lideranças mais jovens, com apoio de lideranças tradicionais por intermédio da Aitesampa, apresentaram projeto à Fundação Brasil de Direitos Humanos para apoiar a luta pelo reconhecimento de direitos à terra. Nesse sentido, foram em busca de documentos que com-provassem sua permanência em Santa Maria.

O protagonismo Tembé em Santa Maria se afigura diferenciado, pois eles não se encontram em área demarcada. Como dizem, a ‘cidade chegou à aldeia’, portanto a luta é pela identidade que ‘exige’ não apenas considerar-se Tembé, mas ser reconhecido pelos demais parentes Tembé e por outros, além de pre-cisarem requerer e comprovar que possuem direitos à terra e a assistência di-ferenciada por parte da agência indigenista.23

O projeto feito à Fundação Brasil permitiu recuperar documentos ‘sobre os Tembé’ em diversos arquivos oficiais e religiosos, especialmente dos capu-chinhos que estiveram na região. Quando fui chamada a ‘ensinar’ à história aos Tembé, muitos dos documentos referidos no presente artigo estavam em mãos da Associação. Documentos que me foram cedidos por empréstimo e que, para evitar perdas e danos, foram copiados e digitalizados.24

É interessante avaliar a importância não apenas científica da História dos Povos Indígenas, mas discutir a importância ‘utilitária’ da fórmula acadêmica para os interessados.

Voltando no tempo, relembro que a primeira demanda que chega a mim para ‘ensinar’ ou ‘escrever’ história veio dos povos do Tapajós e Ara-piuns (2009), e a segunda, dos Tembé ‘de Santa Maria’ no Guamá (2010), ambas estimuladas pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que atua

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entre os interlocutores. Com a criação do Curso de Licenciatura e Bachare-lado em Etnodesenvolvimento no Campus de Altamira da UFPA surgiu a demanda do Xingu, que é premente por conta da lamentável implantação do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.25 Em meados de 2012 chegou a solicitação dos Mundurukú das aldeias Bragança, Marituba e Takuara, em virtude de minha participação na Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI), na qual sou representante titular da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), e acompanho, durante as reuniões, discussões sobre os temas mais candentes nas escolas indígenas, apresentas pelas lideranças indígenas na área.

Na tentativa de descobrir o porquê das demandas fui informada de que, como antropóloga, eu ‘fazia documentos’ e laudos antropológicos, e eles es-tavam discutindo direitos à terra associados à ‘possibilidade de ser indígena’. Segundo os povos indígenas, ‘só história ajuda’, mas não queriam ‘história de livro de escola’ que diz que ‘o tal do Cabral descobriu a gente que estava aqui desde o tempo do bisavô, do tempo antigo’. Queriam uma história que servisse à política da associação e outra ‘arrumada’ para ensinar as crianças na escola (livro didático), pois eles não conheciam as ‘histórias do tempo dos antigos’.26

O trabalho que se realiza hoje contempla a história oral que se dirige à memória e aos seus usos sociais na construção de uma história que se amplia e é feita, também, pelos protagonistas ou com eles. Portanto, é concebida com/por diversos interlocutores que se inter-relacionam e produzem polifonias diversas, antes ausentes dos trabalhos etnológicos. Além disso, a política em-preendida pelos movimentos indígenas implica a apropriação crescente do passado, rejeitando a ‘história colonial’ como forma de explicação. Aliás, como informa a proposição de Oliveira e Viqueira (2012):

La presencia colonial empieza a ser estudiada en serio, con investigaciones pro-fundizadas sobre los procesos de construcción nacional. El proceso de conoci-miento es pensado cada vez más criticamente, no como falsamente universal, buscando al contrario incorporar la polifonia, las perspectivas indígenas y las antropologias nacionales. La própria etnografia és concebida como un fenômeno social con una historicidad específica.27

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Versões da História

É possível lidar com versões da História dependendo de onde se fala e da trajetória de quem fala. Assim sendo, apresento a versão Tembé, escrita pelas lideranças de pesquisa do povo.

Como dizem os Tembé ‘de Santa Maria’: “mesmo sabendo que somos índios de fato, tivemos que pesquisar em vários arquivos do estado do Pará, biblioteca pública; Museu Emilio Goeldi, CIMI” (Tembé, 2011, p.1).28 Levaram cinco meses em busca de documentos, “de novembro de 2008 até o mês de março de 2009” (p.2). E “para registrar nossa presença na região viajamos por vários lugares pesquisando em igrejas de Igarapé-açu, Maracanã, Santarém Novo, Colônia Santo Antônio do Prata e Santa Maria do Pará” (p.2). E conti-nuam, usando de ‘lamentação’: “dentro de nossas próprias aldeias (Jeju e Areal) ... e fomos ainda ao convento dos franciscanos em Belém. Trabalho esse que deveria ter sido feito por antropólogos enviados pela Funai” (p.2). Até porque, segundo os protagonistas Tembé,

o nosso povo indígena das aldeias Jeju e Areal de Santa Maria do Pará não somos capacitados para esse tipo de trabalho, mas sentimos a necessidade de fazer e provar como os Tembé de Santa Maria do Pará têm um longo histórico de pre-sença na região. Hoje, não aceitamos nenhuma discriminação contra o nosso povo porque temos como provar através de documentos, fotos, livros, mapas, e entrevista feita com o capuchinho frei João Franco de Belém, que sabe um pouco da nossa história, que nós estamos há mais de um século nesse território. (Tem-bé, 2011, p.3)

O Relatório apresenta esta conclusão:

no ano de 2001 tivemos conhecimento que poderíamos obter tudo de volta, ter-ritórios e cultura, tivemos conhecimento dos direitos dos povos indígenas na Amazônia da convenção 169 da OIT e a declaração da ONU. Os índios Tembé de Santa Maria do Pará das aldeias Jeju e Areal estão resistindo há mais de um sécu-lo em suas pequenas áreas de terras, com a chegada dos migrantes passamos por momentos difíceis de nossas vidas, não temos acesso ao cemitério em que foram enterrados os nossos antepassados. Sempre soubemos da existência de nosso an-tigo cemitério, mas somente no ano de 2008 tivemos a oportunidade de conhecer esse antigo cemitério, onde no passado foram enterrados os nossos, com ajuda de

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alguns freis do km 18 [Prata]. A aldeia está crescendo, não temos terras para construir nossas malocas e casas. (Tembé, 2011, p.23)

Reclamam da demora dos trabalhos realizados pela Funai:

nós indígenas Tembé de Santa Maria do Pará das aldeias Jeju e Areal, na ansieda-de que paira sobre demandas que até hoje não foram vistas como coisas importan-tes pelos órgãos que tem essa atribuição. Estamos tentando ensinar aos pequenos nossas histórias.

Nos tiraram quase tudo que nos era de precioso e principalmente a nossa mãe terra. Mas resistimos até hoje para fortalecer essa luta e ter de volta o nosso tesouro, resgatando todos os costumes que tínhamos. Sabemos que essa política de integração do governo e da sociedade Brasileira ainda faz com que muitos de nós nos envergonhemos de sermos índios. (Tembé, 2011, p.23, grifos meus)

Hoje o nosso povo criou o próprio grupo de pesquisa, tivemos que tomar nossas iniciativas, pois queremos a demarcação e regularização de nosso território que pouco está interessando à Funai e aos órgãos responsáveis. Nós mesmos esta-mos fazendo o reconhecimento de nossa terra e nossa história. Pedimos aos princi-pais órgãos (Funai, MPF, Incra, Iterpa, Governo do Estado do Pará), que se mobi-lizem, procurem solucionar nossas demandas. Queremos apenas o que é nosso de direito segundo a Constituição Federal, convenção 169 da OIT e a declaração universal dos direitos dos povos indígenas da ONU, nos asseguram. (Tembé, 2011, p.23, grifos meus)

E informam, a quem interessar possa: “os nossos frutos podem ter sido tirados, os nossos galhos arrancados, os nossos troncos queimados, mas ainda permanece a essência de nossas vidas [e] da identidade: a raiz” (Tembé, 2011, p.23, grifos meus).

NOTAS

1 A primeira versão do texto foi apresentada oralmente e debatida no SIMPÓSIO ESTU-DOS PÓS-COLONIAIS: Pueblos indígenas y múltiples usos de la historia: explorando la diversidad de situaciones coloniales en América, coordenado por João Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ) e Juan Pedro Viqueira (Colégio do México) durante o 54o Con-gresso Internacional de Americanistas ocorrido em Viena, Áustria, organizado pela Uni-versidade de Viena, o Instituto Austríaco para a América Latina e o Museu de Etnología, o qual teve como tema geral Construindo Diálogos nas Américas.

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2 Cf. MUNIZ, João de Palma. O Instituto de Santo Antonio do Prata (Município de Igarapé--Assú). 1.ed. Belém: Typ. da Livraria Escolar, 1913. As transcrições conservam a escrita de época.3 A informação confirma pressuposto de Oliveira Filho (1983) sobre política indigenista associada aos propósitos de colonização, pelo menos para o nordeste paraense. Ao pressu-posto, acrescento que a mão de ordens religiosas aparece para complementar a empreitada que, desta forma, alcança seus objetivos sem muita reação explícita, pois as ‘vítimas’ da ação não se dão conta ou não conseguem agir de imediato, dadas as estratégias cristãs. A associação colonização/política indigenista é também apontada por Alonso (1999) para a situação Tembé do Alto Rio Guamá. Sobre o assunto consultar: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. Terras indígenas no Brasil: uma tentativa de abordagem sociológica. Boletim do Museu Nacional, série Antropologia, n.44, out. 1983; e ALONSO, Sara. A disputa pelo sangue: reflexões sobre a constituição da identidade e ‘unidade tembé’. Novos Cadernos NAEA, v.2, n.2, p.33-56, 1999.4 Portanto, em que pesem as incursões catequéticas ainda nos tempos da colônia, os Tembé sempre estiveram no território entre o Guamá e o Maracanã. Local onde hoje estão, embo-ra acuados pelo crescimento da cidade e resistindo teimosamente em ‘ser indígena’.5 Para discussão aprofundada sobre comunidades e confederações multiétnicas na Amazô-nia, consultar: WRIGHT, Robin M. História indígena e indigenismo no Alto Rio Negro. 1.ed. Campinas (SP): Mercado de Letras/ISA, 2005; e VIDAL, Silvia M. Liderazco y confe-deraciones multiétnicas amerindias en la Amazonia luso-hispanica del Siglo XVIII. Antro-pologica, v.87, p.19-46, 1997. Observo que, ontem como hoje, os não indígenas pensam os grupos etnicamente diferenciados como ‘comunidades fechadas’, nada misturadas, daí a dificuldade em compreender as pertenças étnicas e admiti-las como tal.6 Para realizar o projeto, a ordem assinou contrato com o governo do Pará, pelo qual se comprometia a pagar os religiosos como se funcionários públicos fossem e a erguer a in-fraestrutura de funcionamento do Núcleo de Colonização Indígena do Prata (Palma Mu-niz, 1913). É necessário observar que na Colônia, no Império e na República Igreja e Esta-do mantiveram-se aliados, a depender da ordem religiosa e dos dirigentes, em que pesem as inúmeras dissenções.7 Governador do Pará de 1o fev. 1897 a 1o fev. 1901.8 No Pará, Acapu é ‘madeira de dar em doido’, usada para aplicar supostamente ‘bons cor-retivos’ em alguém, deixando sequelas para sempre. Se Manuel Rodrigues recebeu apelido de Acapu, devia ser alguém que expressava o contentamento de forma pouco ‘civilizada’ do ponto de vista dos Capuchinhos.9 Tempo chamado, ainda, de ‘lá de antes’ ou ‘dos velhos’ do qual os mais jovens procuram descobrir e se apropriar, fazendo que os mais velhos narrem as memórias, nem sempre ‘nítidas’ tanto pela idade como, talvez, pelas agruras de um passado negado pela homoge-neização.10 Narrativa feita a Edimar Fernandes, em 27 jul. 2010 (grifos meus).

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11 IBGE. Mapa Etno-histórico de Curt Nimuendajú. 1.ed. Rio de Janeiro: FIBGE/Pro-Me-mória, 1981 [1944].12 Cf. NIMUENDAJÚ, Curt. Sagen der Tembe-Indianer. Zeitschrift für Etnologie, v.XLVII, Berlin, 1915.13 Cf. METRAUX, Alfred. La Civilization materielle. 1.ed. Paris: s.n., 1928.14 Cf. LOPES, Raimundo. Os Tupi do Gurupi. In: XXV CONGRESSO INTERNACIONAL DE AMERICANISTAS, XXV. La Plata, Argentina, 1932. Actas... p.140-172.15 Cf. WAGLEY, Charles; GALVÃO, Eduardo. Os índios Tenetehara: uma cultura de tran-sição. 1.ed. Rio de Janeiro: MEC, 1955.16 Sobre o assunto, consultar: MOREIRA NETO, Carlos Araújo. Índios da Amazônia: de maioria a minoria (1750-1850). 1.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 1988. Na Antropologia, o ter-mo ‘tapuização’ não é frequente, mas é utilizado na Linguística. Para melhor compreensão do uso conferir: BORGES, Luiz C. As Línguas Gerais e a Companhia de Jesus: política e milenarismo. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas (SP), v.46, n.2, p.171-194, jul.--dez. 2004.17 Narrativa feita a Edimar Fernandes por Moisés, em 11 jan. 2012.18 Consultar: FERNANDES, Edimar Antonio; SILVA, Almir Vital da; BELTRÃO, Jane Fe-lipe. Associação Indígena Tembé de Santa Maria do Pará (Aitesampa) em luta por direitos étnicos. Amazônica Revista de Antropologia, v.2, p.392-406, 2011.19 Narrativa feita a Almir Vital, pelo Cacique Miguel, em jan. 2012 (grifos meus).20 No caso, a ‘fonte’ considerada autorizada ou legítima são os mais velhos, que ‘sabem mesmo’ e são reconhecidas autoridades e lideranças tradicionais.21 As expressões utilizadas para referir história brincam com a ambiguidade dos processos que, ao formularem propostas, trabalham de forma muito pessoal, assemelhada à constru-ção de um diário, sem se aperceber do que há de coletivo na escrita. A sugestão vem do excelente trabalho de GOMES, Ângela. C. (Org.). Escrita de si, escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2004.22 Denomino ‘breviário de luta’ as histórias produzidas como espaços/veredas acanhadas e resumidas, à maneira dos breviários produzidos pela Igreja católica com finalidade de ‘ins-trumentalizar’ determinada luta, à semelhança dos que fazem as ‘cartilhas programáticas’ de partidos políticos ‘aparelhando’, ainda hoje, os companheiros de partido. Documentos que não admitem versões e, o que se observa sem questionamentos, caminhos alternativos não se fazem presentes, dúvidas não são semeadas, portanto servem à História – como fon-te, mas não são vias adequadas à nova História. Entretanto são válidos à luta empreendida.23 A disputa com a agência indigenista produz muitos desdobramentos, até mesmo o fato de tentarem escrever a ‘história de si’ e a ‘história para si’, na qual encontro-me imbricada, pois sou uma das possibilidades vislumbradas pelos Tembé para ‘referendar’ o muito que fizeram em busca das origens. De certa forma sou a ‘escriba’ que eles ‘acreditam’ poder contestar os laudos e neutralizar as falas das autoridades indigenistas, discussão que foge aos propósitos deste artigo.

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24 Ver Programa de Políticas Afirmativas para Povos Indígenas e Populações Tradicionais (Papit). 2010/12. Entrevistas realizadas com lideranças indígenas Tembé em Santa Maria. Belém: Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará (UFPA); e Programa de Políticas Afirmativas para Povos Indígenas e Populações Tra-dicionais (Papit). 2010/12. Narrativas indígenas. Belém: Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Por iniciativa da equipe do Programa de Políticas Afirmativas para Povos Indígenas e Populações Tradicionais (Papit) para cumprir com a solicitação, aos documentos foi acrescido levantamento biblio-gráfico sobre os Tembé de Santa Maria que oferece subsídio à equipe que trabalha com os interessados. Entre as propostas em andamento temos em nível de doutorado: Alcooliza-ção entre os Tembé de Santa Maria do Pará, de Telma Eliane Garcia Clajus Oliveira; Mitos Tembé: ciência do concreto e indigenismo, de Mônica do Corral Vieira; Etno-Arqueologia Tembé/Tenetehara, testemunhos de uma saga, projeto de doutorado em construção, de Rhuan Carlos dos Santos Lopes; e, como Iniciação Científica, Mitos, Narrativas e Cuidados à Saúde entre os Tembé, de Almir Vital da Silva (Tembé/estudante que ingressou por meio de vagas reservadas na graduação), desenvolvidos sob minha orientação no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA) da Universidade Federal do Pará (UFPA); na área de concentração Antropologia Social, linha de pesquisa Povos indígenas e populações tradicionais. Em nível de mestrado localizam-se: Luta por direitos: estudo sobre a Associa-ção Indígena Tembé de Santa Maria do Pará (Aitesampa), de Edimar Antonio Fernandes (Kainkang/estudante que ingressou por meio de vagas reservadas na pós-graduação), e Violência contra a mulher entre fronteiras e direitos de indígenas e quilombolas, de Mariah Torres Aleixo, ambas sob minha orientação no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da UFPA, área de concentração em Direitos Humanos, linha de pesquisa Direitos humanos e exclusão social: identidade, etnicidade e gênero.25 Sobre o assunto cf. BELTRÃO, Jane Felipe; RIBEIRO, Patrick Henrique. Ações afirmati-vas para Povos Tradicionais e institucionalização na Universidade Federal do Pará. GT 06 – Antropologia, Direitos Coletivos, Sociais e Culturais. ENADIR – ENCONTRO DE AN-TROPOLOGIA DO DIREITO, II. São Paulo, 2011. Disponível em: www.enadir2011.blo-gspot.com/. Sobre a possibilidade de ‘escrever a História’, caso do Xingu, temos o desen-volvimento da tese Identidades indígenas: a problemática dos índios ‘ressurgidos’ ou ‘remanescentes’ em Altamira/PA, por Francilene de Aguiar Parente (PPGA/UFPA), na área de concentração Antropologia Social, linha de pesquisa Povos indígenas e populações tradi-cionais, sob minha orientação e coorientação de Cristina Donza Cancela.26 As expressões entre aspas dizem respeito às escutas sobre a necessidade de ‘ter história’; as expressões usadas variam pouco de um povo a outro, são praticamente idênticas.27 Cf. SIMPÓSIO ESTUDOS PÓS-COLONIAIS: Pueblos indígenas y múltiples usos de la historia, cit.28 TEMBÉ. 2011. Relatório apresentado à Fundação Brasil de Direitos Humanos. Santa Ma-ria do Pará, documento inédito.

Artigo recebido em 20 de julho de 2012. Aprovado em 5 de setembro de 2012.

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O ensino de História Indígena: possibilidades, exigências e desafios

com base na Lei 11.645/2008The Teaching of Indigenous History: possibilities,

demands and challenges from the 11.645/2008 Law

Edson Silva*

ResumoCom suas mobilizações, os povos indí-genas conquistaram nas últimas déca-das considerável visibilidade como ato-res sociopolíticos, o que vem exigindo discussões sobre a implantação de polí-ticas públicas que respondam às suas demandas por direitos sociais específi-cos. A Lei 11.645/2008, que determinou a inclusão do ensino de História e das Culturas indígenas nos currículos esco-lares, pretende possibilitar o respeito dos demais brasileiros em relação aos povos indígenas e o reconhecimento das sociodiversidades no país. Palavras-chave: povos indígenas; socio-diversidade; ensino de História.

AbstractWith their mobilizations, indigenous peoples have gained considerable visi-bility in recent decades as sociopolitical players, which has demanded discus-sions on the implementation of public policies that meet demands for their specific social rights. Law 11645/2008, which led to the inclusion of Indigenous Cultures and History in school curricu-la, aims to facilitate the respect of other Brazilians in relation to indigenous peo-ples and the recognition of social diver-sity in the country. Keywords: Indigenous people; social di-versity; History teaching.

Como lecionar sobre os povos indígenas, se é fácil constatar que a imensa maioria do professorado na Educação Básica desconhece a população indígena em nosso país e nem sabe quantos brasileiros se autodeclararam índios no cen-so IBGE/2010? Como tratar dos povos indígenas, se no senso comum e no am-biente escolar apenas se conhecem os índios da Região Norte e do Xingu? Esses são considerados portadores de uma suposta ‘cultura pura’, em oposição aos indígenas de outras regiões que sofreram colonização há mais tempo – o Nor-

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 213-223 - 2012

*Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco. Av. Acadêmico Helio Ramos, s/n, Cidade Universitária. 50740-520 Recife – PE – Brasil. [email protected]

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deste, por exemplo –, os quais têm suas identidades sistematicamente negadas e são chamados de ‘caboclos’. Essa expressão foi muito utilizada sobretudo a partir de meados do século XIX pelos invasores das terras indígenas e pelas autoridades, todos defendendo o fim dos aldeamentos e invisibilizando, assim, esses povos na história.

Como superar a visão comumente exótica sobre os povos indígenas em sala de aula, para substituí-la por uma abordagem crítica? Essas e outras ques-tões permeadas de desinformações, equívocos, ignorância generalizada e, por-tanto, preconceitos contra ‘os índios’ são grandes desafios para o ensino da história indígena e para as reflexões sobre esse tema.

Figura 1 – A falta de um mapa atualizado com as populações indígenas no Brasil expressa o quanto a temática indígena ainda espera por investimentos em estudos.1

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Reconhecendo a sociodiversidade indígena

Onde estão os índios? A imensa maioria da população brasileira – até mesmo pessoas mais esclarecidas – responde que não sabe. O pouco conheci-mento está associado basicamente à imagem do indígena tradicionalmente veiculada pela mídia: um ‘índio genérico’, com biótipo formado por caracte-rísticas correspondentes aos indivíduos de povos habitantes da Região Ama-zônica e do Xingu: cabelos lisos, pinturas corporais e abundantes adereços de penas, nus, moradores das florestas, de culturas exóticas, falantes de uma lín-gua estranha.

Também são chamados de ‘tribos’ na perspectiva etnocêntrica e evolucio-nista de uma suposta hierarquia de raças pela qual os índios ocupariam obvia-mente o último degrau. São ainda imortalizados pela literatura romântica produzida no século XIX, como nos livros de José de Alencar, onde são apre-sentados índios belos e ingênuos, ou valentes guerreiros e ameaçadores cani-bais. Ou seja, bárbaros, bons selvagens ou heróis.

Mas essas visões sobre os indígenas vêm mudando nos últimos anos, em razão da visibilidade política conquistada por eles. As mobilizações dos povos indígenas em torno dos debates para a elaboração da Constituição de 1988 e as conquistas dos direitos indígenas fixados na lei maior do país possibilitaram a garantia dos direitos (demarcação das terras, saúde e educação diferenciadas e específicas etc.), para que a sociedade em geral (re)descobrisse os indígenas.

Observemos que o mapa do Brasil (Figura 1) aponta a presença de povos indígenas em todas as regiões do país, com maior concentração na Região Amazônica, onde a fronteira capitalista ainda é recente. Os impactos da colo-nização europeia, por sua vez, são constatados no pequeno número de grupos indígenas ao longo do litoral brasileiro. Ampliando-se o mapa veremos tam-bém maior concentração na região do Sertão, entre Alagoas, Bahia e Pernam-buco, mais especificamente nas proximidades do rio São Francisco, região disputadíssima até a atualidade entre os índios e os colonizadores de ontem e de hoje.

Vejamos o que diz o índio Gersem Baniwa – lembrando que o povo Ba-niwa habita a fronteira entre Brasil, Colômbia e Venezuela, em aldeias às mar-gens do rio Içana e de seus afluentes, além de comunidades no Alto Rio Negro e nos centros urbanos de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos

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(AM). Mestre e Doutor em Antropologia pela UnB, Gersem publicou o livro O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, onde escreveu sobre a sociodiversidade dos povos indígenas:

A sua diversidade, a história de cada um e o contexto em que vivem criam difi-culdades para enquadrá-los em uma definição única. Eles mesmos, em geral, não aceitam as tentativas exteriores de retratá-los e defendem como um princípio fundamental o direito de se autodefinirem.2

Após discorrer sobre as complexidades das organizações sociopolíticas dos diferentes povos indígenas nas Américas questionando as visões etnocên-tricas dos colonizadores europeus, o pesquisador indígena afirma:

Desta constatação histórica importa destacar que, quando falamos de diversidade cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de organizações so-ciais, econômicas e políticas construídas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras civilizações dos demais continentes europeu, asiático, africano e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou culturas superiores ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes, mas diferentes. (Baniwa, 2006, p.49)

Figura 2 – Exemplos da sociodiversidade indígena no Brasil.3

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Tratando da chamada identidade cultural brasileira, Gersem conclui que

não existe uma identidade cultural única brasileira, mas diversas identidades que, embora não formem um conjunto monolítico e exclusivo, coexistem e con-vivem de forma harmoniosa, facultando e enriquecendo as várias maneiras pos-síveis de indianidade, brasilidade e humanidade. Ora, identidade implica a alte-ridade, assim como a alteridade pressupõe diversidade de identidades, pois é na interação com o outro não idêntico que a identidade se constitui. O reconheci-mento das diferenças individuais e coletivas é condição de cidadania quando identidades diversas são reconhecidas como direitos civis e políticos, consequen-temente absorvidos pelos sistemas políticos e jurídicos no âmbito do Estado Na-cional. (Baniwa, 2006, p.49)

Afirmar a sociodiversidade indígena no Brasil é, portanto, reconhecer os direitos às diferenças socioculturais. É buscar compreender as possibilidades de coexistência sociocultural, fundamentada nos princípios da interculturali-dade, pois

A interculturalidade é uma prática de vida que pressupõe a possibilidade de con-vivência e coexistência entre culturas e identidades. Sua base é o diálogo entre diferentes, que se faz presente por meio de diversas linguagens e expressões cul-turais, visando à superação de intolerância e da violência entre indivíduos e gru-pos sociais culturalmente distintos. (Baniwa, 2005, p.51)

Em anos recentes os indígenas vêm conquistando o (re)conhecimento e o respeito a seus direitos específicos e diferenciados. Sob essa ótica o país, a sociedade brasileira se repensa, se vê em sua multiplicidade, pluralidade e di-versidade sociocultural, expressa também pelos povos indígenas em diferentes contextos sócio-históricos. Mas lembremos que esse reconhecimento exige também novas posturas e medidas das autoridades governamentais em ouvir dos diferentes sujeitos sociais a demanda por novas políticas públicas que re-conheçam, respeitem e garantam essas diferenças.

Na Educação, por exemplo, pretende-se a formulação de políticas inclu-sivas das histórias e expressões socioculturais no currículo escolar, nas práticas pedagógicas.4 Essa exigência deve ser atendida com a contribuição de especia-listas, a participação dos próprios sujeitos sociais, os índios, na formação de futuros/as docentes, na formação continuada daqueles que discutem a temática

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indígena e atuam na produção de subsídios didáticos em todos os níveis de ensino, seja nas universidades ou nas secretarias estaduais e municipais. Só assim deixaremos de tratar as diferenças socioculturais como estranhas, exó-ticas e folclóricas. (Re)conhecendo em definitivo os ‘índios’ como povos indí-genas, com seus direitos de expressões próprias que podem contribuir decisi-vamente para a nossa sociedade, para todos nós, para a riqueza da humanidade.

Se as mobilizações trouxeram nas últimas décadas considerável visibili-dade para os povos indígenas como atores sociopolíticos em nosso país, exi-gindo novos olhares, pesquisas e reflexões,5 é preciso contestar o desconheci-mento, os preconceitos, os equívocos e a desinformação generalizada sobre os indígenas, até mesmo entre os educadores. Várias expressões populares – co-mo ‘programa de índio’, usada para referir situações desconfortáveis – ilustram muito bem como os preconceitos contra os indígenas são afirmados cotidia-namente. E o mais grave: esse tipo de atitude independe do lugar social e po-lítico ocupado por quem expressa tais preconceitos.

Reconhecendo a sociodiversidade, repensando o Brasil

Quais as razões da busca pelo reconhecimento legal de direitos específicos e diferenciados na atualidade? Por que atualmente são obrigatórias rampas em prédios públicos, destinadas às pessoas portadoras de necessidades especiais? Por que existem delegacias para as mulheres? Por que existe o Estatuto do Idoso? O que levou à criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)? Por que se aprovou a Lei 11.645/2008, que tornou obrigatório nos currículos escolares o ensino da História e Culturas Afro-brasileiras e Indígenas?

As respostas a essas e outras perguntas semelhantes podem ser encontra-das nas observações à organização sociopolítica do Brasil contemporâneo. Nas últimas décadas, em novos cenários políticos, os movimentos sociais com di-ferentes atores conquistaram e ocuparam seus espaços, reivindicando o reco-nhecimento e o respeito às sociodiversidades. Identidades foram afirmadas, diferentes expressões socioculturais passaram a ser reconhecidas e respeitadas, mudanças de atitudes que exigiram discussões, formulações e fiscalizações de políticas públicas que respondam às demandas por direitos sociais específicos e diferenciados.

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A nossa sociedade, como resultado da organização e mobilização dos mo-vimentos sociais, se descobre plural, repensa seu desenho: o Brasil não tem uma identidade nacional única! Somos um país de muitos rostos, expressões socioculturais, étnicas, religiosas etc. As minorias (maiorias) – sejam mulheres, ciganos, negros, idosos, crianças, portadoras de necessidades especiais etc. – reivindicam o reconhecimento e o respeito aos seus direitos.

Faz-se necessário, então, descontruir a ideia de uma suposta identidade genérica nacional, regional. Questionar as afirmações que expressam uma cul-tura hegemônica que nega, ignora e mascara as diferenças socioculturais. Uma suposta identidade e uma cultura nacional que se constituem pelo discurso im-positivo de um único povo. Uma unidade anunciada muitas vezes em torno da ideia de raça, um tipo biológico a exemplo das imagens sobre o mulato, o mes-tiço, o gaúcho, o paulista, o mineiro, o nordestino e o sertanejo, entre outras.

As ideias de uma identidade e uma cultura nacional escondem as diferenças de classes sociais, de gênero e étnicas, ao buscar uniformizá-las. Negam também os processos históricos marcados pelas violências de grupos politicamente he-gemônicos, negando ainda as violências sobre grupos, a exemplo dos povos in-dígenas e dos oriundos da África que foram submetidos a viverem em ambientes coloniais. Observemos ainda que as identidades nacionais, além de serem forte-mente marcadas pelo etnocentrismo, o são também pelo sexismo: dizemos ‘o mulato’, ‘o mestiço’, ‘o paulista’, ‘o gaúcho’, ‘o mineiro’, ‘o carioca’, ‘o baiano’, ‘o cearense’, ‘o pernambucano’ etc., acentuando o gênero masculino.

É necessário, ainda mais, problematizar as ideias e afirmações de identi-dades gerais como a mestiçagem no Brasil – um discurso bastante utilizado para negar, desprezar e suprimir as sociodiversidades existentes no país. Re-conhecer, afirmar e respeitar o direito às diferenças é, pois, questionar o dis-curso da mestiçagem como identidade nacional, usado para esconder a história de índios e negros na História do Brasil.

A Lei 11.645/2008: possibilidades, exigências e desafios para o (re)conhecimento da sociodiversidade indígena

No âmbito da escola/educação formal, em seus vários níveis, pode-se constatar muita ignorância que resulta em distorções a respeito dos indígenas. A Lei 11.645 de março de 2008, que tornou obrigatório o ensino de história e

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culturas indígenas nos currículos escolares no Brasil, ainda que careça de de-finições mais completas, possibilita a superação dessa lacuna na formação es-colar. Contribui para o reconhecimento e a inclusão das diferenças étnicas dos povos indígenas, buscando pensar um novo desenho do Brasil em sua sociodiversidade.

Passados mais de 4 anos de sua publicação, persistem vários desafios para efetivação do que determinou a Lei 11.645/2008. É de fundamental importân-cia, por exemplo, capacitar os quadros técnicos de instâncias governamentais (federais, estaduais e municipais) para o combate aos racismos institucionais. Mas um grande desafio – ou o maior deles – é a capacitação de professores. Tanto dos que estão atuando (a chamada ‘formação continuada’) quanto da-queles ainda em formação nas universidades públicas e privadas, nos diversos cursos de licenciatura e magistério. Isso significa dizer que no âmbito dos currículos dos cursos de licenciatura e de formação de professores deve ocorrer a inclusão de cadeiras obrigatórias, ministradas por especialistas, tratando es-pecificamente da temática indígena. Sobretudo em cursos das áreas das Ciên-cias Humanas e Sociais.

É preciso que as secretarias estaduais e municipais incluam ainda a temá-tica indígena nos estudos, nas capacitações periódicas e na formação conti-nuada, e a abordagem deve se dar na perspectiva da sociodiversidade histori-camente existente no Brasil: por meio de cursos, seminários, encontros de estudos específicos e interdisciplinares destinados ao professorado e aos de-mais trabalhadores/as em educação, com a participação de indígenas e a asses-soria de especialistas reconhecidos. É preciso, também, adquirir livros que tratem da temática indígena, destinados ao acervo das bibliotecas escolares.

Outro grande desafio e urgente necessidade é a produção – com assesso-rias de pesquisadores e especialistas – de vídeos, subsídios didáticos, textos etc. sobre os povos indígenas, para utilização em sala de aula, proporcionando ainda o acesso a publicações – livros, revistas, jornais e fontes de informações e pesquisas sobre os povos indígenas.

A efetivação da Lei 11.645 possibilitará estudar, conhecer e compreender a temática indígena. Superar desinformações, equívocos e a ignorância que resultam em estereótipos e preconceitos sobre os povos indígenas, reconhe-cendo, respeitando e apoiando os povos indígenas nas reivindicações, conquis-tas e garantias de seus direitos e em suas diversas expressões socioculturais.

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A efetivação dessa Lei, além de mudar antigas práticas pedagógicas pre-conceituosas, favorecerá novos olhares para a História e a Sociedade. Na nossa sociedade a escola tem papel privilegiado na formação humana, buscando res-ponder às demandas sociais. Ainda que se levem em conta as dificuldades e os desafios presentes nos processos de ensino-aprendizagem, no fazer pedagógi-co, a escola é um lócus onde a efetivação da Lei possibilitará viabilizar “espaços que favoreçam o reconhecimento da diversidade e uma convivência respeitosa baseada no diálogo entre os diferentes atores sociopolíticos, oportunizando igualmente o acesso e a socialização dos múltiplos saberes”.6 Assim, contribuirá para a formação de cidadãos críticos, possibilitando o reconhecimento das diferenças socioculturais existentes no Brasil, o reconhecimento dos direitos da sociodiversidade dos povos indígenas.

Sugestões bibliográficas e de conteúdos para o estudo da temática indígena

O ponto de partida para o ensino crítico da temática indígena consiste em considerar sempre a atualidade dos povos indígenas. Ou seja, por meio de usos de mapas para localização dos povos indígenas atuais, desvincular a ideia de passado colonial em que todos os índios supostamente foram exterminados. O Censo do IBGE/2010 contabilizou a população indígena no Brasil em cerca de 900 mil indivíduos – os que se autodeclararam índios.

Um segundo ponto é a ênfase nas sociodiversidades indígenas, desmisti-ficando imagens genéricas do ‘índio’, da chamada ‘cultura indígena’. É preciso discutir as diferentes expressões socioculturais indígenas no passado e no pre-sente, questionando a clássica dicotomia ‘Tupi’ versus ‘Tapuia’. Sugere-se, por exemplo, utilizar fotografias para demonstrar as sociodiversidades dos povos indígenas no Brasil.

Um terceiro aspecto a ser estudado consiste em evidenciar a participação efetiva dos povos indígenas nos diversos momentos históricos ao longo da História do Brasil, desnaturalizando a ideia equivocada da presença do ‘índio’ apenas na época do ‘Descobrimento’ ou somente na ‘formação do Brasil’. Ou seja, problematizando o lugar pensado e o ocupado pelos povos indígenas na história do país.

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É preciso promover momentos de intercâmbio entre os povos indígenas e os estudantes durante o calendário letivo, por meio de visitas previamente pre-paradas do alunado às aldeias, bem como de indígenas às escolas. Essa ação deve ser desenvolvida sobretudo nos municípios onde atualmente habitam po-vos indígenas, como forma de buscar a superação dos preconceitos e as discri-minações. Vale ressaltar que as visitas não devem se constituir como meras apresentações folclóricas, mas como espaços de diálogos e aprendizagens.

Finalmente, é preciso discutir e propor o apoio aos povos indígenas por meio do estímulo ao alunado para a realização de abaixo-assinados, cartas às autoridades com denúncias e exigência de providências diante de violências, assassinatos de lideranças indígenas etc. Estimularemos, assim, por meio de manifestações coletivas na sala de aula, o apoio às campanhas de demarcação das terras e à garantia dos direitos dos povos indígenas.

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POMPA, Cristina. Religião como tradução. São Paulo: Edusc, 2003.RICARDO, Carlos Alberto; RICARDO, Fany (Org.). Povos indígenas no Brasil:

2006/2010. São Paulo: Instituto Socioambiental – ISA, 2011.SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawal Leal (Org.). Antropologia, História

e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Global, 2001.

Indicações de sites:

Índio Educa: www.indioeduca.orgTema indígena: temaindigena.blogspot.comÍndios on line: www.indiosonline.net Índios no Nordeste: www.indiosnonordeste.com.br Instituto Socioambiental: www.isa.org.br Conselho Indigenista Missionário – Cimi: www.cimi.org.br Os índios na História do Brasil: www.ifch.unicamp.br/ihb

NOTAS

1 GRUPIONI, Luís Donizete Benzi; SILVA, Aracy Lopes da. (Org.). A temática indígena na escola. 4.ed. São Paulo: Global, 2011. p.56.2 BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: MEC/Secad; Rio de Janeiro: Museu Nacio-nal/UFRJ, 2006. p.47.3 Adaptado de ISA – Instituto Socioambiental. Povos indígenas no Brasil: 1987-1990. São Paulo, 1989.4 GOMES, Nilma L. A questão racial na escola: desafios colocados pela implementação da Lei 10.639/2003. In: MOREIRA, Antonio F; CANDAU, Vera M. Multiculturalismo: dife-renças culturais e práticas pedagógicas. 2.ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2008. p.67-89.5 ALMEIDA, Maria R. C. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010.6 SILVA, Maria da Penha da. A temática indígena no currículo escolar à luz da Lei 11.645/2008. Cadernos de pesquisa, São Luís, UFMA, v.17, n.2, p.39-47, maio-ago. 2010.

Artigo recebido em 15 de julho de 2012. Aprovado em 12 de setembro de 2012.

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Espaço e tempo como dimensões do conhecimento e objeto de ensino-aprendizagem em História

Space and time as knowledge dimensions and object of teaching-learning in History

Carlos Augusto Lima Ferreira* Edicarla dos Santos Marques**

ResumoO artigo analisa a temática espaço-tem-po, fundamental no processo de ensino--aprendizagem de História, e suas im-plicações no cotidiano da sala de aula. Essa discussão torna-se ainda mais ne-cessária no atual contexto de inserção contínua das Novas Tecnologias da In-formação e Comunicação (NTIC) nos ambientes escolares, as quais modificam a prática docente e as formas de apreen-são das noções de espaço e tempo. Co-mo as novas espacialidades dos ambien-tes virtuais, das redes sociais, e as atuais compreensões temporais desencadeadas pelas configurações tecnológicas que emergem do nosso cotidiano têm altera-do as percepções dos sujeitos em relação ao conhecimento histórico? Propomos uma reflexão sobre as práticas docentes associadas a essas percepções num mo-mento em que as regras impostas por uma sociedade cada vez mais digital (re)dimensionam o fazer histórico. Palavras-chave: tempo; espaço; ensino--aprendizagem de História.

AbstractIn this text, we seek to elaborate on the subject of space-time, fundamental in the process of teaching and learning of his-tory and its implications on daily class. This discussion becomes even more nec-essary in the current context of continu-ous insertion of New Information and Communication Technologies (ICTs) into the school environments, which modify the teaching practice and the ways the notions of space and time are apprehended. How have the new spatiali-ties of virtual environments, social net-working, and the current understanding of time, triggered by the technological settings that emerge from our daily lives, changed the perceptions of the subjects with regards to historical knowledge? We propose a reflection on the teaching practices associated to such perceptions, especially nowadays, when the rules im-posed by an increasingly digital society (re)dimension the making of history. Keywords: time; space; History Tea-ching-Learning.

*Departamento de Educação, Graduação e Mestrado em História, Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Av. Transnordestina, Novo Horizonte. 44036-900 Feira de Santana – BA – Brasil. [email protected] ** Departamento de Educação, Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e Rede Pública Estadual de Ensino da Bahia. Av. Transnordestina, Novo Horizonte. 44036-900 Feira de Santana – BA – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 227-246 - 2012

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A discussão sobre tempo e espaço é um ponto fundamental para o ensino de História e faz parte do nosso cotidiano, contribuindo para a compreensão da realidade vivida e das noções sobre a História. Muitos autores já discutiram essas dimensões numa perspectiva histórica.1 Fernand Braudel2 discorreu sobre as apreensões temporais em curta, média e longa duração. Já E. P. Thompson3 se deteve nos marcadores do tempo e, de algum modo, nas novas formas de concepção temporal e estratégias de controle do tempo/trabalho instauradas pelas sociedades modernas. Sabe-se, sobretudo, que esse é um diálogo profícuo no meio historiográfico. Esse debate, todavia, ainda pouco alcança o espaço das salas de aula.

Nesse sentido, apresentamos a presente discussão numa tentativa de tra-zer de modo simples um tema relativamente complexo, pelas dimensões abs-tratas que o perpassam. O nosso objetivo é aproximar essa problemática do lócus da sala de aula, direcionando o presente texto aos professores do ensino básico, levando-os a refletir sobre como os referenciais espaço-temporais, tra-zidos pelos alunos de suas vivências cotidianas extraescolares, podem dialogar com outros referenciais que os auxiliem na construção de conhecimentos his-tóricos. Para tanto, buscamos analisar, ainda, as formas pelas quais o professor de História pode possibilitar leituras sobre tempo e espaço que se diferenciem das abordagens recorrentes nos livros didáticos (positivistas e/ou marxistas estruturalistas) e mesmo afastar-se das práticas que incorporaram equivoca-damente as contribuições da História Nova.

Essa temática torna-se ainda mais importante com o acelerado processo de desenvolvimento das Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTIC), o qual desencadeou um novo período histórico da civilização humana: a sociedade da informação. Nesse ínterim, as discussões sobre tempo e espaço, no âmbito escolar, devem estar pautadas também na dimensão tecnológica que assume o cotidiano e nas várias implicações dessa mudança.

Nós, professores de História, consideramos fundamental refletirmos sobre as implicações das questões expostas na nossa prática diária do ensino de His-tória. Temos sabido trabalhar com essas noções imediatas do tempo presente, frequentemente dissociadas, pelos alunos, do conhecimento histórico? Como as novas compreensões espaciais têm participado das nossas aulas? São ques-tões que propomos para autorreflexão sobre o ensino de História.

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As primeiras referências sobre tempo e espaço

Quando ingressa na escola, a criança traz uma série de experiências que já lhe permitiram dar início à construção das relações espaciais, além de já possuir uma visão própria do mundo e da sociedade na qual está inserida. A construção da noção de espaço, pela criança, passa por uma série de etapas, algumas das quais acontecem espontaneamente e outras exigem uma sistema-tização que deve ocorrer nas séries iniciais do ensino fundamental.

Antes mesmo de ser capaz de representar o espaço, a criança já consegue percebê-lo graças ao contato com os objetos, utilizando os sentidos. Ou seja, num primeiro momento, o espaço da criança é um espaço de vivência (ação): compõe-se dos lugares onde mora, passeia e brinca e dos objetos que aí existem e que ela utiliza. A criança percebe o espaço por meio de seu próprio corpo; assim, as relações espaciais desenvolvem-se e tornam-se mais complexas à medida que ela amplia seu espaço de ação. Quando começa a engatinhar, a criança tem a tendência de se agarrar aos móveis, ficar de pé e apanhar objetos cujo acesso era anteriormente dificultado, visto que ela dependia de outras pessoas para se deslocar. À medida que a criança aprende a andar, subir esca-das e correr, ela vai ampliando cada vez mais seu espaço de ação. Seu mundo vai ‘crescendo’ com ela. A escola é um dos primeiros ambientes exteriores à sua casa onde a criança constrói as primeiras percepções sobre o tempo/espaço. María Jesús Comellas Carbó, em seu trabalho sobre as habilidades básicas da aprendizagem, afirma que

podemos defender que una educación vivenciada que utilice sistemáticamente el descubrimiento progresivo de las nociones fundamentales y de sus múltiples combinaciones, que explote todas las posibilidades de expresión simbólica y grá-fica para ir hacia el descubrimiento de la abstracción, será un buen camino que lleve al niño hacia una maduración y hacia la adquisición de unos aprendizajes, previniendo posibles dificultades o trastornos que puedan derivarse de una in-madurez o falta de dominio en esta área.4

Na escola, é comum solicitarmos à criança que represente (desenhe) de-terminado espaço – a sala de aula, por exemplo. Os resultados são registros daquilo que a criança percebeu nesse espaço, e o que ela representa deve ser analisado levando-se em conta as relações que ela estabelece com o meio.

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Muitas vezes as relações sensíveis (emocionais) interferem em sua expressão, tendo como resultado desenhos nos quais se observam exageros e/ou omissão de detalhes. As interações com esse espaço é que possibilitarão o enriqueci-mento dessa noção, que é elaborada mediante vivências significativas. Porém, essas crianças ainda são pouco estimuladas a pensarem sobre os tempos e/ou espaços na perspectiva dessas balizas como construções humanas; antes disso, são condicionadas a assimilarem as concepções ‘corretas’.

Sobre esse aspecto assinalou Tomoko Paganelli:

A escola, ao invés de oferecer às crianças atividades como, por exemplo, exercí-cios de lateralidade, psicomotores (pular, saltar, correr, rasgar papéis, etc.), co-nhecimento do seu próprio corpo, que a ajudarão a firmar essas noções, além de as prepararem para elaborar noções projetivas (o espaço perceptivo, percebido) e euclidianas (espaço concebido, representado), nos anos subsequentes, acaba por propor atividades como dar os limites do município, os principais rios, colorir e preencher mapas, que elas ainda não têm maturidade psicogenética para realizar, truncando todo esse processo de construção espaço-temporal. (1987, p.22-27)

Na Educação Infantil e no Ensino Fundamental I a criança constrói as primeiras noções de tempo e espaço que a auxiliarão no desenvolvimento de uma percepção acerca do conhecimento histórico. Sabemos, sobretudo, que o professor de História, em específico, possibilita que a criança modifique vivên-cias cotidianas sobre tempo e espaço e construa novas noções. Entretanto, essas novas construções poderão estar pautadas em epistemologias de ensino que não levem em consideração os referenciais dos alunos construídos no seu co-tidiano. São os professores de História os primeiros responsáveis pela articu-lação entre os saberes trazidos à escola pelos alunos e os saberes a serem cons-truídos necessários à configuração de uma compreensão sobre o conhecimento histórico.

Entretanto, a prática dos professores de História, principalmente os de 6o e 7o anos do ensino fundamental, tem se revelado frágil, no que tange à com-preensão do espaço e do tempo de forma histórica. Quanto a este último, é substancial o número de atividades docentes que se tornam simples cronologia acerca da História das civilizações, a linha do tempo, no dizer de Edgar De Decca, o ‘varal do tempo’. Como reflexo, os alunos dessas séries demonstram dificuldade para compreender as noções espaço-temporais. Porém, esse

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mesmo ‘varal’ pode ser ressignificado na prática docente e utilizado de tal modo que outras noções de tempo possam ser compreendidas, como veremos um pouco mais à frente.

Observamos que o ensino de História praticado em escolas da educação básica, via de regra, pouco tem conseguido fazer para que o aluno perceba a relação entre os fenômenos sociais ocorridos no passado e no presente. Isso ocorre em função da postura teórica assumida pelos professores que é, quase sempre, uma postura marcadamente marxista estruturalista – na qual os su-jeitos praticamente desaparecem em meio às estruturas – e/ou positivista. A prática de ensino positivista aborda os fatos e o tempo histórico em uma se-quência linear, cronológica e estanque, com grandes heróis e alguns fatos re-levantes. Para essa corrente, o ensino de História é um fim em si mesmo e serve para “moldear la conciencia colectiva de la sociedad y la conciencia temporal de la ciudadana”.5

Impor aos jovens uma representação ‘correta’ no momento em que ele está construindo a noção de tempo e espaço só tende a inibir a própria expres-são em relação às categorias. Ao buscar representar o meio, os jovens estão estabelecendo um diálogo com a realidade, e o enriquecimento dessa lingua-gem se dá de modo processual, desde que eles estejam sempre movidos em seu interesse. É sempre em relação aos sujeitos que vivenciam o tempo e fazem uso dos espaços que eles devem existir. Tomemos nossos alunos como referências. O trabalho com situações vivenciadas e aplicadas à sala de aula contribui para o processo de desenvolvimento mental, o que facilita a construção de novos conceitos, oportunizados pelo professor nos espaços escolares.

Ernesta Zamboni e Sandra Regina Ferreira de Oliveira, por exemplo, ana-lisaram algumas dessas apreensões sobre os aspectos espaço-temporais estru-turantes da realidade escolar e perceberam como estes interferem na consti-tuição das competências cognitivas dos alunos ao observarem empiricamente duas salas de 3a série do ensino fundamental. As autoras direcionaram o foco investigativo para a organização espacial das salas de aula, bem como para as identidades dos alunos constituídas em relação aos usos dos ambientes esco-lares. Elas identificaram que:

A apropriação do espaço físico é importante para os alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental, porque possibilita, dentre outras coisas, a exposição de tra-

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balhos realizados, a partir dos quais a professora pode estabelecer relações entre diferentes assuntos que são abordados no decorrer do ano. O espaço físico da sala de aula também pode ser utilizado para expor os acordos coletivos realizados em sala de aula e com os quais todos têm compromisso. Desta forma, as paredes de uma sala de aula podem, ou não, ser uma espécie de memória da turma.6

No que diz respeito ao tempo, as autoras focalizaram as atividades desen-volvidas em sala de aula relacionadas aos aspectos de “sequência, ordenação, simultaneidade, linha do tempo, calendário, cronologia, passado, presente e futuro” (Zamboni; Oliveira, 2009, p.123). Também identificaram que as ativi-dades não incluíam antecipação do que seria feito, e quando uma combinação prévia do tempo das atividades existia, este não era cobrado pelas professoras. Ainda observaram que os relógios de ambas as salas, bem como de todas as outras salas da escola, com exceção dos relógios da sala dos professores e da cozinha, não funcionavam. Assim, concluíram:

As relações temporais que se estabelecem nestas salas de aula são marcadas pelo tempo vivido, relacionado somente com o presente e marcado por situações ex-ternas, como a hora da merenda. Não se encontra, na prática cotidiana, assim como no trabalho com a História, nenhuma proposta pedagógica que leve o alu-no a trabalhar com antecipações sobre o que vai se fazer e em que tempo, o que seria uma ponte para a compreensão do tempo da intenção. Assim sendo, é ex-plicável a dificuldade que muitos demonstram em trabalhar com linhas do tem-po ou calendários. (ibidem, p.126)

Interessaram às autoras as formas pelas quais as crianças aprendem e se relacionam com o tempo, a partir das formas de organização do tempo escolar. Porém, ao atribuírem o controle do tempo às merendeiras, por intermédio do sinal para o lanche, e considerarem essa prática como uma situação ‘externa’, inviabilizaram uma análise sobre outras formas de compreensão temporal, diferentes daquelas relacionadas com a exclusividade do uso dos relógios ou marcadores oficiais do tempo.

Acreditamos que as relações temporais, obviamente, não podem dialogar apenas com as dimensões do tempo presente (como o tempo imediato da merenda), todavia devem também estabelecer relações com outras lógicas de organização do tempo, diferentes daquela compreensão instaurada pelas dis-ciplinas de trabalho das sociedades modernas (Thomsom, 1998). Pensar o

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mundo historicamente é também pensá-lo sob outras lógicas de organização temporal, como a hora do lanche, e isso não nos parece ser um elemento ex-terior aos sujeitos da aprendizagem.

Alguns referenciais de tempo e espaço a serem considerados na compreensão do conhecimento histórico

É justamente com o apoio de outras correntes historiográficas como a História social inglesa, a História das mentalidades e a História cultural que o ensino de História tem atuado de uma forma que supere, por exemplo, dimen-sões positivistas, levando à problematização e compreensão do processo his-tórico, permitindo que os estudantes se localizem historicamente no seu pre-sente de forma a intervir na construção do seu futuro individual e social.

O conhecimento historiográfico sobre as temporalidades e espaços é es-sencial para a formação e visão do aluno sobre o processo histórico, principal-mente numa perspectiva de Educação Histórica, tal como assinalaram Maria Auxiliadora Schmidt e Isabel Barca.7 Para superar a fragilidade da abordagem acerca do espaço-tempo, os docentes podem realizar atividades teórico-práti-cas que desenvolvam no aluno a curiosidade para fazer, vivenciar e construir o conhecimento. É sempre importante lembrar que o tempo, enquanto abstra-ção teórica, só existe e pode ser significado em sua relação com algum referen-cial. O referencial principal, a ser considerado no ambiente escolar, deve ser sempre o aluno, seu tempo, seu espaço, seu contexto, isso antes de qualquer proposição didática sobre as noções pretendidas.

Práticas simples podem dar direcionamentos enriquecedores às aulas. Situar os alunos, por exemplo, em relação aos conteúdos que serão trabalhados auxilia na construção desses referenciais. Transformar séculos em gerações, ou um século em uma senhora centenária, leva os alunos a terem outras per-cepções sobre as distâncias que os separam de determinados acontecimentos, pois eles conhecem senhoras centenárias e saberão estabelecer relações de pro-ximidade/distanciamento com os conteúdos estudados.

Outra iniciativa válida é perguntar aos estudantes onde eles acham que os seus ancestrais estavam, o que faziam e como reagiram a determinado acon-tecimento. Esse exercício de imaginação histórica contribui para que essa re-lação com o tempo dos alunos, vivo, possa direcionar-se sobre o tempo das

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gerações que lhes foram anteriores. Em igual medida, também é positivo esta-belecer essa aproximação entre tempos e espaços com base em experiências individuais, em suas dimensões coletivas. Sujeitos como Mahommah Gardo Baquaqua,8 Chica da Silva,9 ou ainda Zumbi dos Palmares,10 na temática das trajetórias de populações negras na diáspora e suas vivências no contexto da escravização, são ótimos links para que sejam estabelecidas relações de aproximação.

Para isso, é importante, ainda que aparentemente démodé, situar os alunos numa linha do tempo, pois foram os usos inadequados que transformaram essa linha na grande vilã das salas de aulas, após as principais tentativas de incorporação no ensino básico das mudanças epistemológicas pelas quais pas-sou a produção do conhecimento histórico no século XX. A retomada dessa alegoria metodológica, a linha do tempo, ainda pode auxiliar-nos, enquanto professores de História, a conectar os sujeitos às historicidades e temporalida-des das trajetórias humanas. Isso evitaria, em alguma medida, que algumas incoerências temporais fossem geradas pelos maus usos e leituras da História Nova, em especial pelos riscos deterministas da História Temática, ou, como assinalou Jacques Le Goff (1983), “A História Nova em fatias é a pior das Histórias”.11

Os riscos dessa falta de referenciais temporais podem ser percebidos por todos aqueles que trabalham no ensino básico, basta solicitar aos alunos que situem determinado acontecimento no seu respectivo século e, assim, saberão concretamente do que estamos falando. A falta de preocupação com datas/marcos históricos não torna as aulas menos tradicionais, talvez um pouco mais confusas, mas a abolição desses referenciais em nada assegura que as aborda-gens dos conteúdos ocorram de modo problematizador. Sujeitos, Experiências, Cultura, Gênero, Cotidiano, Identidades, Representações, Práticas e Poder, todas estas demandas podem dialogar com os marcadores tradicionais do tempo.

A linha do tempo também pode ser utilizada e apreendida de outras for-mas. Pode ser flexível, tensionada, pode abranger movimentos dos mais diver-sos que nos auxiliem em sala de aula no processo de desnaturalização das atuais compreensões de tempo, fixas. Uma linha do tempo flexível contempla, repre-sentativamente, os processos de continuidades e descontinuidades que perpas-sam os fazeres históricos.

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A aprendizagem com mapas é essencial para o estudante de História no reconhecimento do espaço, o qual pode ser o seu entorno, a cidade, estado e/ou país. Não raramente, os alunos associam as atividades com mapas às aulas de geografia. Essa aprendizagem deve respeitar dois aspectos básicos: o traba-lho com o espaço de ação (vivenciado) mais próximo dos estudantes e a cons-trução dos mapas pelos próprios sujeitos. Ao introduzir o trabalho de mapea-mento de espaços de vivências do aluno, é importante que o professor tenha oportunizado ao menos uma ampla discussão e um grande número de expe-riências/atividades envolvendo não só a noção de espaço, mas também a ne-cessidade de orientação (onde estamos, para onde nos deslocamos, qual o lugar que vou estudar).

O ensino de História deve ampliar, portanto, as possibilidades de utiliza-ção dos mapas, por entender que a História trabalha, fundamentalmente, com essas duas vertentes, tempo e espaço, bem como deve utilizar o tempo crono-lógico para situar o estudante na linha do tempo – mediante calendários e datas – sobre os fenômenos e fatos históricos, concomitantemente com um processo de ensino-aprendizagem que permita ao aluno identificar diferentes níveis e ritmos de durações temporais.

Os níveis das durações temporais dos acontecimentos históricos estão “relacionados à percepção das mudanças ou das permanências nas vivências humanas”.12 Os ritmos de duração temporal permitem identificar a velocidade das mudanças ocorridas e podem ser entendidos como breves (quando a du-ração do fato corresponde apenas a um momento pontual, expresso por uma data, como nascimento ou morte de determinada pessoa histórica), conjuntu-rais (fenômeno que se estende durante certo período e que marca a vida dos indivíduos desse tempo, como o período de uma guerra ou de uma crise eco-nômica) e, por fim, estrutural (mudanças nas estruturas são imperceptíveis para a sociedade local no decorrer desse período de longa duração, como o período no qual vigora certa forma de organização familiar ou ainda um sis-tema de produção e de relação de trabalho) (MEC, 1997).

Esses ritmos temporais podem parecer difíceis ou inacessíveis aos nossos alunos do ensino básico, mas a demonstração de Fernand Braudel sobre o evento, por exemplo, traduz uma complexa compreensão de tempo numa sim-ples metáfora que pode, sim, ser utilizada didaticamente como modo de per-ceber aspectos peculiares do tempo histórico:

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Guardei a lembrança, uma noite, perto da Bahia, de ter sido envolvido por um fogo de artifício de pirilampos fosforescentes; suas luzes pálidas reluziam, se ex-tinguiam, brilhavam de novo, sem romper a noite com verdadeiras claridades. Assim são os acontecimentos: para além de seu clarão, a obscuridade permanece vitoriosa. (Braudel, 1992)

Assim, um acontecimento histórico, localizado no tempo e no espaço, pode ser compreendido pela análise integrada das diversas conjunturas que exercem influência sobre o fato, bem como do processo estrutural no qual este está inserido, examinando-o ao longo de uma temporalidade mais extensa. Essas dimensões temporais podem ser relacionadas às durações apreendidas por Braudel – curta, média e longa.

Ainda em relação ao olhar e olhares dos historiadores sobre os fatos his-tóricos, Norbert Elias, em sua obra Sobre el Tiempo, sintetiza:

Como práctica ordinaria y profesionalmente aceptada, los historiadores aplican a grupos e individuos del pasado, todos los criterios posibles que sirvan para juz-gar a los contemporáneos. No es nada raro encontrar historiadores que sientan en el banquillo de los acusados a hombres indefensos de otras épocas y los juzgan según sus valores del tiempo presente. Transmiten así la impresión de que entre la prehistoria y el presente no existiesen diferencias esenciales ni hubiesen ocur-rido cambios en las fases de desarrollo anteriores.13

Para um ensino de História que considere os aspectos espaço-temporais como elementos de construção da compreensão de mundo, mister se faz dotar de sentido esse ensino, visto que é graças a ele que o aluno constrói uma visão global de uma sociedade complexa em permanente mudança no tempo, numa dimensão mais abrangente e plural do mundo. A relação recorrente que se pretende entre passado e presente, no ensino de História, não corresponde à construção de análises anacrônicas, pelo simples fato de tomarmos o imediato como referência, tal como assinalou Marco Silva.14 Tomemos os conceitos de democracia e cidadania – eles não permanecem na atualidade com acepções iguais às da Antiguidade Clássica. Quando tomamos o imediato como refe-rência, estimulamos os alunos a desenvolverem percepções sobre as mudanças e, neste aspecto, não incorremos no risco do anacronismo, apenas estabelece-mos relações significativas com as experiências do passado.

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Enfim, o ensino de História com base nestas considerações possibilita que

los alumnos comprendan que los hechos históricos, y su temporalidad son cons-trucciones hechas por los historiadores y que estos mismos pueden ser construi-dos e interpretados de manera diferente por otros historiadores y por los ciuda-danos. En consecuencia, la enseñanza de la historia supone implicarles en la aventura del saber y del saber hacer propio del trabajo historiográfico, y, en esta aventura, la construcción de la temporalidad es fundamental.15

Como fazer que os alunos compreendam esse tempo histórico como cons-trução historiográfica, humana? Talvez os saberes e referenciais dos alunos possam nos fornecer algumas possibilidades para a realização dessa tarefa.

Aplicada uma avaliação escrita para uma turma de 9o ano, em que uma das perguntas era “Como você percebe o tempo histórico em sua vida?”, as principais referências de tempo para esses alunos estavam associadas às se-guintes noções: mudanças, marcas, inovações, lembranças, passado, futuro, vida, gerações, crescimento, nascimento e envelhecimento. Compreensões que, embora reconheçam as relações entre passado/presente/futuro e, em alguma medida, apresentem a ideia de mudança, ainda estão associadas a um tempo muito recente, marcado pelas mudanças de gerações, nascimento, envelheci-mento, quase que uma leitura naturalizada do tempo. Os aspectos da vida cotidiana dignos de serem ‘lembrados’ também constituem essa História apreendida pelos alunos. As percepções em longa e média duração, por exem-plo, parecem ser pouco notadas.

O imediato como referência deve, sim, fazer parte das elaborações histó-ricas, mas, associadas a ele, devem ser inseridas outras dimensões que consti-tuem o tempo histórico. Nesse sentido, antes que essas dimensões temporais trazidas pelos alunos sejam descartadas, faz-se necessário construir, com base nesses referenciais, outras formas de perceber o tempo. Um aluno disse que o tempo histórico ‘passa mesmo quando estou dormindo’, ou seja, é um tempo que é exterior aos sujeitos, às suas ações e vontades.

Portanto, para além das abordagens de tempo com os recursos tradicio-nais, podem ocorrer discussões acerca dos marcadores do tempo, por exemplo (calendários, relógios, linhas do tempo). Já que o tempo histórico apontado por muitos não apresentava uma dimensão criada pelos homens, então pode-mos discutir esses referenciais trazidos pelos próprios. Para além das

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tradicionais referências de percepção/marcadores do tempo, não devemos ficar alheios a marcadores inusitados, como o espelho, citado por uma aluna como um dos marcadores do tempo – apenas ao olhar-se no espelho ela dizia perce-ber o tempo. Descartar essas referências não nos parece ser a atitude mais adequada, pois o entrecruzamento de referências possibilita a apreensão do tempo como construção humana.

É necessário que o tempo histórico seja considerado em toda sua comple-xidade, abarcando as vivências pessoais – pelas modificações temporais bioló-gicas (nascimento, crescimento, envelhecimento) e psicológicas (mudanças internas) de cada um – bem como percebendo esse tempo como uma resul-tante da produção social das civilizações ao longo de diferentes lugares e mo-mentos, ou seja, como um Objeto da cultura. É da cultura que nascem concep-ções de tempo tão diferenciadas como o tempo mítico, escatológico, cíclico ou cronológico, noções16 sociais criadas pelo homem para representar as tempo-ralidades naturais, expressas nos tempos geológico e astronômico.17

Novas apreensões temporais instauradas pelas NTIC

Em nossa sociedade, nos dias de hoje, o tempo é um tempo de ritmo acelerado, tempo das descobertas científicas, da relação capital-trabalho-pro-dução, de cada sociedade que dá o compasso do cotidiano, estabelecendo-se por vários meios: percepção, reflexão e maneira pessoal de sentir e viver. Os seres humanos devem ser levados a perceberem que o passado está presente na sua vida atual, visto que as experiências acumuladas, somadas às transfor-mações biológicas, psicológicas e sociais por que passam, resultam no que são e no que vivem no presente.

Nesse caso, não se considera que a vida pregressa está separada do mo-mento atual e do futuro; a pessoa tem a clara percepção de que tudo o que ela é no presente é fruto do já vivenciado: seus conhecimentos adquiridos na pri-meira infância, sua aprendizagem no seio familiar, os estudos na escola, as brincadeiras, as competições nos esportes, o ingresso no mundo do trabalho, a formação de sua própria unidade familiar, tudo está integrado e resulta na sua capacidade de perceber o mundo e na sua forma de projetar o futuro. As-sim, no plano individual não há separações formais entre o passado, o presente e o futuro.

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Acerca da relação entre passado, presente e futuro, Joan Pagès diz que:

Los hechos y los fenómenos sociales tienen sus raíces en el pasado y se proyectan ineludiblemente hacia el futuro. Por eso el presente constituye una franja tempo-ral muy débil, muy etérea, de límites imprecisos, que necesita del pasado para concretarse, pues éste es el único que ya ha sido. Sin embargo, el pasado sin el presente carecería de valor ya que la explicación que de éste da aquél es el resulta-do, es el fruto, de los problemas y de los interrogantes que el hombre tiene sobre su propio tiempo y sobre el futuro. Es esta relación dialéctica entre el pasado, el presente y el futuro lo que da sentido a la temporalidad dialéctica. (Pagès, 2004)

Em consequência disso, os docentes têm se deparado com uma realidade desafiadora no que diz respeito ao contexto das aulas do ensino básico, pois os estudantes lidam cotidianamente com novas linguagens e novas percepções de espaço e tempo advindas das tecnologias que alteram a sua percepção das próprias categorias. Em vez de utilizarmos essas novas percepções em sala de aula, associadas às nossas práticas de ensino de História, temos nos limitado à inserção de novas linguagens, como a fílmica e a iconográfica, mas pouco dialogamos com essas outras dimensões de tempo e espaço.

Muitas vezes as novas tecnologias são utilizadas apenas como recursos e quase nunca problematizadas como um fenômeno que modifica as próprias noções de tempo e espaço dos alunos. Uma ótima alternativa seria fazer uso dessa destituição dimensional, de espaço e tempo, que a virtualidade condi-ciona e à qual os alunos estão familiarizados, para estabelecermos links entre o tempo presente dos alunos e os acontecimentos no tempo passado. As pos-sibilidades de trânsito entre espaços e o alargamento das noções de tempo, marcadas pelo fato de irmos de um espaço a outro sem que seja preciso sair de casa, e em tempo real, são terreno fértil para sugerirmos aos nossos alunos passeios por outras temporalidades.

Essas outras percepções de espaço, tempo e linguagens, advindas das tec-nologias, impõem uma nova realidade que se apresenta, segundo Vani Moreira Kenski, em dois aspectos:

O primeiro diz respeito aos procedimentos realizados pelo grupo de alunos e pro-fessores no próprio espaço físico da sala de aula. Neste ambiente, a possibilidade de acesso a outros locais de aprendizagem – bibliotecas, museus, centro de pesquisas,

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outras escolas etc. com os quais alunos e professores podem interagir e aprender – modifica toda a dinâmica das relações de ensino-aprendizagem. Em um segundo aspecto, é o próprio espaço físico da sala de aula que também se altera.18

Embora a escola atual permaneça em descompasso com as rápidas mu-danças sentidas na sociedade, é certo que as NTIC vêm influenciando o pro-cesso de ensino-aprendizagem. O professor, embora atento a essas mudanças, ainda não modificou epistemologicamente a sua prática, apenas tem alterado metodologicamente as aulas. Exibições de vídeos, documentários, filmes ou iconografias, com direcionamentos que reproduzem os mesmos questiona-mentos das tradicionais aulas de História, o conteúdo pelo conteúdo, não es-timulam nos alunos o interesse pelo conhecimento histórico.

Para integrar as NTIC no mundo escolar é necessário que o professor tenha conhecimento das suas potencialidades com base na ação e nas práticas educativas. Em vez de partir de um esquema ‘preestabelecido’ para aplicar à ‘realidade posta’, procura-se relacionar a teoria e a prática a partir da implica-ção dos sujeitos no ambiente educacional. Uma possibilidade dessa articulação tem sido a elaboração de Objetos Digitais de Aprendizagem,19 em formatos que, quando bem concebidos, inserem dimensões interacionistas aos conteú-dos históricos lecionados em salas de aula. Esses Objetos são ótimos exemplos de mudanças metodológicas acompanhadas de mudanças epistemológicas no ensino de história, pois alteram o tipo de relação que é estabelecida entre os conteúdos e os sujeitos do conhecimento. No que se refere ao estudo baseado em Objetos de Aprendizagem e sua importância para o estudante, Paixão (2012, p.7) diz que:

Na construção do conhecimento os objetos de aprendizagem têm como diferen-cial uma nova forma de comunicar o conteúdo, provocando o estudante para se debruçar sobre a pesquisa. Nesse processo, o estudante elabora outras formas de apropriação desse conhecimento.20

Nesse sentido, um aspecto importante advindo da relação entre tecnolo-gias e ensino de História refere-se às novas compreensões de espaço e tempo que o mundo tecnológico instaura. A dimensão espaço-temporal se modifica no espaço virtual, trazendo para o ensino de História o entendimento do que se dá no entorno dos sujeitos. Segundo Eduardo José Reinato,

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No cyberespaço o espaço é destituído de dimensão. Primeiramente, não é consi-derado um espaço físico, ele é virtual ... O tempo por sua vez em relação ao espa-ço toma uma outra dimensão ... superpõe-se ao espaço. O tempo real em que transito no cyberespaço, ainda que o faça de forma virtual, é marcado pelo fato de que vou de um espaço ao outro sem sair da frente do meu computador ... em tempo real e sem sair de casa. Assim, o cyberespaço acaba por construir um mundo espacial paralelo.21

Sabemos que é quase impossível relacionarmo-nos com as percepções temporais nas sociedades modernas sem que, para isso, o diálogo com as tec-nologias seja estabelecido. O relógio é uma dessas tecnologias, mas não a única. Sabemos que as NTIC têm possibilitado, continuadamente, que cada indivíduo possa construir e alterar a sua identidade pertencendo a vários grupos ao mes-mo tempo – aqui temos a ampliação dos referenciais de tempo/espaço. Novos laços de comunidade criam-se com as NTIC. Mas o real e o imaginário mis-turam-se, pois existe um novo modo de ver, sentir, pilotar e organizar a reali-dade. Nesse novo mundo, a pessoa entra em contato e partilha, mas permanece ‘no seu mundo’, não se preocupa em construir uma comunidade local.

A sociedade em que hoje vivemos exige, cada vez mais, o uso das tecno-logias, mas estas, por seu lado, modificam a própria cultura criada pelo ho-mem. A aprendizagem carece de interação social e as NTIC permitem um maior acesso à informação, possibilitando o reforço das relações entre sujeitos no espaço e no tempo.

Algumas considerações finais

Para o mundo educativo, e o ensino de História em particular, também se faz necessário perceber e entender a importância do tempo. O tempo repre-senta, assim como o espaço, um aspecto essencial para a construção e com-preensão do processo histórico, tanto no seu aspecto social quanto no indivi-dual. O ensino de História tem papel preponderante no estabelecimento das conexões entre os tempos (passado e presente), para que os estudantes possam formar o conceito de temporalidade e, assim, compreender a dimensão histó-rica da realidade.

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Além disso, o tema ‘espaço e tempo’ – ao fazer parte do contexto da escola – não deveria estar apenas nos conteúdos trabalhados pelos professores, mas integrado ao currículo escolar. Nesse sentido, a concepção de educação histó-rica permite que a escola esteja atenta às epistemologias que permeiam os currículos. Currículo e escola devem situar elementos que sejam propiciadores da construção de referenciais espaço-temporais na sua própria lógica de orga-nização dos conteúdos e da dinâmica do cotidiano escolar. Porém, sabemos que, apesar de essas escolas se encontrarem inseridas numa sociedade da in-formação, as primeiras ainda permanecem organizadas segundo uma lógica que compreende os níveis de ensino, a seriação e as avaliações aplicadas pro-gressivamente, e imprimem uma compreensão de tempo linear, evolutiva e teleológica ao conduzir quase naturalmente a um só tempo, o futuro. Nas atuais configurações curriculares e organizacionais das escolas, como é possível a construção de habilidades/competências cognitivas que insiram outras lógi-cas de tempo e espaço?

Essa integração curricular das percepções de tempo e espaço é apontada por Joan Pagès:

la temporalidad debería formar parte de los objetivos de la enseñanza de las cien-cias sociales y en particular de la historia. Sin embargo, parece bastante evidente que ello no es así en bastantes de los curricula al uso. Al contrario, lo más fre-cuente es que la temporalidad se adquiera de forma espontánea e intuitiva, al margen de la escuela. (Pagès, 1998)

A construção dos conceitos de tempo e espaço pelos estudantes torna-se fácil à medida que eles elaboram o próprio conhecimento, visto que, no decor-rer desse processo, concretizam e sistematizam noções construídas esponta-neamente, podendo, posteriormente, abstraí-las.

Nesse sentido, o professor de História se apresenta como elemento que constrói a relação com o conhecimento histórico, podendo propiciar ao aluno o estabelecimento dos referenciais fundamentais em que assenta essa tomada de consciência do tempo social, estimulando-o a construir o saber histórico pela expressão de ‘opiniões históricas’ na sua linguagem, desde os primeiros anos de escolaridade. Essa construção do pensamento histórico é progressiva e gradualmente contextualizada, em função das experiências vividas dentro e fora da escola. Assim, o aluno estará apto a:

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Temporalidade:

• Localizar acontecimentos da História pessoal e familiar, e da História local e nacional; reconhecer e utilizar, no cotidiano, unidades de refe-rência temporal;

• Aplicar os conceitos de mudança/permanência na caracterização das sociedades que se constituíram no espaço brasileiro em diferentes pe-ríodos; identificar, localizar no tempo e caracterizar alterações signifi-cativas da sociedade brasileira;

• Identificar e caracterizar as principais fases do processo histórico e os grandes momentos de ruptura deste mesmo processo;

• Desenvolver a noção de multiplicidade temporal; distinguir ritmos de processo em sociedades diferentes e no interior de uma mesma socie-dade; estabelecer relações entre passado e presente;

• Explicitar as dinâmicas temporais que impulsionam as sociedades hu-manas, notadamente as permanências, transformações, desenvolvimen-tos, crises, rupturas e revoluções e as contribuições para o mundo con-temporâneo.

Espacialidade:

• Resolver situações que envolvam deslocamentos, localizações, distân-cias e, por associação e comparação, situar-se relativamente a espaços mais longínquos, relacionando-os pelo estabelecimento de ligações de várias ordens;

• Conhecer a localização relativa ao território brasileiro, caracterizando os principais contrastes na distribuição espacial das atividades econô-micas e formas de organização em diferentes períodos, relacionando-as com fatores físicos e humanos;

• Localizar e situar no espaço as diversas formas de representação espa-cial, os diferentes aspectos das sociedades humanas e seus processos, notadamente a expansão de áreas habitadas e os fluxos demográficos, a organização do espaço urbano e arquitetônico, as áreas de intervenção

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econômica, o espaço de dominação política e militar e o espaço de ex-pansão cultural e linguística.

Para os fins propostos, procuramos valorizar a utilização pertinente do conhecimento de acordo com as necessidades e as situações que se apresentem nos processos de sala de aula e/ou fora deles, tornando-se fundamental a or-ganização do ensino-aprendizagem em bases claras e bem definidas, sustenta-das em situações de aprendizagem específicas que possam construir nos edu-candos mapas conceituais que os ajudem a pensar e a usar o conhecimento histórico de forma criteriosa e adequada.22

O estudo do espaço e do tempo na educação básica pode propiciar aos educandos aprendizagens de escuta, observação e investigação, fundamentais para o desenvolvimento cognitivo, crítico e criativo. E, ao promover a união entre a teoria e a prática, o educador ou educadora poderá fazer das suas ati-vidades propostas experiências reais e significativas para cada aluno. Por isso, os conteúdos e atividades devem partir, também, das próprias experimenta-ções, pensamentos e sensações dos educandos.

Levá-los a trabalhar noções de espaço e tempo despertando um olhar sobre as ideias de diferenças, semelhanças, continuidades e permanências é um estímulo à curiosidade, à criação de hipóteses, a questionamentos, à elaboração de estratégias para entender e explicar os acontecimentos históricos e culturais que lhes são apresentados, tornando-se, com base em sua experienciação, su-jeitos reflexivos e autônomos.23

NOTAS

1 A historiografia já direcionou muitas discussões sobre o tempo histórico. Além de F. Braudel e E. P. Thompson, citados, ver Reinhart Koselleck, George Duby e Paul Ricoeur.2 BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva, 1992.3 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.4 CARBÓ, Maria Jesús Comellas. Las habilidades básicas de aprendizaje: análisis e inter-vención. 2.ed. Barcelona: EUB, 1996.5 PAGÈS, Joan; BENEJAM, Pilar (Coord.). Enseñar y aprender ciencias sociales, geografía e historia en la educación secundaria. 2.ed. Barcelona: ICE; Horsori Ed., 1998.6 ZAMBONI, Ernesta; OLIVEIRA, Sandra Regina Ferreira de. O espaço e o tempo no pro-

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cesso de ensinar e aprender História na sala de aula. História Revista, Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Goiás, v.14, n.1, 2009. p.118.7 SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. Aprender História: perspectivas da edu-cação histórica. Ijuí (RS): Unijuí, 2009.8 Em relato autobiográfico Mahommah Gardo Baquaqua registra suas experiências na con-dição escrava e seu itinerário pelas Américas, em que encontramos elementos singulares da memória como suas identificações étnico-religiosas, suas estratégias pela conquista da liberdade e suas vivências na condição de homem livre, além do acentuado vínculo preser-vado com a África. Parte de sua autobiografia, a que se refere ao período em que Baquaqua esteve no Brasil, pode ser encontrada na Revista Brasileira de História: LARA, Silva Hu-nold (Org.). Biografia de Mahommah G. Baquaqua. RBH, São Paulo: Anpuh; Marco Zero, v.8, n.16, mar.-ago. 1988.9 O estudo de Furtado sobre Chica da Silva nos ajuda a desconstruir algumas imagens ins-tituídas pela memória coletiva e que de algum modo diferem da história de vida dos reais sujeitos. FURTADO, Junia. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.10 Sobre a trajetória de Zumbi dos Palmares é importante ver: GOMES, Flávio dos Santos. Zumbi dos Palmares: histórias, símbolos e memória social. São Paulo: Claro Enigma, 2011. (Coleção De olho em).11 Jacques Le Goff (1983), citado por MUNAKATA, Kazumi. Histórias que os livros didá-ticos contam depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 2005.12 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio: história e geografia. v.5. Brasília, 1997.13 ELIAS, Norbert. Sobre el tempo. 2.ed. Mexico: FCE, 1997.14 SILVA, Marcos A. da. História: o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.23.15 PAGÈS, Joan; BENEJAM, Pilar (Coord.). Enseñar y aprender ciencias sociales, geografía e historia en la educación secundaria. 4.ed. Barcelona: ICE; Horsori Ed., 2004.16 PAGÈS, Joan. Aproximación a un currículo sobre el tiempo histórico. In: RODRÍGUEZ F. J. (Ed.). Enseñar historia: nuevas propuestas. Barcelona: Laia; Cuadernos de Pedagogía, 1998.17 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâme-tros Curriculares Nacionais: ensino médio: ciências humanas e suas tecnologias. v.4. Brasí-lia, 1999.18 KENSKI, Vani Moreira. Novas tecnologias: o redimensionamento do espaço e do tempo e os impactos no trabalho docente. Revista Brasileira de Educação, São Paulo: Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação, n.8, maio-ago. 1998.

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19 A esse respeito ver o excelente trabalho de Eremita Tânia Silva da Paixão em: www.iat.educacao.ba.gov.br/objetoseducacionais. Acesso em: 7 set. 2012; tecnologia.iat.educacao.ba.gov.br/banco_de_objetos?title=&type=All&term_node_tid_depth=42&autor=&tid_1= All; Acesso em: 7 set. 2012.20 PAIXÃO, Eremita Tânia Silva da. Produção de objetos de aprendizagem para aulas de História: entre teoria e prática. In: ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA, 6. Ilhéus (BA), ago. 2012. Anais...21 REINATO, Eduardo José. Informática e educação: primeiras viagens pela internet: exemplificando uma experiência e uma inquietação de pesquisa. Disponível em: www.ce-veh.com.br/biblioteca/artigos/index.htm; Acesso em: 10 ago. 2012.22 Adaptação do Projeto Curricular de Escola. Disponível em: pages.madinfo.pt/eb1pema-chico/PROJECTO%20CURRICULAR%20DE%20ESCOLA.pdf.23 FERREIRA, Carlos Augusto Lima. La Formación y la práctica de los profesores de Histo-ria: enfoque innovador, cambios de actitudes e incorporación de las nuevas tecnologías en las escuelas públicas y privadas de la provincia de Bahía, Brasil. Tese (Doutorado) – Depar-tamento de Pedagogía Aplicada. Barcelona, 2003.

Artigo recebido em 15 de julho de 2012. Aprovado em 12 de setembro de 2012.

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E-storia Dilton Maynard*

Marcos Silva**

Prezad@s colegas,

Nesta edição, pretendemos reforçar alguns princípios básicos no uso das NTICS (Novas Tecnologias da Informação e Comunicação) na educação e exemplificar com algumas sugestões práticas. Primeiro: só há sentido na uti-lização de novas ferramentas instrucionais se elas forem o suporte para formas superiores de aprendizagem. Além disso, tendo em vista que as novas tecno-logias estão operando uma transformação no modo de percepção das novas gerações, fazendo emergir outras formas de sensibilidade, é óbvio que estas só podem ser contempladas pela mediação tecnológica.

Assim, os mecanismos que predominam na vivência cotidiana dos jovens devem ser entendidos pelos professores como instrumentos com um potencial pedagógico a ser explorado de forma criativa em sua práxis educacional. Em outras palavras, cabe à educação se adequar aos códigos culturais utilizados entre as novas gerações.

Em função disso, três princípios da nova cultura precisam ser incorpora-dos ao fazer docente: hipertextualidade, interatividade e conectividade. A hi-pertextualidade diz respeito à ligação de conteúdos; a interatividade é o enlace de pessoas e máquinas, e a conectividade refere-se à capacidade de operar em um ambiente de rede.

Entre as possibilidades principais de utilização das NTICs por professores de História em ensino presencial, a sua utilização em apoio às tarefas tradicio-nais dos professores, como fonte de recursos para a preparação de aulas e materiais pedagógicos, certamente se consolidou. Seguindo esses princípios faremos as sugestões que seguem.

*Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). ** Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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As imagens são testemunhos históricos tão importantes quanto as fontes mais tradicionais de evidência histórica, os textos escritos. A exploração dos detalhes de uma imagem e a sua interpretação como um todo, mais do que ampliar o estoque de fontes do historiador pode ser utilizada pelos professores em sua prática docente. Para além da utilização meramente ilustrativa, a adoção de uma metodologia adequada pode renovar o ensino de história. Adotando o princípio de transformar a sala de aula no ‘laboratório’ de História, o professor pode iniciar os estudantes na crítica das evidências visuais. Como esse tipo de oficina requer um treinamento especializado sugerimos o livro de Peter Burke, Testemunha ocular, publicado no Brasil pela Edusc (2004), obra introdutória e que certamente contribuirá para que os colegas professores se informem sobre quais princípios adotarem na construção de desafios cognitivos estimulantes através da iconografia. Assim, sugerimos que os colegas acrescentem aos ‘favo-ritos’ em seu software de navegação na internet os seguintes websites:

1. Galeria de arte da web – www.wga.hu/

A Galeria de Arte da web é um Museu Virtual com um rico acervo de arte que disponibiliza evidências visuais da cultura europeia de um amplo período histórico. São mais de 16 mil reproduções de pinturas e esculturas europeias, produzidas entre os séculos XII e XIX. É um recurso gratuito de materiais de história da arte. Corretamente autodefinido como um banco de dados que permite buscas em seu conteúdo, é nisso que reside o seu principal atrativo para o docente. Partindo de informações básicas como o nome de um artista, principalmente do período renascentista, ou de uma obra, até mesmo uma palavra-chave de um tema de interesse, é possível localizar a evidência histórica visual que se deseja. Além disso, a Galeria fornece uma lista alfabética de ar-tistas. O mais interessante é que as imagens são acompanhadas de um comen-tário resumido sobre cada obra ‘exposta’. Em inglês.

2. Biblioteca de imagens Mary evans – www.maryevans.com/

Se o acervo da Galeria apresentada no item 1 é constituído de obras da chamada ‘grande arte’, a Biblioteca de Imagens Mary Evans é especializada em

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E-storia

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imagens do cotidiano, que foram produzidas originalmente para livros, carta-zes e propaganda. Visando primariamente um público especializado de desig-ners, com uso comercial, o acervo guarda um evidente interesse histórico. São mais de 300 mil imagens extremamente diversificadas. Os mecanismos de busca são sofisticados, e o acervo se divide em coleções temáticas. Porém, é necessário obter licença, mediante pagamento, para uso comercial das ima-gens. Em inglês.

3. Google na educação – www.google.com/edu/index.html

As ferramentas apresentadas nos itens 1 e 2 pressupõem uma apreensão mais passiva de conteúdos digitais. Porém, ao explorar a grande quantidade de recursos que o Google In Education disponibiliza, o docente pode acres-centar às oficinas de História por ele planejadas outros recursos além da Iconografia.

O ‘oráculo’ da era digital disponibiliza um conjunto de ferramentas para o trabalho com evidências visuais. A principal dessas é o Picasa, um software livre que permite que o professor e os alunos encontrem, editem, armazenem e compartilhem imagens em seus computadores. As possibilidades são muitas. Ampliando os horizontes, você pode acrescentar ao trabalho. Para isso, o Goo-gle na Educação fornece o Youtube.com/Teachers com vídeos educacionais. O interessante é que a maior parte do material disponibilizado nesse aplicativo foi produzida por professores no intuito de socializar seu trabalho.

Outro interessante recurso para o trabalho com imagens é a rede social Flickr (www.flickr.com), da Yahoo, possivelmente a rede mais utilizada entre aficionados pela fotografia (e em menor intensidade os amantes do desenho e das ilustrações). Via Flickr compartilham-se imagens, é possível compartilhar e criar álbuns, coleções e exposições. Desse modo, a coleta de imagens e a sua organização cronológica ou temática podem se refletir em uma atividade in-teressante, já que essa rede permite a organização mediante categorias e pala-vras-chave. É possível utilizar uma conta gratuita e um espaço satisfatório: 300 MB de fotos por mês. Essa quantidade é mais do que suficiente para o colega professor realizar pequenas, mas muito provavelmente proveitosas experiên-cias com fotografias, mapas e imagens de todo tipo.

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Para acrescentar os princípios da interatividade e conectividade às suas oficinas por meio de trabalhos colaborativos, o já citado Google na Educação oferece ferramentas como o Google Docs e o Google Grupos. As possibilidades oferecidas pelo Google na Educação são diversificadas e exigem um despertar do espírito de experimentação pedagógica. As ferramentas são muitas e o de-safio está posto. Ao teclado, professor!

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Ensino de história e a questão indígenaHistory teaching and the indigenous question

Antonia Terra de Calazans Fernandes*

Resumo

A proposta do texto é relatar a experiên-cia de ministrar, no ensino superior, a disciplina optativa “Ensino de história e a questão indígena”, criada com base na Lei 11.465/2008, que estabelece a obri-gatoriedade, no ensino fundamental e médio, do trabalho com conteúdos refe-rentes à história dos povos indígenas brasileiros. O relato apresenta as esco-lhas dos temas para estudo, as ativida-des, os autores propostos para estudos e algumas reflexões sobre os trabalhos realizados com os estudantes. Palavras-chave: história; ensino de história; história dos povos indígenas no Brasil.

AbstractThe purpose of this paper is to report the experience of giving, on higher edu-cation, the elective course “History Teaching and the Indigenous Question”, created from the 11.465/2008 Law, which establishes, on primary and sec-ondary education, working with content related to the history of Brazilian indig-enous peoples as compulsory. The re-port presents the choices of study themes, the activities, the authors pro-posed for studies, and some reflections from the work done with students. Keywords: history; History teaching; history of indigenous peoples in Brazil.

Desde 2008, o Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo tem ministrado disciplinas específicas que compõem a grade curricular do curso de licenciatura, incluin-do uma disciplina obrigatória e outras optativas, assumindo a corresponsabi-lidade, com a Faculdade de Educação, no processo de formação de futuros professores de História.

Entre as disciplinas optativas criadas com essa finalidade, em 2011 foi proposta a que recebe o título de “Ensino de história e a questão indígena”, oferecida aos alunos em 2012. Essa disciplina foi criada com base nas deman-

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*Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Av. Prof. Lineu Prestes, 338. 05508-000 São Paulo – SP – Brasil. [email protected]

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das da Lei 11.465/2008,1 com o intuito de estudar algumas questões introdu-tórias à história indígena brasileira.

Inicialmente, a intenção foi organizar um programa para o estudo da produção historiográfica já existente sobre o tema, considerando a inexistência de oferecimento de disciplinas específicas no Departamento de História para abordagem desse recorte histórico sobre as populações indígenas. Um balanço preliminar tinha indicado que, de modo geral, no bacharelado os alunos estu-dam a história indígena das populações da América do Sul e da Amazônia, a história de alguns contatos no século XVI, e o papel dos indígenas no processo de implantação do modelo colonial português no Brasil. Assim, a intenção inicial de oferecer uma nova disciplina optativa era a de ampliar os estudos históricos para focar a especificidade das questões envolvendo a história das populações indígenas brasileiras, debatendo a escassa produção historiográfica do tema e os recortes conceituais predominantes.

Posteriormente, uma avaliação dos domínios dos alunos em relação à temática, com a identificação entre eles de valores arraigados historicamente na cultura brasileira, levou à reconstrução da proposta do curso. Pensou-se, então, uma nova proposta que priorizasse atividades de contatos com aldeias, avaliações de abordagens da temática em materiais didáticos e apresentação de alternativas pedagógicas para futuros trabalhos escolares. No programa final prevaleceram: estudo e debate das representações sociais divulgadas na socie-dade brasileira para as populações indígenas; avaliação dos textos e imagens presentes em livros didáticos de História de diferentes períodos; vivências di-retas de visitas às aldeias; visitas a exposições de museus e espaços culturais; estudos e debates de conceitos históricos específicos para aprofundamento do tema; estudo da produção historiográfica; estudos e debates das produções dos próprios indígenas, sobre eles mesmos; e situações para criar e propor situa-ções escolares.

As aulas se iniciaram com uma classe de setenta alunos. Quando questio-nados sobre os motivos que os levaram a optar pela disciplina, a maioria afir-mou considerar o tema importante, mas declarou ‘saber nada’ a respeito das populações indígenas brasileiras, a não ser a imagem estereotipada das come-morações do Dia do Índio divulgadas na escola quando crianças.

A primeira intervenção em aula foi o debate com os alunos sobre o que entendiam e conheciam a respeito das sociedades indígenas. Em resposta,

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inicialmente se mostraram respeitosos quanto aos direitos desses povos à terra e à diversidade cultural. Porém, ao longo das aulas seguintes, passaram a ques-tionar: O que significa ser uma nação dentro de uma nação? Há perdas da cultura indígena original? Como pensar a assimilação cultural e também a permanência da cultura original? Será que não estão em condição de grande pobreza por viverem em casas de madeira? Por que as crianças indígenas ficam pedindo dinheiro? Não há formas puras de ‘ser índio’? Por que comem comida similar às que comemos? Como caracterizar as assimilações? Como podem ser católicos e manter a religião deles?

O primeiro trabalho teórico focalizou o conceito de ‘culturas híbridas’, apresentado por Nestor Goulart Canclini.2 E a proposta consistiu em debater o conceito com base na caracterização atual e histórica de uma aldeia Karipu-na, localizada no Amapá, descrita pelo professor Edson Machado de Britto3 em sua tese defendida recentemente. A intenção era possibilitar aos alunos conhecerem alguns dos problemas vivenciados pelos indígenas atuais, e utili-zarem um conceito amplo o bastante para considerar mudanças históricas e reavaliar o ideal corrente de ‘culturas puras’.

No caso da aldeia Karipuna estudada pelo pesquisador, a história tem indicado que foi formada no início do século XIX, por indivíduos de diferentes procedências, até mesmo por grupos que estiveram envolvidos na Cabanagem, os quais se juntaram a grupos indígenas e não indígenas na região onde hoje ela está localizada. Além disso, o texto do autor apresenta, como vivências específicas dessa aldeia, atividades religiosas católicas, como missas periódicas e outras envolvendo especialmente a festa do Divino Espírito Santo, e também o ritual do Turé, com grande importância atribuída ao pajé e à sua mediação entre o mundo humano e o mundo dos seres encantados.

Em sala de aula, a confrontação do conceito de ‘culturas híbridas’ de Nes-tor Canclini com a realidade dos Karipuna do Amapá gerou alguns debates. Como resultado dessa confrontação, um dos grupos de alunos apresentou, por exemplo, estas conclusões:

podemos sim pensar o grupo dos Karipuna na perspectiva do conceito proposto por Canclini, uma vez que não há a predominância desta ou daquela cultura que contribuiu para a formação histórica do grupo. No entanto, se olharmos de per-to, mesmo tendo contatos e usos com elementos considerados genericamente

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como ‘não indígenas’, não ocorre ali uma mudança de organização do grupo, que é fundamentalmente indígena.

Então ficou um pouco confuso, em nossa discussão, se ali ocorre a tal hibridação proposta por Canclini, caracterizando os Karipuna como um grupo novo, diver-so, ou se trata de um grupo predominantemente indígena, com algumas incor-porações, mas que não se configura em uma nova estrutura sociocultural.

A apresentação de uma nova proposição conceitual resultou, assim, num esforço dos alunos no sentido de reavaliarem suas preconcepções. Nesse caso, incorporaram a possibilidade de trocas entre culturas, mas o conceito ainda não favoreceu o entendimento dos Karipuna como uma sociedade historica-mente organizada, com um passado constituído por um processo histórico de contatos. A dúvida sobre a permanência dos Karipuna como indígenas conti-nuava associada à ideia de sociedades que, para permanecerem indígenas, de-veriam estar mais próximas de uma suposta cultura original, ou seja, sem mui-tas transformações que as distanciassem do passado.4

Restou, assim, esta pergunta: Como ser uma sociedade indígena e, simul-taneamente, uma sociedade histórica?

O segundo trabalho voltou-se para a análise de representações europeias para os indígenas, com base nas análises de Ana Maria de Moraes Belluzzo,5 na coleção O Brasil dos Viajantes, e nas representações recorrentes nos livros didáticos, considerando as análises feitas pela historiadora Adriane Costa da Silva6 em sua dissertação de mestrado, defendida na FE-USP no ano de 2000. O trabalho consistiu na análise de livros didáticos (antigos e atuais) por grupos de alunos, tendo eles de considerar as referências teóricas pautadas nos textos das autoras, com a preocupação de identificar em quais períodos históricos as populações indígenas têm sido citadas nos livros, quais os valores a elas rela-cionados (nos textos e nas imagens) e em quais pressupostos históricos da produção historiográfica esses valores estavam assentados.7

Apesar de os textos teóricos já apresentarem análises dessas representa-ções, a intenção foi possibilitar aos estudantes o contato direto com os livros didáticos, salientando seus contextos históricos e os diálogos de seus autores com a produção historiográfica de cada época. Para a realização da atividade

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em sala de aula, organizou-se uma ficha de referência com as principais repre-sentações e as tendências de foco da análise em cada período histórico.8

Um dos grupos de alunos analisou um livro atual de História para o ensino fundamental do 7o ano, editado em 2007 e reeditado em 2010, e assinalou, como predominantes no tratamento dado aos povos indígenas, estes valores:9

( x ) genéricos ( ) exóticos ( x ) românticos

( ) protagonistas ( ) coadjuvantes ( x ) primitivos

( ) selvagens ( ) semi-humanos ( ) incultos

( x ) ferozes ( x ) antropófagos ( x ) bárbaros

( x ) em um estágio antigo da humanidade

( ) infância da humanidade ( x ) atrasados

( x ) ingênuos ( ) indolentes( x ) caracterizados por atributos físicos associados a valores

( ) inseridos em um contexto evolucionista

( x ) parados do tempo ( ) pertencentes a uma cultura dinâmica

( ) subalternos ( x ) passivos ( ) avançados

( x ) caracterizados em função de outra cultura

( x ) inseridos em um contexto eurocêntrico ( x ) aculturados

( x ) isolados ( x ) contaminados pela civilização

( ) envolvidos em mitos de miscigenação

( ) unidades étnicas( ) desigualdades nas interações entre os grupos étnicos

( x ) apresentados compondo o quadro da natureza

( ) casamentos interétnicos

( x ) explorados pelos colonizadores ( x ) mão de obra

( ) guardas das fronteiras nacionais ( x ) povos desaparecidos

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E o grupo, analisando o mesmo material, anotou:

Os indígenas brasileiros não são retratados em sua vida anterior ao contato com os portugueses. Quando são analisados, o que predomina é uma forte associação do índio com a antropofagia, guerra e com caráter feroz e selvagem. O sujeito (ou o conquistador) também é feroz, porém, é retratado como superior, moral e tec-nologicamente. O índio não é colocado como ator social, e sim como uma vítima da cultura e da invasão europeia. Ainda predomina a associação do índio com o isolamento e vida na floresta, mesmo nos dias de hoje. ‘Os que ainda existem’, vivem na floresta, harmoniosamente. É uma generalização e tendência pejorativa e anacrônica.

Na sequência do curso, os alunos tiveram a oportunidade de conhecer os materiais didáticos produzidos e organizados pelo setor educativo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, focando o trabalho com cultura material das populações indígenas brasileiras. Essa atividade se desdobrou na visita ao Centro de Informação da Cultura Indígena, em Embu das Artes (SP), para contato com os objetos das populações das aldeias do Parque do Xingu, colecionados pelo sertanista Waldemar de Andrade Silva (conhecido como Walde-Mar). A intenção foi possibilitar que ouvissem relatos de quem convi-veu com as populações xinguanas e com os irmãos Villas-Boas, conversassem com as jovens Kalapalo que são monitoras do museu e realizassem exercícios didáticos de coleta de informações sobre os objetos expostos, mediante o pre-enchimento de uma ficha organizada com antecedência e entregue no local. O exercício consistiu na análise de materialidades que possibilitem indícios de especificidades históricas e culturais dos indígenas hoje assentados no Centro-Oeste.10

Os estudantes consideraram a visita como muito valiosa e se empenharam na observação dos objetos e na coleta de informações com base em suas ma-terialidades e estéticas. Algumas anotações nas fichas preenchidas por eles foram estas:

Objeto: Pau de Chuva. Sociedade: Kariri e Pataxó. Local de origem: Xingu. Mate-rial: caracol, areia de rio, conchas quebradas, caramujos. Forma: cilindro com cerca de um metro de cumprimento. Uso: embalar crianças chorosas e como ins-trumento musical. Objeto similar em nossa cultura: Não há. A história que o obje-to conta: Este objeto pode contar sobre o cuidado e atenção dada às crianças in-

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dígenas. É utilizado para acalmar as crianças inquietas, chorosas. Tem uma sonoridade incrível, parecendo chuva. Pode ser usado como chocalho nas festas e comemorações, sempre para alegrar.

Objeto: Tigela zoomorfa. Sociedade: Waurá. Local de origem: Xingu. Material: ce-râmica. Forma: uma tigela no formato arredondado, com cabeça e pés em home-nagem a um animal. Uso: doméstico. Objeto similar em nossa cultura: tigela. A história que o objeto conta: a relação da sociedade Waurá com o alimento. A for-ma do objeto, semelhante aos animais, é uma forma de homenagear a natureza durante o ato de preparo da alimentação, o que evidencia o respeito e a consciên-cia desse povo com a natureza de onde eles tiram seu alimento.

No mesmo semestre, programamos ainda a visita a duas aldeias Guarani dentro do município de São Paulo. A visita às aldeias na cidade tem a intenção de intervir nas representações de que as populações indígenas só vivem em terras distantes, embrenhadas em florestas e matas da Amazônia ou do Brasil central. Além disso, optou-se por visitar duas aldeias da mesma cidade, mas com características diferentes: a aldeia do Jaraguá, situada na região oeste da cidade de São Paulo e completamente cercada por estradas, asfalto e muitas residências; e a aldeia Krukutu, em Parelheiros, ao sul da cidade, próxima à Serra do Mar. De algum modo, esta conserva-se mais resguardada da vida urbana por estar localizada em região de sítios e chácaras.

Antes das visitas, estudamos a história mais recente dos Guarani-Mbyá e as histórias das duas aldeias no livro da antropóloga Maria Inês Ladeira, Espaço geográfico Guarani-Mbya: significado, constituição e uso.11 A intenção foi co-nhecer algumas das questões relacionadas ao modo de vida Mbyá, suas migra-ções e a maneira como vivenciam a questão do contato com os não índios.

Além do texto para leitura e estudo, assistimos também ao vídeo Duas aldeias, uma caminhada, produzido pelos jovens indígenas da série Vídeo nas aldeias.12 Esse material causou grande impacto entre os alunos por contar a história de duas aldeias Guarani-Mbyá do Rio Grande do Sul: diante da falta de terra, de falta de florestas para caça para alimentação e da perda da planta-ção de milho por conta da geada, a comunidade encontrou como opção a produção e a venda de artesanato para turistas. Diferentemente dos documen-tários tradicionais, quem comenta os acontecimentos do contato entre Guarani

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e os ‘juruá’ são os Guarani, colocando o espectador na posição de compartilhar com eles o que pensam e vivenciam, no que acreditam e o que os emociona. Assim, como eles, sentimos os preconceitos, os distanciamentos e os equívocos da sociedade brasileira e da história nacional. E condenamos, como eles, os valores impregnados de preconceitos.

O grande mérito desse material, no contexto didático, tem sido o de pro-mover aproximações dos estudantes com as populações indígenas, entendidas como históricas, e que vivenciam realidades históricas concretas, semelhantes às ‘nossas’.

Nos meses seguintes, a proposta concentra-se em estudos da produção sobre a história do índio no Brasil, com leitura de textos reavaliando os con-ceitos, modificando o foco da análise para a perspectiva do protagonismo his-tórico e aprofundando estudos de determinados contextos.

Um dos textos para leitura é de Florestan Fernandes,13 que utilizou, como fontes históricas, diferentes relatos de cronistas europeus, e analisou os Tupi-nambá, entendidos por ele como uma sociedade importante na época das in-vasões dos europeus (franceses e portugueses) nos séculos XVI e XVII, com enfoque nas complexas situações de aprendizagem entre as crianças, os jovens e os mais velhos nas aldeias. O tema da ‘educação que integra’ o indivíduo na sociedade, e, ao mesmo tempo, ‘uma educação que diferencia’, ou seja, que forma um grupo de ‘homens que diferem muito entre si’, amplia os debates do curso no sentido de incentivar os estudantes a compreenderem as sociedades indígenas em processos de mudanças históricas, rompendo as imagens de so-ciedades ‘tradicionais’, concebidas com modos de viver imutáveis no tempo:

percebe-se bem como e em que extensão a renovação do que é estável se prende inseparavelmente à elaboração cultural e ao aproveitamento social efetivo do que, além de variável e de mutável, é verdadeiramente fluido no temperamento e no comportamento dos indivíduos. Se não se encarar as coisas desta maneira, corre-se o risco de ver a educação de ‘tipo tribal’ como uma sorte de precursora da fábrica moderna, com sua linha de montagem; da criança ao adulto ou ao ve-lho chegar-se-ia fatalmente a produtos estereotipados, através de mecanismos exteriores simples de modelação estandardizada do caráter dos seres humanos. (Fernandes, 1966, p.152)

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Outro texto proposto para estudo é o livro da historiadora Maria Regina Celestino de Almeida (2010) que faz uma revisão das representações consti-tuídas tradicionalmente para as populações indígenas na historiografia brasi-leira, e também estuda, sob novas perspectivas, a história dos aldeamentos no Rio de Janeiro, abrangendo os séculos XVI ao XIX. Nas pesquisas da autora, os indígenas são apresentados como sujeitos ativos na história da colonização assim como na fase do Império, agindo e se transformando com as situações vivenciadas:

essas novas leituras não resultaram apenas de descobertas de documentos inédi-tos, mas principalmente de novas interpretações fundamentadas em teorias e conceitos reformulados. Em outras palavras, um mesmo documento pode reve-lar realidades bem diversas, conforme as referências teóricas e conceituais que embasem as interpretações dos investigadores. (Almeida, 2010, p.10)

Nessa linha, ainda, foi escolhido um texto de Sérgio Buarque de Holanda14 para estudar com os alunos algumas tendências das políticas do Estado brasi-leiro em relação à questão indígena no século XX, envolvendo a história do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e as missões religiosas. E, para aprofundar estudos históricos mais específicos em determinadas localidades brasileiras, foram escolhidos ainda os textos de Fernanda Sposito15 sobre a história dos indígenas em São Paulo e o texto de Vânia Maria Losada Moreira,16 com foco na história indígena no estado do Espírito Santo.

No final do curso, a proposta é a de realizar uma inversão de quem conta a história. Para isso, a intenção é conhecer e analisar o que a historiadora Mary Louise Pratt, no livro Os Olhos do Império,17 conceitua como autoetnografia, ou seja, a expressão autoetnográfica dos jovens cineastas que divulgam as his-tórias de seu povo mediante a produção de vídeos. Esses materiais serão exi-bidos e debatidos, com a oportunidade de os estudantes dialogarem com al-guns dos jovens cineastas convidados.

Ao longo do semestre, a principal finalidade do curso tem sido compar-tilhar com os estudantes situações de estudo, para que reavaliem alguns dos conceitos adquiridos no senso comum e em vivências escolares em prol da construção de saberes que favoreçam a compreensão das sociedades indígenas como históricas. A esperança é que, no futuro, como pesquisadores e profes-sores, tenham outros pilares conceituais e orientem aproximações com práticas

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de sociedades que valorizam o direito à igualdade, o respeito à diversidade e a especificidade da história indígena. Ao mesmo tempo, espera-se que percebam como os indígenas estão presentes e participam na história do Brasil e da América.

NOTAS

1 A Lei 11.465/2008 estabelece que “Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasi-leira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras”.2 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2008. p.XIX: “entendo como hibridação processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, ra-zão pela qual não podem ser consideradas fontes puras”.3 BRITTO, Edson Machado de. A educação Karipuna no Amapá no contexto da educação escolar indígena diferenciada na aldeia do Espírito Santo. Tese (Doutorado) – PUCSP. São Paulo, 2012.4 A resposta à pergunta tem sido considerada nas referências bibliográficas previstas no curso. Nesse caso, a leitura e análise do livro da historiadora Maria Regina Celestino de Almeida apontará para reflexões como: “antropólogos e historiadores têm analisado situa-ções de contato, repensando e ampliando alguns conceitos básicos ao tema. A compreen-são da cultura como produto histórico, dinâmico e flexível, formado pela articulação con-tínua entre tradições e novas experiências dos homens que a vivenciam, permite perceber a mudança cultural não apenas enquanto perda ou esvaziamento de uma cultura dita au-têntica, mas em termos de seu dinamismo, mesmo em situações de contato extremamente violentas...”. ALMEIDA, M. R. Celestino de. Os índios na história do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. p.22.5 BELUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. São Paulo: Objetiva; Metalivros, 1999. Algumas imagens foram selecionadas também do texto: COSTA, Maria de Fátima. Personagens fronteiriços: ao Guaikurú conforme a Viagem Filosófica de A. R. Ferreira e a Viagem pitoresca e histórica de J. B. Debret. In: GUTIÉRREZ, Horácio et al. Fronteiras, paisagens e identidades. São Paulo: Ed. Unesp; Olho D’Água, 2003. p.185-223. Na aula, analisamos as seguintes imagens: a) Adoração dos Magos, Anônimo (Escola de Viseu), por volta de 1505; b) O Inferno, Anônimo (Escola portuguesa), primeira metade do século XVI; c) Livro de Hans Staden, Anônimo, 1557; d) Hans Staden assiste à preparação do corpo para a devoração canibal, Theodore De Bry,1592; e) Homem e mulher Tapuia, e Homem e mulher Tupinambá, Albert Eckhout, 1643; f) Habitação dos Apiacás sobre o Ari-nos, Hercule Florence, 1828; g) Chefe do Gentio Aycurú, habitante do Rio Paraguai – s/

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autor, 1787, Expedição de Alexandre Rodrigues Ferreira em sua Viagem Filosófica; h) Car-ga de cavaleiros guaicuru, e Tribo guaicuru em busca de novas pastagens, J. B. Debret. Via-gem histórica e pitoresca ao Brasil, 1834; i) Desenho de quatro botocudos, Maximilian Wied-Neuwied, 1815-1817.6 SILVA, Adriane Costa da. Versões didáticas da história indígena (1870-1950). Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, USP. São Paulo, 2000.7 Alguns pressupostos fundamentaram, em diferentes épocas, a inserção dos indígenas na história nacional, como nos estudos: de etnologia e história natural do XIX; a partir de te-ses culturalistas da década de 1930; das diferenças entre os povos nas perspectivas geográ-fica e biológica dos anos 1950/1960; das diferenças de classes sociais (opressores e oprimi-dos) dos anos 1970/1980; e das diferenças culturais propostas pela antropologia nos estudos históricos a partir dos anos 1990.8 Entre os livros analisados pelos estudantes estavam alguns muito recentes, de 2006/2010, e outros mais antigos, como: BILAC, O.; NETTO, C. A Pátria Brasileira: para os alunos das escolas primárias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2010; CORRÊA, Viriato. História do Brasil para crianças. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1934; MACEDO, Joaquim Manoel de. Lições de História do Brasil para uso das escolas de Instrução Primária. Rio de Janeiro: Li-vraria Garnier, 1884; RIBEIRO, João. História do Brasil: curso superior. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1920; SILVA, Joaquim. História do Brasil para primeira série ginasial. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1953.9 Cada um desses valores é materializado nos livros com base em formas de tratamento dadas. Por exemplo, o termo ‘genérico’ refere-se à ausência de especificidades históricas e culturais aos povos, como no caso de livros que fazem apenas o uso de termos como ‘ín-dios’, ‘grupos indígenas’ e ‘povos indígenas’, sem nenhuma outra especificação de local, data ou denominação cultural.10 A ficha solicitava: data, cidade, nome do museu, nome da exposição, objeto (época, so-ciedade, local de origem), características do objeto (materiais, forma, uso, objeto similar na nossa cultura), que história o objeto pode contar, desenho do objeto.11 LADEIRA, Maria Inês. Espaço geográfico Guarani-Mbya: significado, constituição e uso. Maringá (PR): Eduem; São Paulo: Edusp, 2008.12 Disponível em: www.videonasaldeias.org.br/2009/; Acesso em: set. 2012.13 FERNANDES, Florestan. Notas sobre educação na sociedade Tupinambá. In: _______. Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus; Edusp, 1966. p.144-201.14 HOLANDA, Sérgio Buarque de. O índio no Brasil. In: COSTA, Marcos (Org.). Sérgio Buarque de Holanda. Escritos coligidos. Livro I, 1920-1949. São Paulo: Perseu Abramo; Ed. Unesp, 2011. p.93-173.15 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.

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16 MOREIRA, Vânia Maria Losada. Autogoverno e economia moral dos índios: liberdade, territorialidade e trabalho (Espírito Santo, 1798-1845). Revista de História, São Paulo, n.166, p.223-243, jan.-jun. 2012.17 PRATT, Mary Louise. Os olhos do Império: relatos de viagem e transculturação. Bauru (SP): Edusc, 1999. p.33: “Emprego tais expressões para me referir a instâncias nas quais os indivíduos das colônias empreendem a representação e si mesmos de forma comprometi-da com os termos do colonizador. Se os textos etnográficos são os meios pelos quais os europeus representam para si os (usualmente subjugados) outros, textos etnográficos são aqueles que os demais constroem em resposta àqueles, ou no diálogo com as representa-ções metropolitanas”.

Artigo recebido em 20 de junho de 2012. Aprovado em 1o de setembro de 2012.

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Os índios na história política do Império: avanços, resistências e tropeços

The Indians in the political history of the Empire: advances, resistance and stumbles

Vânia Maria Losada Moreira*

sposito, Fernanda Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do estado nacional brasileiro e conflitos na província de são Paulo (1822-1845)São Paulo: Alameda, 2012. 292p.

A temática indígena ainda não entrou de maneira firme na história polí-tica do Império. É essa, pelo menos, a impressão deixada por algumas obras coletivas publicadas recentemente. Ao não tratarem dos índios e das nações indígenas, essas historiografias, que se apresentam como visões panorâmicas sobre o século XIX, terminam ajudando a propagar a falsa ideia de que os ín-dios não eram uma preocupação política dos contemporâneos, ou não repre-sentavam uma ‘variável’ importante para a análise da experiência histórica brasileira do período. Em Nação e cidadania no Império: novos horizontes,1 por exemplo, existem 17 capítulos e nenhum deles se dedica aos índios e às suas experiências durante o Oitocentos. O mesmo acontece em Repensando o Bra-sil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade,2 com 23 capítulos, nenhum dos quais enfocando a questão indígena como eixo central da análise. Não é aceitável, contudo, continuar discutindo a formação do Estado, a consolidação do território nacional e a cidadania, durante o Império, sem considerar de maneira clara, direta e corajosa o problema dos índios, das comunidades in-dígenas já integradas à ordem imperial e das inúmeras nações independentes que, progressivamente, foram conquistadas ao longo do próprio século XIX. A recente publicação de O Brasil Imperial, coleção em três volumes, com 33

*Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Antiga Estrada Rio-São Paulo (BR-465), km 7. 23890-000 Seropédica – RJ – Brasil. [email protected]

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 269-274 - 2012

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capítulos, um deles dedicado aos índios,3 é digna de menção, pois representa um avanço significativo.

Uma questão importante para a compreensão política do Brasil, mas ain-da muito negligenciada pela historiografia, é a posição do índio no processo político de organização do Estado nacional durante o Oitocentos. Por isso mesmo, é muito bem-vindo o livro de Fernanda Sposito Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845).4 O livro está dividido em duas partes: na primeira, intitulada “Os índios no Império: política e imaginário”, a autora dedica-se a analisar o indigenismo e a política indigenista imperial, com des-taque para o período entre a Independência e a emergência do Segundo Reinado.

Com sólida base empírica, a autora demonstra que, depois da Indepen-dência, a monarquia, a escravidão e a convivência com os índios tiveram de ser refundados “em novas bases, no contexto do liberalismo e do modelo cons-titucional moderno” (p.14). Desse ponto de vista, a questão indígena tornou-se um dos assuntos importantes da pauta política do período e foi “reenquadrada à vista de temas como cidadania, soberania nacional, mão de obra etc.” (p.14). Nessa parte do texto, o objetivo central da autora é o de “perceber como os dirigentes do Estado e da nação em construção elaboraram políticas e pensa-mentos referentes às comunidades indígenas” (p.257). Para isso, Sposito ex-plorou e percorreu várias searas do debate político sobre os índios, investigan-do a Assembleia Constituinte de 1823, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, as legislaturas do Senado, a legislação editada sobre os índios, a imprensa etc. O apetite da historiadora pelas fontes históricas é uma das mar-cas mais salientes de seu trabalho e, sem sombra de dúvidas, uma de suas maiores contribuições.

Na segunda parte, intitulada “No palco das disputas entre paulistas e in-dígenas”, a autora traça uma história mais social do que política, realizando uma reflexão sobre a expansão das fronteiras da província de São Paulo sobre os territórios dos Kaingang, Xokleng, Guarani e Kaiowa. Explora, portanto, a história das zonas de contato e os conflitos entre ‘índios’ e ‘paulistas’. Também aqui, a autora mobiliza um importante corpo documental sobre a província de São Paulo, fornecendo sólida base empírica à segunda parte de sua reflexão.

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A conexão que Fernanda Sposito faz entre as duas partes de seu trabalho é também digna de destaque. Isso ganha especial evidência na discussão que ela realiza sobre a abolição das cartas régias do príncipe regente d. João, que man-davam mover guerras ofensivas contra os índios de Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo. As cartas régias, publicadas em 1808 e 1809, foram debati-das no Senado em 1830 e revogadas pouco depois, em 1831. De forma muito apurada, Sposito demonstra, por um lado, que aquela legislação joanina ainda estava em vigor na província de São Paulo, onde os moradores se valiam dela para manter índios no cativeiro. Por outro, evidencia que a pauta política na-cional movia-se, muitas vezes, em função das injunções regionais. Afinal, foi em razão da intervenção dos dirigentes paulistas que o Senado se viu na con-tingência de discutir a revogação das guerras e a persistência do cativeiro in-dígena em certas regiões do Império (p.91).

A pesquisa de Fernanda Sposito amplia o atual debate historiográfico so-bre cidadania durante o Oitocentos. É importante aprofundar, por isso mesmo, a reflexão sobre algumas hipóteses e conclusões centrais sustentadas pela au-tora. Sobre isso, faço duas observações: a primeira diz respeito ao uso do con-ceito Antigo Sistema Colonial que, ao contrário de ajudar a autora na proble-matização das fontes, leva-a a desenvolver uma interpretação sobre a transição da política indigenista colonial para a imperial pouco satisfatória. De acordo com Sposito,

A novidade da questão indígena no Estado nacional brasileiro foi que a situação de colonização que caracteriza a relação ente os dois universos ao longo do pe-ríodo colonial não cabia mais no modelo de um Estado moderno. Isso foi coloca-do desde a época de crise do Antigo Sistema Colonial, através das políticas pom-balinas para os indígenas na segunda metade do século XVIII. (p.260)

Do ponto de vista dos índios, a ‘situação de colonização’ não foi superada com a emergência do Estado imperial, pois a sociedade nacional, numa espécie de colonialismo interno, continuou avançando e conquistando os territórios e as populações indígenas. A segunda parte do livro de Sposito é, aliás, um testemunho eloquente sobre isso. A diferenciação que a autora faz entre as políticas indigenistas colonial e nacional não se baseia na análise dos fatos. É antes caudatária de uma avaliação limitada sobre a política portuguesa em relação aos índios, entendida fundamentalmente como uma “política ofensiva

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de extermínio e escravização” (p.36), temporariamente suspensa durante o regime do Diretório dos Índios, quando prevaleceu a política de incorporação deles na qualidade de vassalos da monarquia portuguesa (p.37). Nem a docu-mentação primária, citada pela própria autora, nem a historiografia mais re-cente sobre a política indigenista colonial corroboram sua interpretação.5 Afi-nal, se uma das faces da política indigenista colonial foi, de fato, a guerra, o extermínio e o cativeiro, a outra foi a territorialização6 dos índios por meio dos aldeamentos, transformando-os em súditos e vassalos da Coroa, com uma série de direitos e obrigações.7 Mais ainda, os aldeamentos – nos moldes preconiza-dos por Manoel da Nóbrega e, posteriormente, regulamentados pelo Regimen-to das Missões de 1686 – e o Diretório pombalino foram as duas experiências coloniais nas quais os políticos e os intelectuais do Império se basearam para pensar e propor uma nova política de Estado para a incorporação dos índios à ordem imperial.8

A segunda e última observação diz respeito a uma das teses centrais do livro, ou seja, a de que o pacto político selado depois da Independência excluiu os índios da sociedade civil e política, porque eles não foram mencionados no texto constitucional (p.78). Assim, entre a Independência e a promulgação do Regulamento de Catequese e Civilização dos Índios, em 1845, “os indígenas não eram reconhecidos como cidadãos e tampouco como brasileiros” (p.258). Ainda segundo a autora, essa exclusão serve para explicar acontecimentos im-portantes, como a continuidade de ‘práticas coloniais’ no Império, como as guerras e as escravizações.

A ausência de uma definição precisa sobre o estatuto jurídico dos índios ou de um capítulo específico sobre a ‘civilização dos índios bravos’ na Consti-tuição de 1824, tal como queria José Bonifácio e vários constituintes da As-sembleia de 1823, não são condições suficientes, contudo, para postular a ex-clusão dos índios do pacto político imperial. Afinal, a situação jurídica dos índios pode ter ficado incerta e sob disputa, mas isso não significa que eles ficaram de fora do pacto político do período. Além disso, a própria autora demonstra que a demora em se criar uma legislação global sobre como lidar com os índios ‘bravos’ não se deveu à falta de interesse político pela questão, já que existiam diferentes projetos e propostas, mas sim à falta de consenso sobre o assunto (p.259).

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Os índios na história política do Império: avanços, resistências e tropeços

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Os constituintes de 1823 insistiram no argumento de que existiam no território do Império dois tipos diversos de índios, os ‘bravos’ e os ‘domesti-cados’, e cada um deles exigia um enfoque político diferente. Em relação aos ‘bravos’, sugeriu-se que eles precisavam ser, primeiro, ‘civilizados’ e integrados à sociedade para, depois, gozarem dos direitos políticos de cidadãos. Quanto aos índios ‘domesticados’, não se disse muito sobre eles na Constituinte. Mas o pouco discutido desenvolveu-se no sentido de considerá-los homens livres e nascidos no território brasileiro, por isso mesmo plenamente capazes de gozarem do título de cidadãos brasileiros. A política indigenista do Primeiro Reinado tampouco autoriza a afirmação de que os índios ficaram de fora do pacto político do período pós-Independência. Apesar de ter permitido ban-deiras contra grupos indígenas considerados agressores, também mandou formar aldeamentos para outros considerados ‘selvagens’, mas não inimigos, e tratou como cidadãos certos grupos aldeados e avaliados como suficiente-mente ‘civilizados’, mandando regê-los segundo as leis ordinárias do Império. Os próprios índios, além disso, apropriaram-se da alcunha de ‘cidadãos brasi-leiros’ para lutarem por seus interesses, sem que isso soasse como uma reivin-dicação inapropriada ou extemporânea (Moreira, 2010).

Concluo estas considerações lembrando o que disse o índio Marawê, do Parque Nacional do Xingu. Para ele, a história dos índios se divide em a.B. e d.B., isto é, em “antes e depois do branco”.9 Na longa história indígena d.B., a transição da Colônia para o Império não representou uma ruptura profunda, mas trouxe algumas mudanças significativas que precisam ser, de fato, salien-tadas. A mais significativa foi, do meu ponto de vista, o crescente desuso de uma perspectiva de cidadania típica do antigo regime, quando ser índio e parte do corpo político e social, na qualidade de vassalo, era situação perfeitamente aceitável e ajustável.10 Em outras palavras, com o aprofundamento do libera-lismo e do nacionalismo na ordem social e política do Império, aprofundou-se, também, a política de ‘assimilação’, entendida e praticada com o objetivo de dissolver o índio na sociedade nacional. Desse ângulo, Fernanda Sposito está bastante certa ao afirmar que a expectativa política dominante no período era a de considerar o índio “brasileiro ou, hipoteticamente cidadão, se deixasse, justamente de ser indígena” (p.143). Durante o Império, portanto, um dos desafios da política indígena foi lidar com os processos de cidadanização e nacionalização da política indigenista, que foram especialmente vorazes depois

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da promulgação da Lei de Terras de 1850, quando se intensificou a liquidação de aldeias e a desamortização das terras indígenas.

NOTAS

1 CARVALHO, José Murilo de. Nação e cidadania no Império: novos horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 2 CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lúcia Maria B. P. (Org.). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.3 SAMPAIO, Patrícia Melo. Política indigenista no Brasil imperial. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (Org.). O Brasil Imperial – 1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-leira, 2009. p.175-206.4 SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.5 PERRONE-MOISÉS, Beatriz. Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista no período colonial (séculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Secretaria Munici-pal de Cultura; Fapesp, 1992. p.115-132.6 OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, v.4, n.1, p.47-77, 1998.7 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.8 MOREIRA, Vânia Maria Losada. De índio a guarda nacional: cidadania e direitos indíge-nas no Império (vila de Itaguaí, 1822-1836). Topoi, Rio de Janeiro, v.11, n.21, p.127-142.9 CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. p.129.10 MOREIRA, Vânia Maria Losada. O ofício do historiador e os índios: sobre uma querela no Império. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.30, n.59, 2010, p.53-72.

Resenha recebida em 25 de setembro de 2012. Aprovada em 17 de outubro de 2012.

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Indígenas na história do Brasil: identidade e cultura

Indians in the history of Brazil: identity and culture

Antonio Simplicio de Almeida Neto*

almeida, Maria regina celestino deOs índios na História do BrasilRio de Janeiro: Ed. FGV, 2010. 167p.

A Lei 11.645 de 10 de março de 2008, que torna obrigatório o estudo de história e cultura indígenas (além da africana e afro-brasileira) nos estabeleci-mentos de ensino fundamental e médio, público e privado, explicita algumas importantes questões sobre o ensino dessa disciplina escolar. A mais evidente é o fato de não haver esse componente curricular nos cursos de Graduação e Licenciatura em História, salvo raras exceções, o que traz uma série de impli-cações àqueles professores que desejam cumprir a determinação legal, pois devem suprir essa lacuna na formação pelos mais diversos meios disponíveis. Entre eles, certamente, destaca-se o livro didático – esse ‘produto cultural com-plexo’, como disse Stray –, que acaba por exercer inusitado e importante papel na formação docente.

Outro aspecto, no entanto, ganha relevância na abordagem dessa temática em sala de aula: o fato de a cultura indígena não ser a dominante em nossa sociedade, tanto que é objeto dessa legislação específica. Assim, é considerada ‘a outra’, diferente, diversa, exótica e estranha, frente à cultura dominante, ocidental, branca, europeia, civilizada, cristã e ‘normal’. Sujeita aos estigmas classificatórios, a cultura desse ‘outro’ será identificada como primitiva, étnica, inferior e atrasada, será entendida como essencialista, ou seja, pura, fixa, imu-tável e estável, portanto, a-histórica. Dessa forma, o indígena que não se apre-senta nesse suposto estado puro será considerado aculturado, não índio, sem

Revista História Hoje, v. 1, no 2, p. 275-279 - 2012

*Departamento de História, Universidade Federal de São Paulo. Estrada do Caminho Velho, 333, Bairro dos Pimentas, 07252-312 Guarulhos – SP – Brasil. [email protected]

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Antonio Simplicio de Almeida Neto

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identidade e sem tradição, daí os índios serem representados predominante-mente como figuras do passado, mortas ou em franco processo de extinção, fadados ao desaparecimento.

Embora não seja destinado especificamente a suprir a demanda desses conteúdos pelos professores da educação básica, o livro Os índios na História do Brasil de Maria Regina Celestino de Almeida apresenta importante e denso panorama da temática, dentro dos limites de um livro de bolso (coleção FGV de bolso, Série História), e bem serviria a esse propósito. Baseia-se na produção historiográfica mais recente, em novas leituras decorrentes de documentos inéditos, novas abordagens fundamentadas em novos conceitos e teorias, bem como em pesquisas interdisciplinares, e começa, justamente, pela complexa discussão sobre a concepção de cultura indígena que acabou por alijar esse grupo social da História.

Desempenhando papéis secundários ou aparecendo na posição de víti-mas, aliados ou inimigos, guerreiros ou bárbaros, escravos ou submetidos – nunca sujeitos da ação, uma vez dominados, integrados e aculturados –, desa-pareciam como índios na escrita histórica e, não à toa, estariam condenados ao desaparecimento também no presente, prognóstico derrubado pelas evi-dências apontadas pelo censo demográfico do IBGE de 2010, que aponta cres-cimento de 178% no número de indígenas autodeclarados desde 1991, bem como a existência de 305 etnias e 274 línguas.

O reconhecimento aos povos indígenas do direito de manter sua própria cultura, garantido pela Constituição de 1988, assim como sua maior visibili-dade em lutas pela garantia de seus direitos, tiraram esses grupos dos bastido-res da história – para usar uma imagem da própria autora –, garantindo-lhes um lugar no palco, despertando o interesse dos historiadores que passaram a percebê-los como sujeitos participando ativamente dos processos históricos. Tal percepção foi ainda favorecida pela imbricação entre história e antropolo-gia na perspectiva de “compreensão da cultura como produto histórico, dinâ-mico e flexível, formado pela articulação contínua entre tradições e novas ex-periências dos homens que a vivenciam” (p.22), possibilitando novos entendimentos das ações dos grupos indígenas nos processos em que estavam envolvidos.

Ao discutir hibridação cultural, Canclini afirma que “quando se define uma identidade mediante um processo de abstração de traços (língua,

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tradições, condutas estereotipadas), frequentemente se tende a desvincular essas práticas da história de misturas em que se formaram”, o que torna im-possível para esse antropólogo “falar das identidades como se se tratasse apenas de um conjunto de traços fixos, nem afirmá-las como a essência de uma etnia ou de uma nação”.1 Nesse sentido, Almeida chama nossa atenção para o ne-cessário entendimento das “identidades como construções fluidas e cambiáveis que se constroem por meio de complexos processos de apropriações e ressig-nificações culturais nas experiências entre grupos e indivíduos que interagem” (p.24), que tornou possível nova mirada dos historiadores sobre a identidade genérica imposta sobre esses grupos, a começar pela denominação ‘índios’, como se constituíssem um bloco homogêneo, desconsiderando não só as di-ferenças étnicas e linguísticas, mas também os diferentes interesses, objetivos, motivações e ações desses grupos nas relações entre si e com os colonizadores europeus que, como não poderia deixar de ser, foram se modificando com a dinâmica da colonização.

Importante ressaltar que as considerações da autora sobre cultura e iden-tidade são fundamentais para compreender a perspectiva adotada pelos histo-riadores que se debruçam sobre essa temática, mas igualmente necessárias para o leitor que pretende conhecer um pouco mais sobre os índios na História do Brasil e, por que não dizer, indispensáveis aos professores do ensino básico que, tendo de se haver com o ensino de história e cultura indígenas nos esta-belecimentos de ensino público e privado, deparam com toda sorte de precon-ceito, racismo e etnocentrismo.

Imbuída dessa concepção dinâmica de identidade e cultura, a autora nos apresenta ao longo dos seis capítulos do livro alguns dos principais debates e pesquisas acadêmicos sobre a temática, sem entrar na discussão historiográfica sobre haver ou não uma história indígena, propriamente dita, ou sobre a con-troversa denominação etno-história, daí a interessante solução encontrada para o título da obra: Os índios na História do Brasil.

A autora esclarece que para o estudo das relações entre os colonizadores e indígenas, já nos primeiros contatos torna-se necessário não tomar estes últimos como tolos ou ingênuos dispostos a colaborar com os portugueses em troca de quinquilharias, mas compreender seu universo cultural. Discutindo, por exemplo, a peculiar relação com o outro na cultura Tupinambá, implicada na guerra, nos rituais de vingança, escambo e casamento, nos alerta que

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“embora eles tivessem grande interesse nas mercadorias dos europeus, suas relações com estes últimos significavam também oportunidades de ampliar relações de aliança ou de hostilidade” (p.40). Da mesma forma, afirma que “eles trabalhavam movidos por seus próprios interesses, e quando as exigências começaram a ir além do que estavam dispostos a dar, passaram a recusar o trabalho” (p.42), o que se somou ao fato de que no universo cultural desse grupo o trabalho agrícola era considerado atividade feminina.

Embasada em vasta bibliografia e em fontes primárias, a autora percorre a complexidade das relações indígenas nas diversas regiões do país – capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande, Itamaracá, Ilhéus, Bahia, Ilhéus, Espírito Santo, São Tomé, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Goiás, Rio de Janeiro etc. Nesse percurso, reafirma a identidade dos grupos indígenas como característica dinâmica, como é o caso dos temiminós do Rio de Janeiro, que provavelmente seriam uma construção étnica do contexto colonial, oriunda do subgrupo Tu-pinambá no processo de relações e interesses dos grupos indígenas e estrangei-ros, pois “afinal, se a identidades étnicas são históricas e múltiplas, não há ra-zões para duvidar de que os índios podiam adotar para si próprios e para os demais, identidades variadas, conforme circunstâncias e interesses” (p.61).

A condição de agentes históricos atribuída aos indígenas ganha evidência na análise da política de aldeamentos que, conforme demonstra Maria Regina Celestino de Almeida, possuía diferentes funções e significados para a Coroa, religiosos, colonos e índios. Para estes, poderia significar terra e proteção frente às ameaças a que estavam submetidos nos sertões, como escravização e guerras, o que não os impedia de agir conforme seus interesses e aspirações na relação com os outros grupos, não obstante as limitações de toda ordem a que estavam sujeitos nesses espaços de conformação. Dessa forma, valendo-se da legislação decorrente das políticas indigenistas, os índios aldeados “aprenderam a valo-rizar acordos e negociações com autoridades e com o próprio Rei, reivindican-do mercês, em troca de serviços prestados. Sua ação política era, pois, fruto do processo de mestiçagem vivido no interior das aldeias. Suas reivindicações demonstraram a apropriação dos códigos portugueses e da própria cultura política do Antigo Regime” (p.87).

Nesse sentido, afirma a autora, os aldeamentos devem ser pensados como “espaços de reelaboração identitária” (p.98), seja ressignificando os rituais re-ligiosos católicos, aprendendo a ler e escrever o português ou estabelecendo

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relações complexas e ambíguas com os diferentes grupos sociais, inclusive in-dígenas, segundo seus interesses.

Esse processo pode ser ainda observado na Amazônia de meados do sé-culo XVIII, quando índios tornaram-se vereadores, oficiais de câmara e mili-tares (p.120), e se prolonga pelo século XIX, quando indígenas eram recrutados compulsoriamente para os serviços militares, notadamente a Marinha (p.147). Interessante lembrar o episódio da Guerra do Paraguai (1864-1870), na qual lutaram índios Terena e Kadiwéu, não sem utilizar diversas estratégias para escapar ao alistamento como Voluntários da Pátria. Mais tarde, no último quartel do século XX, essa participação foi evocada na reconstituição da me-mória desses grupos para reivindicar direitos territoriais no Mato Grosso do Sul ancorados no heroísmo e colaboração com o Estado (p.149). Sujeitos his-tóricos no presente e no passado, condição que dialoga com as possibilidades de romper a invisibilidade indígena no passado e no presente.

NOTA

1 CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas. São Paulo: Edusp, 2008. p.23.

Resenha recebida em 20 de junho de 2012. Aprovada em 1o de setembro de 2012.

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trabalho acadêmico: SOBRENOME, Nome. Título em itálico: subtítulo. Dissertação/Tese (Mestrado/Doutorado em .....) – Unidade, Instituição. Cidade, ano. nnnp.

texto obtido na internet: SOBRENOME, Nome. Título. Data (se houver). Disponível em: www..........; Acesso em: dd mmm. ano.

trabalho apresentado em evento: SOBRENOME, Nome. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO, número (se houver), ano, Local do evento. Anais... Local: Editora (se hou-ver), ano. p.xxx-yyy.