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Ensino de Leitura:fundamentos, prticas e reflexes para professores da era digital

Ktia Tavares Slvia Becher Claudio FrancoOrganizadores

Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Ensino de Leitura: Fundamentos, Prticas e Reflexes para professores da Era Digital

Ktia Cristina do Amaral Tavares Slvia B. A. Becher-Costa Claudio de Paiva Franco Organizadores

fundamentos, prticas e reflexes para professores da era digital

Ensino de Leitura:

Rio de Janeiro Faculdade de Letras da UFRJ 2011

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Ensino de Leitura: Fundamentos, Prticas e Reflexes para professores da Era Digital

Copyright 2011 dos Autores

Projeto Grfico e Editorao Eletrnica: Claudio Franco Capa: Ktia Tavares e Paulo Godinho

Ficha catalogrfica G326 Ensino de Leitura: fundamentos, prticas e reflexes para professores da era digital / Ktia Cristina do Amaral Tavares, Slvia B. A. Becher-Costa, Claudio de Paiva Franco, organizadores. - Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2011. 220p. Inclui referncias ISBN: 978-85-8101-002-1 Livro eletrnico Modo de acesso: www.lingnet.pro.br 1. Leitura. 2. Ensino-aprendizagem 3. Novas tecnologias. I. TAVARES, Ktia Cristina do Amaral. II. Becher-Costa, Slvia B. A. III. Franco, Claudio de Paiva. CDD 371.32

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CONSELHO EDITORIAL

Andrea de Farias Castro (UERJ) Aurora Neiva (UFRJ) Cristina Jasbinschek Haguenauer (UFRJ) Fernanda Coelho Liberali (PUC-SP) Francisco Cordeiro Filho (UFRJ) Marcia Lobianco Vicente Amorim (PUC-Rio) Mnica Tavares Orsini (UFRJ) Patrcia Nora de Souza (UFJF) Selma Borges Barros de Faria (UFRJ) Vilson J. Leffa (PUC-Pelotas)

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SUMRIOEnsino de leitura na era digital: conexes entre teoria e prticaKtia Cristina do Amaral Tavares, Slvia B. A. Becher-Costa, Claudio de Paiva Franco 06

Leitura: conceitos e implicaes pedaggicasUma breve trajetria das abordagens pedaggicas da leitura: a alternativa sociocognitivista

Solange Coelho Vereza

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Por uma abordagem complexa de leitura

Claudio de Paiva Franco

A teoria traduzida em prtica: atividades de leitura baseadas nos conceitos de contexto de cultura e contexto de situao

Gisele de Carvalho

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Leitura na escola: como estimular os alunos a ler

Leonor Werneck dos Santos

Avaliao da aula de leitura instrumental: critrios de adequabilidade

Slvia B. A. Becher-Costa

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Ensino-aprendizagem de leitura com a mediao das novas tecnologiasReflexo, teoria e prtica sobre leitura e Internet: caminhos para orientao do professor de lngua estrangeira

Cristina de Souza Vergnano-Junger

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Usos da Internet no ensino-aprendizagem de leitura: sugestes de portos e rotas para o professor-navegador

Ktia Cristina do Amaral Tavares

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Competncia de busca no auxlio leitura de gneros digitais

Jos Paulo de Arajo

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O texto da internet na sala de aula do instrumental de Alemo: Consideraes sobre alguns conceitos

Maria Jos Monteiro

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O papel das interaes na sala de aula de leitura em LE com o uso das TICs na perspectiva scio-construtivista

Simone da Costa Lima

172

O ensino e a aquisio de vocabulrio em LE no contexto de ensino da leitura: foco na abordagem explcita em ambiente hipermdia

Patrcia Nora de Souza

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Sobre os autores

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Ensino de leitura na era digital: conexes entre teoria e prticaKtia Cristina do Amaral Tavares (UFRJ)1 Slvia B. A. Becher-Costa (UFRJ/PUC-Rio)2 Claudio de Paiva Franco (UFRJ)3

"Como se d com qualquer habilidade lingustica, o ensino de leitura uma questo complexa. Variveis bvias como a proficincia do aluno, idade, relaes entre L1 e L2, motivao, fatores de processamento cognitivo, fatores docentes, currculo e materiais, contexto instrucional e fatores institucionais, todas tm um impacto no grau de sucesso do ensino de leitura. Facilmente poderamos concluir que a leitura um processo complexo demais para conexes objetivas entre pesquisa e prticas instrucionais."4 William Grabe5

Compreender o que ler tem sido objeto de interesse de geraes de acadmicos, pesquisadores, filsofos e professores. Entender como se ensina ou como se aprende a ler tambm vem sendo alvo de investigaes e questionamentos. Grabe, na citao que encabea este captulo introdutrio, nos alerta que a complexidade1

[email protected] [email protected] 3 [email protected] 4 Trecho original Much as with any language skill, the teaching of reading is a complex matter. Obvious variables such as student proficiency, age, L1/L2 relations, motivation, cognitive processing factors, teacher factors, curriculum and materials resources, instructional setting, and institutional factors all impact the degree of success of reading instruction. One could easily come to the conclusion that reading is too complex a process for straightforward connections between research and instructional practices. 5 GRABE, William. Research on teaching reading. Annual Review of Applied Linguistics. vol. 24, Cambridge University Press, 2004, 44 69.2

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da habilidade leitora pode dar a impresso de que tal aptido no se presta compreenso objetiva ou simplista; de que as relaes entre a pesquisa sobre a leitura e o ensino da competncia no explicam o processo em seu todo. A leitura tem sido abordada por meio de diferentes concepes tericas, na interseo com vises ideolgicas variadas, ou estudada em diversas realizaes: no desenvolvimento cognitivo, na evoluo escolar, na apreciao literria, na percepo de contedo implcito, nos fatores de motivao para a leitura, nos caminhos percorridos na leitura digital, dentre inmeras outras outras perspectivas mais, ou menos, originais. Ainda assim, apesar de todo progresso na rea de leitura e letramento, ainda h uma profuso de desafios e questes a serem desvendadas. E h caminhos diversos que podem e precisam ser percorridos para que possamos construir um sentido mais abrangente do que vem a ser a leitura proficiente, de como a habilidade de leitura inter-age com outras habilidades lingusticas e cognitivas em geral, de como avaliar os processos de leitura, como relacionar novos construtos ao ato de ler. Entendemos que essas (ainda) incompreenses no campo da competncia leitora sinal da vitalidade da rea e da pertinncia de pesquisas que abordem facetas desconhecidas ou renovadas acerca da leitura. nesse sentido que apresentamos Ensino de Leitura:

fundamentos, prticas e reflexes para professores da era digital,como uma contribuio pesquisa, ensino e teorizao sobre leitura. Conseguimos reunir, nesta obra, pesquisadores e professores interessados no ensino de leitura e nas prticas pedaggicas que buscam promover o ato de ler, levando em considerao, particularmente, os contextos mediados por novas tecnologias. Este livro composto de onze captulos e organizado em duas partes. Na primeira, intitulada Leitura: conceitos e implicaes pedaggicas, agrupamos cinco textos direcionados a aspectos terico-metodolgicos que propiciam, sobretudo, discusses sobre as abordagens de leitura e de ensino de leitura. Na segunda, Ensino-aprendizagem de leitura com a mediao das novas tecnologias, encontramos seis captulos de

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natureza mais prtica sobre as relaes entre texto, Internet e leitura, com reflexes importantes em torno da formao de leitores da era digital. Iniciamos a primeira parte do livro com o texto Uma breve trajetria das abordagens pedaggicas da leitura: a alternativa sociocognitivista, em que Vereza pretende desenvolver uma breve reflexo acerca da trajetria do ensino de leitura em lngua estrangeira nas ltimas dcadas. Nesse captulo, a autora questiona a dicotomia comumente estabelecida entre a cognio e a dimenso scio/ideolgica abordando tanto seus aspectos conceituais quanto suas implicaes pedaggicas no mbito do ensino da leitura. Vereza prope que, alm da interao texto-leitor, prpria do modelo interacional de leitura, haja tambm uma constante interao entre estratgia e gnero para que a complementaridade entre cognio e discurso seja efetivada. Para ela, articular o conceito de estratgias de leitura ao de gnero e leitura crtica no implicaria inconsistncia terica nem pedaggica, no contexto do ensino da leitura. Dando continuidade discusso sobre concepes de leitura, no segundo captulo, Por uma abordagem complexa de leitura, Franco prope uma viso de leitura inspirada na Teoria da Complexidade, que entende a lingua(gem) como um sistema adaptativo complexo. O autor defende a noo de leitura como uma atividade complexa e dinmica, em que o fluxo de informaes multidimensional, partindo de cada e de todo elemento fora e dentro do sistema de leitura. No modelo complexo de leitura proposto, Franco afirma que o significado no est localizado em nenhum campo especfico. Ele emerge a partir da interao do leitor com os mltiplos elementos presentes tanto dentro quanto fora do sistema adaptativo complexo de leitura. No captulo seguinte, A teoria traduzida em prtica: atividades de leitura baseadas nos conceitos de contexto de cultura e contexto de situao, Carvalho argumenta que preciso que o criador de atividades de leitura se aproprie integralmente de uma teoria que permita a elaborao de tarefas que proporcionem ao

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aluno a possibilidade de perceber e explicar por que um texto se materializa do modo como o faz. A partir da anlise de resenhas de filmes e da apresentao de possveis atividades de compreenso dessas resenhas, a autora argumenta que as contribuies da Lingustica Sistmico-Funcional, em especial no que concerne Teoria de Gnero e Registro, oferecem bases slidas para a elaborao de atividades pelo professor. Em Leitura na escola: como estimular os alunos a ler, Santos discute diversas questes a respeito do trabalho com textos literrios e no-literrios na escola e, a exemplo de Carvalho, tambm sugere algumas atividades de leitura voltadas para alunos de ensino fundamental ou mdio, visando formao do leitor crtico. A autora questiona prticas pedaggicas que acabam retirando do aluno o prazer da leitura e aponta a necessidade do resgate desse prazer. Continuando a focalizar as prticas em sala de aula, encerramos a primeira parte com o texto Avaliao da aula de leitura instrumental: critrios de adequabilidade, no qual Becher rene e sistematiza elementos pedaggicos que formam um quadro referencial para balizar a anlise de aulas de lngua estrangeira dentro da proposta de ensino de leitura instrumental, ou seja, para fins especficos. Alm disso, a autora busca trazer um enfoque que tambm serve para a formao do professor de ingls para fins especficos com nfase em leitura, mas que visa, em primeira instncia, apontar para aspectos que devam estar iluminados ao avaliar uma situao pedaggica e o professor em atuao. A segunda parte deste livro comea com o captulo Reflexo, teoria e prtica sobre leitura e Internet: caminhos para orientao do professor de lngua estrangeira, em que Vergnano-Junger discute questes relacionadas compreenso leitora e apresenta alguns conceitos bsicos e aspectos da linguagem da Internet e da leitura mediada pelas novas tecnologias, que podem nortear a reflexo do professor ao elaborar atividades didticas. Destacando a importncia da escola e dos professores como agentes de fomento da criticidade e proficincia no uso das tecnologias da informao e comunicao (TICs) e seus benefcios, a autora tambm aborda atitudes e cuidados

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do docente em sua relao com recursos da Internet, a serem utilizados no desenvolvimento das habilidades leitoras em LE de seus alunos. No captulo seguinte, Usos da Internet no ensinoaprendizagem de leitura: sugestes de portos e rotas para o professornavegador, Tavares busca sistematizar, a partir de exemplos de sites e recursos representativos, como a Internet, enquanto fonte e meio de distribuio de informao e tambm enquanto meio de comunicao entre pessoas, pode ser utilizada para o ensinoaprendizagem de leitura, de modo especial no contexto de cursos de lnguas para fins especficos. A autora ainda aborda os conceitos de Web 2.0 e Web 3.0 e suas possveis relaes com o ensino de leitura. Em Competncia de busca no auxlio leitura de gneros digitais, Arajo argumenta que a construo da competncia de leitura dos gneros digitais depende, em parte, da capacidade de uso das ferramentas de busca. O usurio que souber explorar a inteligncia dessas ferramentas ser capaz de navegar no universo de informaes da Web e chegar aos destinos desejados. Segundo o autor, como as ferramentas so apenas sistemas de computador e, por conseguinte, incapazes de interpretar as intenes ou necessidades especficas dos usurios, resta a estes, ento, aprender a extrair o mximo das ferramentas de busca por meio de uma negociao de significado. No captulo O texto da internet na sala de aula do instrumental de Alemo: Consideraes sobre alguns conceitos, Monteiro aborda as diferenas e semelhanas entre o texto e hipertexto, apontadas na literatura, bem como as concluses possveis a partir de uma leitura do artigo Mythos Hypertext. A autora conclui que as ligaes externas no hipertexto, ou seja, organizadas de acordo com consideraes lgicas, sempre determinadas por outros e, s vezes, condicionadas por fatores de mercado, no tm nada mais em comum com as associaes configuradas individualmente no crebro. No quinto texto desta parte, O papel das interaes na sala de aula de leitura em LE com o uso das TICs na perspectiva scioconstrutivista, Lima destaca a mudana de foco na interao entre pessoas por meio do computador, a partir do desenvolvimento das

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redes de comunicao eletrnica. De acordo com a autora, as principais interaes ocorridas em sala de aula de leitura com o uso do texto eletrnico, em especial, o hipertexto, se referem s que acontecem de forma paralela s atividades de leitura. Em sala de aula, antes, durante e aps a interao leitor-autor(es) via hipertexto, o aprendiz interage tambm com o seu professor e com os demais alunos-leitores. Sua compreenso textual e seu conhecimento so construdos a partir dessas interaes. Por fim, em O ensino e a aquisio de vocabulrio em LE no contexto de ensino da leitura: foco na abordagem explcita em ambiente hipermdia, Souza prope uma reflexo sobre o potencial comunicativo do ambiente hipermdia, destacando algumas vantagens que ele traz para o ensino de lnguas em geral. A partir dos dados obtidos por meio de um estudo com 72 alunos de Ingls Instrumental de modalidades de ensino distintas: presencial e a distncia, a autora discute a relevncia do uso da hipermdia para o aprendizado explcito de vocabulrio, bem como as situaes em que este pode ou no contribuir para a aquisio lexical. Ao buscar articular questes tericas e prticas referentes ao ensino de leitura no contexto de uma sociedade cada vez mais mediatizada, esperamos, com este livro, contribuir para a reflexo de professores de leitura sobre sua prtica pedaggica e sobre as teorias que as fundamentam. Desejamos tambm que essas reflexes possam se desdobrar em dilogos dentro de comunidades de professores de leitura, em projetos de reconstruo de prtica pedaggica e em novas publicaes sobre o tema, que precisa ser continuamente discutido, sob diferentes perspectivas, especialmente por aqueles que acreditam que saber ler textos tambm saber ler o mundo, transformando-o e sendo transformado por ele.

Ktia Tavares Slvia Becher Claudio Franco

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LEITURA: CONCEITOS E IMPLICAES PEDAGGICAS

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Uma breve trajetria das abordagens pedaggicas da leitura: a alternativa sociocognitivistaSolange Coelho Vereza (UFF)6

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Introduo

Este captulo pretende desenvolver uma breve reflexo em torno da trajetria do ensino de leitura em lngua estrangeira nas ltimas dcadas. O argumento a ser aqui explorado o de que cada proposta inovadora, introduzida nesse cenrio, no significa uma ruptura com a anterior; pelo contrrio, a articulao entre elas no apenas coerente do ponto de vista terico, como teria efeitos claramente positivos na prtica pedaggica, no contexto do ensino da leitura. As perspectivas especficas que discutiremos so aquelas, em um primeiro momento, de base psicolingustica ou cognitiva e, em um segundo momento, discursiva e sociointeracional. Privilegiar uma em detrimento de outra, por razes de modismos ou de um purismo terico, implica a no observncia do desenvolvimento da capacidade leitora em lngua estrangeira, que no , como muitas abordagens recentes parecem pressupor, completamente isomrfica quela em lngua materna. 2 O contexto socioeducacional

O ensino de leitura, principalmente em lngua estrangeira, tem, nas ltimas dcadas, recebido bastante ateno entre os tericos e especialistas na rea da Lingustica Aplicada. Esse interesse tem sua6

[email protected]

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origem em vrios fatores, destacando-se dois deles: o primeiro, de natureza socioeducacional, e o segundo, terica. No campo da educao, a leitura foi eleita como a habilidade a ser privilegiada em programas de lngua estrangeira, principalmente no contexto escolar (em oposio a contextos do ensino de idiomas em cursos livres). No caso brasileiro, a nfase dada leitura nos PCNs7, bastante conhecida pelos profissionais da rea, contempla tanto o potencial educacional e multiplicador da leitura, pelo seu carter potencialmente interdisciplinar, quanto a possveis caractersticas (ou alguns diriam, limitaes) do ensino de lngua estrangeira nas escolas brasileiras, principalmente no setor pblico. O grande nmero de alunos em sala de aula falta de recursos materiais, carga horria insignificante e professores desmotivados e mal pagos so alguns dos fatores usados como justificativa para se adotar o ensino voltado para a leitura como o mais vivel em contexto to adverso. Desta forma, o ingls instrumental ficou to atrelado, na prtica, ao ensino de leitura em lngua estrangeira (LE), que os termos passaram a ser usados, com frequncia, como sinnimos, apesar do ensino instrumental poder ser dirigido a propsitos e/ou habilidades diversos. Essa tendncia no campo educacional e, principalmente, no campo curricular (elaborao de currculos e programas), passou a requerer um aparato pedaggico que pudesse dar conta no apenas do qu ensinar (no caso especfico, leitura), mas de como ensinar essa habilidade. Afinal, a nova prioridade dada leitura no poderia ser concretizada sem uma reavaliao das prticas at ento vigentes, envolvendo o trabalho com textos em sala de aula. Para isso, foi necessrio revisitar, problematizar e redefinir o prprio conceito de leitura, uma atividade que, para o leigo, e at mesmo para muitos professores, aparenta ser bastante simples, principalmente se for dirigida queles que j passaram pelo processo de alfabetizao.7

Parmetros Curriculares Nacionais. Disponvel em:

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No caso da leitura de textos em LE, esse processo seria mais complexo apenas pelo desconhecimento de palavras provenientes de outro cdigo lingustico presentes no texto. Uma vez tendo aprendido essas palavras (o que quer se entenda por aprender uma palavra), o texto, que no passaria da soma dos sentidos de cada item lexical, mostrar-se-ia, se no absolutamente claro, pelo menos suficientemente inteligvel para o leitor. Como a leitura, na era psensino gramtica/traduo (Grammar translation method) foi relegada a um segundo plano durante a hegemonia do audiolingualismo, o seu ensino no recebeu qualquer ateno por parte de especialistas. nesse cenrio que surgem propostas tericas que viriam a influenciar sobremaneira a prtica pedaggica voltada para esse ensino. 3 Teorizando o processo da leitura: o paradigma cognitivista

Os modelos de leitura que surgiram a partir da dcada de sessenta, de base psicolingustica (em especial Goodman, 1967), desnaturalizaram a viso simplista da construo de sentidos do texto pelo leitor, passando a orientar diversas abordagens pedaggicas do ensino da leitura, no caso de serem teoricamente amparadas e terem carter sistemtico (isso porque no h como afirmar que, mesmo aps quase meio sculo, as prticas pedaggicas, em sua maioria, abordam a leitura a partir de um mnimo de fundamentao terica e/ou metodolgica). Um dos ganhos conceituais desses modelos de natureza cognitiva8 foi a hoje j clssica distino entre processos ascendentes e

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Tanto a viso de leitura proposta por Goodman (1967), como as propostas de modelos ascendente e descendente e, como, veremos adiante, a prpria noo de estratgia cognitiva (Kleiman,1989) abordam a leitura como um processo cognitivo. Nesse sentido, haveria uma relao direta entre essas propostas e abordagens de natureza psicolingustica para a produo e compreenso de linguagem que, segundo Malmkjaer (1991), representam o objeto da psicolingustica. A Cognio, de um modo geral, tem um carter mais amplo, incluindo no s processos, como tambm

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descendentes no ato da leitura, e suas aplicaes ou implicaes em certos modelos e abordagens que focariam nos primeiros, enquanto outros nos segundos. A leitura focada nos modelos ascendentes, ou seja, um movimento do texto (em seus aspectos fundamentalmente lingusticos) para o leitor, pressuporia uma viso de leitura como decodificao (Nuttall, 1982). Nesse sentido, as palavras e o conhecimento sistmico como um todo se tornam soberanos. O texto, assim, visto como um cdigo a ser decifrado pelo leitor, que reproduziria em sua mente o sentindo original e nico que emanaria do texto. A metfora do canal, proposta por Reddy (1993), para explicar a viso tradicional (inclusive a do senso comum) de comunicao, resume bem essa perspectiva de leitura: mente do autor (recipiente 1) que contm sentidos, que so colocados em palavras (recipiente 2), as quais, por sua vez, so inseridas em um texto (recipiente 3) e que, ao serem enviadas por um canal ou conduto (processo de leitura), so recebidas pela mente do leitor (recipiente 4), que extrai os contedos das palavras e os decodifica. Assim a mente-recipiente do leitor tem acesso ao mesmo contedo da mente-recipiente do autor. Se esse contedo for diferente do original, porque houve uma pane no processo de transmisso. O processo descendente implicaria o caminho inverso, ou seja, o leitor inscreve o seu conhecimento de mundo (o clssico conceito de schemata) e as expectativas dele geradas no processo de produo de sentidos. Sem o leitor, no h sentido algum, no h imanncia no texto, que seria apenas um espao com alguns tijolos que requereriam o projeto do engenheiro e as mos do operrio para se tornarem construo. Uma viso radical (Fish, 1980) preconizaria at mesmo a no existncia do texto fora de sua relao fundadora com o leitor. A proposta de interao entre esses dois processos, em que a articulao dialgica entre o texto (com suas especificidades lingusticas) e o leitor (com seus conhecimentos prvios) responsvelrepresentaes mentais (Jakendoff, 2007). Sendo assim, conceitos como schemata e frame pertencem, tambm, ao paradigma cognitivista de leitura.

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pela construo de significados, reiterou-se como o modelo interativo de leitura, diminuindo o hiato entre os extremos dos modelos anteriores. Essas novas perspectivas foram visivelmente influentes no desenvolvimento de abordagens pedaggicas para o ensino da leitura que, como vimos na seo anterior, comeavam a se colocar como uma alternativa socioeducacionalmente slida em propostas de ensino instrumental de lngua estrangeira, inclusive (e mais tarde, principalmente) no contexto brasileiro. O modelo ascendente era aquele que subjazia, mesmo de uma forma no explicitada nem professada, s prticas tradicionais de leitura, de vis estruturalista, que, ou buscavam as estruturas lingusticas do texto (o conhecido conceito de texto como pretexto) ou focavam o texto como recipiente de contedos estveis (o que o autor diz, o que est no texto, a mensagem contida no texto, etc.). Assim, os textos usados em materiais didticos eram vitrines mais ou menos glamorosas que apresentavam os itens gramaticais e lexicais a serem trabalhados nas unidades. Por outro lado, a viso forte do modelo descendente passou a retirar das palavras, da sintaxe e muitas vezes do prprio texto a supremacia do sentido, transferindo a sua fonte para o leitor, com toda a sua experincia do mundo. O leitor como construtor seria aquele que desempenharia um processo bem ativo na produo de sentidos: era o engenheiro, o mestre de obras e o prprio operrio, trazendo, muitas vezes, para o canteiro de obras, seu prprio tijolo e cimento (seu repertrio, Iser, 1979) para efetuar a construo. As tcnicas da construo, por outro lado, seriam as estratgias de leitura, tipos de aes de natureza cognitiva, que viabilizariam a tarefa do construtor. Essa centralidade dada ao leitor, do ponto de vista de sua participao cognitiva, traduziu-se pedagogicamente em uma abordagem, conhecida como mtodo ou abordagem instrumental, muito popular no contexto brasileiro. Essa abordagem envolvia o uso de estratgias de pr-leitura e previso (acionar os conhecimentos prvios, ou escolher o material da obra, para continuar em nossa

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metfora operacional da construo), durante a leitura (direcionar o foco da leitura para aspectos gerais skimming ou especficos scanning) e ps-leitura (explorar o texto construdo pelo aprendiz). Vrios materiais didticos para leitura foram, a partir, principalmente, da dcada de oitenta at hoje, pautados pela agenda instrumental e so ainda hoje largamente usados no Brasil, particularmente em cursos de leitura em ingls em universidades e em vrias escolas de nvel mdio. 4 Que seja bem-vindo o gnero!

A conceituao de gnero muito mais complexa do que se pode pensar a princpio, e no o propsito desta breve reflexo explorar esse conceito com profundidade. importante lembrar, no entanto, que a noo de gnero pode ser vista, principalmente, a partir de duas vertentes: a anglo-saxnica e a francesa. A primeira parece ter exercido uma influncia bem direta na abordagem instrumental, sendo inclusive conhecida, em algumas esferas, por a linha ESP (English for specific purposes) de gnero. Isso porque essa vertente foi introduzida por Swales (1990) e Bhatia (1993), a partir de um estudo voltado para as caractersticas textuais e discursivas de artigos acadmicos, muito usados no ensino de ingls instrumental. As noes de movimento retrico (moves), aspectos macro organizacionais do texto, constitutivos dos gneros estudados; de comunidade discursiva, produtora e leitora/usurio de determinados gneros) e, finalmente, de propsito comunicativo de um gnero, ou seja, a sua funo, enquanto prtica sociodiscursiva, foram fundamentais para a incorporao do gnero dentro do projeto instrumental. Em um primeiro momento, essa noo de gnero serviu para determinar a escolha dos textos trabalhados. Antes pedagogicamente manipulados, simplificados e destitudos de qualquer autenticidade e funo comunicativa, os textos, j dentro da nova viso, deveriam ser representativos da diversidade de gneros caractersticos das comunidades discursivas que se pretendia promover. Na escola mdia,

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contexto em que no havia uma primazia de esferas discursivas especficas a serem promovidas, passou-se a selecionar gneros mltiplos; desde um anncio de jornal, a uma bula de remdio ou carta comercial. Hoje, podemos encontrar, inclusive, exemplares de gneros digitais como e-mails, blogs, sites de relacionamento, entre outros, em vrios matrias didticos voltados para a leitura. Em um segundo momento, a diversidade na seleo de textos deixou de ser a nica influncia dos estudos do gnero no ensino de leitura. Passou-se a ter uma preocupao de como esses gneros poderiam ser trabalhados para alm das estratgias cognitivas conhecidas. Ou seja, como se trabalhar um determinado gnero como gnero, ou seja, como uma prtica sociodiscursiva com propsitos reconhecidos e legitimados culturalmente? Esse desafio, na prtica pedaggica, resultou na formulao de perguntas como: que tipo de texto este? Onde podemos encontr-lo? Quem seria o produtor desse tipo de texto? Quem seria o leitor/usurio alvo? Para que serve este texto? Como ele se organiza internamente? Que aspectos do texto seriam essenciais ou perifricos para que ele continue a ter a mesma funo? Enfim, colocou-se em prtica o reconhecimento de que um gnero, para ser entendido como tal, em sua insero social e discursiva, no poderia ser abordado apenas pelas estratgias cognitivas tradicionais. 5 Gnero a francesa: uma perspectiva dialgica e sociohistrica

A segunda vertente dos estudos do gnero, desenvolvida, principalmente, na Frana (Bronckart, 1997, entre outros), no adquiriu um carter essencialmente pragmtico (no sentido da teoria pragmtica) da vertente anglo-saxnica, cuja principal bandeira seria o propsito comunicativo do gnero (mais do que seus aspectos puramente formais). Com grande influncia do pensamento bakhtiniano (Bakhtin, 1986, 1996), a linha francesa d grande nfase insero sociohistrica do gnero e ao carter dialgico da leitura. As condies de produo do gnero (em que contexto sociohistrico, de

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quem, para quem) determinariam a ideologia subjacente que, em ltima anlise, estaria no cerne da natureza do gnero. Dialogar com as diferentes vozes inscritas em diferentes gneros passou a ser considerado o cerne do processo da leitura. Essa perspectiva resultou em uma srie de pesquisas que se traduziram no que ficou conhecido como leitura crtica, posteriormente explorada por, inclusive, pesquisadores ingleses e americanos (Wallace, 1992; Kurland, 2010, Baynham, 1995 ), influenciados pela anlise crtica do discurso (Fairclough, 1999; Kumaravadivelu, 1999) e pela pedagogia crtica (Pennycook, 1994 e 1999), e brasileiros (Busnardo e Braga, 2000 e Meurer, 2000, entre outros). Sendo assim, refletir apenas sobre o tipo de texto, onde foi produzido, para quem e com que finalidade no contemplaria o que, para os defensores da viso crtica, seria o mais essencial nos textos: os no ditos, as escolhas verbais e visuais aparentemente inocentes, as ideologias subjacentes, as entrelinhas que falam mais, mesmo que silenciosamente, do que o verbo. Dentro dessa perspectiva, as estratgias cognitivas, por tratarem de um sentido que no passava necessariamente ou explicitamente pelo ideolgico, passaram a ser vistas com um certo desdm pelos seguidores da vertente crtica. Na verdade, o prprio conceito de cognio (muito associado ao gerativismo na lingustica) passou a ser associado como algo alienado/alienante, por no estar atrelado, diretamente, a aspectos sociohistorica ou ideologicamente relevantes. Ou seja, cognio e crtica foram dicotomizados, resultando, a meu ver, em efeitos nocivos para a abordagem pedaggica da leitura. 6 A sociocognio: ecletismo ou articulao?

Para deixar clara a minha posio neste captulo, pretendo argumentar a favor da articulao entre cognio e discurso (usos da linguagem sociohistoricamente inseridos), tanto do ponto vista terico quanto pedaggico, no contexto do ensino da leitura.

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Turnner (2001), conhecido terico da linguagem, que desenvolveu a teoria dos espaos mentais e da mesclagem, rejeita totalmente a possibilidade de se separar a cognio dos aspectos sociais na produo de sentidos (o que Chomsky pretendeu fazer em sua teoria gerativista). Ou seja, o autor, como Tomasello (1999), defende o no inatismo dos aspectos cognitivos, os quais, ele acredita, tm a sua origem na relao do homem, com o corpo e a mente que tem, com a cultura ou o meio social em que est inserido. A viso de cultura do sociocognitivismo plstica o suficiente para abarcar a noo de ideologia. Essa articulao sistematicamente desenvolvida por Van Dijk (2008a, 2008b), que preconiza que a nossa cognio no um produto individual: ela fruto de instncias compartilhadas por um mesmo grupo social s quais o prprio indivduo no tem, necessariamente, acesso. Nessa perspectiva, os textos que circulam em esferas sociais compartilhadas fazem parte e, dialeticamente, tambm constroem, essa viso sociocognitiva do mundo. preciso descartar a cognio para pensarmos ideologia? A cognio teria que ser feita de uma matria diferente ou simplesmente no existiria? Como os autores citados acima, advogo uma viso de cognio sociohistoricamente situada, acreditando que, essa postura pode nos levar a uma abordagem pedaggica da leitura mais dinmica e plural e, portanto, mais eficiente. Rejeito, assim, o rtulo de ecletismo para uma proposta em que a vertente scio (cognitiva) dialogue com a perspectiva crtica para que, a partir do trabalho com gneros, o ensino da leitura possa se beneficiar de reflexes enriquecedoras sobre a construo de sentidos. 7 guisa de ilustrao

Tendo explicitado e defendido o posicionamento terico no qual a presente reflexo se insere, passemos agora a algumas possibilidades prticas resultantes da viso defendida.

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As estratgias de leitura no so meros recursos cognitivos, ou tcnicas de pensamento, didaticamente traduzidas. Elas so sociodiscursivamente atreladas a gneros textuais. Assim, dependendo do gnero, usaremos estratgias x ou y. Pensemos em um anncio, comercial, por exemplo. No faz sentido buscar o sentido geral de uma propaganda. Logo, a atividade de skimming deve responder ao propsito comunicativo, que sociohistoricamente construdo e sociognitivamente reificado, para este gnero: o que o anncio quer vender. Nesse caso, podemos pensar mais naturalmente em scanning (qual o produto, para que serve, quanto custa, onde vendido) do que em uma ideia central (skimming). Essas estratgias no so apenas cognitivas: formam a prtica social, discursivamente inserida e apropriada pelos membros da comunidade, da leitura de um anncio. Saber identificar o problema cuja soluo se encontra na compra do produto tambm faz parte da prtica social desse gnero. O problema apresentado (voc tem caspa?) no apenas um movimento retrico inerente ao gnero propaganda. Ele faz parte da estratgia da promoo do produto (um dado xampu), que seria a soluo do problema. Essa uma questo tanto cognitiva, quanto discursiva e ideolgica. Saber explor-la pedagogicamente, a partir desses trs nveis, seria imprescindvel para se abordar o texto de propaganda em sala de aula. Outros gneros requerem outras estratgias: capa de jornal: skimming; bula de remdio: scanning; um artigo: skimming e leitura intensiva. Essas associaes, vale repetir, so sociohistoricamente construdas; so prticas que aprendemos da mesma forma que aprendemos vrias outras atividades sociais verbais ou no verbais. Por essas prticas estarem imbudas de ideologia, a leitura crtica serve para revel-la e problematiz-la. Voltando ao exemplo do anncio, saber que, muitas vezes, o problema apresentado criado para que o produto possa ser vendido faria parte de um questionamento crtico perante o anncio (como no caso de um desodorante que se apresenta como clareador de axilas escuras, o

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que, sociocognitivamente nunca foi visto como um problema para a maior parte das mulheres, mas pode passar, facilmente, a s-lo). Direcionar as estratgias de ps-leitura para essas prticas que desnaturalizam os sentidos implcitos dos textos uma forma de se trabalhar sociocognitivamente a reflexo crtica. Assim, articular as estratgias ao gnero e leitura crtica no implicaria inconsistncia terica nem pedaggica, no contexto do ensino da leitura. A grande nfase que se tem dado aos fatores sociohistricos em detrimento dos sociocognitivos pode mascarar a multiplicidade de fatores envolvidos na prtica social da leitura e, novamente, voltar o processo de leitura para um sentido nico, um produto (aquele que o professor desvelou atravs de sua leitura crtica) e no para o processo de construo, que seria operacionalizado pelo uso de estratgias sociocognitivamente orientadas. 8 Consideraes finais

Dicotimizaes, de um modo geral, tm se mostrado, principalmente na ps-modernidade, como alternativas conceitualmente redutoras. A dicotomia aqui tratada, entre a cognio e a dimenso scio/ideolgica, foi problematizada, tanto em seus aspectos conceituais quanto nas suas implicaes pedaggicas, no mbito do ensino da leitura. Propomos que, alm da interao texto-leitor, prpria do modelo interacional de leitura discutido anteriormente, haja tambm uma constante interao entre estratgia e gnero para que a complementariedade entre cognio e discurso, seja, de fato, efetivada. E que o scio (de sociocognio) no seja apenas um prefixo, mas caia no esquecimento da lngua tal a sua simbiose com o termo que precede.

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Por uma abordagem complexa de leitura 9Claudio de Paiva Franco (UFRJ)10

1

Introduo

O surgimento de uma nova abordagem de leitura, assim como teoria de aquisio de segunda lngua (ASL), no representou apenas uma reao ao modelo anteriormente predominante, mas, sobretudo, baseou-se na concepo de linguagem da poca. Neste captulo, fao uma breve descrio das trs principais abordagens de leitura (decodificadora, psicolingustica e interacional) e proponho a viso de leitura inspirada na Teoria da Complexidade, que entende a lingua(gem) como um sistema adaptativo complexo (SAC) (ELLIS; LARSEN-FREEMAN, 2009). 2 Abordagens de leitura

Antes de tratar da concepo de leitura como sistema complexo, faz-se importante compreendermos a histria das teorias de leitura. Esta seo organizada com base nas trs principais abordagens de leitura: decodificadora (subseo 2.1), psicolingustica (subseo 2.2) e interacional (subseo 2.3). Segundo Silva (2004), esses modelos de leitura implicam diferentes conceitos de linguagem. Na concepo decodificadora, a linguagem espelho do raciocnio; para a abordagem psicolingustica, a linguagem instrumento de comunicao; e, no ltimo modelo de leitura, a linguagem vista como processo de interao.9

Agradeo professora Vera Menezes pela primeira leitura deste texto e comentrios. 10 [email protected]

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2.1

Abordagem decodificadora

No modelo de decodificao de leitura ou ascendente (do ingls bottom-up), predominante entre os anos 1930 e 1960, o leitor tenta entender todo o texto por meio do significado de cada palavra ou de cada unidade gramatical. Nessa abordagem, a construo do sentido feita a partir do texto, ou seja, o leitor, que tem um papel receptivo, extrai significados do que est escrito na pgina, decodificando o cdigo escrito, pois a viso adotada de que todo o contedo est inserido somente no texto e no no leitor. Em outras palavras, o sentido um processo dirigido pelo texto, sem a interveno do leitor e seu conhecimento de mundo. Para Gough (1972), os leitores tratam letras e palavras, em um texto, de forma completa e sistemtica. Eles so recipientes passivos de informao, agindo como meros reprodutores do contedo escrito ou impresso. Segundo Amorim (1997), esse tipo de ensino de leitura enfatiza a gramtica e o vocabulrio, servindo o texto apenas como um pretexto para o leitor decodificar as unidades lingusticas. Esse modelo de leitura tem aplicao quando o leitor utiliza conhecimentos de formao de palavras (o emprego de afixos) para depreender o significado de um vocbulo. Conforme apontado anteriormente, cada modelo de leitura esteve ancorado viso de lingua(gem) predominante da poca. O modelo de decodificao de leitura reflexo de uma concepo estruturalista de lingua(gem). A leitura era vista como um auxlio para a aprendizagem de estruturas corretas. Os aprendizes eram orientados a ler um texto em voz alta com o objetivo de praticar a pronncia na lngua-alvo o que sinaliza o foco na estruturao, na sequncia de elementos que compe o texto. Em outras palavras, a nfase, nessa concepo de lingua(gem), estava sempre voltada para o produto lingustico e no para o processo cognitivo ou social. Segundo Kern e Warschauer (2000), durante muito tempo boa parte do sculo XX e nos sculos anteriores , o ensino de lnguas

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enfatizou a anlise formal do sistema de estruturas que compem um determinado idioma. Um exemplo foi o mtodo tradicional de gramtica e traduo, que surge por volta do sculo XVIII e perdura at o incio do sculo XX, em que os aprendizes aplicavam regras prescritivas e realizavam atividades como leitura e traduo de textos literrios, memorizao de vocabulrio e ditados. A partir do sculo XX, sob a influncia da corrente behaviorista e fortemente influenciada por psiclogos comportamentais como Watson e Skinner, a aprendizagem de lnguas era concebida como formao de hbitos. Culminou, entre 1940 e 1950, o mtodo audiolingual, em que os aprendizes praticavam mecanicamente dilogos e exerccios de repetio, elaborados para condicion-los a produzir respostas automticas e corretas como reao a estmulos lingusticos. Mais tarde, crticos do behaviorismo condenaram esse mtodo por ser extremamente mecnico e de base terica insustentvel. Uma nova abordagem de ensino estava por vir a psicolingustica. 2.2 Abordagem psicolingustica

Em meados de 1960, surgiu o modelo psicolingustico de leitura ou descendente (do ingls top-down), em oposio abordagem anterior. Essa viso de leitura refere-se perspectiva do leitor, isto , a construo do significado no mais um processo de extrao, mas de atribuio de sentidos, algo que ocorre na mente desse leitor. Dessa forma, considera-se o conhecimento prvio do leitor, que acionado durante o processo de leitura. A nfase dada no mais nas pistas textuais, mas passa a ser na previsibilidade, ou seja, na capacidade de o leitor antecipar informaes contidas no texto sem que precise confirm-las no texto. Para Goodman (1967), a leitura um jogo de adivinhao psicolingustico, no qual o leitor busca criar inteligibilidade a partir do texto. Conforme Leffa (1996), as abordagens ascendente e descendente de leitura so antagnicas. Na primeira, ler extrair significado do texto; na segunda, ler atribuir significado ao texto. A

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acepo de leitura na primeira abordagem apresenta vrias limitaes, sendo o leitor subordinado ao texto e restrito apenas informao que passa pelos olhos. Tendo como foco o leitor, o segundo modelo de leitura possibilita que cada um tenha uma percepo diferente, uma vez que o leitor carrega conhecimento prvio de mundo para o texto. Nossos olhos no passeiam pelo texto da mesma forma. Nas palavras de Leffa (1996, p. 14-15), a compreenso no comea pelo que est na frente dos olhos, mas pelo que est atrs deles. Na poca em que predominou o modelo de leitura descendente, o ensino de leitura foi influenciado por abordagens cognitivas. A partir da evoluo de pesquisas em leitura em lngua materna, os educadores de segunda lngua comearam a conceber o ato de ler como um processo individual psicolingustico. Segundo Amorim (1997), com o objetivo de promover a compreenso textual, a concepo psicolingustica introduziu estratgias de leitura para ajudar o aluno com deficincias lingusticas e lexicais. So elas: leitura para a compreenso geral (skimming), de pontos especficos (scanning) e para a compreenso detalhada. A abordagem cognitiva de Noam Chomsky inspirou o modelo de leitura descendente, rejeitando a noo de aprendizagem de lnguas fundamentada na viso behaviorista de lingua(gem). Ele argumentou que a competncia lingustica de um falante no pode ser reduzida a um modelo baseado em imitao e formao de hbitos. O argumento revolucionrio de Chomsky est pautado na concepo de que todos nascem com uma gramtica inata, isto , um conjunto definido de regras mentais que possibilitam s crianas criar e produzir frases que elas nunca ouviram. Como Kern e Warschauer (2000) apontam, a teoria chomskiana contribuiu para uma mudana gradual de objetivos no ensino de lnguas; de incutir hbitos lingusticos precisos para promover a construo mental de um sistema de segunda lngua. Com isso, a aprendizagem de lnguas passou a ser entendida no como uma resposta condicionada, mas como um processo ativo de gerar e transformar conhecimento.

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Mais adiante, com as hipteses de Krashen (1978), deu-se nfase na oferta de insumo compreensvel (comprehensible input) em detrimento ao ensino exclusivo de gramtica. Para Krashen (1985), a ASL ocorre por meio de insumo compreensvel e com filtro afetivo baixo suficiente para permitir a entrada desse insumo. Assim, a aquisio inevitvel e o que ele chama de rgo mental da linguagem funcionar automaticamente como qualquer outro rgo. Em resposta noo de competncia lingustica de Chomsky, Dell Hymes e Michael Halliday argumentam que a lingua(gem) no uma instituio privada, localizada na mente do homem, mas um fenmeno social. Foi a partir dessa nova perspectiva e da noo de competncia comunicativa (termo cunhado por Hymes) que uma nova abordagem eclodiu a interacional, como discuto a seguir. 2.3 Abordagem interacional

Surge, a partir dos anos 80, a abordagem interacional ou conciliadora, em que atribuda nfase na interao leitor-texto no ato de ler. Esse modelo de leitura combina pontos fortes dos modelos anteriores o de decodificao e o psicolingustico. De acordo com Dechant (1991), o leitor constri significado por meio do uso seletivo de informao de todas as fontes de significado (grafmica, fonmica, morfolgica, sinttica, semntica), sem adeso a qualquer ordem prestabelecida. O leitor utiliza simultaneamente todos os nveis de processamento, embora uma fonte de significado, em um determinado momento, venha a ser primria. Goodman (1981) afirma que o modelo interacional aquele em que usa o texto impresso como input e tem o significado como output. Contudo, o leitor tambm fornece input e ele, ao interagir com o texto, seletivo em usar as pistas textuais necessrias para construir significado. Na verdade, o significado no se encontra nem no texto nem no leitor, mas construdo por meio das interaes entre ambos. Metaforicamente, Leffa (1996) associa o papel da interao leitor-texto a engrenagens correndo uma dentro da outra; onde as

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reas de contato devem ser simetricamente opostas, pois quando falta encaixe nas engrenagens, leitor e texto ficam rodando soltos. Outro proponente da abordagem interacional de leitura Rumelhard. O terico (1985) argumenta que a leitura , ao mesmo tempo, um processo perceptivo e cognitivo. Trata-se de um processo aproximar essas duas distines tradicionais. Alm disso, um bom leitor deve ser capaz de fazer uso de informaes sensoriais, sintticas, semnticas e pragmticas para compreender o texto. Rumelhard reconhece que essas diversas fontes de informao parecem interagir de vrias maneiras complexas durante o processo de leitura. No modelo interacional, o fluxo de informao passa a ser bidirecional, ou seja, uma combinao dos fluxos ascendente e descendente. Para Amorim (1997, p. 78), o leitor faz previses sobre o texto com base em sua experincia ou conhecimento prvio (i.e. conhecimento esquemtico) e checa as informaes contidas no texto de modo a confirmar ou rejeitar suas previses. Essa terceira abordagem de leitura, no entanto, no deve ser entendida somente como a soma das duas abordagens anteriores, mas preciso considerar tambm o processo de interao entre o texto e o leitor. Leffa (1996, p.17) faz uma analogia entre o processo da leitura e uma reao qumica e diz que para termos uma reao necessrio levar em conta no s os elementos envolvidos, mas tambm as condies necessrias para que a reao ocorra. Para melhor compreendermos que a abordagem interacional no uma simples combinao dos modelos ascendente e descendente, precisamos retomar o contexto histrico com incio nas postulaes de Hymes. O sociolinguista americano (1971) defendeu a adequao lingustica e destacou a relevncia do uso da lngua em detrimento de regras gramaticais. Para ele, gramaticalidade e adequao social so inseparveis, assim como cognio e comunicao. Ao considerar essas questes de uso da lngua, o processo comunicativo ganhou importncia e a instruo tornou-se mais centrada no aprendiz e menos no ensino de estruturas lingusticas. Na abordagem interacional, a leitura no entendida

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apenas como um processo perceptivo e cognitivo, mas , principalmente, uma atividade social. O ensino de lnguas, conforme Kern e Warschauer (2000) explicam, era visto no apenas como uma maneira de oferecer insumo compreensvel, mas de ajudar os aprendizes a se engajar em situaes e comunidades discursivas autnticas, encontradas fora da sala de aula. Apareceram, ento, os modelos de aprendizagem baseados em projetos (task-based learning) e por contedo (content-based learning). Em se tratando da leitura, ela passou a ser vista como um processo integrado em determinados contextos socioculturais. O ensino de leitura buscou desenvolver no apenas determinadas estratgias de aprendizagem, mas, sobretudo, a competncia sociocultural e intercultural dos leitores. 3 Leitura e complexidade

Esta seo tem por objetivo apresentar a proposta de abordagem de leitura complexa, inspirada na Teoria da Complexidade, que concebe a lingua(gem) como um SAC (ELLIS; LARSEN-FREEMAN, 2009). Para que melhor possamos entender o modelo de leitura proposto (subseo 3.3), discuto, primeiramente, o paradigma emergente da Complexidade, as caractersticas e comportamentos presentes em sistemas complexos (subseo 3.1) e teo consideraes importantes sobre a viso de linguagem como SAC (subseo 3.2), que fundamenta a concepo de leitura complexa. 3.1 A Teoria da Complexidade

A Teoria da Complexidade (doravante, TC) tambm conhecida como teoria dos sistemas complexos. Mas o que um sistema? Uma definio dicionarizada11 para o termo sistema indica11

Definio da palavra sistema no Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa.

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que ele qualquer conjunto natural constitudo de partes e elementos interdependentes. Por extenso de sentido, refere-se inter-relao das partes, elementos ou unidades que fazem funcionar uma estrutura organizada. Trata-se de um conjunto de componentes que interagem entre si e que formam um todo integrado e coerente12. Para Langefors (1995, p. 5), sistema geral um conjunto de entidades que se relacionam. Garca (2002) caracteriza um sistema como uma representao de um recorte da realidade, podendo ser analisado como uma totalidade organizada. Precisamos, agora, entender o que um sistema complexo. De acordo com o New England Complex Systems Institute (NECSI), sistemas complexos constituem um novo campo da cincia que estuda como as partes de um sistema concebem comportamentos do sistema como um todo e como esse sistema interage com seu ambiente13. Exemplos mais conhecidos de sistemas complexos so: o clima, o mercado acionrio ou o trfego na estrada para o trabalho. Fenmenos como o funcionamento de clulas no corpo humano, a fauna e a flora em um ecossistema e a dinmica da transmisso de doenas infectocontagiosas j so exemplos de sistemas com diferentes nveis de complexidade (CAMERON e LARSEN-FREEMAN, 2008). Os sistemas complexos so formados por mltiplos componentes ou agentes, mas nem sempre em larga escala. O comportamento dos sistemas complexos emerge das interaes entre os seus componentes e no descritvel por uma nica regra. So sistemas que exibem caractersticas inesperadas (WALDROP, 1992). Como os componentes de um sistema complexo esto interligados, constituindo uma estrutura estvel, torna-se impossvel analisar, separadamente, tal sistema sem que ele seja destrudo. Dessa12

Definio da palavra 13

sistema

disponvel

em:

Trecho original Complex Systems is a new field of science studying how parts of a system give rise to the collective behaviors of the system, and how the system interacts with its environment. Disponvel em: Acesso em 02 de nov. 2011.

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forma, como Palazzo (1999) aponta, o emprego de mtodos que reduzem os fenmenos s suas partes (reducionismo) to ineficiente quanto a observao do sistema complexo como um todo (holismo). O primeiro falha ao desconsiderar as interaes entre as entidades e o segundo, por negligenciar o fato de que tais entidades complexas so compostas de partes distintas. Em outras palavras, a abordagem reducionista descarta as conexes e a holstica, as distines. Para o autor (1999, p. 49),na construo de uma cincia da complexidade deve-ser, portanto, buscar uma viso capaz de transcender a polarizao entre holismo e reducionismo, permitindo a modelagem de sistemas que apresentam simultaneamente a caracterstica da distino (sendo, portanto, separveis do todo em uma forma abstrata) e da conexo (sendo, portanto, indissociveis do todo sem a perda de parte do significado original).

Um modelo proposto por Palazzo que satisfaz essas duas caractersticas est ligado ao conceito de rede. Uma rede consiste de nodos e de conexes ou arcos entre os nodos (PALAZZO, 1999, p. 50). Por meio dessa viso, os nodos correspondem s partes e as conexes, s interaes. No entanto, os nodos podem ser vistos tambm como conexes entre os arcos. Richardson, Cilliers e Lissack (2001, p. 7) afirmam que um sistema complexo pode ser descrito apenas como contendo um grande nmero de elementos com alto nvel de interatividade, em que a natureza dessa interatividade essencialmente no-linear, contendo manifestaes contnuas de feedback14. Joslyn e Rocha (2000, p. 2) oferecem uma definio parecida e acrescentam que esse tipo de sistema apresenta, normalmente, auto-organizao hierrquica sob14

Trecho original The nature of this interactivity is mostly nonlinear, containing manifest feedback loops (RICHARDSON; CILLIERS; LISSACK, 2001, p. 7).

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presses seletivas15. Para Leffa (2009), medida que os elementos de um sistema complexo interagem, eles no se somam uns aos outros, mas integram-se, provocando transformaes, s vezes a ponto de gerar um sistema novo, irreconhecvel diante do sistema antigo (LEFFA, 2009, p. 28). Cameron e Larsen-Freeman (2008) lembram que o fato de o comportamento de um sistema complexo emergir da interao de seus componentes no implica dizer que o todo maior que a soma das partes. Alm da complexidade, os sistemas complexos apresentam outras caractersticas, conforme veremos no item a seguir. 3.1.1 Os sistemas complexos e suas caractersticas

Larsen-Freeman (1997), em seu artigo seminal sobre a teoria do caos e da complexidade na ASL, estabelece as semelhanas entre o estudo de sistemas complexos, da lngua e ASL. Para a autora, existem mltiplos fatores em jogo que, quando esto em interao, determinam o grau de sucesso no processo de aquisio de segunda lngua. Ela argumenta que os sistemas complexos tm algumas caractersticas em comum. So elas: (1) dinamicidade, (2) nolinearidade, (3) caos, (4) imprevisibilidade, (5) sensibilidade s condies iniciais, (6) abertura, (7) auto-organizao, (8) sensibilidade ao feedback e (9) adaptabilidade. A primeira caracterstica, apontada por Larsen-Freeman (1997), que descreveremos o dinamicidade. Sistemas dinmicos so aqueles que mudam com o tempo. As mudanas representam a essncia da complexidade. Um sistema esttico apenas uma instncia dentro de um continuum evolutivo, por mais interessante que possa parecer16. A questo do dinamismo na interao dos15

Trecho original and typically exhibits hierarchical self-organisation under selective pressures (JOSLYN e ROCHA, 2000, p. 2).16

Disponvel em: .

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constituintes de um sistema complexo uma das mais importantes e frequentes na conceituao do termo. Harshbarger (2007, p. 2) compartilha dessa viso e afirma que a principal caracterstica que caracteriza os sistemas complexos a interao dinmica dos vrios elementos do sistema ao longo do tempo de tal forma que os resultados dessas interaes no so inteiramente previsveis ou proporcionais17. Ainda sobre os processos interacionais, Briggs e Peat (1989, p. 148) destacam que, como qualquer interao ocorre dentro de um sistema mais amplo, o qual est sempre mudando, uma iluso falar em isolar uma nica interao entre duas partculas e afirmar que a mesma interao pode se repetir18. Isso significa dizer que tanto o todo como suas partes tm uma direo no tempo. Outra particularidade dos sistemas complexos a nolinearidade. Um sistema no-linear aquele cujo efeito desproporcional causa, embora, s vezes, apresente caractersticas lineares (LARSEN-FREEMAN, 1997). Em outras palavras, o sistema se comporta de uma maneira inesperada, mudando drasticamente a partir de pequenas alteraes no estgio inicial. Se uma pequena pedra rolar, por exemplo, ela pode provocar uma avalanche. A prxima peculiaridade a ser analisada o caos em sistemas complexos. Para Larsen-Freeman (1997), ele se refere ao perodo de completa aleatoriedade de que sistemas complexos no-lineares participam irregular e imprevisivelmente. Na viso de Kumai (1999), no entanto, o que ocorre uma aparente aleatoriedade com padres estruturais. Pode-se at prever um resultado aleatrio, mas no com preciso de quando ele acontecer, tampouco como seu prximo estgio se desenvolver. Essa imprevisibilidade (quarta caracterstica)17

Trecho original: The main feature that characterizes complex systems is the dynamic interaction of various elements of the system over time such that the results of these interactions are not entirely predictable or proportional (HARSHBARGER, 2007, p. 2).18

Trecho original: it is an illusion to speak of isolating a single interaction between two particles and to claim that the interaction can go backward in time (BRIGGS e PEAT, 1989, p. 148).

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se deve ao fato de o sistema ser sensvel s condies iniciais, o que, para Shucart (2003), uma caracterstica da no-linearidade. Para Johnson (2007, p. 15), o sistema exibe fenmenos emergentes que so, geralmente, surpreendentes e podem ser extremos. Como os sistemas esto longe do equilbrio, fenmenos inesperados podem acontecer. O elemento surpresa ocorre pelo fato de no ser possvel prever o que vai acontecer com o sistema ao se considerar apenas o conhecimento das propriedades de cada agente isoladamente. Tais caractersticas nos remetem ideia do fenmeno do efeito borboleta19, em que impactos desastrosos podem ser produtos de pequenas alteraes nas condies iniciais. Um sistema complexo tambm aberto, pois ele pode ser afetado pelo mundo externo. Ele permite o fluxo de informao ou energia com o ambiente externo. Essa absoro de energia fundamental para a emergncia de maior complexidade. Os organismos vivos, por exemplo, necessitam retirar matria/ energia de seu ambiente. De maneira oposta, um sistema fechado sofre entropia, isto , tende a perder energia e ordem at atingir o equilbrio (ou estado estacionrio, do ingls steady state). Dessa forma, um sistema fechado no capaz de sofrer mutao ou desenvolver-se. Para Morin (2007), tal descoberta ps fim ideia de equilbrio em um sistema aberto, ou seja, a ordem eterna a qual substituda pela desordem, refletida na busca pela complexidade. Uma propriedade emergente de sistemas complexos a autoorganizao, em que cada sistema cria suas prprias determinaes e suas prprias finalidades (MORIN, 2007, p. 65). A possibilidade de auto-organizao permite que o sistema adapte seu comportamento na esperana de melhorar seu desempenho. Como o sistema comporta trocas materiais/ energticas com o exterior, seus elementos se reorganizam entre si a partir da desordem. Isso possvel pelo fato de os sistemas complexos serem altamente sensveis ao feedback19

Na cultura popular, efeito borboleta quando o bater de asas de uma borboleta pode provocar um tufo do outro lado do mundo. Na teoria do caos, efeito borboleta uma expresso que se refere sensibilidade s condies iniciais.

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(oitava caracterstica). Conforme Johnson (2007, p. 14), um acontecimento passado pode influenciar um evento no presente ou ainda um evento pode interferir outro evento simultneo em local diferente. Para Schucart (2003), o feedback atua como um regulador ciberntico da taxa de variao20. Imaginemos um grupo de aves migratrias. Cada ave, sensvel aos movimentos das demais, se organiza inconscientemente de modo a formar um bando de aves em voo. Isso permite que elas percorram longas distncias, garantindo a sobrevivncia das espcies. Como Waldrop (1992, p. 11) afirma, grupos de agentes, em busca de acomodao mtua e autoconsistncia, conseguem, de alguma forma, transcender-se, adquirindo propriedades coletivas como a vida, o pensamento e o propsito , as quais eles nunca poderiam ter individualmente 21. Em relao ltima propriedade dos sistemas complexos, Larsen-Freeman (1997) cita Kauffman (1991) para indicar que esses sistemas so tambm adaptativos devido capacidade de seleo natural e de auto-organizao. Eles aprendem, ao longo do tempo, a reagir ativamente s variaes no seu ambiente. Segundo Waldrop (1992, p. 11), esses sistemas so adaptativos porque no respondem apenas passivamente aos eventos, mas eles tentam, de forma ativa, converter tudo o que acontece para a sua prpria vantagem22. As caractersticas apresentadas dos sistemas complexos nos ajudam a compreender melhor o comportamento de fenmenos complexos como, por exemplo, a lingua(gem) conforme veremos na prxima subseo. Vimos que esses sistemas so formados por20

Trecho original: a cybernetic governor to regulate the rate of change (SCHUCART, 2003).21

Trecho original: groups of agents seeking mutual accommodation and selfconsistency somehow manage to transcend themselves, acquiring collective properties such as life, thought, and purpose that they might never have possessed individually (WALDROP, 1992, p. 11).22

Trecho original: They actively try to turn whatever happens to their advantage (WALDROP, 1992, p. 11).

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elementos ou agentes que interagem entre si ao longo do tempo e de formas distintas. A troca de energia entre as partes e com o meio externo permite que os sistemas se auto-organizem de modo que o todo se torna mais complexo. Como os sistemas no so lineares, causa e efeito no assumem uma relao proporcional e tambm no possvel prever precisamente quando um comportamento aleatrio vai ocorrer. 3.2 Lingua(gem) como SAC

A partir da TC, conceber a lingua(gem) como um SAC implica reconhecer sua abertura e auto-organizao dinmica, mantendo-se longe do equilbrio. Para Ellis e Larsen-Freeman (2009), o sistema de estruturas da lngua em uso adaptativo porque o comportamento dos falantes est baseado em interaes passadas e as interaes do passado e do presente alimentam o comportamento futuro. Alm disso, o sistema complexo devido ao grande nmero de elementos em interao que so fundamentais para a trajetria de desenvolvimento do aprendiz de segunda lngua (quantidade e tipo de insumo, de interao, de feedback recebido etc.). Ao adotar a viso de lingua(gem) como SAC, Larsen-Freeman (2010) afirma que a dinamicidade est relacionada a dois fatores. O primeiro deles que a lingua(gem) pode ser descrita como uma agregao de unidades estticas ou produtos, mas seu uso um processo ativo referida como parole (Saussure) ou performance (Chomsky). O segundo fator que a lingua(gem) sinnimo de crescimento e mudana, sendo vista como um organismo, ou seja, viva. A gramtica interna dos aprendizes de segunda lngua est sujeita a constantes mudanas. Para Nascimento (2009, p. 72),entender a linguagem como um sistema complexo , essencialmente, entender a linguagem como um sistema aberto, no linear, auto-organizante, em constante troca de

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energia com seu exterior, exibindo espaos de fase, entendidos como graus de estabilidade e variabilidade.

O que surpreendente, a partir da perspectiva da TC, que a produo lingustica da criana mais rica ou mais complexa do que aquela a que foi exposta. Essa uma propriedade comum observada em todos os sistemas complexos sistemas na qual a complexidade emerge no do insumo do sistema tampouco de forma inata, mas a partir da criao de ordem. Para Ellis e Larsen-Freeman (2009, p. 2), as estruturas de uma determinada lngua emergem de padres inter-relacionados de experincia, interao social e mecanismos cognitivos. Conceber o desenvolvimento da lngua como auto-organizao ou formao de estrutura em um sistema dinmico significa que diferentes aprendizes podem desenvolver recursos lingusticos diferentes mesmo em contextos em que a lngua empregada de forma parecida. Segundo Larsen-Freeman (2010), ensinar uma lngua no envolve a transmisso de um sistema fechado de conhecimento. Os aprendizes no esto engajados em apenas aprender estruturas definidas; em vez disso, eles esto interessados em aprender a adaptar seu comportamento em meio a um contexto mais complexo. A aprendizagem no um processo linear, aditivo, mas iterativo. A aprendizagem no a aquisio de formas lingusticas, mas a constante adaptao de seus recursos lingusticos a servio de formao de sentido em resposta aos propiciamentos que emergem na situao comunicativa que, por sua vez, afetada pela adaptabilidade dos aprendizes. Ao estabelecer outros paralelos entre a complexidade e a ASL, Larsen-Freeman (2010), afirma que ambos so processos no-lineares, j que os aprendizes no aprendem um item (lexical ou gramatical) de cada vez, e abertos, porque o sistema de interlngua do aprendiz de segunda lngua auto-organizvel.

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3.3

Abordagem complexa de leitura

Chegamos proposta de abordagem complexa de leitura. No se trata de um modelo complicado sugerido pelo uso comum da palavra , mas, conforme j vimos ao discorrer sobre a TC, um fenmeno que compreende inmeras possibilidades de interaes e indeterminaes. Nas palavras de Morin (2007, p. 13), propomos que percebam, na palavra complexidade, o tecido de acontecimentos, aes, interaes, retroaes, determinaes, acasos, que constituem nosso mundo fenomnico. Esta abordagem de leitura est pautada na viso de linguagem como SAC (apresentada na seo anterior 3.2). A leitura concebida como uma atividade complexa e dinmica. A complexidade do sistema de leitura justificada pela existncia de mltiplos agentes (leitor, autor, texto, contexto social, contexto histrico, contexto lingustico, conhecimento de mundo, frustraes, expectativas, crenas etc.) que se inter-relacionam durante o ato de ler. Essa complexidade, aliada abertura do sistema, contribuem para a dinamicidade do sistema de leitura. Tomemos como exemplo um dos agentes o leitor. Ao interagir com outros elementos do sistema, ele se torna um novo leitor. medida que o leitor se complexifica, seu posicionamento em relao ao texto pode ser indito. Da mesma forma, os outros elementos podem se complexificar ao interagir com o leitor. Durante o ato de ler, suas expectativas, por exemplo, podem ser alteradas bem como suas crenas podem ser fortalecidas ou enfraquecidas. O fluxo de informaes, como represento por meio da figura abaixo, multidimensional, isto , parte de cada e de todo elemento dentro e fora do SAC de leitura. Como o SAC de leitura aberto, novas interaes emergem com a troca de informaes dentro do sistema e com o ambiente externo.

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Figura 1: Fluxo de informao multidimensional em um sistema de leitura No podemos prever quantas interaes so possveis nesse sistema complexo. Por considerarmos o homem, neste caso o leitor, um sistema complexo, sabemos que ele carrega suas prprias experincias e conhecimento de mundo, e, portanto, no podemos prever com exatido como ser sua interao com o texto. Essa imprevisibilidade acontece porque o conhecimento prvio do leitor faz parte das condies iniciais do processo de leitura e, se a natureza de informaes que ele possui sobre determinado contedo for insuficiente para a leitura de um texto, temos o efeito borboleta. Um exemplo para a sensibilidade do SAC de leitura s condies iniciais a intertextualidade. Se o conhecimento de um texto especfico for imprescindvel para a compreenso de outro texto, o sistema poder sofrer uma

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alterao inesperada ( caos ). Consequentemente, a partir da desordem, o leitor sensvel ao feedback e tende a se adaptar nova situao, refazendo suas interaes com outros elementos (como buscar pistas textuais, reconhecer caractersticas em um determinado gnero textual) para que o sistema se autoorganize, garantindo o processamento semntico do texto. De volta dinamicidade, ela no encontrada apenas na noo de leitura, mas tambm no papel do leitor. O leitor participa ativamente de interaes que vo alm daquela com o texto. Um fator que confere ao leitor a caracterstica de dinmico o seu poder de fazer escolhas diante de um texto, principalmente se o texto for digital. O percurso da leitura pode acontecer de forma no-linear , o que confere uma nova experincia para o ato de ler. Por fim, no modelo complexo de leitura que proponho, o significado no est localizado em nenhum campo especfico. Ele emerge a partir da interao do leitor com os mltiplos elementos presentes tanto dentro quanto fora do SAC de leitura. Com o propsito de fazer uma retrospectiva e analisar de forma contrastiva as abordagens de leitura descritas ao longo deste captulo (decodificadora, psicolingustica, interacional e complexa), apresento o quadro a seguir, que oferece um resumo das principais caractersticas dessas quatro abordagens de leitura.

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Abordagem Decodificadora

Abordagem Psicolingustica

Abordagem Interacional sistema cognitivo e social atividade perceptiva, cognitiva e social bidirecional (ascendente e descendente)

Abordagem Complexa sistema adaptativo complexo atividade complexa e dinmica

Viso de lingua(gem)

sistema estrutural

sistema mental

Viso de leitura

atividade perceptiva

atividade cognitiva

Fluxo de informao

ascendente

descendente

multidimensional

Papel do leitor

receptivo

ativo

interativo

dinmico

Significado

no texto (extrado pelo leitor)

na mente do leitor (por meio da ativao do conhecimento prvio)

construdo a partir da interao leitor-autor

emerge a partir da interao do leitor com mltiplos elementos presentes dentro e fora do sistema de leitura

Quadro 1: Principais caractersticas das abordagens de leitura decodificadora, psicolingustica, interacional e complexa 4 Consideraes finais

Vimos, neste captulo, uma descrio das principais abordagens de leitura, contempladas pela literatura: a decodificadora, a psicolingustica e a interacional. Cada modelo reflete uma viso de lingua(gem) especfica. No primeiro, a

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lingua(gem) concebida como um sistema estrutural; na segunda, como um sistema mental; e, na terceira, como um sistema cognitivo e social. Fundamentado na TC e a partir da noo de linguagem como um sistema adaptativo complexo, busquei propor uma abordagem complexa de leitura. Nessa abordagem, reconhecemos as mesmas caractersticas de um sistema complexo, apontadas por Larsen-Freeman (1997). So elas: complexidade, dinamicidade, nolinearidade, caos, imprevisibilidade, sensibilidade s condies iniciais, abertura, auto-organizao, sensibilidade ao feedback e adaptabilidade. Escolher a complexidade como abordagem de leitura implica ir alm da adoo de uma metfora para representar uma viso particular de leitura. Sob a perspectiva da complexidade, reconhecemos no apenas a complexidade da lingua(gem), mas tambm a do ser humano, representado pelo leitor, no SAC de leitura. Com o surgimento de novos tipos de texto como os multimodais, o homem complexifica cada vez mais seu mecanismo de processamento semntico por meio da interao com novos assuntos, gneros textuais, elementos coesivos etc. e a si mesmo, em meio a novas experincias de aprendizagem. Referncias AMORIM, M. L. V. Ensinando leitura na sala de aula de ingls: teoria e prtica. In: TADDEI, Eliane. Perspectivas: O ensino da lngua estrangeira. Rio de Janeiro: SME, 1997. BRIGGS, J.; PEAT, F. D. Turbulent mirror: an illustrated guide to chaos theory and the science of wholiness. New York: Harper and Row, 1989. CAMERON, L.; LARSEN-FREEMAN, D. Complex systems and applied linguistics. Oxford: Oxford University Press, 2008. DECHANT, E.Understanding and teaching reading: An interactive model. Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum, 1991. ELLIS, N.; LARSEN-FREEMAN, D. (Eds.) Language as a complex adaptive system. Special issue. Language Learning, 59, 2009.

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A teoria traduzida em prtica: atividades de leitura baseadas nos conceitos de contexto de cultura e contexto de situaoGisele de Carvalho (UERJ)23

Quem nunca viu, ou mesmo props, a seguinte pergunta: Qual a fonte do texto? Outros comandos clssicos so aqueles que solicitam que o leitor/aluno identifique o pblico-alvo ou ainda o tipo do texto (para no usar o termo gnero). Assim se materializam muitas das atividades de leitura que buscam fazer com que o conhecimento acerca de certo gnero seja ativado ou at inaugurado. Entretanto, mesmo quando a proposta terico-metodolgica para o ensino de leitura, seja em lngua materna ou estrangeira, est centrada na noo de gnero, muitas vezes o que verificamos que os materiais produzidos por professores ou autores de livro didtico no vo muito alm daquelas trs atividades de identificao e que elas se esgotam em si mesmas. Portanto, neste captulo procuro argumentar que preciso que o criador de atividades de leitura se aproprie integralmente de uma teoria que permita a elaborao de tarefas que proporcionem ao aluno a possibilidade de perceber e explicar por que um texto se materializa do modo como o faz; argumento tambm que as contribuies da Lingustica SistmicoFuncional, em especial no que concerne Teoria de Gnero e Registro, oferecem bases slidas sobre as quais o docente pode trabalhar a fim de que as atividades produzidas traduzam a teoria na qual se assentam. A fim de concretizar essas questes, comecemos por observar os fragmentos de duas resenhas sobre o filme Homem de Ferro:23

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Encarcerado numa caverna no Afeganisto, o bilionrio fabricante de armamentos Tony Stark (que herdou do pai o negcio e a filosofia de que arma boa aquela que manda seu recado j no primeiro disparo) passa por um rude despertar: foi usando produtos com o seu selo de qualidade que os terroristas islmicos o seqestraram, e com eles tambm que massacram civis em aldeias como aquela de onde veio o mdico que est preso junto com ele (o excelente ator anglo-iraniano Shaun Toub) e que o salvou da morte certa, implantando um m junto ao seu corao. [...] Homem de Ferro, portanto, dobra as fichas colocadas na mesa por HomemAranha e Batman O Retorno: no s uma adaptao de quadrinhos com conscincia, como tem uma agenda poltica dirigida ao momento. Em relao a Homem-Aranha, falta-lhe um ingrediente importante: a criatividade visual exuberante de um cineasta como Sam Raimi. O diretor Jon Favreau, que comeou no cenrio independente com o roteiro do divertido Swingers, mantm na interao entre os atores o seu forte; embora se esmere, suas cenas de ao param no competente, sem chegar ao surpreendente. Homem de Ferro, porm, tem algo a mais que os outros exemplares da categoria: tem Robert Downey Jr. no topo absoluto de sua forma e engajado num dilogo instigante com a platia. [...]24 Queria comear pedindo desculpas a todas as pessoas que me ouviram dizer que Iron Man seria um filme muito ruim. Eu no conheo a histria do Homem de Ferro dos quadrinhos, nem conheo a histria dele nos desenhos e filmes em animao. Na verdade, eu s o conheo em jogos de vdeo game, onde ele bota pra quebrar. Mas quando via os trailers, no conseguia imaginar como esse filme poderia ser filmado de uma maneira legal. Felizmente Jon Fraveau foi capaz de dirigir um filme surpreendente. Queridos leitores, estamos provavelmente diante do melhor filme de superheri dessa nova safra que ceifamos j h alguns anos.24

O texto integral desta resenha pode ser lido na Edio 2058, de 30 de abril de 2008, da Revista Veja.

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Iron Man conta a histria de Tony Stark (Robert Downey Jr.), um gnio dono de uma empresa de armas que vende seus produtos para o exrcito norteamericano. Como muitos dos milionrios metidos a gostosos, ele vive uma vida cercada de bebidas, mulheres e exploses. Vender armas algo bom. [...] Robert Downey Jr um ator fantstico. Seu humor muito bem temperado e ele interpreta o papel de maneira hilria e forte, concreta. Alm de ser f do heri, ele treinou muito para ficar o mais em forma possvel. [...] 25 Sem entrarmos em muitos detalhes por ora, podemos afirmar que qualquer leitor seria capaz de apontar que a primeira resenha se distingue da segunda pelas marcas de subjetividade explcitas nesta. Entretanto, como esse mesmo leitor explicaria essa diferena? Seria capaz de decidir se esses dois textos so, efetivamente, exemplares do gnero resenha de filme e justificar seu posicionamento? Acreditamos que as atividades que acompanham os textos devem auxiliar o aluno e lev-lo a refletir, com segurana, sobre os gneros aos quais exposto. Aqui comeamos a fazer a ponte com a teoria capaz de informar a elaborao das atividades de pr-leitura. Tomemos como ponto de partida definies de gnero advindas do campo da Lingustica Sistmico-Funcional. Eggins e Slade (1997:56) definem gnero como atividade com propsito e estgios reconhecidos, na qual os participantes tomam parte/se engajam como membros de uma cultura; mais recentemente, Martin e White (2005:32) tornaram a definio mais enxuta: processo social com estgios e propsitos reconhecidos. Do ponto de vista do analista de gnero e do discurso, essas definies parecem ser particularmente produtivas, pois delas podemos depreender, em primeiro lugar, que os gneros so produzidos por atores sociais em seus contextos e so analisveis em seus aspectos macro-discursivos e micro-textuais; assim, ao reconhecermos os estgios por suas funes e como funcionam de modo a fazer com que o propsito social de gnero seja alcanado, tambm podemos estabelecer relaes entre o funcionamento25

O texto integral desta resenha est disponvel no blogue intitulado O cara da locadora, em http://ocaradalocadora.com.br/2008/04/30/homem-de-ferro/.

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semntico-discursivo dos diferentes estgios e sua realizao lxicogramatical. Tomemos como exemplo a notcia de jornal e sua organizao macro-discursiva cannica em manchete e lead, seguidos de pargrafos que relatam o evento do ponto de vista da relevncia (e no da ordem cronolgica), de forma que os aspectos mais importantes so registrados logo no incio do texto. Esses aspectos so intercalados com a voz e viso de autoridades e/ou testemunhas oculares acerca do evento em pauta. Esses seriam os estgios de uma notcia; cada um tem sua funo especfica, ao mesmo tempo em que contribui para o todo, ou seja, para que o gnero cum