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Entenda melhor a linguagem (Escrita e Fala) A criatividade no uso da palavra e os aspectos mais sutis do texto – 2ª edição, revista e ampliada – São Paulo Edição do Autor 2013 Mauro Cardin

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Entenda melhora linguagem

(Escrita e Fala)

A criatividade no uso da palavrae os aspectos mais sutis do texto

– 2ª edição, revista e ampliada –

São PauloEdição do Autor

2013

Mauro Cardin

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2013

O conteúdo desta obra é de responsabilidadedo autor, proprietário do direito autoral.

Edição do Autor

Impressão e encadernação: Portal PerSe(www.perse.com.br)

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SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................ 7Criatividade x Lugar-comum ............................................... 9

Velho de roupa nova ............................................................. 10Grandes e pequenas surpresas .............................................. 10Estranhamento ...................................................................... 11Demônios de linguagem ........................................................ 12As ruínas do texto ................................................................ 13Humor de frase-feita ............................................................ 14Da imperfeição ..................................................................... 14A “imperfeição” no texto ...................................................... 15Pequenos delitos ................................................................... 16A técnica do absurdo ............................................................ 17Redação escolar ................................................................... 17Brincando com o estereótipo ................................................. 18Das contradições .................................................................. 19Semelhanças e diferenças ..................................................... 20Das limitações do computador ............................................... 21Discurso coletivo ................................................................... 22O susto pela troca de sentido ............................................... 23Palavras mortas .................................................................... 24Trapaças da lingua ................................................................ 24

A construção do texto ......................................................... 27Imagem sem rosto ................................................................ 28Dois em um .......................................................................... 28Vocabulário e elegância ......................................................... 29Elegância: o decoro no trato com as palavras ........................ 30Sinônimos perfeitos? .............................................................. 31

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O que você pensa de...? ....................................................... 33Apelando para o mais fácil ................................................... 34O texto caótico ................................................................... 35O vazio da autoajuda ............................................................ 35Aulas de redação .................................................................. 36A redação moralista .............................................................. 37Dados demais ....................................................................... 38Longo caminho ..................................................................... 39Idas e voltas ......................................................................... 40Palavras inexpressivas ........................................................... 41Disciplina .............................................................................. 42Um só assunto ...................................................................... 43Fugindo das sobras ........................................................... 44Estranha forma de não dizer nada ........................................ 44Simplicidade .......................................................................... 45O estilo Voltaire: simples e espirituoso ................................... 47Naturalidade .......................................................................... 48“Escrever bem” .................................................................... 50O desafio pela atenção do leitor ........................................... 50Truques mínimos ................................................................... 52

Fala e Escrita: dois mundos diferentes .............................. 53Caprichos da escrita ............................................................. 54Isto não é um cachimbo ....................................................... 54Fala x Escrita ....................................................................... 55Escrita x Realidade ............................................................... 56A presença do autor na escrita ............................................. 57Quase-adivinhação ................................................................ 59O esquecimento na leitura ..................................................... 60A razão gráfica ..................................................................... 61Conversação ......................................................................... 62Ânsia de dizer ...................................................................... 63O poder sobre a própria língua ............................................. 64A linguagem do silêncio ........................................................ 66Diálogo: a curiosa ajuda do outro........................................... 67

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Argumentação ..................................................................... 69Argumentação x Vontade ...................................................... 70Artigos de opinião ................................................................. 70O discurso do “mundo melhor” ............................................. 72Exibicionismo autoral ............................................................. 73

Particularidades & Sutilezas ................................................ 75O orador como refém das palavras ....................................... 75O julgamento silencioso ......................................................... 77Perfídia ................................................................................. 78O fascínio pela imagem ........................................................ 79O já-conhecido ...................................................................... 79Preconceito ........................................................................... 81Gramática e Solidão .............................................................. 81Mais além ............................................................................. 82O princípio de relevância ...................................................... 83O idioma das maneiras ......................................................... 84O outro sentido ..................................................................... 85Frases de efeito .................................................................... 86Um nome às coisas .............................................................. 87Depois da leitura ................................................................... 88Olhos manchados de tinta ..................................................... 89Homem sem estômago .......................................................... 90Período tenso ........................................................................ 90Equívocos ............................................................................. 91Muito além da gramática ...................................................... 92Menos versátil do que parece ............................................... 93

Considerações finais ............................................................ 95Bibliografia ........................................................................... 98O autor ................................................................................ 102

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APRESENTAÇÃO

As pessoas quase não param para pensar em algo que lhes éextremamente importante, a linguagem; embora se preocupem emnão errar ao escrever ou falar: “quiser é com s ou com z?”, “ocerto é privilégio ou previlégio?”, “fax tem plural?”... Pareceque o medo de errar ao usar o idioma nos ocupa mais do que o de-sejo de ser eficiente no seu uso, de ser hábil ao explorar as suaspotencialidades. Ou seja, viramos as costas para as possibilidadese os encantos de um admirável sistema, e quando nos lembramosdele é para tratá-lo como objeto de temor.

O propósito deste pequeno livro é caminhar no sentido oposto.Muito mais do que um conjunto de regras, a linguagem é um ins-

trumento que nos revela o mundo, nos permite organizá-lo e nosinstituirmos como ser pensante, como animal inteligente, portanto.Ela, como observa Roland Barthes, não é um predicado do indivíduomas o próprio indivíduo: não há como negar a linguagem de umapessoa sem negar a própria pessoa.

É de se imaginar quantos aspectos interessantes e quantas nuan-ces tem um sistema assim, além de regras.

O que você tem nas mãos é, pois, um estudo sobre a linguagem,não do ponto de vista da gramática, mas na perspectiva de suagrandiosidade. Nele, procuramos explicitar as possibilidades da

“A linguagem tem um poder fundador, que instaura umarealidade imaginária, anima as coisas inertes, faz ver o que

ainda não existe, traz de volta o que desapareceu.”

Émile Benveniste

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expressão verbal e as suas fontes de criatividade, as contradiçõese os aspectos mais sutis da produção textual. Procuramos, enfim,iluminar a face mais sedutora de um sistema que nos permite sairde nós mesmos e ir em busca do outro.

O estudo vem expresso em 85 textos, quase todos escritos paraser publicados primeiramente em jornal. E veicular assuntos acadê-micos em meio a notícias, reportagens, anúncios, resumos de novela,revelações de bastidor e notas sociais não deixa de ser um desafioque impõe uma série de cuidados. O principal deles talvez seja o detratar cada tema do modo mais simples e interessante possível.Tentei atingir essas características em cada texto, como tambémprocurei preservá-las no livro.

Por conta desse propósito de capturar leitores apressados talvezalgumas passagens do livro possam parecer mais ousadas (na formade apresentar o conteúdo), mas também aí, nesses esforços paracaptar e prender a atenção do leitor, pode estar um objeto de reflexãosobre nosso tema.

Salvo alguns acréscimos, uns poucos retoques e três ou quatroadaptações de contexto, o que mudou neste ambiente gráfico éque os artigos foram agrupados por temática. Cada um deles corres-ponde a um tópico de capítulo. Por exemplo, o primeiro capítulo,Criatividade x Lugar-comum, é composto de 20 artigos, cada umcontemplando um assunto completo e concluso mas que guardaestreita relação com os demais textos da série. No conjunto, elesconstituem a ideia do autor sobre a temática proposta.

Espero que este livro lhe seja útil e agradável de ler.

O autor

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– Primeiro capítulo –

CRIATIVIDADE x LUGAR-COMUM

Criatividade é transgressão; moderada e de bom gosto(?), massempre violação de um modelo. Quem busca a originalidade temde ousar e, fatalmente, correr o risco do ridículo. Escrever é entãocaminhar sobre o fio da navalha. De um lado, o lugar-comum, aconversa de sempre e o fastio; de outro, o inédito, a surpresa e a se-dução; mas também o constrangimento a se insinuar o tempo todo.

E, já que no texto escrito pode-se trocar as peças infinitas vezes,escrever e reescrever, avaliar e outra vez reescrever, está aí omeio de expressão em que a criatividade pode atingir sua plenitude.Frei Beto diz que talvez tenha sido por isso que o Criador tenhapreferido a literatura para se expressar. “Podia tê-lo feito pela pinturaou pela escultura. Podia ter esperado o cinema, a fotografia, a tele-visão ou a cibernética. Não, escolheu o texto, a Bíblia.”

Com tudo que implica de risco, é exatamente a criatividade oque instiga a escrever. Se ao leitor cabe o direito de julgar, ao autorestá reservado o prazer de ousar. Até nisso se completam essasduas entidades intimamente ligadas pelo pensamento, mas temporale espacialmente distantes.

Um texto tem, afinal, de cumprir sua obrigação de trazer novi-dades, de mostrar a realidade de um novo jeito, de instigar, porqueo banal dá sono. Um leitor sensato não hesita em trocar um escritoque o informe que a pressa é inimiga da perfeição por uma reprisequalquer na TV.

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Velho de roupa novaO primeiro a proclamar que em mulher não se bate nem com

uma flor foi um gênio; hoje, genial será o sujeito que disser a mesmacoisa de um jeito diferente. O chefe de seção que, pela primeiravez, diante de um colega que se aposentava, discursou estar vivendo“um dia alegre, porque fulano finalmente conseguiu o que tantoqueria, e, ao mesmo tempo, triste, porque se perdia um grandecompanheiro”, certamente foi tratado como Cícero, o grande oradorromano. Agora, Cícero será aquele que expuser o mesmo paradoxoem outras palavras.

Reinaldo Polito, professor de oratória, diz que Nei GonçalvesDias, quando paraninfo de uma das turmas de seu curso, deu contor-nos mais expressivos a esse chavão da alegria triste (verdadeirapraga também nas formaturas), tornando-o muito interessante.Vejamos:

“Segundo Nietzsche, a vida apresenta momentos semelhantesao da criança quando está na praia e ri e pula de alegria quando asondas trazem as conchas coloridas para a areia, e chora de tristezaquando as ondas levam as conchas de volta ao mar. Esta formaturatrouxe as conchas coloridas de cada um, dando alegria a todos pelosimbolismo da conquista da comunicação, mas deu também a tris-teza, porque, assim como o mar leva as conchas coloridas, ao finaldo último discurso, levará embora o convívio desta amizade tãobonita...”

O paraninfo talvez tenha exagerado no sentimentalismo, masfez o que tinha de ser feito: vestiu o velho assunto com uma novaroupa. Não é pouco. No texto, ser criativo não é mudar a vida, éapenas variar o modo de descrevê-la.

Grandes e pequenas surpresasO povo xingava Madalena, quando o religioso interfere: “Aquele

que nunca errou, que atire a primeira pedra!” Um português, então,pega um tijolo e atira. Enquanto o sangue escorre pela face dapecadora, o religioso pergunta indignado: “Mas você nunca errou?!”,ao que o lusitano responde: “Dessa distância, não!”

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Como se vê, a graça dessa conhecida anedota se dá pelo “susto”da troca de sentido de errou, de moral para físico. Vejamos agoraum trecho de Carlos Heitor Cony, da Folha de São Paulo:

“Reza a lenda que o primeiro homem recebeu o nome de Adãoporque foi feito de barro e, no idioma que contou a história, adãosignifica ‘feito de barro’. Daí em diante, papas, imperadores,bancários e bandidos, todos merecem ter um nome, às vezes dois,como os papas e os bandidos, como Beira-Mar, Escadinha, TiãoMedonho e outros.”

Percebe-se que, nesse caso, a expressividade está numa malicio-sa e inesperada mistura que vai de santos a criminosos. Agora, maisuma vez, o colunista quebra o esperado do texto, primeiro pela ma-lícia, depois explorando o outro sentido da palavra, e obtém um ex-celente efeito: “Tinha 27 anos e uma motocicleta. Não tinha maisnada nem precisava. Possuía o mundo e todas as pompas do universoporque sentia a moto entre as pernas. Não se preocupava com oBem e o Mal. O único mal seria a moto enguiçar ou a gasolinaacabar.”

No cômico, vimos, a surpresa exagerada provoca o riso; no textocomum, mais discreta, apenas um agradável sobressalto. É isto,para produzir textos criativos, nada como usar o mesmo recursoque faz rir: a surpresa.

EstranhamentoNum artigo na Folha de São Paulo de 27.01.02, Eugênio Bucci

fala de um tema surrado, o aumento do banditismo, em que, portan-to, corre imenso risco de entregar-se ao lugar-comum. Mas não foiisso o que aconteceu. Veja.

“Nesta semana, a realidade exagerou. A República virou um imen-so programa mundo-cão. Parece ter sido engolida por noticiárioscomo o ‘Cidade Alerta’, da Record, ou o ‘Brasil Urgente’, da Ban-deirantes. A sensação é de que os criminosos escaparam, não maisdas penitenciárias, mas dos telejornais policialescos. Escaparamdo vídeo, em massa. Inundaram as cidades, cresceram e se multipli-caram feito sandalinhas da Xuxa. Estão na portaria feito um

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entregador de pizza, estão nas poças d’água como mosquitos dadengue [...] O ato hediondo é agora tão banal quanto um resfriadona família.”

Como se vê, nesse texto, a todo instante surge uma afirmaçãoestranha que, à primeira vista, nem parece ter nexo, mas depois seencaixa. Esse recurso é o que a retórica clássica chama de estranha-mento aristotélico, estratégia que estimula o leitor a “ficar procuran-do” o significado ideal para cada expressão que vai surgindo, porqueesquisita. Tal estranhamento evita que o olhar deslize sobre o textosem tocar os sentidos: quem não se inquieta diante do estranho?

Bucci junta bandidos, sandalinhas da Xuxa, entregadores de pizzae mosquitos da dengue como se fossem uma coisa só. E faz issodireito, porque conseguimos entender bem e de um jeito agradávelque ele está se referindo à banalização da violência.

Mas, sabemos, alinhar elementos estranhos que se harmonizamé virtude de escriba talentoso, que nada tem a ver com escreverdifícil, mero vício narcisista.Demônios de linguagem

A frase feita às vezes é agressiva. Dizer algo do tipo “tudo valea pena se a alma não é pequena” em tom solene, como quem anunciauma novidade, não é elegante. Convenhamos, avaliar que um adultoouça uma frase dessas pela primeira vez é subestimá-lo.

Mas, em geral, o clichê é apenas ingênuo; quando ele surge, areflexão desaparece. Por exemplo, é enorme a ocorrência irrefletidade “nos dias atuais”, “no mundo de hoje” nas redações amadoras:Nos dias atuais, é muito difícil ganhar a vida; como se para nossosantepassados não tenha sido. No mundo de hoje, não há solidarie-dade; como se o ser humano tenha mudado de uma hora paraoutra. Nos dias atuais, a educação é fundamental; como se antesnão fosse.

Esses chavões mostram um tipo específico de imaturidade: afalta de visão histórica, evidenciada pela ingênua ideia de que oapocalipse é sempre hoje. Não seria demais avaliar que essavertente pessimista dos clichês venha do cultivo de um certo auto-compadecimento (sofrimento = salvação eterna).

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É de se notar que, para compensar tal autopiedade (e até paraalimentá-la), há um transbordante discurso baseado no otimismo:você é feliz; querer é poder; você tudo pode... Ou seja, de um la-do, cria-se o monstro; de outro, a espada para combatê-lo. Monstrode palavras, espada de palavras. E cérebro de isopor.

Se os demônios são de linguagem, eles são combatidos pela lin-guagem, diz Roland Barthes, que se pergunta: “E que mais poderiamser?”

As ruínas do textoO Manual de redação de O Globo diz que a pessoa se irrita ao

ler, por exemplo, que “os detentos planejavam uma fuga porque otúnel deles terminava fora dos limites do presídio”. Essa “informa-ção” apenas descarta a hipótese de que os presos cavaram o túnelsó para roubar goiabada da despensa, ironiza o manual.

Não existe mesmo nada mais chato do que o óbvio, o lugar-comum, aquela coisa que todo mundo já está cansado de saber,mas que teima em aparecer nas pregações, nas formaturas, napolítica e... nos artigos como este. Querer é poder, da vida nadase leva, mais vale um pássaro na mão...

Há quem diga que os chavões são frases que já foram extre-mamente eficazes e originais. Faz sentido, mas agora eles são ape-nas cansados senhores que precisam de roupa nova.

O lugar-comum só se justifica, talvez, para rir de si mesmo, comono caso da inscrição clandestina “Jovem, o futuro do Brasil estáem suas mãos!” que, há algum tempo, vi ao lado do vaso suspensode um banheiro masculino, em Pompeia [interior de São Paulo].Esse travesso manuscrito, no seu jogo com o contexto, nos ajuda aentender que não há lugar em que a espirituosidade não caiba (e arir um pouco).

Nesse sentido, o bom produtor de texto se assemelha àquele ir-reverente aluno que vem todo dia à aula de mãos vazias e umatosca brochura enrolada no bolso, que não anota a matéria nem fazas lições, mas para o qual se dirige o cobiçoso olhar das garotasmais interessantes da classe.

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Humor de frase-feitaTá tudo de esperma pro ar, dizia a Magda, do Sai de Baixo.

Lembra? Embora tivesse cabelos escuros, ela fazia o tipo bonitacabeça-oca: “Eu amo esse restaurante; essa cadeira, por exemplo,eu conheci desde que era um banquinho...”

A graça da personagem se baseava na adulteração de frase-feita: “Em briga de marido e colher não se mete na mulher; Deusescreve esperto por lindas portas”. Era sempre assim.

Magda era dada a tomar atitudes gástricas, comemorar em gran-de esquilo e ter ideias genitais. Interpretada por Marisa Orth, sempresonhou com um homem honesto e trabalhador, para poder casar eprostituir família, mas teve de se contentar com Caco, que nãotinha tais qualidades. Por isso, certa vez, afirmou que só lhe restavaprometer suicídio.

Bem fez Vavá, seu tio, que não se casou; segundo ela, porquenão encontrou uma mulher à sua largura. Para que o marido nãochupasse o pau da barraca, ela sempre o mimava, mas, se preci-sasse, não tinha dúvidas: “Caco, você não está batendo muito bemdos testículos!” Bondosa, dizia que todos os animais são seresromanos e ajudava a esfriar os ânimos em casa: “Tio, o senhoranda cheirando proteína?” Magda era romântica, afirmava que oamor é uma flor roxa que nasce no meio da coxa; só fazia o que lheordenhavam e cuidava bem da mãe: “Mami, não mexe nisso, senãofica a marca da sua depressão genital.”

Está aí, depois que se pega o jeito, escrever para humor é fácil:é repetir o truque à vontade (nesse caso, a paródia de chavões). Ocômico pede repetição de estratégia, ensina Henri Bergson.

Da imperfeiçãoAos poucos, os meios de se fazer as coisas não precisam mais

ser controlados um a um: nossos gestos do dia-a-dia se automatizam,os pensamentos se repetem, nossos atos cotidianos, bem programa-dos, perdem o sentido. O espírito se degrada para acabar emsequências de brincadeiras gastas; o amor murcha, vira indiferença,e se converte em cenas domésticas. A nostalgia e a espera passam

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a alimentar nosso imaginário e a substituir a vida: a saudade (opassado) e a esperança (o futuro) prevalecem sobre o presenteautomatizado.

A quebra de rotina é então o que rompe essa anestesia e recuperao sentido das coisas. Ela é a fratura no banal, nossa penúria essen-cial: a imperfeição que faz renascer a esperança de sentir a vida. Acontinuidade é insensível, já a irregularidade, a surpresa, o assombro,são a própria sensibilidade. De um lado, a rotina, uniforme e apática;de outro, alguns raros, efêmeros e bem-aventurados momentos forado comum. São essas pequenas escapatórias que permitem à beleza,inteira ou em migalhas, descer à humildade de cada dia e dar sentidoà pequenez cotidiana.

O que vimos é um magro resumo do livro Da imperfeição, deA. J. Greimas. Está bem, a quebra da rotina (pecadinhos, escapadas,pequenos atrapalhos: a imperfeição!) é fonte de sentido, estremeci-mento e prazer, mas o que provoca semelhante efeito na escrita ena fala?... Esse é o nosso próximo assunto. Por ora, fiquemos apenascom um prosaico exemplo sobre a relação imperfeição/sensibilidade:se você tem um cão, encha a tigelinha dele de biscoitos, mas deixecair um fora, e observe que biscoito ele come primeiro.A “imperfeição” no texto

Quando um autor quebra o esperado do texto (muda aquilo queseria normal vir a seguir), ele provoca uma espécie de irregularidade,para sobressaltar os sentidos do leitor.

Ou seja, quando Barão de Itararé dizia discordar de AugustoComte que os vivos são sempre e cada vez mais governados pelosmortos, porque, na verdade, “os vivos são sempre e cada vez maisgovernados pelos mais vivos”, Itararé estava se valendo de maisvivos num sentido imperfeito para produzir a surpresa que faziafeliz o leitor, e a ele nosso mais famoso humorista dos anos 1940 e1950. O mesmo se deu quando, depois de ter sido espancado poroficiais da marinha numa invasão ao Jornal do Povo, ele afixou naporta de entrada do jornal uma placa com os dizeres “Entre sembater.”