Entenda Por Que o Conceito de Infância

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Entenda por que o conceito de infância é uma coisa moderna Definir a infância como um período de vida vulnerável, curioso, movimentado, cheio de descobertas e brincadeiras é algo que não nos causa estranhamento. Essa definição pedagogicamente ideal é algo recente, sabia? A verdade é que a infância como um período saudável e divertido é um conceito muito mais moderno do que alguns de nós podem imaginar. A primeira pessoa a teorizar sobre o assunto foi o historiador francês Philippe Ariès, que publicou um livro a respeito: “Centuries of Childhood: A Social History of Family Life”. A obra em si é até hoje bastante criticada graças às evidências usadas pelo autor, que são consideradas simplistas demais por outros pesquisadores, mas aí é outra discussão. O que importa, historicamente falando, é que Ariès foi o primeiro a tratar a infância como uma construção social moderna. Atualmente, muitos estudos acadêmicos estudam a infância como um modelo social moderno, afinal a descrição que demos no primeiro parágrafo desse texto não soaria nada familiar há dois séculos, por exemplo – tempo considerado curto quando estudamos a evolução da humanidade.

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Infancia conceito novo , sem sempre foi assim

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Entenda por que o conceito de infância é uma

coisa moderna

Definir a infância como um período de vida vulnerável, curioso,

movimentado, cheio de descobertas e brincadeiras é algo que não nos

causa estranhamento. Essa definição pedagogicamente ideal é algo

recente, sabia? A verdade é que a infância como um período saudável

e divertido é um conceito muito mais moderno do que alguns de nós

podem imaginar.

A primeira pessoa a teorizar sobre o assunto foi o historiador francês

Philippe Ariès, que publicou um livro a respeito: “Centuries of

Childhood: A Social History of Family Life”. A obra em si é até hoje

bastante criticada graças às evidências usadas pelo autor, que são

consideradas simplistas demais por outros pesquisadores, mas aí é

outra discussão. O que importa, historicamente falando, é que Ariès foi

o primeiro a tratar a infância como uma construção social moderna.

Atualmente, muitos estudos acadêmicos estudam a infância como um

modelo social moderno, afinal a descrição que demos no primeiro

parágrafo desse texto não soaria nada familiar há dois séculos, por

exemplo – tempo considerado curto quando estudamos a evolução da

humanidade.

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O All That is Interesting resgatou uma série de estudos mais recentes

realizados sobre o tema, na tentativa de compreender melhor os

conceitos sociais e evolutivos a respeito da infância. Para a

historiadora Paula S. Fass, esses novos trabalhos revelam que a

perspectiva social de que crianças são sexualmente inocentes,

economicamente dependentes, emocionalmente frágeis e

supostamente criadas para brincar e descobrir o mundo é, na verdade,

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uma maneira muito limitada de visualizar a vida infantil na sociedade

ocidental moderna.

Fass explica que, ainda que muitos de nós tenhamos experimentado

uma infância mais pedagogicamente aceitável, esse é um modelo

novo, típico do século XX. A historiadora nos lembra de que, durante o

Iluminismo, que foi dos anos de 1620 a 1780, houve uma tentativa de

um novo modelo de infância – à época, os filósofos lutavam para se

livrar das ideologias tradicionais e frequentemente irracionais da Idade

Média.

Depois, nos séculos XVII e XVIII, a ciência e a filosofia começaram a

ser mais valorizadas dentro dos modelos sociais. Dessa maneira, a

atenção à infância começou a aumentar. O filósofo iluminista John

Locke sugeriu, em 1689, que as pessoas começassem a olhar a

infância de modo racional e não apenas religioso. Considerado pai do

Iluminismo, Locke sugeria que as pessoas tentassem pensar por elas

mesmas e, dessa forma, seus conceitos a respeito de educação logo

começaram a fazer parte de suas obras.

Locke

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A partir daí, Locke começou a contestar modelos de educação

autoritários, sugerindo que os pais e mães de então aprendessem a

deixar que seus filhos brincassem livremente e aproveitassem seus

anos de criatividade, já sugerindo que essas interações lúdicas e livres

formariam adultos mais felizes e realizados. O objetivo de Locke ia

além da educação no âmbito familiar: para o filósofo, era ideal que as

escolas adotassem métodos mais divertidos de ensino, de modo que a

aprendizagem pudesse ser um período lúdico para os pequenos.

Ainda que a ideologia de Locke nos pareça óbvia hoje em dia, vale

lembrar que, quando ele a propôs, brincadeiras e educação lúdica

eram consideradas desperdício de tempo. Só para você ter ideia, na

época de Locke, o único “livro” para crianças era uma cartilha de

madeira com a inscrição do alfabeto, números de zero a nove e uma

pequena passagem bíblica.

Se ainda não parece divertido o suficiente para você, saiba que a tal

cartilha não tinha apenas propósitos educativos, mas também era uma

ferramenta de punição. Ou seja: a mesma tábua que as crianças

usavam para estudar servia também para que elas apanhassem caso

fizessem algo de errado.

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Você já deve imaginar que assuntos relacionados aos direitos da

criança e do adolescente sequer existiam, e a verdade é que,

especialmente entre os mais pobres, as crianças eram vistas como

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mais alguém para ajudar no trabalho. Na Inglaterra, por exemplo, por

volta dos anos de 1660, crianças eram comumente forçadas a

trabalhar limpando chaminés, usando seus cotovelos, costas e joelhos

para subir e descer pelas paredes das chaminés repetidas vezes.

Essas crianças não apenas eram forçadas a fazer isso como

apanhavam frequentemente, passavam fome, se machucavam e,

claro, apresentavam problemas sérios de saúde. Há registros de

crianças que morreram presas em lareiras. As pessoas só tiveram a

ideia de criar materiais apropriados para limpar essas estruturas em

1875, quando passou a ser ilegal que crianças realizassem esse

trabalho.

O legado de Locke começou a se espalhar depois de sua morte. Além

disso, vale frisar que, em 1600 apenas 25% da população era

alfabetizada – esse percentual subiu para 70 em 1800 e, na medida

em que as pessoas liam mais, as ideias novas se espalhavam e,

logicamente, o pensamento crítico começou a ser mais bem

desenvolvido socialmente.

Nos anos de 1620, cerca de 6 mil livros haviam sido publicados. Em

meados de 1710, esse número tinha subido para 21 mil e, ao final do

século, a marca tinha alcançado 56 mil. O resultado? Ideologias

medievais e baseadas apenas em convenções religiosas muito

restritas começaram a perder espaço.

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Depois de Locke, Jean-Jacques Rousseau escreveu novos

importantes estudos que davam continuidade à ideologia iluminista.

Na obra “Émile”, Rousseau explora o lado inerentemente puro da

infância e, além disso, questiona a relação do homem com a natureza

– para o filósofo, a natureza era a melhor educadora moral e, nesse

sentido, ele acreditava que as crianças deveriam ter mais experiências

naturais.

Atualmente, tanto as propostas de Locke quanto as de Rousseau

seguem praticamente inquestionadas. O fato é que, pouco mais de

250 depois da publicação de “Émile”, vivemos em uma era em que o

convívio com a natureza vem sendo, de fato, cada vez mais

valorizado. Ainda assim, é curioso perceber que, nos EUA, por

exemplo, o trabalho infantil foi proibido somente em 1938.

Em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a

“Declaração dos Direitos da Criança”. Em 1989, a Convenção sobre

os Direitos da Criança foi adotada pelo mesmo órgão e, um ano mais

tarde, foi também ratificada pelo Brasil, deixando claro que o trabalho

infantil é desumano e ilegal. Mesmo assim, ainda hoje em nosso país

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o número de crianças trabalhando ilegalmente é assustador: 4,4

milhões. Dessas, 273 mil sofrem acidentes enquanto são exploradas. 

FONTE(S) 

All that is interesting/Callie Stewart