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ENSAIO SEMIÓTICO SOBRE A VERGONHA

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ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

ENSAIO SEMIÓTICO SOBRE AVERGONHA

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APRESENTAÇÃO

COMPRAS

HUMANITAS LIVRARIA � FFLCH/USPRua do Lago, 717 � Cid. Universitária05508-900 � São Paulo-SP � BrasilTel.: 818-4589e-mail: [email protected]://www.fflch.usp.brSERVIÇO DE DIVULGAÇÃO E INFORMAÇÃO

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Endereço para correspondência

FFLCHHumanitas Publicações � FFLCH/USP � outubro/1999

PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Reitor: Prof. Dr. Jacques MarcovitchVice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi

FACULDADE DE FILOSOFIA,LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik AubertVice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz

CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS

Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)Membros: Profa. Dra. Lourdes Sola (Ciências Sociais)

Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan (Geografia)Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)Profa. Dra. Beth Brait (Letras)

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ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

ELIZABETH HARKOT-DE-LA-TAILLE

ENSAIO SEMIÓTICO SOBRE AVERGONHA

PUBLICAÇÕESFFLCH/USP

1999

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

ISBN 85-86087-70-X

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APRESENTAÇÃOCopyright 1999 da Humanitas Publicações/FFLCH/USP

É proibida a reprodução parcial ou integral,sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USPFicha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi CRB 3608

HUMANITAS PUBLICAÇÕES FFLCH/USPe-mail: [email protected]

tel.: 818-4593

Editor responsávelProf. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação editorial e capaMª Helena G. Rodrigues

DiagramaçãoMarcos Eriverton Vieira

Revisãoautora

Esta publicação foi paga, parcialmente, com verba daCAPES (PROAP)

H245 Harkot-de-La-Taille, ElizabethEnsaio semiótico sobre a vergonha / Elizabeth Harkot-de-

La-Taille.- São Paulo : Humanitas/FFLCH/USP, 1999.222 p.

Originalmente apresentada como tese (Doutorado) �Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP.

ISBN 85-86087-70-X

1. Semiótica 2. Semântica 3. Sintaxe 4. Discurso 5.Paixão I. Título

CDD 410.1

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para Zilda Maria Zapparoli

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................. 17

Capítulo 1 � A configuração da vergonha ...................................... 251 Considerações iniciais ............................................................. 252 Configuração: inferioridade e exposição ................................. 272.1 O sentimento de inferioridade ................................................. 31

Rebaixamento ......................................................................... 33Humilhação ............................................................................ 35Desonra .................................................................................. 39Indignidade ............................................................................. 42A configuração genérica .......................................................... 44

2.2 O sentimento de exposição ..................................................... 44Visibilidade ............................................................................. 50Vulnerabilidade ....................................................................... 52O papel do �outro� .................................................................. 54

2.3 A co-incidência das configurações genéricas:a vergonha é uma ressonância ................................................ 57

Capítulo 2 � A construção sintáxica da vergonha ........................... 611 As condições de base ............................................................. 612 A vergonha retrospectiva ........................................................ 653 A vergonha prospectiva .......................................................... 713.1 O envergonhado-inseguro ...................................................... 753.2 O envergonhado tímido .......................................................... 773.3 As condutas defensivas com vistas à liquidação da falta .......... 80

O pudor .................................................................................. 81O brio ..................................................................................... 85A estrela cadente: a honra ....................................................... 88

Capítulo 3 � O problema da superação da vergonha ..................... 971 A vergonha assumida ............................................................. 981.1 Esquecimento ou negação ...................................................... 981.2 Humor .................................................................................... 991.3 Confissão .............................................................................. 1002 A vergonha não-assumida .................................................... 102

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2.1 Tristeza e raiva ...................................................................... 103Relação com a vergonha ....................................................... 103Condutas femininas e masculinas .......................................... 105Personagens femininas e masculinas ..................................... 108

2.2 Da tristeza à depressão, da raiva à fúria:duas palavras sobre a intensidade passional ......................... 128

2.3 Consciência e superação ....................................................... 1292.4 Desintegração do self ............................................................ 131

Capítulo 4 � A complexa intersubjetividade da vergonha ............. 1331 Evidência .............................................................................. 1362 Condição .............................................................................. 1373 Impotência ............................................................................ 1404 Fracasso ................................................................................ 1445 Falta moral ............................................................................ 1486 Contágio ............................................................................... 156

Capítulo 5 � A vergonha sub judice .............................................. 1611 Primeiro tema: o Bem ou o Mal? .......................................... 1642 Segundo tema: a circulação da vergonha �

o papel do domínio público .................................................. 1683 Terceiro tema: a circulação da vergonha � o contágio ........... 171

Capítulo 6 � A vergonha nos textos: dois exemplos ...................... 1751 La Chute .............................................................................. 1781.1 O simulacro existencial de partida ......................................... 1821.2 O evento disfórico................................................................. 1851.3 O riso .................................................................................... 1872 Os Desastres de Sofia ............................................................ 1962.1 O simulacro existencial de partida ......................................... 1962.2 O evento inicialmente eufórico que

se revelará disfórico .............................................................. 1982.3 O elogio e o sorriso ............................................................... 199

Conclusão .................................................................................... 207

Bibliografia ................................................................................... 198

SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO

Este texto propõe um estudo da vergonha, sob a perspecti-va da semiótica das paixões, área da semiótica discursiva. Resul-ta de trabalho acadêmico, na forma inicial de Tese de Doutora-mento 1, defendida junto ao Departamento de Lingüística da Fa-culdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em março de1996, sob a orientação da Professora Doutora Zilda M. Zapparoli,a quem dedico este livro. O texto atual apresenta pequenas mo-dificações em relação à sua versão inicial.

A vergonha é aqui analisada a partir de textos escritos, prin-cipalmente literários. Inicia-se com o tratamento técnico da ques-tão, tendo nos capítulos um e, principalmente, dois, os trechosmais densos, do ponto de vista teórico, para, a partir do capítulotrês, abordar questões de várias ordens suscitadas pelo tema ver-gonha, dentre as quais figuram exemplos da antropologia, dapsicologia e, principalmente, da literatura.

Organizado em seis capítulos, o estudo começa abordandoas configurações passionais que concorrem para a instauraçãoda vergonha, as do sentimento de inferioridade e de exposição ediscute o sujeito envergonhado, um sujeito sincrético e conflitante,desempenhando diferentes papéis, sempre, porém, pressupondoum �outro� legítimo, real ou virtual, passível de julgá-lo. O segun-do capítulo desenvolve a sintaxe da vergonha e aponta para duasformas de realização de sua configuração: uma das formas é ten-sa, típica da vergonha retrospectiva e, outra, intensa, característi-ca da vergonha prospectiva. Ainda neste capítulo são estudadasas articulações tensivas e modalizações, no processo de instaura-ção da vergonha, e as seqüências à história modal do sujeito pre-visíveis pela sintaxe, desde a do envergonhado-inseguro e do tí-mido, até à dos os parassinônimos pudor, brio e honra, compre-

1 Este trabalho teve o apoio das agências financeiras CNPq e CAPES.

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APRESENTAÇÃO

endidos como novos agenciamentos em torno da liquidação dafalta fiduciária.

O terceiro capítulo discute seqüências à história modal nãoclaramente previsíveis, mas compreensíveis, dentro do quadroda sintaxe da vergonha: sua superação pelo humor, esquecimen-to ou confissão e seu �desvio�, isto é, sua vivência, de um modoindireto, como raiva ou tristeza. Trechos de textos literários sãovisitados a fim de verificar a opção predominantemente femininaou masculina pela tristeza ou raiva, como formas de desvio davergonha. O capítulo seguinte discute os vários papéis desempe-nhados pelo sujeito envergonhado: o de vítima, ou de ofensor,ou de sujeito identificado com uma vítima ou com um ofensor,como numa forma de contágio. A relação da vergonha com oBem ou o Mal e sua circulação, via publicidade e via contágio,são o tema do capítulo cinco, que versa sobre os juízos moraisincidentes sobre o sentimento, a partir de colocações de moralis-tas, filósofos e escritores.

O sexto e último capítulo analisa, do ponto de história modale passional de seus personagens principais, dois textos em tornoda temática da vergonha: La Chute, de Albert Camus, e OsDesastres de Sofia, de Clarice Lispector.

Desse modo, fecha-se o corpus de análise da paixão vergo-nha. Compreender o que significa esta paixão, para os indivídu-os de um dado grupo social, exige um estudo plural, multifaceta-do, que leve em conta articulações em torno do tema em diversasáreas do conhecimento humano. É com esta premissa em menteque optamos pela diversidade de fontes e posições a respeito dotema, evitando, assim, o estabelecimento de um corpus homoge-neizante, com tendência a uma simplificação das questões discu-tidas. O estudo de um tema complexo e de indiscutível valor hu-mano, dentro das Ciências Humanas, não poderia apresentarapenas um tipo de fonte de inspiração e argumentos.

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Finalmente, este texto não propõe uma revisão teórica dasemiótica das paixões; é dirigido a interessados em compreendermelhor o que é a vergonha, segundo o homem ou a mulher quea vive, quais suas causas e implicações, qual o papel social de umsentimento que acompanha o ser humano desde a mais tenraidade, já no início do desenvolvimento de sua capacidade comu-nicativa, e ao longo de toda sua vida. E que pode ser leve, comoo desconforto de se saber corar, ou violento e avassalador, levan-do, em casos extremos, à morte, alheia ou própria.

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PREFÁCIO

A partir dos anos 80, os estudos semióticos tomaram umadireção que parecia não ser a sua, há até bem pouco tempo, qualseja a da abordagem das paixões. O risco do �psicologismo�, dese retomarem estudos de caracteres e de temperamentos, afastousempre a lingüística e a semiótica desse ângulo da análise dodiscurso. Só o amadurecimento e a segurança alcançados no exa-me da sintaxe narrativa e principalmente os avanços no estudoda modalização discursiva permitiram que a semiótica envere-dasse pelos meandros das paixões, sem medo de perder um es-paço duramente alcançado ou de voltar caminho.

A semiótica das paixões desenvolveu-se em dois momen-tos: no primeiro, as paixões foram entendidas como efeitos desentido de qualificações modais do sujeito, produzidos no discur-so; no segundo, acrescentou-se aos estudos dos dispositos modaisda narrativa, o exame da sensibilização passional do discurso, ouseja, o das �precondições� da significação e de sua convocaçãono discurso em que se constituem os sentidos estéticos e passio-nais.

Os estudos semióticos das paixões tiveram várias decor-rências e produziram resultados diversos na teoria semiótica e naanálise dos discursos: foram descritas paixões lexicalizadas ou de�papel�; iniciou-se o exame dos �estados de alma�, reafirmou-se, do ponto de vista teórico, a vinculação dos efeitos passionaiscom a organização narrativa e com seus dispositivos modais, e,principalmente, reviu-se a construção teórica do percurso gerativoda significação, com o exame das precondições. A teoria semióti-ca assumiu, uma vez mais, seu caráter de projeto coletivo emdesenvolvimento, de projeto de construção teórica que se refazcontinuamente. A confiança desconfiada que nos ensinou Greimasse mostra uma vez mais necessária.

É nesse quadro teórico, nesse momento das investigaçõessemióticas e nesse campo de efervescência das certezas incertas

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APRESENTAÇÃO

que se coloca o livro de Elizabeth Harkot-de-La-Taille. Seu ensaiosemiótico sobre a vergonha analisa, na perspectiva mencionada,a paixão da vergonha a partir de textos principalmente literáriose, em especial, La Chute, de Albert Camus e Os desastres deSofia, de Clarice Lispector.

O trabalho de Elizabeth Harkot-de-La-Taille cumpre os pa-péis diversos que assumem os estudos do texto e do discurso emgeral. Em primeiro lugar, contribui para o desenvolvimento teóri-co e metodológico da disciplina, ao examinar as configuraçõespassionais que concorrem para a instauração da vergonha, aoapontar dois tipos de vergonha, a retrospectiva ou intensa e aprospectiva ou tensa, ao indicar os demais estados patêmicosdecorrentes da paixão da vergonha, tais como a liquidação, asuperação e o desvio da falta de confiança, ao tratar dos papéisde vítima e de ofensor vividos pelo sujeito envergonhado, aomostrar a complexidade e as muitas facetas da configuração pas-sional da vergonha. Em segundo, realiza uma das funções �so-ciais� dos estudos do texto e do discurso, a de examinar os textosda cultura e contribuir assim para que se conheça melhor, pormeio da linguagem, a sociedade, ao analisar os livros de Camuse Lispector, as especificidades da vergonha na literatura, os juízosmorais que incidem sobre tal paixão, a partir principalmente, deestudos de moralistas, de filósofos e de literatos, e os conteúdosda vergonha, que variam com a época e a cultura. Finalmente, oensaio sobre a vergonha propicia um saber sobre a linguagem eprincipalmente sobre o homem, por via do exame de seus discur-sos: analisam-se as relações intersubjetivas, os �estados de alma�,os laços de interação, os jogos de imagem do homem em socie-dade.

Ensaio semiótico sobre a vergonha é um desses livros bemacabados e que fascinam o leitor pelo tema escolhido � a vergo-nha é uma das paixões que regulamentam as relações miúdasentre sujeitos e as relações sociais e que nos levam a estabelecer

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pontos de contato com a sociologia, a psicologia, a filosofia, asemiótica das culturas, entre outros �, pelos objetos de análiseselecionados � Camus e Lispector �, pelo estilo agradável e fluen-te, pelo uso adequado e competente da teoria, pela atualidade enovidade do debate teórico no campo da semiótica das paixões,pela atração quase estética de uma proposta teórica e de umaanálise bem articuladas.

Diana Luz Pessoa de BarrosUniversidade de São Paulo

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INTRODUÇÃO

�J�ai honte, donc j�existe.�JANKÉLÉVITCH (1986: 456)

�O rubor é a mais especial e a mais humana de todas asexpressões�, inicia DARWIN (1981/1864: 332) o 13o capítulo deA Expressão das emoções nos homens e nos animais. Certosmacacos ficam vermelhos de raiva, mas nenhum animal é capazde corar como o homem, exclusivamente por impressionabilidadede seu espírito.

O rubor é expressão da vergonha, sentimento profundoque inclui ainda outras manifestações psicossomáticas: �todas asvezes que se produz um rubor intenso, manifesta-se ao mesmotempo uma perturbação, às vezes muito grande, das idéias. Estefenômeno é freqüentemente acompanhado de falta de destrezanos movimentos, e às vezes de contrações involuntárias em algunsmúsculos.� (idem: 372). Não adianta tentar controlá-lo: quantomais atenção se presta a si mesmo, mais fortemente a pessoa sedispõe ao rubor.

Afeto, emoção, sentimento, ou paixão, a vergonha opera atransformação do homem natural em cultural, está no cruzamen-to central das coordenadas que definem o humano. A propósito,é também de Darwin a observação de que bebês e idiotas nãocoram: �Parece que as faculdades intelectuais das crianças pe-quenas não estão ainda suficientemente desenvolvidas para lhespermitir corar. Daí vem também que os idiotas coram raramen-te...� (idem: ibidem). A vergonha exige, portanto, alguém comconsciência de si.

Não é apenas da capacidade intelectual que depende essapaixão para eclodir. Ela é fortemente baseada na opinião de

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INTRODUÇÃO

outrem. Na vergonha, o homem desloca sua atenção de si mesmopara o outro e para como o outro o vê; desloca sua atenção desua imagem no espelho para a sociedade e seu papel nela. Aopinião do outro pode ser manifesta, suspeita, ou suposta, massempre temida. Pode nem mesmo chegar a opinião e sersimplesmente um olhar direto sobre o sujeito, ou sobre suas roupas,ou sobre seus sapatos... Em suma, alguém totalmente isoladodificilmente coraria: é preciso alguém mais, ou melhor, é precisoa consciência de que alguém mais o olha e o julga � ou que podevir a fazê-lo �, e de que seu juízo é digno de consideração, parahaver vergonha.

A vergonha faz viver uma dicotomia interior, leva a pensar oestatuto do outro e pode despertar questões filosóficas: �La honteest la première phobie de la mauvaise conscience qui s�apperçoitelle-même comme objet et qui sait pourtant que cet objet est encoresoi-même comme sujet...� (JANKÉLÉVITCH, 1986: 449-450). Elase instaura num sujeito cindido, desdobrado e debruçado sobre simesmo. Objeto do pensamento alheio, objeto do própriopensamento, objeto... Sujeito que percebe estar sujeito e não sersujeito, percebe ocupar uma posição: de sujeito, quando pensa,quando olha; de objeto, quando é pensado, quando é olhado.

A vergonha �acontece� junto com uma debreagem actan-cial, mais especificamente, uma debreagem cognitiva. Ela permi-te �instaurar uma distância entre a posição cognitiva do enunciadore as que pertencem quer aos actantes da narração, quer aos donarrador� (GREIMAS; COURTÈS, 1979: 97). SARTRE (1943:336) define a vergonha como �le sentiment originel d�avoir monêtre dehors, engagé dans un autre être et comme tel sans défenseaucune (...), sentiment (...) d�être un objet, c�est-à-dire de mereconnaître dans cet état dégradé, dépendant et figé que je suispour autrui.� Reconhecer-se fora de si mesmo, ser objeto paraoutrem... pode ser compreendido como o estado de um sujeitodebreado:

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�Os sujeitos debreados e instalados no discurso são posições vaziasque só recebem suas determinações (ou seus investimentos* semân-ticos) após o fazer, seja do próprio sujeito da enunciação (pela predi-cação*), seja do sujeito delegado inscrito no discurso: esses sujeitossão, portanto, tratados como objetos à espera de suas determina-ções, que podem ser tanto positivas quanto negativas (se definidoscomo desprovidos de atributos enunciados)� (GREIMAS; COURTÈS,1979: 313, grifo nosso).

O sujeito envergonhado é esquizotímico: parte embreado,parte debreado: reconhece-se fora de si mesmo, sem defesa, �nu�,à espera das determinações que lhe serão atribuídas.

Para situar o estudo que segue, quatro questões se colocam.Em primeiro lugar, a perspectiva teórica adotada. Em segundo,como, em linhas gerais, a vergonha é compreendida. Em terceiro,a opção de sobre que corpus trabalhar; e, finalmente, em quarto,a organização dos capítulos.

Como alguns conceitos acima permitem entrever, a pers-pectiva teórica empregada é a da semiótica discursiva � greima-siana �, mais especificamente seu desenvolvimento em torno doestudo das paixões. A motivação da escolha é de fácil compreen-são: dentro das várias linhas teóricas que se dedicam à análise dodiscurso, a semiótica greimasiana representa o arcabouço teóricoformalizado mais completo e refinado para o estudo de transfor-mações do �estado da alma� de sujeitos �de papel�; nossa opçãopelo corpus recaindo principalmente sobre textos literários, seuaparelho metodológico de análise permite-nos estudar a configu-ração passional da vergonha sob vários ângulos: as configura-ções que, combinando-se, criam o efeito de sentido de vergonha;a variação tensiva ao longo da instauração da vergonha e suasseqüências; o engendramento ou não de programas de liquida-ção de falta; e a moralização incidente sobre a vergonha.

A vergonha é compreendida, neste estudo, como resultantede um fazer do sujeito envergonhado relativo à projeção de uma

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INTRODUÇÃO

imagem de si. É abordada do ponto de vista do sujeito patêmico,de seu simulacro interno: como se configura e o que significa essejogo de imagens para o sujeito.

Em linhas muito gerais, eis as premissas para o modeloproposto para a vergonha: o sujeito tem um simulacro existenci-al, isto é, faz projeções de si num imaginário de confiança e rela-xamento; dentro de seu simulacro existencial, ele constrói para siuma imagem que considera representá-lo, uma imagem com aqual se identifica e se confunde. Desliza, portanto, do parecerpara o ser, imagem e sujeito constituindo um mesmo e únicovalor. Ter uma imagem de si não significa ter um modelo fixo aimitar, como o �bom aluno�, ou o �bom escoteiro� � excepcional-mente, pode assim acontecer �, mas um conjunto de projeçõesdo sujeito negociadas em função de sua interação com seu mi-crouniverso socioletal, num constante reformular de seu simula-cro existencial (alteram-se as coordenadas do sujeito, seu simula-cro existencial será reformulado para ajustar-se à nova realidade1 ).

De posse de uma imagem de si, uma circunstância inespe-rada, caracterizada como um evento disfórico, vem arrancar osujeito de seu estado de confiança relaxada: percebe que o modocomo se vê (a imagem que acreditava representá-lo, ou o valorque a ela atribuía) mostra-se em desajuste com o modo como sevê visto (sua imagem para os outros, seu papel desempenhado).Como imagem e sujeito se confundem, o sujeito reconhece nãoser o que pensava ser e teme o juízo dos outros, uma vez que sua

1 Uma grande empresa de televisão parece contratar serviço de apoio psicológico paraos novos integrantes de seu quadro de atores; muitos belos rostos, modelos de origem,teriam dificuldade em lidar com a súbita fama: entre vários problemas, parece quetenderiam a ter uma imagem de si em desajuste com o modo como a empresa os vê,passando a fazer exigências de estrela � horários de gravação, papéis a desempenhar,tratamento a receber, cachê, etc. É um exemplo claro do processo de reformulaçãode simulacro existencial: a antiga imagem de si (anterior ao sucesso) não maissatisfazendo, os sujeitos passam por um período de �negociação simbólica�, em buscade uma representação de si satisfatória e aceitável a ponto de permanecerem, aomenos por um tempo não muito curto, em relaxamento.

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nova e indesejada representação é a imagem que os outros têmou podem vir a ter de si. Está formada a base para a vergonha.

Tomar a vergonha a partir desse jogo de projeções de ima-gens traz a nítida vantagem de pensar suas muitas organizaçõessob um denominador comum. Une, enquanto projeções de ima-gens, o envergonhado por ser vítima, ofensor, equivocado, calu-niado, pobre, feio, mulher, ou criminoso, para citar alguns.

No tangente à seleção do corpus, duas justificativas seimpõem: por que principalmente literário e por que destaque aLa Chute, de Camus, e a Os Desastres de Sofia, de Lispector.

A escolha da literatura como corpus principal deveu-se àsua característica de simulacro do real. O tema vergonha apresentauma dificuldade incontornável à pesquisa: vergonha é coisa deque não se fala. Ou então estamos em contextos de psicoterapiaou psicanálise, ou em circunstâncias tão repletas de especificidadesque acabam por não ser representativas: acabaríamos por estudara vergonha dos sujeitos X, Y e Z, e não a vergonha como umestereótipo passional. Há ainda uma outra possibilidade: pode-se entrar em contextos em que parece inexistir vergonha comoconfiguração passional � são contextos de nível sociocultural alto,em que os sujeitos têm maior controle sobre a linguagem e sobrea expressão das próprias paixões. Neste último microuniverso,representado, por exemplo, por artigos de jornais e revistas, apalavra vergonha aparece quase unicamente como um veredito� É uma vergonha! É vergonhoso! É ultrajante! �, como se aossujeitos com a palavra fosse reservado o juízo e àqueles de quemfalam, a condenação. Nunca � ou quase nunca � paixão, masafirmação de si e negação do outro.

A literatura, como simulacro do real, apresenta-nos os �es-queletos no armário� que o dia-a-dia tão bem esconde. Emborao faça de forma velada, oferece ao analista do discurso uma ja-nela � aberta e discreta � para a vida além da própria. Ao invésde escutar atrás das portas, espiar por buracos de fechadura, gram-

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INTRODUÇÃO

pear telefones, ou contratar investigadores particulares para bis-bilhotar a vida alheia, a fim de buscar um melhor entendimentoda vergonha, tomam-se e se estudam alguns bons livros. Temosaí, é claro, o estudo da vergonha nos textos, em textos que simu-lam o real, mas não a vergonha das pessoas de carne e osso dacidade tal no ano ene.

A opção por La Chute e Os Desastres de Sofia é decorrentede pesquisa bibliográfica literária. Tema oculto, não são muitosos textos sobre a paixão vergonha. Há, por outro lado, na litera-tura, muitas cenas de vergonha e não hesitamos em delas lançarmão, quando necessário. A vergonha, entretanto, não é paixãoque se manifesta clara ou longamente nos textos. Coerentementecom o real, a literatura também escamoteia as vergonhas daspersonagens, apresenta histórias paralelas, toma desvios, fala decoisas motivadas por algo secreto que, descobre-se, é algumavergonha sofrida. A vergonha precisa ser reconstruída a partirdos textos. La Chute e Os Desastres de Sofia são dois textos intei-ros sobre a problemática da vergonha, por ângulos radicalmentediferentes: o primeiro desenvolve o projeto de um universo semvalores; o segundo reflete os efeitos passionais de descobertascognitivas. Por isso foram escolhidos.

Finalmente, um breve apanhado dos capítulos que seguempermitirá uma visão de conjunto deste estudo.

O texto está organizado em seis capítulos. O primeiro abor-da as configurações passionais que concorrem para a instaura-ção da vergonha; o segundo desenvolve as articulações tensivase as modalizações ao longo do processo de instauração da vergo-nha e os caminhos posteriores a ela, previsíveis na sua sintaxe. Oterceiro, também sobre as possíveis decorrências da vergonha,discorre sobre caminhos não previsíveis em sua sintaxe, mas re-petidamente identificados; investiga também como a literatura osretrata. O quarto capítulo trata das múltiplas organizações actan-ciais e actoriais identificadas numa situação de vergonha instau-

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rada. O quinto, último capítulo teórico, versa sobre os juízos mo-rais incidentes sobre a vergonha, a partir de colocações, princi-palmente, de moralistas, filósofos e escritores. O sexto e últimocapítulo é de cunho prático e procura realizar três tarefas: efetuara análise de La Chute e Os Desastres de Sofia, do ponto de vistada história modal e passional de suas personagens, sujeitospatêmicos da vergonha; verificar o alcance do modelo proposto,quando contraposto a textos em que o efeito de sentido �vergo-nha� é identificado como predominante; e revisitar o modelo davergonha levando em conta os aportes que os textos analisadospodem oferecer.

Dito isso, o texto que segue acusará algumas ambições,dentre as quais destacamos a proposta de um modelo competen-te da vergonha. Tal modelo, entretanto, não deve � e nem quer �ser lido como completo, acabado, com ares de fim da história davergonha.

Para finalizar, apenas uma ressalva sobre o que não vai serencontrado adiante: o debate vergonha/culpa, ou suas inúmerasramificações. Isto por uma tomada de posição que a semióticanos permite: debruçar-se sobre a vergonha significa debruçar-sesobre modalizações do ser, sobre transformações do estado desujeitos, estereotipadas, identificadas como paixão. Na vergonha,é o sujeito, seu ser, através da imagem que projeta de si, que estásob mira. A culpa diz respeito à sanção que o sujeito se aplica, ofoco reside nela, na sanção, não no ser e nas suas transformaçõesde estado. A culpa não caracteriza uma paixão. A vergonha, sim.Uma paixão essencialmente humana, unicamente humana, radi-calmente humana.

�Man is a beast when shame stands off from him.�SWINBURNE, Phoedra: Hippolytus 2

2 Citação extraída de The Home Book of Quotations, Stevenson, 10 ed., 1967, publicadopor Dodd, Mead & Company, N.Y.

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A CONFIGURAÇÃO DA VERGONHA

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A motivação de um estudo dedicado à vergonha tem ori-gem em seu caráter complexo: trata-se de uma paixão intersubje-tiva, originada no cruzamento de outras configurações, em que oDestinatário assume a perspectiva de um Destinador julgador,exercendo um fazer cognitivo reflexivo que gera uma sanção ne-gativa. É um sujeito desdobrado em dois simulacros existenciaisconflitantes: num, ele tem, ou pensa ter uma certa competênciamodal positiva, pensa ser � ou melhor, projetar-se � de um deter-minado modo; noutro, ele vê que não possui tal competência,que não é como pensava ser. Tudo isso acrescido do olhar real ouvirtual de um espectador legitimado pelo sujeito, supostamenteem conjunção com o sistema de valores do Destinador julgador.Em suma, por um lado, um mesmo ator sincretiza os actantesDestinatário e Destinador julgador; por outro, o actante Destina-dor julgador é �encarnado� por mais alguém: um espectador le-gítimo, real ou virtual.

Neste estudo sobre a vergonha, interessam-nos, particular-mente, sua �história modal�, assim como o simulacro �ad usuminternum du sujet qui cherche à s�y reconnaître� (GREIMAS, 1983:218). O sujeito envergonhado, desse ponto de vista, é alguémdividido internamente e sob o juízo alheio: por um lado, ele cons-trói uma imagem virtual de si; por outro lado, ele é obrigado areconhecer-se como não dotado da competência necessária paragozar de tal imagem; além disso, ele elege o olhar do outro comolegítimo, para julgar, negativamente, a imagem de si que conse-gue projetar.

Além de sua complexa organização actancial e actorial, oitem lexical vergonha recobre dois sentimentos aparentemente

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distintos e diferentes entre si: suas entradas em Aurélio e em LeRobert apresentam como sinônimos numa primeira definição,desonra e, mais adiante, honra.

Partindo das definições dos dicionários acima, podemos che-gar a duas macrodefinições: em primeiro lugar, �desonra humi-lhante, opróbrio, ignomínia, degradação; sentimento penoso dedesonra, humilhação ou rebaixamento diante de outrem; sentimentopenoso de inferioridade, de indignidade diante de sua própria cons-ciência, ou rebaixamento na opinião dos outros�; em segundo lu-gar, �sentimento de insegurança provocado pelo medo do ridículo,por escrúpulos; timidez, acanhamento; pudor, brio, honra.�

Ora, que palavra é essa que recobre o não e o sim, a au-sência e a presença, o temível e o desejável? A vergonha de terfeito algo condenável será a mesma vergonha de falar de ques-tões de foro íntimo? Sobre que variáveis incide a crise passionalque caracteriza o sujeito envergonhado?

O percurso passional da vergonha tem a característica deser orientado pela perspectiva do sujeito patêmico 1 : a vergonhapode ser vivida de duas formas diferentes, dependendo de o acon-tecimento que a traz à tona ser-lhe anterior ou posterior. Um dostipos de vergonha, isto é, o sentimento penoso de desonra, deinferioridade diante de outrem ou da própria consciência, decor-re de um feito ou acontecido, é uma vergonha posterior a umacontecimento. Esta vergonha é vivida como uma profunda tris-teza, por vezes até como um desespero, acompanhada de umdesejo de desaparecer.

Contudo, se a vergonha é anterior ao acontecimento, istoé, se ela determina uma conduta, o sujeito a vive como um receio

1 Pode-se traçar um paralelo entre as duas formas de vergonha e as duas formas deciúme apontadas por Greimas e Fontanille (1991: p. 189-190): o ciúme prospectivo,de quem teme a perda da exclusividade sobre o objeto-valor � vê rivais potenciais esuspeita poder ser traído � e o ciúme retrospectivo, de quem tem consciência de nãopossuir tal exclusividade � sabe da conjunção de outrem com seu objeto-valor.

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e uma angústia, como uma disposição de espírito: receio de ex-por-se, de ser objeto do juízo de outrem e, portanto, vulnerável,�sem qualquer defesa�, segundo a expressão utilizada por SARTRE(1943: 336), e angústia � parente próxima do medo, um medosem objeto � por conta da possibilidade de uma tal circunstância.

Essas �duas vergonhas� são, no entanto, uma só. Possu-em, em sua base, uma mesma configuração, camuflada por umavariação de perspectiva:

�...ce n�est là qu�une variation de perspective, sur l�axe de l�antérioritéet de la postériorité, qui présuppose un dispositif actantiel unique etqui relève de la mise en discours; d�un côté, elle focalise les effetsd�une syntaxe (...); de l�autre, elle présuppose la constance d�uneconfiguration.� (GREIMAS e FONTANILLE, 1991: 190).

Embora a observação acima tenha sido tecida a propósitodo ciúme, ela pode perfeitamente ser estendida à vergonha.

A análise lexical que segue tem o objetivo de apontar asconstantes na configuração, nas duas definições, e balizar a refle-xão. A partir das definições de vergonha de Aurélio e Le Robert,discutiremos realizações da configuração em textos literários. Abor-daremos, também, o pensamento de filósofos, moralistas e cien-tistas.

2 CONFIGURAÇÃO: INFERIORIDADE E EXPOSIÇÃO

Partindo das definições acima, podemos apreender que avergonha se estabelece no encontro de duas outras configura-ções passionais: a da inferioridade, que traduz a relação do sujei-to com a imagem que se acreditava capaz de projetar e a daexposição (o sentimento de estar exposto), que diz respeito à re-lação sujeito/universo socioletal.

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O sentimento de inferioridade já é, por si só, complexo eengloba as etapas de um programa narrativo: trata-se do produtode um fazer cognitivo, na forma de uma operação de compara-ção, que pressupõe um apego ao objeto (imagem) com que osujeito se percebe não-conjunto. Esta comparação é exercida porS1 entre a imagem que acreditava ser capaz de projetar, a ima-gem virtual, e a imagem de fato projetada, sancionada negativa-mente. Tudo isso culminando na patemização do sujeito. Afinal,a constatação da inferioridade de fato não implica necessaria-mente o sentimento de inferioridade, estado patêmico segundo oqual o sujeito se vê com menor valor do que acredita(va) mere-cer.

Esse jogo de imagens, virtual e projetada, que pode levar àinstauração do sentimento de inferioridade, acusa, na verdade,reformulações de simulacros que os sujeitos da comunicação di-rigem uns aos outros. A primeira, a imagem virtual, resulta dosimulacro existencial inicial do sujeito, isto é, das projeções reali-zadas pelo sujeito a respeito de si mesmo, num imaginário deconfiança e relaxamento. Em alguns casos específicos, pode tra-tar-se de uma imagem estática, como a do �bom escoteiro�, maso que parece ser mais comum é um processo dinâmico de refor-mulação de imagens desejáveis, a partir da interação do sujeitocom seu universo socioletal. Ao resultado desse processo dare-mos o nome de �boa imagem�, a partir da expressão empregadapor GREIMAS (1983: 213-224) em �Le défi�. Salvo em casosexcepcionais, a �boa imagem� a que freqüentemente nos referi-remos não significará, portanto, um modelo retirado de algumreceituário de boas maneiras, patriotismo, religião ou etc., mas oconjunto de projeções de si que o sujeito faz, quando confiante erelaxado. A segunda, a imagem projetada, também resulta deprojeções do sujeito a respeito de si mesmo, na interação comseu microuniverso, mas, desta vez, num imaginário não mais derelaxamento e confiança, mas de intensão e suspensão da con-

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fiança, ou de tensão e negação da confiança. Se o sentimento deinferioridade se instaura, trata-se, necessariamente, de uma ima-gem contraditória com a primeira.

Em se tratando de uma teoria de bases fenomenológicas, asemiótica vê a imagem projetada como a projeção do ser. O olharalheio, portanto, tem somente o parecer como base para fazerinferências sobre o ser do sujeito e, conseqüentemente, exercerseu juízo. A relação ser-parecer, em torno da imagem do sujeito,adquire, desse modo, importância capital. O sentimento de infe-rioridade causado pela falta da �boa imagem� (e projeção deoutra, em que a competência modal valorizada positivamente nãoexiste) fica a léguas de ser um sentimento superficial. Para o su-jeito envergonhado, seu valor pessoal, antes relacionado com suaimagem virtual, e sua imagem projetada confundem-se. Com adesintegração de sua imagem virtual, o sujeito vive uma crisefiduciária que pode ter como conseqüência o desmoronamentode todo um universo de crenças pessoais: ele é, na esfera pública,o que sua imagem projetada o faz parecer. O universo simbólicoem que S1 se reconhece enquanto sujeito pode ruir.

Além disso, o sujeito envergonhado sanciona ele próprionegativamente sua imagem projetada, caracterizando uma situa-ção de esquizotimia 2: embora sendo determinada imagem, parajulgá-la negativamente, adere a um quadro axiológico que a con-dena. Isto lhe dá uma nova existência semiótica, em conjunçãocom os valores representados pelo �olhar alheio� que S1 compar-tilha. Deve, nesse quadro axiológico, exercer um fazer reflexivo. Éum sujeito dividido e oscilando entre dois simulacros.

2 Curiosa situação: o sujeito está em conjunção com determinados valores, a partir dosquais julga a si mesmo negativamente, por não estar em conjunção com os mesmosvalores: quem (verdadeiramente) se censura por não ser honesto deve, necessaria-mente, sê-lo, para vir a se censurar. Como canta G. BRASSENS em Ceux qui nepensent pas comme nous: �Entre nous soit dit, bonnes gens,/Pour reconnaître/ quel´on n´est pas intelligent,/ Il faudrait l´être.�.

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O encontro dos sentimentos de inferioridade e de exposiçãoprovoca vergonha. Esta, por sua vez, produz efeitos somáticos, comoo rubor, que a torna visível. A impossibilidade de esconder o senti-mento pode gerar mais vergonha � a vergonha de ter vergonha.Instaura-se, assim, uma espiral em que o sujeito patêmico pode sertragado, até que a situação se torne insuportável, levando-o a agira fim de romper o ciclo, ou até que se abstraia do olhar alheio.

Um incremento no sentimento de inferioridade leva S1 atemer e, provavelmente, evitar a exposição; um aumento de ex-posição, isto é, um maior número de espectadores, ou especta-dores com �mais direito� ao juízo, causa um sentimento de infe-rioridade mais contundente, ou um novo sentimento de inferiori-dade: o da impossibilidade de � ou incompetência para � defen-der-se do olhar alheio.

Umas poucas palavras sobre o espectador, esse �olhar a-lheio�: em primeiro lugar, ele não é meramente um observadorexterno que olha o sujeito patêmico e reconhece nele o estereóti-po da vergonha. O espectador é parte integrante da configura-ção: sem o sentimento de estar exposto, seja esta uma exposiçãoreal ou virtual a outras pessoas, ou interiorizada, como exposiçãoà própria consciência, não há instauração da vergonha. Em se-gundo lugar, o espectador tem de ter legitimidade enquanto juiz.A vergonha somente se instaura se o sujeito com sentimento deinferioridade crer que tanto ele como seu(s) espectador(es) com-partilham o mesmo sistema de valores e se atribuir a seu(s)espectador(es) o direito de julgá-lo. Decorre disso que expor aprópria inferioridade é mais ou menos vergonhoso, dependendodo outro que a vê e a julga.

BOURDIEU (1968: 208) ilustra bem essa idéia ao citar oque se diz em Cabília sobre alguma condenação por tribunal:�No se trata de deshonor ni de vergüenza � se dice �: es la leyfrancesa�. E, em nota de rodapé, acrescenta �Me han contadoque un hombre de Cabilia, de vuelta de la cárcel, no salió de su

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casa hasta que volvió a crescerle el bigote. Lo único que podíadeshonrarle era la falta de bigote.� Em outras palavras, ter sidocondenado, pela lei francesa, não é vergonhoso, mas ser visto empúblico (seu público, não o público da prisão, ou dos tribunais)sem bigode o é.

Parece-nos lícito pensar que este homem de Cabília, quan-do na prisão, de bigode raspado, provavelmente sentiu-se infe-riorizado, mas não envergonhado ou desonrado perante os ou-tros presos � também de bigode raspado! � ou as autoridadesfrancesas. No entanto, talvez sentisse vergonha ao simplesmentepensar que seus parentes e amigos poderiam vê-lo assim e, devolta à casa, situação mais próxima da concretização da exposi-ção de sua �insuficiência� aos seus, portanto, potencialmentedesonrosa, vê-se obrigado a fugir do olhar alheio até a recupera-ção do símbolo momentaneamente perdido.

Logo, é bom ressaltar, alguém somente se sente exposto, seconsiderar seu espectador legítimo. O sentimento de exposição,portanto, pressupõe, por parte do sujeito, o reconhecimento dainstância que o olha e o julga como legítima. Essa instância so-mente terá legitimidade, se, no simulacro interno do sujeito, esti-ver em sincretismo com o Destinador julgador responsável pelasanção negativa de sua imagem projetada.

2.1 O SENTIMENTO DE INFERIORIDADE

Inferioridade é definida por Aurélio como �qualidade, con-dição ou posição de inferior�. E inferior é �que está abaixo deoutro(s) em qualidade, condição, importância, mérito, valor�. Nodicionário brasileiro, diferentemente dos dicionários franceses, nãohá sentimento de inferioridade. A tradução do francês, porém,como �sentimento de uma fraqueza, real ou falsa�, é bastantesatisfatória. Esse sentimento resulta de uma operação de compa-

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ração entre competências modais e/ou entre imagens pessoais,orientada de maneira decrescente. Pressupõe um querer, um de-sejo de conjunção com o objeto-valor �boa imagem�. Pressupõetambém, subjacente a esse querer, um dever, pivô da instauraçãode uma imagem virtual como �boa imagem�, componente �so-cializante� da mesma. O sujeito deve estar em conjunção comdeterminados valores, para ser reconhecido como dotado de �boaimagem�, e o quer.

A �boa imagem� não depende necessariamente de os va-lores nela inscritos estarem de acordo com o total do sistema devalores do universo socioletal do sujeito. Freqüentemente o queestá em cena é um conjunto de valores supostos de um Destina-dor de um microuniverso socioletal do qual o sujeito faz parte.Há, no mínimo, tantas �boas imagens� quantos microuniversossocioletais. Para o integrante de uma torcida organizada de umdeterminado time de futebol, a �boa imagem� pode ser a do tor-cedor apaixonado; para o de outra torcida, pode ser a do provo-cador de adversários; para o praticante de uma religião, será a dohomem e da mulher castos; para o de outra, a da pessoa pia.Freqüentemente um mesmo sujeito tem �boas imagens� diferen-tes, segundo o grupo em que se encontra. Por exemplo, o pai defamília paulistano pode agir de acordo com a imagem do paibom e justo, respeitador, amoroso, etc., quando em família; ao sairno trânsito de São Paulo, facilmente abandonará a �boa imagem�anterior em proveito da imagem de �esperto�, daquele que nãoperde as oportunidades: atravessa o farol vermelho, ultrapassa peladireita, não dá passagem a outros, fecha cruzamentos, etc. Nessescasos, serão diferentes, e por vezes até opostos e contraditórios,os motivos possíveis de perda ou ausência da �boa imagem� econseqüente instauração do sentimento de inferioridade.

A �boa imagem� pressupõe, como vimos acima, um devere um querer, é uma imagem virtual, decorrente de uma mani-pulação. Toda manipulação ocorre no quadro de um simulacro

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em que S1 tem a base simbólica para o reconhecimento de sienquanto sujeito. Tomando o sentimento de inferioridade da pers-pectiva daquele que o sente, o sujeito, em seu simulacro interno,vê-se como alguém dotado de um dever e um querer realizar a�boa imagem�, mas, ao mesmo tempo, sem competência paratanto: ele se reconhece como dotado de um não-poder-fazer (rea-lizar a �boa imagem�), ao menos no momento em questão. Oreconhecimento de sua incompetência abala, de modo mais oumenos profundo, o reconhecimento de si mesmo enquanto sujei-to, este intimamente ligado à imagem virtual, à �boa imagem�.Reconhecer sua falta produz uma crise fiduciária e pode implicardesde resignação do sujeito até, em situações limites, sua auto-destruição (ver humilhação, adiante, neste capítulo).

É assim com o vestibulando que, mesmo após um ano deárduos estudos, não consegue entrar na faculdade desejada; oucom o homem/a mulher que se mira nas fotografias de top modelse, em seguida, olha-se no espelho, frente à realidade sem reto-ques ou truques de iluminação; ou com o esportista diante deuma derrota, etc.

A inferioridade como sentimento é uma configuração pas-sional resultante de um fazer cognitivo: a comparação entre a�boa imagem� e a imagem projetada, com ênfase na falta daprimeira. Terá um alcance variável, dependendo do apego e dograu de identificação do sujeito com sua �boa imagem�. É tam-bém a configuração mais genérica, como nos mostram, a seguir,o exame dos parassinônimos de vergonha: rebaixamento, humi-lhação, desonra e indignidade.

REBAIXAMENTO

Rebaixamento é �diminuição ou perda de valor, preço, al-tura� (Aurélio). Caracteriza um tipo de inferioridade provocada,

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necessariamente resultante da atuação de um sujeito do fazer.Em primeiro plano, coloca-se a relação polêmica S1,O/S2, emque S1 se transforma em um objeto do fazer de S2 e com issoperde a �boa imagem� que possuía. S2 faz com que S1 surjacomo não-conjunto com seu Ov �boa imagem�. Não há, no en-tanto, despossessão, pois S2 não entra em conjunção com a �boaimagem� de S1. Se S1 e S2 pretendem, por exemplo, a chefia deum grupo, o rebaixamento não se dá pela vitória de S2, mas nacaracterização de S1, por S2, como não apto a disputá-la.

Não se trata, diretamente, da disputa por um Ov, mas deuma comparação de competências modais, com um duplo obje-tivo: de um lado, o objetivo imediato, a inferiorização de S1, atra-vés da aniquilação de sua �boa imagem�; de outro, como decor-rência, o provável estabelecimento da superioridade de S2. Háduas formas de tornar-se superior: superam-se as próprias defici-ências, ou se subjuga o outro. No rebaixamento impera a segun-da forma: S2 tenta promover-se através da fraqueza alheia, S1 éa parte subjugada, tornada meio para um fim de S2.

Estamos, porém, mudando de perspectiva e fazendo infe-rências que apontam para além do programa de rebaixamento.Atendo-nos a ele, a perspectiva a ser adotada é de S1, para quemo rebaixamento é uma inferiorização provocada, é um programade destruição de valor, do objeto-valor �boa imagem�. S2 ga-nhará ou não com isso dependendo das contingências presentesna narrativa.

Um tipo particular de rebaixamento é o rebaixamento desi. Rebaixar-se é �cometer atos indignos, aviltar-se, humilhar-se�(Aurélio). É igualmente um programa de destruição do objeto-valor �boa imagem�. Sendo uma ação reflexiva, a perspectivaadotada parece ser a da inferiorização, a da perda da �boa ima-gem�, tudo se passando como se o sujeito operador do rebaixa-mento se fundisse no papel do rebaixado e restasse apenas osegundo, aquele destituído da �boa imagem�.

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Essa primeira leitura do rebaixamento de si revela-se insa-tisfatória, senão ingênua. Excetuando-se os casos em que o sujei-to não tem escolha � pensamos aqui nos rituais de iniciação, comoalguns trotes em calouros de faculdades ou instituições militares �,se é verdade que o sujeito que se rebaixa abdica de uma imagemde si pela qual tem apreço, é também verdade que ele o faz, muitasvezes, de próprio grado, com um objetivo em mente.

Quando Jacques BREL canta �Laisse-moi devenir l�ombrede ton chien, l�ombre de ta main�, a voz implora a proposta: quese vá o homem, mas que fique a sombra... O homem cede seulugar, lugar esse que não reconhece não mais existir, à sombra; asombra pode insinuar-se e preencher o espaço do nada, do va-zio. Se é melhor ser homem que sombra, é também melhor sersombra que nada, aponta o raciocínio. É justamente aí, na recusade ser nada, que reside o rebaixamento de si.

O rebaixamento próprio pode até mesmo servir como estraté-gia de autovalorização, o que fica evidente, por exemplo, naautocrítica: o sujeito promove um jogo interessante, o de valorizar�aquele que fala� através da desvalorização �daquele de quem fala�.Uma leitura crítica da confissão (cap. 3) aponta na mesma direção.

Abordando o rebaixamento de si sob esse olhar, como estra-tégia de autovalorização, não somente se muda a perspectiva como,e principalmente, ingressamos no âmbito dos programas de liqui-dação de falta, tema desenvolvido nos capítulos 2 e 3; atendo-nosao rebaixamento como programa de destruição de objeto-valor,permanecemos na �família� da inferioridade e damos continuida-de a seu exame, discutindo, a seguir, a humilhação.

HUMILHAÇÃO

A humilhação é mais um tipo, ainda mais específico e ca-bal, de inferiorização. É definida como �rebaixamento moral�,

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por Aurélio, e �action d�abaisser, action d�humilier� por Le RobertHistorique. Humilier, originário do latim eclesiástico, significa�rendre humble� e evolui, no contexto profano, a partir do séculoXII, para �abaisser (quelqu�un) d�une manière avilissante ou ou-trageante� e, mais recentemente, �couvrir de honte, de confusion�.A humilhação está, desde tempos remotos, intimamente relacio-nada ao respeito, compreendido como submissão a uma autori-dade; dentro de zonas de limites variáveis, é freqüentemente aceitacomo �recurso pedagógico�. Abundam exemplos de pais quehumilham os filhos, para �educá-los�. Também, infelizmente, nãofaltam autoridades e estabelecimentos públicos que a promovemou a toleram, sob o mesmo argumento �pedagógico�. Foi o caso,noticiado pela Folha de São Paulo de 15/02/95, de uma mãe �em seguida condenada por maus tratos � que fez seu filho de 11anos sair nu às ruas de Viena, Áustria, a uma temperatura de0oC, como punição por ter chegado atrasado; ou, noticiado namesma data, da mulher que obrigou o filho de 10 anos a desfilarpela cidade de Ribeirão Pires carregando um cartaz com a inscri-ção �ladrão�, por suspeitar que tivesse roubado; foi também ocaso, em maio de 1990, que culminou no suicídio de um aluno,de o Colégio Militar do Rio de Janeiro divulgar, por alto-falante,no momento em que a mãe do menino estava presente, que elehavia sido flagrado �colando� numa prova 3 . É o caso de inumerá-veis histórias de dominação de um por abuso de poder de outro.

3 Este triste episódio remete-nos ao texto de J. Fontanille intitulado Le désespoir. Emlinhas gerais, o autor sustenta que o desespero é uma revolta contra o Destinador,com manutenção do sistema de valores representado pelo mesmo. Esta posiçãoencontra confirmação na carta-testamento, publicada na Folha de São Paulo de 18/05/90, que o menino deixou para a mãe: �Eu estou indo embora porque cometi umerro, fui punido, mas não aguentei a maior punição que foi a de nem ao menospoder olhar nos seus olhos e me desculpar daquilo que na verdade nem cheguei afazer�; adiante, conclui a mesma com a frase �Obrigado pela vida que você meproporcionou até hoje�. Que erro foi esse, se não conseguiu se desculpar pelo �quenem chegou a fazer�? Que sentido tem um agradecimento pela vida com que decidiraacabar, senão a revolta contra pais, professores, colégio, com manutenção do sistemade valores?

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As matizes que a humilhação adquire em contextos diver-sos são objeto de reflexão de GREIMAS e FONTANILLE (1991:96-99) no subcapítulo L�univers passionnel sociolectal. Apresen-tam-na no contexto de ensino, como verdadeira estratégia peda-gógica: definem-na como �une manipulation pathémique qui viseà installer chez l�enseigné un certain segment modal stéréotypéoù la conscience (savoir) de l�incompétence doit amener à uneacceptation (vouloir) des apprentissages proposées: le �savoir-ne-pas-être� se transforme en ne-pas-vouloir-ne-pas-être.�

Citando um exemplo de manipulação que os próprios au-tores consideram pouco reconhecível enquanto humilhação, asaber, o discurso de Freud em Introdução à Psicanálise � confe-rência em que o cientista repetidamente explora a consciênciados alunos sobre a própria incompetência como necessária à acei-tação ou compreensão daquilo que ele, Freud, tem a dizer �, Grei-mas e Fontanille afirmam, a respeito do dispositivo modal postoem prática, que �il suffit qu�aux marges de ce micro-univers so-ciolectal des chevauchements se produisent avec d�autres discourssociaux, culturels ou idéologiques, ou avec des univers individu-els non intégrés, pour que l�effet de sens �humiliation� réappa-raisse...� (p. 97)

Em outros contextos, o dispositivo modal acima mostra que ahumilhação é mais do que um programa de destruição da �boaimagem�, mais do que um simples rebaixamento (por mais doloro-so que este possa ser para o sujeito). O que ela tem de mais especí-fico e profundo é sua característica de rebaixamento moral e, comotal, rebaixamento do quadro axiológico em que S1 se reconheceenquanto sujeito. Ela é uma forma de ação particularmente violenta,por não se limitar a destruir um objeto-valor, mas por visar àdeslegitimação de grande parte, senão da totalidade, do universosimbólico subjacente a esse objeto-valor para o sujeito.

Por isso, S2 não se limita a fazer S1 reconhecer sua incom-petência; através de uma manipulação patêmica, S2 age sobre a

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volição de S1: leva-o a transformar o saber-não-ser em não-que-rer-não-ser.

O humilhado não pode não aceitar (que é da ordem doquerer, como ressaltam Greimas e Fontanille, no mesmo capítu-lo) o que é imposto pelo sujeito que humilha, pela consciência desua incompetência para reagir, ou para restabelecer o que, a seusolhos, caracteriza-se como justiça.

Também diferentemente do rebaixamento, em que S1 émeio para S2 elevar-se, na humilhação �bem-sucedida�, S2 pro-move a aceitação, por S1, de sua legitimidade enquanto opres-sor. S1 endossa, na forma de não-querer-não-ser, o quadroaxiológico imposto por S2. Trata-se de um programa de substi-tuição de quadro axiológico, portanto, de troca de Destinador econseqüente deslegitimação do simulacro existencial de S1 paraS1. A destruição do objeto-valor �boa imagem� � o programa derebaixamento � comparece como programa de uso para esse fimmaior. S2 apresenta-se como porta-voz de um Destinador a queS1 não-pode-não se submeter.

S2, o sujeito que exerce a humilhação, almeja não apenassua supremacia, mas estabelecer sua identificação com um qua-dro axiológico, estabelecer-se como �representante legítimo doDestinador�. Ele busca o poder total, �de fato e de direito�, atra-vés da aceitação, da parte do humilhado, do quadro axiológicoimposto.

Ao sujeito humilhado resta o silêncio. Muitas vezes, fica,nos lábios, a pergunta: Por que uma vítima de violência moralpode preferir o silêncio à busca do restabelecimento da justiça? Aresposta parece estar no dispositivo modal posto em prática nahumilhação: S1 passa a ser dotado de um não-querer-não-ser,passa a aceitar o que lhe é imposto por S2. Fragilizado no maisprofundo de seu universo simbólico, S1 opera o transbordamen-to, para além da situação, do quadro axiológico em que se dá ahumilhação. Tudo se passa como se todos os outros sujeitos com-

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partilhassem � ou pudessem vir a compartilhar � esse quadroaxiológico. Para buscar o restabelecimento da justiça, deve voltara crer que esse quadro axiológico não é compartilhado por todose libertar-se do mesmo, ao mesmo tempo em que lhe é forçosoadmitir que o aceitou e que, até um certo ponto, dividiu com seuopressor a responsabilidade sobre sua humilhação4 : �il y a unedimension morale dans le fait de subir une humiliation�(HABERMAS, 1986: 66).

DESONRA

Desonra é definida por Aurélio como �falta de honra�, �per-da de honra�. Mais freqüentemente empregada como um prejuí-zo (falta do bem �honra 5 �), a desonra é relacionada à má fama,ao sentimento causado pela opinião negativa que os outros têmsobre o sujeito, opinião essa oriunda de sua imagem projetada,seja essa projeção resultante de sua ação, ou de ação de outrem,à sua revelia, como, por exemplo, na difamação.

Voltando os olhos ao passado, não tão remoto � o da honracavalheiresca �, ou dirigindo o olhar a outras culturas, como a ja-ponesa, o estado de alma do sujeito desonrado é tão profunda-mente abalado que só pode ser reparado pela morte do ofensor,ou de si próprio. A desonra, vivida de maneira extrema, está algodémodée hoje em dia, na sociedade ocidental, a julgar pela pe-quena repercussão de atos finais � suicídios, assassinatos � por elamotivados. No outro extremo da escala de intensidade do senti-

4 A humilhação enquanto estratégia é um tipo de manipulação; convém lembrar que�o bom funcionamento da manipulação pressupõe uma certa cumplicidade entremanipulador e manipulado� (Greimas, 1976b: 219, apud Barros, 1985: 60).

5 A honra, por sua complexidade e abrangência, merece ser desenvolvidaseparadamente. Para evitar repetição, limitamo-nos ao essencial no tratamento dadesonra e indicamos que o sentimento de honra é abordado no capítulo 2.

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mento, encontra-se o investimento afetivo mais freqüente, hoje emdia: o sujeito desonrado é pouco mais que um sujeito �maculado�,a desonra é, no máximo, uma levioris notae macula 6 (mácula depouca importância), que se acaba resolvendo com o pagamentode uma indenização, se não com o simples esquecimento.

Porém, mesmo se os conteúdos mudaram ao longo do tem-po � difícil alguém se sentir desonrado, a ponto de procurar vin-gança, ou o suicídio, por falhar numa tarefa, ou faltar com a pa-lavra � e se a palavra quase caiu em desuso, a desonra, vividacomo paixão, está muito presente em nossa sociedade: não rarossão os exemplos de brigas em nome da bandeira de um time defutebol, de agressões, ou até assassinatos, como revide a uma�fechada� no trânsito, de tentativas de assalto resultando em morte,porque o agressor não se sentiu �respeitado� pela vítima, etc.

A desonra instaura-se a partir de uma sanção cognitivanegativa exercida por um microuniverso do qual o sujeito faz parte.Resultante da crença (da parte do grupo) da não realização deuma imagem valorizada e exigida, o sentimento de desonra nãopressupõe que o sujeito compartilhe a sanção cognitiva, mas ofaz temer a sanção pragmática, que pode ser sua exclusão dogrupo, se não agir pronta e publicamente para revertê-la: contra,por exemplo, uma calúnia, �le seul moyen de défense, c�est uneréfutation accompagnée de la publicité nécéssaire pour démasquerle calomniateur� (SCHOPENHAUER, 1989/1943 7 : 50). E, se nosparece exagerada a reação antigamente exigida de um homem ��si celui-ci n�efface pas bien vite l�insulte avec du sang, elle passera,provisoirement, pour un jugement objectivement vrai et fondé�(idem: 57) �, é apenas na exigência da reparação pelo sangue,

6 Emprestamos, aqui, a expressão empregada por Schopenhauer sobre a perda dahonra sexual, em Aphorismes sur la sagesse dans la vie, publicação de 1989, dataoriginal 1943, página 54) .

7 A notação de duas datas significa: em primeiro lugar, a da edição consultada; emsegundo, a da primeira publicação. Infelizmente nem sempre será possível colocar areferência com essa precisão, por dificuldade em localizar a data de primeira publicação.

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mas não no tangente à rapidez e publicidade da reação. Mesmohoje, repercute-se a idéia de que ausência de reação pronta epública a um insulto é sinal de merecimento do mesmo.

A desonra pode ser resultante de um programa real ou su-posto, de uma mentira ou mal-entendido divulgados à revelia dosujeito. Ele será igualmente visto como �desonrado� e verá retira-do o valor que sobre ele depositavam, mesmo se nada fez paramerecer essa retirada de valor. Na desonra, a imagem pública dosujeito é tudo e depende de sua conduta, mas depende tambéme, principalmente, da maneira como o grupo a vê e dela fala � �Ilest donc placé dans la main, ou simplement suspendu au bout dela langue du premier venu� (idem: 56), professa o ferrenho críti-co da honra cavalheiresca.

A desonra exige, portanto, um programa de liquidação defalta. Analogamente ao desafio (GREIMAS, 1983: 213-223), osujeito se encontra diante de uma escolha forçada: ou ele iniciaum programa de liquidação de falta rápida e publicamente, ouseu silêncio e sua inação são compreendidos como confirmaçãoda desonra.

A desonra é tipicamente da esfera pública. Por um lado,�On ne peut pas mourir pour l�honneur si l�on est le seul à lesavoir�, lembra-nos TODOROV (1991: 226); por outro, ninguémé desonrado por algo secreto, jamais divulgado 8 . Assim sendo, o

8 Zweig, em Amok, ilustra bem este ponto, na relação entre o médico e uma mulher daalta sociedade: �...Alors son regard martyrisé me fixa longuement... Ses lèvresremuèrent légèrement... Ce ne fut plus qu�un dernier son qui s�éteint lorsqu�elle dit...:�-Personne ne le saura?... Personne?�-Personne, fis-je avec la plus grande force de conviction, je vous le promets.(...)�Jurez-moi... personne ne saura... Jurez.� (83)E entre o médico e outro, o responsável pela assinatura do atestado de óbito:�-Pour cacher votre crime, je devrais...�-Je vous ai dit que je n�avait pas touché cette femme (...) Elle a expié sa faute � si vousvoulez appeler cela ainsi �; le monde n�a pas besoin d�en rien savoir. Et je ne toléreraipas à présent que l�honneur de cette femme soit inutilement sali.� (86)

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actante Destinador (manipulador e julgador) é ou coletivo, ourepresentativo da coletividade; já o actante Destinatário �deson-rado� pode ser individual ou coletivo.

INDIGNIDADE

Trata-se de um parassinônimo já tenuemente ligado à ver-gonha, de definição insatisfatória (Aurélio) � �falta de dignidade�� e sinônimo de baixeza, vileza, humilhação, rebaixamento. EmLe Robert Historique, surge como relativo a indigne: �qui ne méritepas�, �qu�on ne mérite pas�, �qui ne convient pas�. Definida ne-gativamente, �indignidade� está, em francês, basicamente ligadaà falta de merecimento.

Enquanto configuração passional 9 , difere da desonra, emprimeiro lugar, na perspectiva da aplicação da sanção: na deson-ra, a sanção cognitiva é aplicada por um grupo, um microuniver-so, e gera uma sanção pragmática temida pelo sujeito; na indigni-dade, o sujeito exerce uma auto-sanção negativa e propõe à ou-tra parte uma sanção pragmática ou sua validação � �Senhor,não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei umapalavra e serei salvo� � diz o católico na missa.

Se a configuração da desonra é instaurada de �fora paradentro�, do grupo para o sujeito, a partir da imagem projetada, aconfiguração da indignidade segue o caminho contrário e temdecorrências diversas.

O sentimento de indignidade não depende da fama, boaou ruim, do sujeito e nem precisa resultar de sua imagem efeti-vamente projetada ao grupo. Ele nasce de projeções que o sujei-to faz de si, num imaginário de desconfiança em que se supõe

9 Excluímos, portanto, ocorrências do tipo: Isto é uma indignidade, significando isto éultrajante.

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dotado de uma �má índole�; num imaginário em que crê na não-realização de alguma imagem valorizada e exigida por um micro-universo fortemente moralizado. Por isso se instaura com freqüên-cia no contexto, por exemplo, religioso. E por isso é compatívelcom a honra: confessar-se indigno, com sinceridade, pode até serindicativo de honradez.

Tampouco a indignidade prevê um programa de liquida-ção de falta: se o sujeito desonrado está desonrado enquantonão agir para recuperar sua imagem, o sujeito indigno é indigno,até que ele mesmo creia que não mais o é � o que pode nuncaacontecer, por mais próximo que viva de sua imagem valorizada,acima de tudo porque sentir-se indigno parece ser necessário, aomenos no contexto da religião católica, para ser digno. Em outraspalavras, maior sentimento de indignidade corresponde à maiorprova de dignidade, é sinal de que a exigência moral do sujeitoem relação a si próprio é alta.

Finalmente, se, por um lado, é um sentimento que poucodepende do juízo alheio, ou seja, se o sujeito assume a perspecti-va do Destinador julgador na sanção cognitiva, por outro lado,no tangente à sanção pragmática, exige que esta seja aplicada �ou, pelo menos, validada � por representantes de seu microuni-verso de origem. A liquidação da falta gerada pelo estado passio-nal de indignidade, quando ocorre, deve ser conspícua. Tudo sepassa como se, por um esforço colossal de expiação de suas ca-racterísticas consideradas baixas, o sujeito deva dar mostras depureza moral e deixar-se convencer pelos outros � através da va-lidação da sanção � do sucesso de sua empreitada.

Desonra e indignidade, duas configurações que encontramsuas condições de instauração em dois conceitos de sujeito. Aprimeira diz respeito ao homem público e pede entrega incon-dicional de si ao juízo alheio; a segunda trata do homem intros-pecto, submisso a um sistema de valores, atento a suas falhas eem busca de uma auto-imagem perfeita.

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A CONFIGURAÇÃO GENÉRICA

O rebaixamento e a humilhação dizem respeito à destrui-ção do objeto-valor �boa imagem�; a desonra trata de sua retira-da; a indignidade tem relação com sua busca. Todas são configu-rações passionais relativas à falta de um objeto-valor, objeto esseque tem, para o sujeito, valor de representação de si próprio, istoé, confunde-se com seu valor enquanto sujeito. Há, no entanto,várias outras situações de instauração de vergonha, sempre combase na falta desse objeto-valor, não identificáveis com as quatroconfigurações acima, por exemplo: vergonha de ser feio, de falarem público, ou até de ser elogiado.

A configuração da inferioridade subsume as de rebaixa-mento, humilhação, desonra e indignidade, ao contemplar tantoa perda da �boa imagem� � decorrente da ação reflexiva ou deoutrem � quanto sua ausência � perceptível num estado do sujei-to. Desse modo, a opção pela configuração genérica, na base davergonha, recai sobre o sentimento de inferioridade: contemplatanto estados realizados quanto virtuais, tanto provocados quan-to não provocados por outrem e trata da falta � ausência ou per-da � do objeto-valor �boa imagem� e suas repercussões no simu-lacro existencial do sujeito.

2.2 O SENTIMENTO DE EXPOSIÇÃO

A língua inglesa distingue o ato de expor (exposition) doestado de estar exposto (exposure), ambos �exposição� em por-tuguês. Empregamos o termo na sua segunda acepção, o estadode estar exposto, e chamamos �sentimento de exposição� o sen-tir-se exposto.

Intimamente relacionado com o verbo �ver�, o sentimen-to de exposição não é, no entanto, exclusivo da �relação escópi-

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ca�10 estabelecida entre dois actantes, embora encontre nela seumeio mais poderoso e freqüente de instauração. Há situações,independentes do olhar, em que outros sentidos, o olfato e a au-dição, comparecem como decisivos na �fragilização� do sujeito.Süskind fornece-nos um belo exemplo em Le Parfum:

�...Cet enfant sans odeur passsait impudemment en revue ses odeursà lui, Terrier, c�était bien cela! Il le flairait des pieds à la tête! Et Terriertout d�un coup se trouva puant, puant la sueur et le vinaigre, lachoucroute et les vêtements sales. Il eût le sentiment d�être laid, livréaux regards de quelqu�un qui le fixait sans riens livrer de soi-même.Cette exploration olfactive paraissait même traverser sa peau et lepénétrer en soi-même.� (SÜSKIND, 1986: 26)

Terrier, padre responsável pela criação do bebê Jean-Bap-tiste Grenouille, sente-se exposto pela exploração olfativa de queé vítima. As situações de exposição não são, porém, necessaria-mente �negativas�, de odores desagradáveis ou de sons cons-trangedores. Basta pensar na pessoa que reage com desconfortoà exclamação �Uhm, que perfume gostoso!�, ou ao comentário�Você tem voz de travesseiro�.

Contudo, mesmo sem a exclusividade da relação escópica,o dispositivo da exposição, naquilo que tem de mais genérico,pode ser explicitado a partir da relação implicada pelo verbo�ver�:

�comme toute structure de communication, celle que désigne le verbevoir implique la présence d�au moins deux protagonistes unis par lerapport de présupposition réciproque � l�un qui voit, l�autre qui estvu � et entre lesquels circule l�objet même de communication, en

10 Expressão empregada por Eric Landowshi, em �Jeux Ophiques�. In: La SociétéRéfléchie. Paris: Seuil, 1989, texto no qual se encontram as fontes de grande parte denossas colocações a respeito da exposição.

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l�ocurrence l�image que l�un des sujets offre de soi-même à celui quise trouve en position de la recevoir.� (LANDOWSKI, 1989: 118).

A mesma relação, até um certo ponto, estabelece-se entrequem ouve e quem é ouvido, entre quem �cheira� e quem �écheirado�, e o mesmo objeto �imagem� circula entre os sujeitos.Uma vez que a relação básica é a mesma e que o objeto circulantenão se modifica, falaremos em �ver�, �mostrar�, �olhar� comorepresentantes da mediação dos sentidos no sentimento de expo-sição. Além da economia que a escolha nos proporciona, ela dáconta de situações mais complexas que a audição e o olfato per-mitem. Por exemplo: alguém pode ser visto espiando pelo buracode uma fechadura, ou escutando atrás das portas.

Do que dissemos até agora, alguém poderia, com justiça,levantar a pergunta: Basta um sujeito ver e outro ser visto, paraque o segundo se sinta exposto?

A resposta é claramente não. A questão é muito mais com-plexa do que pode parecer inicialmente.

Antes de mais nada, não é o simples fato de ser visto quefaz alguém se sentir exposto, mas o ser visto por alguém legítimo,como parte de uma relação polêmica. LANDOWSKI (1989: 131)ilustra bem esta questão � as relações polêmicas em torno do ver� ao superpor dois quadrados semióticos confrontando as posi-ções modais de dois sujeitos:

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�Diagramme VI (contradictions)

S1: vouloir être vu exhibi- voyeurisme S1: vouloir ne pas(9) S2: vouloir ne pas tionnisme de S2 être vu (11)

voir de S1 S2: vouloir voir

S1: ne pas vouloir S1: ne pas vouloirne pas être vu répugnance flagrance être vu

(12) S2: ne pas vouloir de S2 de S1 S2: ne pas vouloir (10)voir ne pas voir

Diagramme VII (contrariétés)

S1: vouloir être vu effron- indis- S1: vouloir ne pas(13) S2: ne pas vouloir terie crétion être vu (15)

voir de S1 de S2 S2: ne pas vouloirne pas voir

S1: ne pas vouloir S1: ne pas vouloirne pas être vu pruderie timidité être vu

(16) S2: vouloir ne pas de S2 de S1 S2: vouloir voir (14)�voir

(LANDOWSKI, 1989: 131)

As situações de sentimento de exposição de S1 são aque-las à direita dos diagramas, situações que o autor caracteriza como�atteinte à la vie privé� e �viol de l�intimité�. Essas situações que,do ponto de vista de S1, poderiam ser lexicalizadas � ainda se-gundo o autor � como �pudor� e �modéstia� são comparadas,quando em relação polêmica, a um �roubo da vida privada� (p.131).

Enquanto a posição modal de S1 é dada por querer-não-ser-visto ou não-querer-ser-visto, a posição de S2 já admite vari-ações. O fato é que S1 se acredita visto por S2; se S2 é ou nãodotado de um querer, dever, ou poder é assunto que reservamospara adiante. Por enquanto, isso não importa, quando pensamosno sentimento de exposição. Nosso foco, aqui, é o sujeito expos-

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to, e esse é claramente, e predominantemente, modalizado peloquerer:

�GARCIN, la repoussant (Estelle)Laisse-moi. Elle est entre nous. Je ne peut pas t�aimer quand elle mevoit.� (SARTRE, 1947: 92).

Alguém poderia levantar a seguinte objeção: todos sabe-mos que ver algo que não se deseja, ou não se tenciona ver podeser tão embaraçoso para o sujeito que vê quanto para o sujeitovisto. Ambos podem sentir-se expostos, cada um ocupando umadas posições (sujeito/objeto) pressupostas pelo verbo ver.

Ocorre que as duas posições acima não são estanques. Seriaingênuo pensar que quem vê só vê sem ser visto e vice-versa.Ora, acrescentaríamos, quem vê pode ser visto vendo e quem évisto pode ver que está sendo visto; instaura-se, assim, um segun-do nível da relação escópica (que pode dar espaço a um terceiro,e assim por diante): �On n�a donc plus affaire à des structures deconfrontations modales simples, avec une seule modalisationactancielle pour chacun des acteurs en présence, mais à un typede configurations où les rôles s�entrecroisent et où les motivationsse superposent comme en un jeu de miroirs� (LANDOWSKI, 1989:134). Tal �jogo de espelhos� dá margem a situações inusitadas,que podem modificar até mesmo a relação de força entre os su-jeitos.

Tendo em mente as questões levantadas, passemos à con-figuração do sentimento de exposição no simulacro interno dosujeito exposto.

Em primeiro lugar, existem dois actantes: o sujeito exposto,S1, e seu espectador, S2. Tanto S1 quanto S2 podem ser actantesindividuais ou coletivos. Se S1 é coletivo, ele é um amálgama efunciona como uma unidade � isto, é claro, até o ponto em queum actante coletivo pode ser patemizado. S2, o espectador, além

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de poder ser individual ou coletivo, recobre um amplo espectrode possibilidades que influem no grau de patemização de S1.

Na forma básica da relação escópica, S1 deixa-se apreen-der, através de sua imagem projetada, por S2. No caso particulardo sentimento de exposição, isto se dá contra a vontade do pri-meiro. S1 reconhece-se na posição de actante-objeto e, como tal,submete-se a S2 � seus pensamentos, seus juízos �; daí o descon-forto característico da exposição.

�GARCINIl ne fera donc jamais nuit?

INESJamais.

GARCINTu me verras toujours?

INESToujours.Garcin abandonne Estelle et fait quelque pas dans la pièce. Il s�approchedu bronze.

Le bronze... (Il le caresse.) Eh bien, voici le moment. Le bronze estlà, je le contemple et je comprends que je suis en enfer. Je vous ditque tout était prévu. Ils avaient prévu que je me tiendrais devantcette cheminée, pressant ma main sur ce bronze, avec tous ces regardssur moi. Tous ces regards qui me mangent... (Il se retournebrusquement.) Ha! vous n�êtes que deux? Je vous croyais plusnombreuses. (Il rit.) Alors, c�est ça, l�enfer. Je n�aurais jamais cru...Vous vous rappelez: le soufre, le bûcher, le gril... Ah! quelle plaisanterie.Pas besoin de gril: l�enfer, c�est les Autres.� (SARTRE, 1947: 92)

Na célebre frase de Sartre, a confirmação do poder do olharalheio. Mas quem é esse Outro, com letra maiúscula, que consti-tui até mesmo o inferno?

Não temos a competência necessária para entrar em ques-tões de ordem filosófica sobre o estatuto do outro (ou Outro). Há

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inúmeros ensaios, dentro e fora da corrente existencialista, que odiscutem e que deixamos ao leitor interessado na questão. Nossofoco, aqui � é preciso não perdê-lo de vista �, é a configuração daexposição no simulacro interno do sujeito exposto. A exposiçãopressupõe um outro, que não é qualquer um, como espectador.E é sobre esse outro � que escrevemos em minúscula � que nosdeteremos um pouco.

Por opção de clareza, examinemos, em primeiro lugar, doiscorrelatos da exposição, a visibilidade e a vulnerabilidade.

VISIBILIDADE

�What is this? Anyone puts eyes on her or tells her two words andshe goes red, red like a chilli! I swear. What normal child goes sobeetroot hot ...� (RUSHDIE, 1983: 121)

A característica mais marcante da personagem de Shame,Sufyia Zinobia, é uma anormalidade: sua incapacidade de nãocorar. Basta ser percebida por alguém e o sangue lhe sobe às faces.

Nem é necessário comentar que o homem (ou a mulher)não cora diante de qualquer um, que não basta perceber-se visto,mesmo contra seu desejo, para que a consciência (jamais diría-mos sentimento) de sua visibilidade o conduza ao que chama-mos vergonha, salvo, talvez, em casos ou circunstâncias muitoespeciais.

A visibilidade é uma relação que se estabelece entre doisactantes, exclusivamente em torno do verbo ver, que pode gerardesde prazer, passando pela indiferença, até um grande mal-es-tar. Narciso é o exemplo mais completo do prazer na visibilidadeda própria imagem; menos famoso, talvez o narrador de Memó-rias do Subterrâneo (DOSTOIÉVSKI: 1963/1864) possa ocupara posição oposta, a do sujeito com náusea de si próprio.

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Nas relações polêmicas, em torno do ver, descritas porLandowski e citadas acima, a lexicalização proposta é decorrenteda modalização de ambos os sujeitos � S1 e S2, o que é visto e oque vê � pelo querer. Propomos um pequeno exercício: imagine-mos que S1 �esvazie� o sujeito que o vê de seu querer; mais:torne-o �insípido, inodoro, incolor�, destituindo-o de toda moda-lização. O que resta? Um sujeito sem valor modal, a rigor, cessade ser sujeito. E se S1 assim o considera, assim ele será � um não-sujeito � em seu simulacro interno. Desse modo, S1 pode ser vis-to, independentemente de seu desejo de sê-lo, por uma �instân-cia� que em nada o afeta; tudo se passa como se ele fora captadopelo olhar de um gato, um cão, em suma, de �alguém� sem pro-jeto, nem intenção, que não tem importância, que, no limite, nãotem valor.

É claro que uma experiência de visibilidade desse tipo nãoproduzirá nem mal-estar, nem bem-estar, mas indiferença. Pare-ce-nos, portanto, que a consciência da própria visibilidade é neu-tra, que a modalização (do ponto de vista de S1) dos sujeitosenvolvidos na relação é condição para a relação dar origem a umapatemização, prazerosa ou desagradável, daquele que é visto.

Nem sempre é fácil, pois, suportar um olhar humano comose nada fosse. A passagem da visibilidade para a vulnerabilidadeé bem representada por DOSTOIÉVSKI (1963/1861) através dafigura do velho no início de Humilhados e Ofendidos:

�...Disse que o velho, ainda mal se sentava na sua cadeira, imediata-mente fixava o olhar num ponto e não voltava a pousá-lo em ne-nhum outro durante tôda a noite. Uma vez por outra me ocorreuque fôsse o branco daquele olhar que se fixava algures, embasbaca-do e teimoso e, quando isso acontecia, dava-me pressa em mudarde lugar. Daquela vez a vítima do velho era um alemão pequenino,rechonchudo e extraordinàriamente afetado...� (p. 24)

E Schultz, o �alemão pequenino�, ao perceber-se olhado:

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�...irritou-se e julgou do seu dever sair em defesa de sua honra (...),arrebatado por um sentimento de dignidade pessoal, todo vermelhodo efeito do ponche e da indignação, pousou por sua vez os olhinhosinjetados de sangue no velho maçador. Dir-se-ia que ambos, o ale-mão e seu adversário, se esforçavam por se dominarem com o po-der magnético dos olhares e que esperavam, a ver qual dos dois serendia primeiro, baixando a vista.� (p. 25)

O alemão de Dostoiévski não conhecia o velho, nem �obranco daquele olhar� e não suportou ser por ele encarado. Quan-do falamos em visibilidade, focalizamos a junção, não os sujeitos.A consciência de ser visível, ou melhor, a consciência da própriaperceptibilidade (DE LA TAILLE: 1993, 1995) é necessária, masinsuficiente, para participar na instauração da vergonha. A per-sonagem acima atribuiu ao velho uma intenção, interpretou seuolhar como �ofensivo�; considerou-o, assim, um espectador comlegitimidade para observá-lo e exacerbando seu poder. A moda-lização de S2 suposta por S1 é necessária para atribuir legitimi-dade ao espectador.

Vejamos, agora, o outro correlato da exposição: a vulnera-bilidade.

VULNERABILIDADE

Relativo a vulnerável (latim vulnerabilis, de vulnus, -eris), éo �lado fraco de um assunto ou de uma questão, do ponto peloqual alguém pode ser atacado ou ferido� (Aurélio). Praticamentea mesma definição é encontrada para vulnérable, em francês(Lexis) e quase coincidente é a definição do vocábulo vulnerableem inglês (Longman Dictionary of Contemporary English), quedifere apenas por apresentar um uso ligado à pessoa e seus sen-timentos: �easily harmed, hurt or wounded; sensitive�.

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Nas três línguas, está presente a idéia de ataque e deferimento físico ou psíquico; mesmo sem se apresentarem exem-plos ligados à visibilidade da pessoa, é natural pensar-se que sub-meter a imagem projetada (lembrando que ela é a representaçãodo ser) à apreciação, ou ao juízo de outrem significa colocar-seem situação de �lado fraco�, na qual �alguém pode ser atacadoou ferido�.

Esse alguém que �pode ser atacado ou ferido� é nossoS1, que se transforma em objeto do fazer � pragmático, em ge-ral, e também cognitivo, na visibilidade � de um outro sujeito,S2. A relação estabelecida é, então, entre S1,O/S2. Do ponto devista de S1, S2 representa uma ameaça, S2 impõe medo, te-mor.

A intensidade do sentimento de vulnerabilidade decorre daintensidade do medo da junção, uma vez que a possibilidade desofrer um ataque parecerá mais certa aos olhos de S1, e o ata-que, dependente de S2, mais certeiro, na medida em que S1 ex-perimenta um medo mais intenso.

O papel de S2, sempre aos olhos de S1, é, portanto, cen-tral, e a relação de poder estabelecida entre ambos, assimétrica:S2 é dotado de um poder que transforma S1 em seu objeto. Doponto de vista de uma hierarquização, S1 está inferiorizado pe-rante S2; voltaremos a este ponto adiante.

Mostrar-se torna o sujeito vulnerável, na medida em queteme que a leitura de sua imagem projetada não coincida com a�boa imagem� que tem para si. Desse modo, vem à tona ummedo �em segundo grau�: no caso específico de um sujeito que évisto, trata-se do medo da opinião de outrem. E eis que nova-mente chegamos ao outro. Quem é, afinal, esse outro, cuja opi-nião é tão prezada?

Retomemos, agora, a questão da exposição, a fim de me-lhor compreender �o outro�.

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O PAPEL DO “OUTRO”

A reflexão sobre a visibilidade mostrou-nos não ser ela su-ficiente para legitimar o espectador; o breve exame da vulnerabi-lidade colocou-nos face a um S2 legitimado por um poder temi-do por S 11. A combinação da visibilidade e da vulnerabilidadefornece-nos um quadro bastante próximo ao da exposição, aindaque insatisfatório.

Em se tratando da exposição, a vulnerabilidade compare-ce, como dissemos acima, como medo da leitura � entenda-seaqui o juízo, a opinião � que S2 faz da imagem projetada de S1.S1, uma vez apreendido pelo olhar de S2, torna-se �sem qual-quer defesa� (SARTRE, 1943: 336), passa a ser um objeto dopensamento de S2. Nada há a ser feito por S1 para interferir nofazer cognitivo de S2 que lhe concerne.

Mesmo se sujeito e objeto ontológicos não se confundemcom sujeito e objeto semióticos, vale a pena uma pausa paracomentar, ainda que superficialmente, a reflexão de Sartre a res-peito da vergonha (SARTRE, 1943: 336-338). A primazia do su-jeito sobre o objeto, combinada com a consciência que tem osujeito de ser objeto para outrem é, segundo nossa compreensão,o cerne da vergonha, �la honte pure� para Sartre. Nossa leiturada vergonha sartriana, do �grau zero� da vergonha 12, diz respeitoà vulnerabilidade inerente à condição humana: uma vez o sujeitoexposto ao pensamento � antes mesmo do olhar � alheio, é redu-zido (expressão nossa) ao estatuto de objeto (voltaremos a esteponto no capítulo 2). Encontra-se, desse modo, inferiorizado pelaprópria exposição, exposição essa ao pensamento alheio e tam-

11 Embora na exposição a modalidade mais significativa atribuída a S2 seja o poder,pode-se pensar, também, em um querer de S2 que perturba S1, como em situaçõesde curiosidade ou insistência, em que S1 se sente afogado em perguntas a que preferirianão responder, ou talvez um dever, doutrinário ou disciplinador, que S2 se atribui e apartir do qual investe em mudar um comportamento de S1.

12 Expressão usada por Eric Landowski em discussão privada do tema.

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bém, e a rigor, ao próprio pensamento, situação em que o sujeitose desdobra e se torna objeto de si próprio. Na situação extremadiscutida por Sartre, a vergonha nada menos é que a consciênciada síntese dos funtivos sujeito e objeto.

Em contextos mais materializados que o da filosofia, isto é,de ocorrências reconhecíveis pelo homem preso à louca nau dotempo e do espaço, da cultura e da sociedade, sabemos que umsujeito dotado de poder poderá não impingir um sentimento de expo-sição (que poderá servir de base para o sentimento de vergonha),mas medo. LÓTMAN (1981/1970: 237-240) coloca os conceitosde vergonha e medo como reguladores das relações humanas:

�A determinação numa colectividade dum grupo organizado pelavergonha e de outro organizado pelo medo coincide com a antítese�nós-eles�. Neste caso, o caráter das limitações impostas a �nós� e a�eles� é profundamente distinto. O �nós� cultural é uma colectividadedentro da qual reinam as normas de vergonha e da honra. O medoe a coerção definem a nossa relação com os �outros�.� (p. 237)

Se concordamos com Lótman, nosso �outro�, do sentimentode exposição, deve ser interno, atinente à esfera do �nós�. O �ou-tro� externo, da esfera do �eles�, seria responsável pela instaura-ção do medo.

Charles Darwin (1981/ 1872: 357) dá-nos mais uma chavepara compreender o �outro�, para um sujeito envergonhado:�...vient-il (autor de uma pequena mentira) à supposer que satromperie est découverte, il rougit aussitôt, surtout si elle estdémasquée par une personne qu�il estime.� (grifo nosso).

A estima pelo espectador, segundo Darwin, é fator impor-tante, se não determinante, para o homem corar. Quanto maiora estima pelo espectador, mais intensa e rapidamente o ruborsobe às faces daquele cuja imagem projetada é censurável. Emoutras palavras, a estima de S1 por S2 é um fator legitimador doúltimo como espectador, para o primeiro.

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Não é, porém, somente a estima � uma configuração debase favorável a S2 13 � que contribui para a legitimação do es-pectador. É também um tipo de respeito devido, por exemplo, asua origem � ou talvez devêssemos dizer suas coordenadassócioculturais �; parafraseando Peristiany (1968: 31-32, a respei-to da defesa da honra), um homem há de sentir-se exposto �sóloante sus igales sociales; es decir, ante aquellos con quienes puedecompetir conceptualmente.�

Portanto, a segunda característica � e mais geral � a tornaro espectador legítimo é pertencer a um grupo com o qual o sujei-to exposto �pode competir conceitualmente�. Entendemos essaafirmação como atinente ao papel que o sujeito reconhece parasi no seio do grupo e às coordenadas ideológicas dele decorren-tes: um Senhor, assumido como tal, tende a não se envergonhardiante de um servo. Essa categoria traz a desvantagem de psico-logizar um pouco a legitimação do espectador; todavia, no limi-te, é o próprio S1, sujeito sociocultural, atado a seu tempo e lu-gar, quem define face a quem e em que circunstâncias poderásentir-se exposto. Esse grupo encerra todo um espectro de sujei-tos, variando desde companheiros até francos adversários, desdepares até sujeitos mais identificados com a �boa imagem� 14 . Tudodepende do simulacro existencial no qual se constrói a �boa ima-gem� de S1, que lhe aponta os sujeitos com quem pode competirconceitualmente; esses sujeitos comporão, sempre no simulacrode S1, a esfera do �nós�.

Finalmente, mesmo que a situação de base para o senti-mento de exposição não seja �negativa�, como mencionamosacima, a exposição o é. Pode ser vivida em intensidades diferen-tes: de uma forma suave, como um desconforto, um embaraço,

13 Courtès, em seu estudo �Estime et mésestime�, em Degrés, 37, 1984, analisa a estimacomo ligada a mérito e valor.

14 Sujeitos �inferiores�, isto é, menos identificados com a �boa imagem�, não contam.Vale aqui a máxima segundo a qual �responder a ataque/ofensa/insulto de inferior érebaixar-se�.

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ou até de uma maneira aguda, como uma tortura moral. A expo-sição é sempre desagradável, caracterizada pelo medo da opi-nião desfavorável do outro, um �outro� por quem S1 nutre esti-ma, ou com quem julga �competir conceitualmente�.

2.3 A CO-INCIDÊNCIA DAS CONFIGURAÇÕES GENÉRICAS: AVERGONHA É UMA RESSONÂNCIA

Os físicos dizem que um sistema oscilatório entrou em res-sonância, quando o mesmo, atingido por uma onda de freqüên-cia igual à sua própria, vibra mais e mais energicamente, a pontode, em alguns casos, chegar à sua própria desintegração.

Metaforicamente, o conceito físico de ressonância aplica-se bem à vergonha: tanto sua instauração quanto sua gama deintensidades e conseqüências podem ser explicadas através daressonância.

Façamos um pequeno ensaio, vejamos até que ponto oencontro, ou melhor, a incidência concomitante (nossa �co-inci-dência�) da configuração da inferioridade e da configuração daexposição se �encaixa� no conceito de ressonância.

Em primeiro lugar, devemos escolher qual das duas confi-gurações corresponderia, sem cometer violência contra os con-ceitos, ao papel de sistema.

Dentre as muitas definições de sistema apresentadas pelodicionário Aurélio, a primeira trata de um �conjunto de elemen-tos, materiais ou ideais, entre os quais se possa definir uma rela-ção�. Facilmente podemos postular a seriação inerente à configu-ração da inferioridade como um exemplo de relação classificatóriaentre elementos.

Mais adiante encontramos a definição: �conjunto ordena-do de meios de ação ou de idéias, tendente a um resultado; pla-

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no, método�. Também não é difícil reconhecermos, na configura-ção da inferioridade, uma grade de leitura do mundo, um scriptcorrespondente a um �conjunto ordenado ... de idéias, tendentea um resultado�. Até mesmo a expressão complexo de inferiori-dade, cunhada por vulgarização de conceitos da psicologia, des-creve a característica de sujeitos que sistematicamente lêem oseventos como tentativas, até mesmo transcendentes, de rebaixá-los.

De posse de nosso sistema inferioridade, vejamos agora oque pode ser dito sobre a exposição.

A exposição estabelece-se através dos sentidos, notadamen-te, do olhar, mediante a relação de visibilidade. LANDOWSKI(1989: 119) aflora as condições para o estabelecimento da rela-ção de visibilidade entre duas instâncias: �il faudra par exempleune �source de lumière� qui �éclaire� l�objet au regard del�observateur.� Eis a luz, radiação através da qual se propaga aimagem e se dá a visibilidade.

Se possuíamos o sistema da inferioridade, temos agora aforma de propagação da imagem projetada. Continuando na tri-lha das (meias-)metáforas, vejamos, agora, o que representa afreqüência.

�Repetição amiudada de fatos ou acontecimentos; reitera-ção� nos diz Aurélio. Há, de fato, algo que se repete, algo que éreiterado, para nosso S1, na configuração da inferioridade e daexposição: o juízo negativo de sua imagem projetada. S1 torna-se sujeito patêmico, digamos, em primeira edição, ao julgar suaimagem projetada como aquém da �boa imagem� que tem parasi; paralelamente, patemiza-o também o expor-se, o mostrar suaimagem projetada a um sujeito legítimo, cujo juízo lhe importa.Se, além de tudo, S1 teme, portanto crê, que o juízo sobre suaimagem projetada exercido pelo sujeito que considera legítimocoincidirá com o seu, nosso sistema �entra em ressonância�, istoé, �vibra mais e mais energicamente� � e instaura-se a vergonha.

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O desarranjo sistêmico provocado pela configuração davergonha fica patente, no sujeito patêmico, pelo �golpe de esta-do� do nível fisiológico: suor frio, rubor, retração do corpo, confu-são mental, desejo de desaparecer. Apenas a título de exemplo,em casos limites de vergonha extremada e repetida, o desarranjopassaria à desintegração sistêmica � assim como na ressonânciafísica � levando sujeitos a desenvolverem �multiple personalitydisorders�, ou até mesmo esquizofrenia (Wurmser: 1981). Reco-nhecendo o interesse que tem tal estudo, deixamos aos profissio-nais da saúde o aprofundamento da questão.

Várias perspectivas abrem-se, ao se considerar a vergonhana coincidência da inferioridade e da exposição. Uma delas, deordem filosófica, como já apontamos, fugiria ao escopo desteestudo. Outra, que tampouco podemos desenvolver, é a do do-mínio da saúde, mencionada acima. Pode-se pensar, também, ejunto com MEZAN (1985: 84-103), uma releitura do mito da Es-finge e uma possível reavaliação do papel do binômio vergonha/culpa na psicanálise. Sem fugir à semiótica, alguém pode dedicarum estudo às variações de perspectiva: a focalização da inferiori-dade em primeiro plano, ou da exposição. Et cetera.

A próxima etapa que nos propomos cumprir é a constru-ção da sintaxe da vergonha e suas implicações nas duas macro-defiinições colocadas no início. Na raiz da tristeza ou desespero,do receio ou angústia com que se vive a vergonha está uma crisefiduciária que transforma o estado do sujeito patêmico e que podeou não levá-lo à execução de um programa de liquidação defalta.

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1 AS CONDIÇÕES DE BASE

Toda paixão pressupõe uma agitação no horizonte tensivo1 ,anterior a qualquer polarização, a inquietude (GREIMAS e FON-TANILLE: 1991):

�...elle fait revivre au sujet passionné l�ébranlement phoriquefondamental, celui qui engendre le �sentir� minimal.� (p. 214-5)

O sujeito inquieto, segundo os autores,

�...pourrait passer pour le prototype du sujet passionné, puisque, àdefaut de pouvoir parcourir des positions discontinues à l�intérieurdes catégories modales, au sein desquelles il ne peut qu��osciller�, leseul parcours qui s�offre à lui est un parcours d�une modalisation àl�autre, c�est-à-dire à l�intérieur des dispositifs modaux. En interdisantau sujet les transformations discontinues qu�offrent les catégoriesmodales, l�inquiétude le prédispose à se plier à la syntaxe intermodaleà l�intérieur des dispositifs passionnels.� (idem: 215)

Inquietude � parente próxima da agitação, oscilação, flui-dez, inconsistência, inconstância, instabilidade � motor de trans-formações contínuas, intramodalizações, não ainda discretizadasem categorias modais, �pressuposto fórico� (idem: 221) das pai-xões. O sujeito inquieto está quase polarizado em euforia oudisforia. Falta-lhe algo para polarizar seu sentir e �se apaixonar�.

1 O �horizonte tensivo� (G. e F., 1991: 24) é uma instância, anterior a toda categorização,em que o sentir ainda não está polarizado em euforia/disforia, mas �tiraillé entre deuxtendences�, gerando tão somente instabilidade.

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Para sua paixão poder ser a vergonha, falta-lhe um eventodisfórico, real ou virtual, retrospectivo ou prospectivo. A partir daperspectiva desse evento, a vergonha será vivida como um sofri-mento ou como um temor � ou como a negação desse temoratravés do afrontamento (cf. brio e honra, adiante).

Contudo, falta muito mais do que a polarização em disforiapara provocar-se uma organização de estados e dispositivospatêmicos reconhecida como vergonha. Faltam, por um lado, astranformações modais sofridas pelo sujeito e, por outro, a relaçãodo sujeito com seu universo socioletal, uma vez que é dentro desua cultura e através da mesma que o valor de seu objeto-valorserá constituído.

Vejamos, em primeiro lugar, os caminhos pelos quais osujeito navega ao longo de sua história de vergonha.

Anteriormente à consciência do evento disfórico, estamosface a um sujeito confiante. Inquieto, porém confiante, cujo estadoé melhor caracterizado como o de uma �espera relaxada�.

BARROS (1985: 87-126), em capítulo intitulado �Paixõese apaixonados�, subsidia-nos ao explorar �o simulacro narrativo-discursivo das diferentes relações passionais que o sujeito man-tém com o objeto� (p. 88). Entre tais relações, explica serem pai-xões complexas (não limitadas ao querer-ser ou querer-saber)aquelas cujo estado inicial do sujeito é denominado espera. Aespera é simples quando diz respeito à relação do sujeito com oobjeto-valor, e fiduciária quando, fundamentada na confiança,relaciona o sujeito (de estado) com o sujeito do fazer. A esperafiduciária tem ainda a característica de poder não ser um contra-to verdadeiro estabelecido entre os sujeitos, mas, freqüentemente,um contrato imaginário, a partir do qual o sujeito de estado atri-bui uma modalização deôntica ao sujeito do fazer.

Dois tipos de percursos passionais são apresentados pelaautora: em primeiro lugar, aqueles cuja variação tensiva evoluide uma situação de tensão para distensão e, finalmente, para

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relaxamento; e, em segundo lugar, aqueles que partem de umasituação de relaxamento, passam por um tipo de intensão e ter-minam num pólo de tensão.

A vergonha insere-se no quadro do segundo tipo de varia-ção tensiva. Vejamos, ainda segundo BARROS (idem: 99), comoessa variação tensiva se articula, tanto do ponto de vista da rela-ção sujeito/objeto-valor quanto da relação sujeito de estado/su-jeito do fazer:

�espera (conjunção imaginada) (falta) (simulacro de relações) tensão (disjunção) relaxamento querer-ser querer-ser crer-ser crer-não-ser saber-poder-ser saber-não-ser

insatisfação (não-conjunção)decepçãointensãoquerer-sernão-crer-ser

saber-não-poder-ser�

Anteriormente à consciência do evento disfórico, estamosface a um sujeito confiante cujo estado é melhor caracterizadocomo o de uma �espera relaxada�, dizíamos.

No quadro da espera relaxada, o possível futuro envergo-nhado imagina-se � em duplo sentido, de supor ou fantasiar �em conjunção com a �boa imagem� e no direito de contar como sujeito do fazer para veiculá-la. Todo direito pressupõe umdever: o sujeito de estado (imaginariamente conjunto com a�boa imagem�) atribui um dever, uma modalização deôntica,

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ao sujeito de um fazer bem específico: o da projeção de suaimagem 2.

Todavia, não se pode falar de um verdadeiro contrato entreas duas partes, mas de um contrato de confiança ou de umpseudocontrato, que, ao invés de engajar sujeito de estado e sujeitodo fazer, retrata a relação fiduciária que se estabelece entre o sujeitoe o simulacro que construiu, simulacro esse que o sujeito de estadoidentifica com o próprio sujeito do fazer (GREIMAS: 1981).

Um evento disfórico, que pode assumir diversas organiza-ções actoriais e actanciais � como veremos adiante (cap. 4), como apoio de textos � vem romper o idílio do sujeito com seu obje-to-valor �boa imagem�. Independentemente de sua organização,esse evento resulta na suspensão da confiança do sujeito de esta-do no sujeito do fazer. EMAD (1972: 366) aponta a crise de con-fiança característica da vergonha:

 �Self-deception regarding shame is present primarily whenever itappears to the individual that he feels shame�.

A decepção é �une crise de confiance d�un double point devue, non seulement parce que le sujet 2 a déçu la confiance qu�onavait mise en lui, mais aussi � et peut-être surtout � parce que lesujet 1 peut s�accuser de la confiance mal placée� (GREIMAS,1981: 16). Se os sujeitos estão em sincretismo, trata-se de umaautodecepção em grau duplo: primeiramente, porque o sujeitonão fez o que acreditava ser capaz de fazer e, em segundo lugar,

2 Apenas a título de recapitulação, a relação ser/parecer é crucial para o sujeitoenvergonhado: em seu simulacro interno, a conjunção com uma imagem e suaprojeção estão em relação de interdependência: o sujeito está ou não em conjunçãocom a �boa imagem�, dependendo de projetá-la ou não: é o reconhecimento, daparte de um microuniverso socioletal, de uma imagem como representativa de seuser que o coloca, de fato, em conjunção com essa dada imagem. Tudo se passa comum sincretismo dos dois papéis actanciais, sujeito de estado e sujeito do fazer.

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porque se percebe enganado a respeito de si mesmo e de suaspróprias capacidades.

LISPECTOR (1973: 83-4) retrata a decepção num jogo decrer envolvendo uma menina e seu professor. A garota inventauma história, para uma redação, e, para sua surpresa, o professorelogia sua originalidade. Acostumada a entender que história in-ventada é mentira, e que mentira é digna de desprezo ou puni-ção, a menina fica perplexa diante do elogio recebido:

�Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei os olhos, sempoder sustentar o olhar indefeso daquele homem que eu enganara.�(p. 83)�Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditarem mim, tive que engolir a piedade por ele, a vergonha por mim,�tolo!�, pudesse eu lhe gritar, �essa história de tesouro disfarçado foiinventada, é coisa só para menina!� (...) e aquele homem grande sedeixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em mimpela primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem,acreditava como eu nas grandes mentiras...� (p. 84)

A partir de agora, a análise da vergonha exige tratarem-seseparadamente as duas macrodefinições 3.

2 A VERGONHA RETROSPECTIVA

Na vergonha da primeira macrodefinição (desonra humi-lhante, opróbrio, ignomínia, degradação; sentimento penoso dedesonra, humilhação ou rebaixamento diante de outrem; senti-

3 Para um tratamento diferente da duplicidade da vergonha privilegiando a aspectua-lidade, ver, de Francesco MARSCIANI, Uno sguardo semiotico sulla vergogna, textoapresentado em 16/03/88, no ciclo de seminários �Le Passioni�, organizado peloCircolo Semiologico Siciliano, e Problèmes d�aspectualisation dans deux définitionsde la �vergogna��, apresentado no colóquio Linguistique et Sémiotique I, Universitéde Limoges, entre 02 e 04/02/89.

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mento penoso de inferioridade, de indignidade diante de sua pró-pria consciência, ou rebaixamento na opinião dos outros), o even-to disfórico surpreende o sujeito e o arranca de sua espera relaxa-da, colocando-o em uma situação intensa, caracterizada pela in-satisfação, estado de não-conjunção com a �boa imagem�, e peladecepção, neste caso, autodecepção, por não ter sido capaz deprojetá-la.

Ocorre aqui uma tomada de consciência do sujeito: a deque �as coisas não são como pensava que fossem�, em outraspalavras, a de que seu simulacro existencial, aquele em que seprojetava como dotado da �boa imagem�, não passa de umavisão distorcida de seu papel no universo em que está interagindo,não resiste à prova dos fatos.

O evento disfórico é portanto retrospectivo, uma vez que háum lapso de tempo entre sua ocorrência e a tomada de consciên-cia do sujeito. Nesse lapso de tempo, tem lugar um sentimento deestranheza, de confusão mental4 , causado pelo reconhecimento,da parte do sujeito, de que o que está acontecendo não �se encai-xa� em seu simulacro. Em outras palavras, é o momento em quese encontra no processo de reconstrução de seu simulacro.

Estamos, aos poucos, chegando ao sintagma passional davergonha da primeira macrodefinição. A transformação, pelo

4 Em que momento ocorre o estado de �confusão mental�?Na situação de espera relaxada, o simulacro existencial do sujeito lhe dá as projeçõesa partir das quais se vê e os pontos de referência a partir dos quais apreende o mundocom o qual interage. Todavia, na vergonha, a interação com o mundo não se dá damaneira prevista, mas um evento disfórico vem surpreender o sujeito, colocando-o nasituação intensa.Temos aí duas posições discretas: relaxamento, intensão. A vergonha nos permiteentrever algo que ocorre na transição entre essas duas posições: a confusão mental. Aconfusão (de etimologia, do latim confusio, �desordem, turbamento� e do grego sunkhu-sis, �ação de despejar junto, misturar�) é decorrente da incongruência entre o papelque o sujeito desempenharia em seu simulacro existencial, a �boa imagem�, e o papelque se vê desempenhando de fato. Superar a �confusão mental� e se julgar negativa-mente coloca o sujeito na posição intensa, a um passo da vergonha � falta, para tanto,o sentimento de exposição.

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evento disfórico, da espera relaxada em intensa mostra-nos umsujeito frente a seu desejo e sua impotência para realizá-lo; amelhor lexicalização parece-nos ser a colocada por GREIMAS(1981): insatisfação e decepção. Sabemos que esses sentimentosestão presentes na vergonha, mas não bastam para explicá-la.

Duas modalizações necessitam de desenvolvimento: pelodever e pelo saber. A primeira dá as bases para adoção de umadada imagem como �boa�, pela atribuição do valor do objeto-valor; a última deflagra a paixão vergonha, através da sançãocognitiva.

O sintagma passional da vergonha deve, portanto, retratar,em primeiro lugar, uma dimensão deôntica (dever-fazer), ou alética(dever-ser). Esse dever resulta do jogo de tensões internas a umuniverso socioletal do qual o sujeito faz parte. Esse jogo de tensõesé bem explicado pelas �vozes� de Bakhtin5 que, a rigor, constituemo discurso e o próprio sujeito, membro de uma comunidade(BAKHTIN: 1979/1929). Para Bakhtin, �os elementos históricos,sociais e lingüísticos atuam de forma decisiva no cerne dapersonalidade do indivíduo� (BRAIT, 1994: 25). Dessa afirmaçãoretiramos que a formação das dimensões deôntica e alética estáprofundamente ligada a esses elementos, é deles dependente. Ouniverso socioletal torna-se um Destinador transcendente que dotao sujeito de um conjunto de valores, de um quadro axiológicodentro do qual o sujeito se insere na dimensão do dever e compõeo que constitui, para si, a �boa imagem�.

Esse dever, resultante do jogo de tensões interno a seu uni-verso cultural, é assumido pelo sujeito e, em seguida, interioriza-

5 Pensamos aqui na inseparabilidade entre sujeito e universo socioletal: aquilo que osujeito projeta como ideal de si mesmo, num imaginário de confiança e relaxamento,resulta de constantes reformulações na interação com membros de sua cultura e suaépoca. Não existe �boa imagem� impermeável, fruto do trabalho de apuração moralou do caráter do sujeito em questão, mas um constante mergulhar no universosocioletal e as projeções de si construídas e reconstruídas nessas e por causa dessasimersões.

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do, originando um querer. O dever é um querer do Destinador eo querer, um dever autodestinado (GREIMAS e COURTÈS, 1979:118). O sujeito assume os valores representados pelo Destinador:deve ter determinada imagem, para ser assim reconhecido pelosmembros de seu grupo, e quer ter essa mesma imagem.

Contudo, na passagem da espera relaxada para a situaçãointensa, a harmonia interna ao simulacro do sujeito é quebrada:a �boa imagem� não é projetada ao grupo; o sujeito, que se jul-gava em conjunção com o objeto-valor, percebe-se não-conjuntocom o mesmo. Ele deve e quer fazer/ser, mas não o pode e tomaconsciência disso.

Além da fratura no nível do poder, ocasionada pela proje-ção de outra imagem no lugar da �boa imagem�, a vergonhapressupõe uma ação reflexiva, um desdobramento do sujeito quejulga negativamente e censura a imagem projetada, imagem essaque representa seu ser. O sujeito passa a saber que não tem, ouque não é, a �boa imagem�, mas a imagem projetada. Para queum sujeito se examine e se julgue, é preciso que se veja da posi-ção sincrética com a de um Destinador julgador. Essa situaçãosugere-nos uma confrontação não apenas de dois papéis actan-ciais, mas de dois simulacros do sujeito �que sente�: um, seu si-mulacro existencial, dentro do qual se imagina conjunto com de-terminada imagem pessoal � lembremos que essa imagem pes-soal tem valor de representação de seu ser para os outros �, eoutro, a partir do qual julga a si mesmo não conjunto com a mes-ma � portanto, reconhecido pelo grupo como outro em relaçãoàquele representado pela �boa imagem� e, conseqüentemente,reconhecido por si mesmo como não sendo aquele que imagina-va ser. Desse modo, o sujeito envergonhado realiza o papel desujeito patêmico como um termo complexo: não se trata de osci-lação entre uma e outra posição, de dúvida entre uma e outraimagem, mas de uma contradição interna; ele busca conciliarpapéis inconciliáveis, compatibilizar o incompatível.

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Duas condições são necessárias à instauração da vergonha:a sanção cognitiva negativa deve ser aplicada ao ser (o sujeito éo que a imagem projetada o faz parecer), não simplesmente aofazer (projetar imagem X), e o sintagma deve retratar um conflitoentre, de um lado, o dever e o querer e, de outro, o não-poder-sere o saber-não-ser. Propomos, inicialmente, o seguinte dispositivomodal para a primeira macrodefinição:

dever-ser/fazer, querer-ser/fazer, não-poder-ser, saber-não-ser

Ele coincide com o apresentado para o desespero, inclusive,em grande parte, em suas decorrências, como nos mostra a longa,porém explicativa, citação abaixo:

�Le désepéré est modalisé selon le devoir-être et le vouloir être et,par ailleurs, il ne peut pas être et sait ne pas être...Le désepoir comporte un dispositif modal de type conflictuel, en ceque le vouloir-être, d�une part, et les savoir-ne-pas-être et ne-pas-pouvoir-être, d�autre part, cohabitent sans se modifier réciproque-ment, se contredisent et se contrarient en provocant la fracture inter-ne du sujet; aussi, dans ce cas, le vouloir-être ne présuppose-t-il pasles autres modalisations: le désespoir est vraiment constitué de deuxunivers modaux incompatibles; le savoir sur l�échec et l�échec lui-même ne sont pas nécessaires à l�aparition du vouloir, et l�inversenon plus. Le désespéré dispose en quelque sorte de deux identitésmodales indépendentes, celle de l�échec et de la frustration, d�uncôté, et celle de la confiance et de l�attente, de l�autre, et la fractureest un effet de leur indépendence et de leur incompatibilité. La seuleprocédure de la confrontation modale suffit par conséquent ici à rendrecompte de l�effet de sens passionnel lié à ce type de dispositif modal.(...)Dans un cas comme dans l�autre6 , des sujets modaux se trouventen conflit; mais, pour le désespoir, le conflit est insoluble et ne peutaboutir qu�à l�anéantissement de l�être, c�est-à-dire, pour le moins, à

6 Trata-se do desespero e da obstinação.

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une solution de continuité dans l�être du sujet.� (GREIMAS e FON-TANILLE, 1991: 73-74)

É a vergonha um desespero?Embora os sintagmas até agora coincidam, vergonha e de-

sepero diferem nas configurações genéricas de base: a configura-ção da exposição, necessária à vergonha, é estranha ao desespero.

Isso porque o saber inerente à vergonha é mais complexoque o relativo ao desespero. Concordamos com FIORIN (1992:57) quando diz que a vergonha �concerne ao saber que o outrosabe� e concordamos também quando, mais adiante, completa:�a vergonha pode existir independentemente do saber do ou-tro...� (61). Tomando as duas citações isoladas, pode parecer in-coerência, mas o saber do outro pode ser suposto: a vergonhaconcerne também ao saber que o outro pode vir a saber. �Unbrave homme a parfois honte, même devant son chien�, dizTchekhov, em seus Carnets de notes 7. Ao lado do saber-não-ser,o sujeito deve saber que outro sujeito (um sujeito legítimo dosentimento de exposição) pode �saber que a competênciarequerida pelo simulacro não existe ou que a performance nãocorresponde ao dever� (idem: 57).

Neste ponto, o dispositivo modal acima deve ser completa-do. O saber do sujeito patêmico modaliza o não-ser (próprio) epressupõe o saber alheio relativo a esse não-ser.

Até este momento, somente a vergonha da primeira ma-crodefinição foi tratada, aquela provocada pela projeção de umaimagem menos prezada que a �boa imagem� e vivida como umsofrimento. O que há de particular na vergonha da segunda ma-crodefinição? Lembremo-la ao leitor: �sentimento de inseguran-ça provocado pelo medo do ridículo, por escrúpulos; timidez,acanhamento; pudor, brio, honra.�

7 Larousse Citations Françaises.

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3 A VERGONHA PROSPECTIVA

Primeiramente, o evento disfórico motivador é sempre pros-pectivo. A consciência da projeção (hipotética) de uma imageminferior à �boa imagem� existe como um a priori � pode, porexemplo, ser a memória de uma vergonha passada � e leva osujeito a estabelecer regras de conduta mais ou menos seguraspara si. São todas vergonhas defensivas, tipos diferentes de sensi-bilidade à vergonha da primeira macrodefinição.

�...Oui, mon coeur,Toujours, de mon esprit s�habille, par pudeur:Je pars pour décrocher l�étoile, et je m�arrêtePar peur du ridicule, à cueillir la fleurette!�

(Cyrano de Bergerac, ato III, cena 7)

A consciência do evento disfórico retira o sujeito de suaespera relaxada, atualizando a �boa imagem� e colocando emquestão seu simulacro interno. A vergonha da primeira macrode-finição é virtualizada, comparecendo como um programa narra-tivo de uso para a instauração da vergonha da segunda macro-definição.

O sujeito dessa segunda vergonha localiza-se na posiçãotensa, aquela em que a confiança em si mesmo é negada, ouseja, em que desconfia de si mesmo, de sua capacidade de projetara �boa imagem�, ou, a rigor, da aceitabilidade de seu conceito de�boa imagem�.

Uma palavra sobre a confiança e a desconfiança, antes decontinuarmos.

Uma pesquisa no dicionário Aurélio aponta-nos que o léxi-co português não é generoso ao ter, como antônimo de �confian-ça�, apenas �desconfiança�. A tradução de �desconfiança�, parao francês, impõe a escolha entre défiance, a suspensão da con-

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fiança, e méfiance, sua negação. Essa distinção é explorada emGREIMAS e FONTANILLE (1991: 216-220), como um dos per-cursos necessários à instauração do ciúme. Baseamo-nos nelapara a reflexão que segue.

No tangente às duas macrodefinições da vergonha, aquelaem que o sujeito se vê na posição intensa é caracterizada pelasuspensão da confiança: o sujeito de estado não mais confia nosujeito do fazer, suspende a confiança que nele depositava; para-lelamente, na vergonha da posição tensa, tem-se a negação daconfiança: o sujeito abandona a realização de um programa nar-rativo a favor de outro (menor, inferior), entre outras razões, �parpeur du ridicule�.

Atendo-nos à segunda vergonha, a prospectiva, os dicio-nários Aurélio e Le Robert apresentam-lhe definições quase idên-ticas, diferindo em apenas um elemento: ao lado da �inseguran-ça�, do português, encontramos gêne, em francês, cuja etimologia8

nos remete a géhenne/géhine, �tortura�, derivada de géhir, �con-fessar por tortura�. Se insegurança remete diretamente a temor,gêne, ao evocar tortura, sofrimento, traz à mente, ao menos, estra-tégias de evitação. E �timidez�, embora não tenha uma etimologiaclara, de consenso, remete-nos também a temor, medo.

Que medo é esse que ronda a vergonha, que reduz as ex-pectativas, que conforma o homem, moldando seu comporta-mento segundo uma afinada percepção daquilo que dele espe-ram, a fim de assegurar sua aceitabilidade?

Um exemplo pungente desse medo é dado por Althusser(1992: 84) numa reflexão sobre sua maneira de se relacionar comas pessoas, em que vincula seu poder de imitação com ausênciade existência própria:

�... meus artifícios, a imitação da voz, dos gestos, e da letra, doscircunlóquios e dos tiques de meu professor, que me davam não só

8 Consultamos Le Robert Historique para etimologia de palavras francesas.

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um poder sobre ele mas uma existência para mim. Em suma, umaimpostura fundamental, esse parecer ser o que eu não podia ser (...)O que se pode dizer? Que, não tendo uma existência pessoal, umaexistência autêntica, duvidando de mim a ponto de me acreditarinsensível, sentindo-me por causa disso incapaz de manter relaçõesafetivas com qualquer pessoa, estava reduzido, para existir, a mefazer amar, e, para amar (pois amar comanda ser amado), reduzidoportanto a artifícios de sedução e impostura.�

Raramente a dúvida sobre o próprio valor leva ao medo eà recusa de assumir a própria existência, mas esse é um exemplode acutíssima autocrítica. A adoção de artifícios, que o comumdos homens faz com o nome de concessões, é freqüentementeum modo de conformação com aquilo que o universo socioletalespera do sujeito.

Temos então o terceiro elemento. O medo ou temor de umacontingência, de algo sobre o qual o sujeito não tem controle,nem forma de previsão, que o faria projetar uma imagem insu-portável para si, leva-o a aceitar fazer-se menor, ou ousar menos,ou reduzir suas expectativas.

Johnson (1943: 273), apud Goffman (1973: 43), ilustra umaestratégia na época empregada por negros americanos, a fim dese fazerem aceitar dentro do quadro de valores subjacente aomercado de trabalho:

�Là où il y a concurrence effective, à un niveau supérieur à celui desmanoeuvres, pour des emplois habituellemnt considerés comme des�emplois pour Blancs�, certains Noirs choisissent eux-mêmes d�adopterles attributs symboliques d�un statut inférieur tout en accomplissant untravail de niveaux supérieurs. Ainsi, un expéditionnaire accepte le titreet la rémunération d�un garçon de bureau, une infirmière accepte d�êtreappelée domestique et un pédicure accepte d�entrer dans les maisonsdes Blancs, le soir, par la porte de derrière.� 9

9 Uma pesquisa sobre as formas de racismo no Brasil, conduzida pelo jornal Folha deSão Paulo em agosto de 1995, permite concluir a existência de um tipo de racismo

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Conformação, comportamento estratégico, conduta defen-siva, ou francamente medo de se expor são gradações patêmicasoriginadas em uma mesma crise fiduciária: a negação da con-fiança, �méfiance�, do sujeito do estado no sujeito do fazer. Aquise inserem a insegurança causada pelo medo do ridículo ou porescrúpulos, a timidez, o acanhamento e o pudor. E, seguindo amáxima de que �a melhor defesa é o ataque�, encontram seulugar, nessa reflexão, também o brio e a honra. Dedicamos algu-mas páginas ao pudor, ao brio e à honra, adiante.

O medo inerente à vergonha revela um processo de aspec-tualização10 que nos conduz à indagação formulada por GREIMASe FONTANILLE (1991: 78): �Toute la question est de savoir, noussemble-t-il, si les formes aspectuelles ne font que surdétermineraprès coup les structures modales ou si elles en sont une compo-sante intrinsèque.�

Se a vergonha da primeira macrodefinição reflete o estadodo sujeito que, après coup, deve se readaptar a uma situaçãoainda não verdadeiramente compreensível, a componente aspec-tual aí comparece como sobredeterminadora das estruturas mo-dais: é o elemento organizador necessário para transformar a si-tuação intensa em tensa, isto é, para estabelecer a falta (fiduciária)e, desse modo, possibilitar ao sujeito o investimento num progra-ma de liquidação da mesma. O medo relacionado à primeira

chamado �cordial�. Cordial ou não, a discriminação existe e assume diversas mani-festações por muitos consideradas normais, como de impedir alguém de utilizar oelevador social de um prédio. Aquele que escolhe, como na citação acima, optar pelaentrada de serviço está tentando preservar-se de uma possível humilhação, mas a umpreço muito alto: ao preço de um desserviço aos direitos humanos, na medida emque ajuda a perpetuação de tal prática.

10 MARSCIANI faz uma leitura da aspectualização na vergonha distinta em �Problèmesd�aspectualisation dans deux définitions de la �vergogna�, publicado em FONTANILLE(dir.) � Le Discours Aspectualisé: Actes du colloque �Linguistique et Sémiotique I�,Limoges/Amsterdam/Philadelphia: PULIM/ BENJAMINS, 1991. Nesse texto, o autoranalisa o papel da aspectualização na �vergogna� principalmente a partir do tempoverbal e do procedimento de embreagem ou debreagem presentes em suas definições.

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macrodefinição é uma conseqüência da sobredeterminação dasestruturas modais e é atinente à aceitabilidade do sujeito, atravésde sua imagem projetada, pelo grupo ao qual lhe interessa per-tencer. Diferentemente, o medo subjacente à segunda macrodefi-nição parece apontar a uma aspectualização intrínseca, reconhe-cível em, pelo menos, dois momentos: primeiro, a desconfiançaimplica uma colocação em perspectiva do sujeito do fazer pelosujeito de estado � referimo-nos ao sujeito que se projeta dotadoda �boa imagem� em seu simulacro existencial � e, no caso deserem sincréticos � o que é usual, mas não único, na vergonha �, implica um desdobramento do sujeito (em aquele envolvido naação e aquele que o julga); segundo, o fato de a vergonha daprimeira macrodefinição comparecer como PN de uso da vergo-nha da segunda macrodefinição traz à superfície a sensibilizaçãode S1: uma experiência passada � ou imaginada � é rebatida,como um possível, no futuro, executando uma reembreagem so-bre o sujeito tensivo.

3.1 O ENVERGONHADO-INSEGURO

O estado do envergonhado-inseguro (ou gêné, da definiçãofrancesa) é melhor caracterizado por uma espera tensa, em que,mesmo com a confiança negada a priori, o dever-ser e o querer-ser do sujeito permanecem inalterados, sobremodalizados pelosaber-poder-não-ser. A insegurança, como forma de vergonha,parece-nos mais uma disposição de espírito que uma crisepassional: �les dispositifs modaux sont convoqués en discours etsoumis à une aspectualisation, qui résulte de la convocation desmodulations tensives et qui les transforme en dispositionspassionnelles� (GREIMAS e FONTANILLE, 1991: 82). Oenvergonhado-inseguro parece pautar suas relações através doestilo inseguro com que encara sua ação no mundo, estilo esse

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que acusa um temor intrínseco às suas manifestações e ações,ou, como já dissemos anteriormente, uma angústia, um medosem objeto � ou sem objeto preciso. Por isso ele não tem e nempode ter programa, está solto no mundo, mundo que fita comolhos prudentes � ou desconfiados � e no qual se move com acautela de um animal que sai da toca. Somente passa a haver umprograma seu se desencadeado pelo outro, o possível (provável?)ofensor; é nesse momento que seu medo/angústia encontra umobjeto: é o medo de virar presa do outro, de ser objeto do outro,e, como tal, sem qualquer defesa.

Não é à toa que nos encontramos, novamente, ecoandoSARTRE (1943) em sua definição de vergonha, que chamamosde grau zero. E agora em condições de explorar um pouco maisessa alcunha: a partir de Sartre, pode-se pensar a vergonha,abstraída de suas estruturas modais, como a operação primordialde aspectualização efetuada pelo homem, aquela que institui ohomem consciente de sua condição de animal pensante. Avergonha sartriana é quase que pura forma e de conteúdo mínimo:

�La honte n�est, pareillement, que le sentiment originel d�avoir monêtre dehors, engagé dans un autre être et comme tel sans défenseaucune, éclairé par la lumière absolue qui émane d�un pur sujet;c�est la conscience d�être irrémedialement ce que j�étais toujours:�en sursis�, c�est-à-dire sur le mode du �pas-encore� ou du �déjà-plus�. La honte pure n�est pas sentiment d�être tel ou tel objet ré-préhensible; mais, en général, d�être un objet, c�est-à-dire de mereconnaître dans cet état dégradé, dépendant et figé que je suis pourautrui. La honte est le sentiment de chute originelle, non du fait quej�aurais commis telle ou telle faute, mais simplement du fait que jesuis �tombé� dans le monde, au milieu des choses, et que j�ai besoinde la médiation d�autrui pour être ce que je suis.� (SARTRE, 1943:336, grifo do autor).

O envergonhado-inseguro é aquele que parece ter hiper-trofiada a consciência, ou melhor, o sentimento de ser indefeso,

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de ser incapaz de gozar da imagem que quer que o represente.Ele não é um existencialista sartriano (até pode sê-lo, mas isso éoutra história), ele é tão somente alguém para quem a existên-cia11 está ameaçada e age defensivamente. O que sua vergonhatem em comum com a vergonha sartriana é seu �pano de fun-do�: seu conteúdo tende à desmaterialização � é indefinível por-que difuso, dirigido a tudo, logo a nada específico; o conteúdo davergonha sartriana é intangível porque esvaziado, num exercíciofilosófico de explicação da forma. Como conseqüência, em ambaso sujeito está à mercê de outrem, pelo simples fato de existir;pode viver �un véritable malaise �existentiel� dans la mesure oùêtre au monde�, c�est irrémédiablement être vu � ne fût-ce, à lalimite, que par soi-même�, diz LANDOWSKI (1989: 132).

3.2 O ENVERGONHADO-TÍMIDO

O envergonhado-tímido parece-nos uma versão maisdelimitada no universo simbólico do envergonhado-inseguro.Ainda não se pode falar em programa de liquidação de falta, poiso tímido, mesmo se já discretizou áreas nas quais teme se expor �tímido para falar em público, para pedir aumento salarial, parainiciar um relacionamento amoroso �, age defensivamente,protegendo-se de um possível obstáculo intransponível: antes deperder a face, o tímido escolhe, ele mesmo, deter sua ação. Dessemodo, o eventual abortamento da performance (a não projeçãoda imagem almejada) passa a ser opção do sujeito, garantindo-lhe o relativo conforto da não submissão incondicional ao outro.O tímido assegura para si mesmo, se não o sucesso, a ausênciade fracasso, na área de sua vulnerabilidade. Se, por um lado, oenvergonhado-inseguro age em reação ao outro, e sua ação visa

11 Existência simbólica, conceitual, e não sua integridade física.

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principalmente à evitação da exposição de suas vulnerabilidades,o envergonhado-tímido pode agir por iniciativa própria, a despeitode sua timidez, mesmo a demonstrando 12. Nem a insegurança,nem a timidez, porém, incluem, como parte integrante, programasde liquidação da falta. O restabelecimento da confiança, se ocorre,é superação do sentimento e não sua conseqüência.

O pudor, o brio e a honra são as três formas mais complexasde vergonha. Nelas, o conteúdo da vergonha está bem delimitado,o sujeito patêmico participa de um sistema ético de produção ecirculação de valores, está inserido, no microuniverso socioletal,numa relação participativa. Logo, sua tensão está direcionada:com o apoio de regras de conduta bem definidas, pode iniciarum programa de liquidação de falta � a falta de confiança. A fimde evitar uma possível vergonha da primeira macrodefinição �que sempre existe na forma �suspensa�, �congelada� no horizontetensivo do sujeito �, investe na projeção de uma imagem dignade aceitação, no caso do pudor, ou de admiração, ao se tratar debrio, ou, ainda, merecedora de respeito, no caso da honra. Ocomportamento estratégico não significa �desapaixonado�: paixãoe razão não se opõem necessariamente, como teremos a ocasiãode verificar, adiante e no capítulo 5.

Recapitulando, a vergonha da segunda macrodefinição nãoé uma, mas duas, no tangente à existência de programas deliquidação da falta fiduciária. Entretanto, se não é única no relativoao tratamento da falta, é uniforme nos traços básicos em quedifere da primeira vergonha. Relembremos, resumidamente, quetraços são esses:

a) perspectiva do evento disfórico � prospectivo, no lugarde retrospectivo;

12 Agradecemos a Yves de La Taille por este ponto. A ação do tímido, apesar de suatimidez, é evidente no exemplo daquele que oferece flores, mesmo ficando vermelhopor isso, ou daquele que faz uma palestra, mesmo sofrendo com a situação.

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b) posição tensa, ao invés de intensa;c) inclui medo, pois retrata condutas defensivas;d) como conduta defensiva, engloba não apenas a impos-

sibilidade (não-poder-ser), mas também a contingência(poder-não-ser).

Agora devemos montar o dispositivo modal da segundavergonha com base nas reflexões acima. Ele deve abarcar tam-bém a contingência (poder-não-ser), e sua ruptura deve ocorrerno nível do saber, uma vez que é a consciência da virtualizaçãode um evento disfórico que o instaura. Propomos o seguinte dis-positivo modal, baseado em FIORIN (1992: 57) 13:

saber não poder ser,

saber (outro) saber que a competência requerida

dever ser/fazer, querer ser/fazer, pelo simulacro não existe ou que a performance

não corresponde ao dever.

saber poder não ser,

O dispositivo acima difere do proposto por Fiorin no queconcerne à modalização do saber: a sanção cognitiva negativa éaplicada exclusivamente ao ser (o sujeito é o que a imagem pro-jetada o faz parecer), não ao fazer (projetar ou não a imagem X).Assim sendo, o saber deve sobremodalizar o poder que modalizao ser do sujeito. Nesse ponto do sintagma, onde se localiza aruptura que instaura o conflito interno, a virtualização do fazer/ser passa à atualização do ser, seja como um não-poder-ser, seja

13 Eis abaixo o dispositivo citado:saber não poder ser/fazer,

saber (outro) saber que a competência�dever ser/fazer, querer ser/fazer, requerida pelo simulacro não existe ou

que a performance não corresponde aodever.�

saber poder não ser/fazer,

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como um poder-não-ser: projetar determinada imagem adquireo estatuto de ser o que essa imagem representa.

É somente assim que podemos compreender porque ohomem é capaz de se envergonhar pela veiculação de umamentira, ou de uma suspeita, a seu respeito: ele é aquilo que suaimagem o faz parecer. �Não basta à mulher de César ser honesta,é preciso parecer honesta.� Ou, com uma ligeira mudança deperspectiva: para ser honesto � ter o direito de ser reconhecidocomo tal �, é preciso parecer honesto.

3.3 AS CONDUTAS DEFENSIVAS COM VISTAS ÀLIQUIDAÇÃO DA FALTA

�Virorum cadauera supina fluitare, feminarum prona, uelut pudoridefunctarum parcente natura.�14

�El honor de un hombre es su honor. Ser y honor se confunden enél. El que ha perdido el honor, ya no es.�15

�La pudeur, sentiment antécédent, est seulement plus légère quel�émotion conséquente de la honte... La pudeur se distingue de lahonte comme une disposition habituelle se distingue d�un mouvementde l�âme, ou comme une tendance se distingue d�une émotion.Remords virtuel, la pudeur est potentiellement et statiquement (...)ce que la mauvaise conscience est cinétiquement.� 16

14 Pline l�Ancien, Histoire Naturelle, VII, 17, coll. Budé, p. 66, apud: Bologne, 1986, p.345: o corpo de uma afogada flutua virado para baixo, para esconder os órgãosgenitais, enquanto o de um afogado flutua de costas. (tradução nossa)

15 Pierre Bourdieu, em �El sentimiento del honor en la sociedad de Cabilia�, p. 191.16 W. Jankélévitch, Traité des Vertues, p. 452.

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O PUDOR

Poucos temas das humanidades apresentam o mundo tãorepartido em universos feminino e masculino quanto no relativoa pudor e honra. Alguém poderia sentenciar, quase sem enfrentarresistência: �pudor é coisa de mulher; honra, de homem�.

A superficialidade dessa afirmação sofreria apenas pequenoquestionamento. Basta, no entanto, arranhar a crosta do hábitoque recobre o sentido para deixar à mostra a fragilidade de umageneralização desse tipo.

BOLOGNE (1986)17 estuda a plasticidade do conceito depudor desde a Idade Média até o século XIX, na França, no rela-tivo à nudez. Opta por analisar o sentimento através desse pris-ma, por dois motivos: a nudez, como objeto de pudor, é central;e a história da relação do homem com a nudez mostra váriasacepções do pudor ao longo do período em questão. A título deexemplo, o autor destaca que, na Idade Média, honte e vergognesão os sinônimos preferidos; no século XVII, �la �modestie� ferafureur chez les femmes, tandis que les hommes se contenteronsd�être �décents�, �civils�, �honnêtes�� (p. 16); nessa mesma época,pudor e pudicícia significam ambos �castidade� e, sob a influên-cia do latim, pudor retoma também o sentido de honra. Evitandoas �armadilhas� que o historiador encontra na etimologia, Bo-logne analisa o conceito a partir da evolução dos costumes emáreas em que a nudez comparece, como o banho, as visitas médi-cas, as manifestações artísticas, etc. Suas investigações, mesmotomando como base a nudez, levam-no a afirmar, num dadomomento, que há pudores e pudores: �Pleurer, se plaindre, rou-gir, prier: la pudeur du sentiment est considerée comme le do-

17 As reflexões aqui desenvolvidas são tributárias a Bologne, em sua �Histoire de LaPudeur�.

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maine de l�homme, quand la femme privilégiait la pudeur corpo-relle.� (BOLOGNE, 1986: 12).

O sentimento �naturalmente feminino� propalado por Plínio,o Antigo, cede lugar a objetos de eleição masculina e feminina efica sob o jugo da preposição de: tem-se pudor dos sentimentos,sente-se pudor do corpo. Assim, se os objetos de pudor sãorelativos � usualmente femininos ou masculinos e ligados a épocase contextos socioculturais �, o pudor �em si� tem algo de constante,que é sua estreita relação com a vergonha:

�Plutôt que dévoquer une nécessité sexuelle qui n�expliquera jamaisla pudeur des larmes ou des sentiments, il est préférable de renverserle problème. La pudeur apparaît dès lors comme une honte anticipée,le refus préventif de ce que l�on considère comme une faiblesse ouun ridicule.� (BOLOGNE, 1986: 21)

Não uma exclusividade feminina, mas uma vergonha an-tecipada: a tomada de consciência da possível revelação de umafraqueza, de algo proibido ou ridículo retém a ação. O que é rela-tivo e dependente do contexto sociocultural é a fraqueza, o inter-dito, ou o ridículo inerentes ao pudor.

Sendo um tipo de vergonha antecipada, está em relaçãode dependência com a exposição. De fato, o pudor possui umcaráter público: �On a peur de montrer sa faiblesse, pas de safaiblesse en soi.� (BOLOGNE, 1986: 333 � grifo nosso). E, comoaquilo que constitui fraqueza varia em diferentes microuniversossocioletais e, também, até um certo ponto, segundo as inclina-ções de cada um, o resultado é que o pudor pode variar de indi-víduo a indivíduo. É de fato o que se constata nas relações cotidi-anas. É um processo dinâmico, desencadeado privilegiadamentepelo olhar que o instaura em diferentes pessoas, por diferentesrazões (não-exclusivas): um terá pudor de mostrar o corpo, outrode ver a nudez alheia, um terceiro sentirá pudor de discutir seus

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sucessos, um quarto, de revelar seus fracassos, um quinto, de re-velar o que um outro não quer saber, etc18 . Todos eles terão emcomum uma conduta defensiva, de evitação da exposição devulnerabilidades, com o fim de assegurar ao sujeito o controlesobre sua imagem projetada. Assim, através do controle de suaimagem, o sujeito protege suas áreas vulneráveis e investe naliquidação da falta fiduciária, caracterizada pela reconquista daconfiança (do sujeito de estado � aqui, ciente da possibilidade daperda da �boa imagem� � no sujeito do fazer). Não apenas osujeito se protege como, ao pautar sua conduta por regras social-mente estabelecidas, tem a segurança de agir com �baixapericulosidade�, isto é, com grande probabilidade de não causarofensa. Controlando o acesso de outrem às vulnerabilidades dosujeito e o acesso deste às possíveis vulnerabilidades alheias, opudor, quando compartilhado pelas partes � o que ocorre comfreqüência em contextos socioculturais relativamente estáveis � éum eficiente mediador das relações sociais, reduzindo conflitos eassegurando um certo grau de civilidade19 .

Tanto é um importante regulador das relações sociais quesua ausência é apontada por FREUD (1973/ 1915[1917]: 2093)como um sintoma patológico:

18 Os motivos de pudor, assim como os motivos de vergonha em geral, encontram asmais diversas organizações actanciais e actoriais: o sujeito patêmico pode ser tantovítima quanto ofensor, ou pode apenas estar em relação participativa ou deidentificação com quem sente � ou deveria(?) sentir � pudor. Por que alguém teriapudor de ver a nudez alheia? Arriscamos: porque ele pode ser visto vendo, como noslembra LANDOWSKI (1989: 133-5), a partir de Molière � �Couvrez ce sein que je nesaurais point voir� diz Tartuffe a Dorine � , ou porque, identificando-se com o outro,compartilha o pudor que lhe atribui. E o pudor de revelar seus sucessos? Talvez,como nos aponta BOURDIEU (1968: 180), por ser típico de um homem de honra,quando se encontra em posição favorável, não acentuar sua vantagem; fazê-losignificaria não se portar à altura de um homem de honra.

19 �Si deux personnes se brouillent, c�est qu�elles étaient un peu trop bien ensemble. Lesrapports superficiels sont toujours bons. Mais l�intimité rend les moindres variationstrès sensibles�, diz Valéry, em Tel Quel, 1941: 51. Agradecemos a Yves de La Taille acitação.

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�En el duelo, el mundo aparece desierto y empobrecido ante losojos del sujeto. En la melancolía es el yo lo que ofrece estos rasgos ala consideración del paciente. Este nos describe su yo como indignode toda estimación, incapaz de rendimiento valioso alguno y moral-mente condenable. Se dirige amargos reproches, se insulta y esperala repulsa y el castigo. Se humilla ante todos los demás y compadecea los suyos por hallarse ligados a una persona tan despreciable. (...)...Por último, comprobamos el hecho singular de que el enfermomelancólico no se conduce tampoco como un indivíduo normal,agobiado por los remordimientos. Carece, en efecto, de todo pudorfrente los demás, sentimiento que caracteriza el remordimiento nor-mal.� (grifo nosso)

Sem, no entanto, que se abordem patologias, a análiseefetuada por SENNET (1979: 274) da sociedade ocidental atualaponta para um �despudor� crescente, ditado por aquilo quechama de tirania da intimidade. Segundo o autor:

�Plus cette tyrannie de la proximité s�impose, plus les gens cherchentà se libérer des coutumes, des manières sociales, des codes, etc.,pour s�ouvrir de façon inconditionnée les uns aux autres. Les rapportshumains intimes sont censés être chaleureux. On cherche ainsi unesociabilité plus intense, mais la réalité vient démentir cette attente.Plus les gens sont intimes, plus leurs relations deviennent doulou-reuses, fratricides et associables.�

Se a sociedade intimista impõe uma abertura incondicionaldos sujeitos, isso incluirá também as vulnerabilidades de cadaum. É a abertura das vulnerabilidades a responsável por relações�dolorosas, fratricidas e associais�. Falamos em �despudor�, entreaspas, por compartilharmos a posição de BOLOGNE (1986),segundo a qual o pudor não se extingue, mas muda de conteúdo,ao longo do tempo, num jogo tenso entre o que o caracteriza, oque caracteriza o despudor e aquilo que chama de apudeur. Onderesidiria a atual forma de pudor na sociedade intimista? Deixamosa pergunta em aberto, como sugestão para uma possível pesquisa.

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Dediquemos, agora, algumas linhas ao brio, outro parassi-nônimo de vergonha que desemboca em programa de liquida-ção da falta fiduciária.

O BRIO

De origem celta *brigos (�força�, �vivacidade� 20 ), brio re-mete, em primeiro lugar, ao sentimento da própria dignidade, apundonor. Significando também coragem, valentia, galhardia, brioé o �primo pobre� dos parassinônimos de vergonha: encontra-mos apenas um texto teórico a ele dedicado, ainda assim emparte: trata-se de �El sentimiento del honor en la sociedad deCabilia�, de Pierre BOURDIEU (1968). Lançaremos mão dessafonte com cautela, uma vez que traz dados relativos a um univer-so socioletal diferente do nosso universo de pesquisa. Muçulma-nos, os habitantes de Cabília ignoram a figura feminina 21 emquestões de brio e honra, a não ser como um perigo potencial.Na sociedade ocidental, que reconhece à mulher o direito ao amor-próprio, brio surge como qualidade de ambos os sexos, com con-teúdos mais típicos a cada um deles: o homem de brio não levarádesaforo para casa; a mulher deverá comportar-se com brio emsituações difíceis ou constrangedoras.

Ocidental ou não, o brio é um sentimento que incita o su-jeito a igualar ou superar outrem, a fazer mais ou melhor, a con-duzir-se de modo a controlar, até o ponto em que é possível, aforma com que o outro com ele interage; a pessoa de brio, atra-vés de uma conduta de valorização de si, dirige a atenção do

20 Aurélio.21 A mulher é um �ser débil, impuro y maléfico� (p. 199); é �cargada de potencias

maléficas y impuras, destructoras y temibles� (p. 200); o homem, por sua vez, éinvestido de �virtudes benéficas, fecundas y protetoras� (p. 200).

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outro para suas qualidades e obtém admiração. A respeito dohabitante de Cabília, Bourdieu aponta o papel central que tem onif (brio ou pundonor, em árabe) em sua vida:

�Este animaba también, por ejemplo, las rivalidades entre pobladosque ponían su pundonor en tener la mezquita más alta y más bella,las fuentes mejor arregladas y mejor protegidas de las miradas, lasfiestas más suntuosas, las calles más limpias, etc.� (BOURDIEU, 1968:183)

... El nif es también la voluntad de superar o otro en combate dehombre a hombre, es la celosa emulación, la lucha por la gloria...�(idem: 185)

Dirigir o olhar alheio para o melhor de si implica desviar-lhe o olhar de áreas em que falta brilho, áreas de fraqueza, deinferioridade, em suma. O brioso evita a exposição de suas vul-nerabilidades através da realização de um programa de controle(construção e manutenção) de sua imagem destinada aos outros.�El nif, la estima de sí mismo, es ante todo el hecho de defender,a cualquier precio, cierta imagem de sí mismo destinada a losdemás.� (idem: 189). A vergonha da primeira macrodefinição énovamente um PN de uso: subjaz ao investimento em uma ima-gem de si admirável a proteção de áreas que se querem secretas;não é necessário esforço de reflexão para ver que a proteção � nocaso do brio, ativa, ofensiva � de vulnerabilidades pressupõe aexistência das mesmas e o medo de se as expor.

O brioso vive sob o jugo da opinião alheia:

�El pundonor es el fundamento de la moral propia de un individuoque se ve siempre a través de los ojos de los demás, que actúa siempreante el tribunal de la opinión, que tiene necessidad de los otros paraexistir, porque la imagem que se forma no podría ser distinta de laimagem de si mismo que le es enviada por los demás.� (idem: 191)

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Sua opção de conduta ofensiva traz-lhe um fruto diferentedo alcançado através do pudor: a pessoa que tem pudor retémsua ação, apequena-se, dobra-se ao juízo alheio a fim de assegurarsua aceitabilidade; aquela que tem brio também leva em conta aopinião alheia, mas a enfrentando, propondo uma imagem de sinão limitada à conformação aos interditos: o brioso engrandece-se naquilo que pode e sai em busca de glória. Ele recria para si,em forma de antecipação, a confiança que traz negada na basede seu sentimento. É por isso que �el hombre de bien (argaz elâali)debe estar siempre en guardia� (idem: 189): ele pode, a qualquermomento, ser vítima de ataques que o façam cair em desgraça; ésomente seu brio que lhe assegurará uma ação pronta e conspícuaem resposta a atentados contra sua imagem.

O brio no universo masculino é guardião da honra � essebem moral de que falaremos adiante �, enquanto no universofeminino é uma simples qualidade desejável, mas não necessá-ria, e que não mantém, necessariamente, ligação com a honrafeminina. Uma mulher de brio é uma mulher de brilho próprio,que desperta admiração; no entanto, uma �mulher de bem�, umamulher �honrada� não precisa ser briosa. Um homem �honrado�deve ser brioso para garantir a própria imagem de honrado: dei-xará de possuí-la se deixar de responder a ataques à sua pessoa.O brio feminino aponta para um conjunto heteróclito de qualida-des, que tanto pode estar relacionado à aparência física, quantoà atuação pública, quanto a traços de força de caráter, estes jápróximos da honra (a moça pobre que trabalha dura e honesta-mente para tentar escapar da pobreza, a mulher que sai altiva deuma tentativa de humilhação que lhe infligem, a trabalhadoraque se revolta contra o assédio de um colega de profissão, etc.).O brio masculino, por sua vez, está sempre ligado a assuntos dehonra: qualquer circunstância que exigir brio de um homem épassível de leitura como interna ao quadro ataque/defesa da hon-ra. Talvez porque o papel masculino, organizando-se em torno de

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um mesmo bordão, possa ser compreendido como um �sambade uma nota só�: a honra, esse �simulacre métaphorique du vi-vant� (GREIMAS, 1981: 21).

Passemos, agora, ao último parassinônimo de vergonhaapresentado pelos dicionários Aurélio e Le Robert: honra.

A ESTRELA CADENTE: A HONRA 22

Em primeiro lugar, uma observação. A honra, tema que jáoriginou muitos textos (dentre os quais podemos citar, na antro-pologia, El Concepto del honor en la sociedad mediterránea, or-ganizado por J. G. Peristiany; na literatura, Corneille, principal-mente com os textos Le Cid e Horace; na filosofia, Aphorismesde la sagesse dans la vie, de Schopenhauer, etc.) e que certamen-te originará muitos outros, é tratada, neste estudo, pelo viés davergonha. Freqüentemente é o contrário que ocorre: a vergonhaé vislumbrada através da honra, como sua negação, como o ou-tro lado da �moeda� honra, como sua falta, etc. Este estudo pro-põe uma outra perspectiva, procura entender e, esperamos, es-clarecer porque, entre os sinônimos de vergonha, encontra-se ahonra. Aliás, nos dicionários consultados, a palavra que abre asdefinições de vergonha é desonra e a que as fecha, honra! Asdefinições e sinônimos apresentados mostram um verdadeiropercurso que se inicia na instauração pública da inferioridade �desonra humilhante �, passa por um processo de relativização �sentimento penoso de desonra, rebaixamento diante de outrem,diante da própria consciência, ou na opinião dos outros �, trans-forma-se numa espécie de medo, com o evento disfórico passan-do a prospectivo � insegurança, timidez � e chega a scripts socio-

22 Um estudo interessantíssimo sobre a honra, na literatura, é o realizado por Weinrich(1983) � �L�Honneur presqu�oublié�, em Conscience linguistique et lectures littéraires.

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culturais que culminam em programas de liquidação da falta fi-duciária � pudor, brio, honra. Aqui estamos, agora, no fim dopercurso sugerido pelos dicionários, o último parassinônimo devergonha a ser discutido e o mais �masculino� de todos.

SCHOPENHAUER (1989/1943), um forte crítico da hon-ra, diferencia o �homme honorable� do �homme d�honneur�, oprimeiro dotado das mais louváveis qualidades morais e o segun-do, pouco mais que um vaidoso, importando-se demasiadamen-te com as opiniões alheias expressas a seu respeito. O conceito dehonra, subjacente aos dois casos, tem, no entanto, traços cons-tantes:

�L�honneur repose cependant toujours, en dernière analyse, sur laconviction de l�immutabilité du caractère moral, en vertue de laquelleune seule mauvaise action garantit une qualité identique de moralitépour toutes les actions ultérieures, dès que des circonstancessemblables se présenterons encore: c�est ce qu�indique aussil�expression anglaise �character�, qui signifie renom, réputation,honneur. Voilà pourquoi aussi la perte de l�honneur est irréparable,à moins qu�elle ne soit due à une calomnie ou à de faussesapparences.� (p. 49)

Os mesmos traços aplicam-se à honra feminina, mesmosendo esta, até bem recentemente, quase tão somente sexual.Seja qual for o revestimento semântico da palavra honra � reves-timento de grande plasticidade, dependente de época, lugar, classesocial e sexo �, a honra, hoje em desuso no repertório lingüístico,mas não no simbólico, possui os traços acima. Tão forte é suaidentificação com quem a pleiteia que, como coloca a citaçãoque repetimos, ter honra é ser: �El honor de un hombre es suhonor. Ser y honor se confunden en el. El que ha perdido el honor,ya no es.� (BOURDIEU, 1968: 191)

Falar de honra como paixão, no final do século XX, podefazer sorrir. De fato é difícil identificar comportamentos apaixo-

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nados com honra, muito mais um patrimônio simbólico do indi-víduo, um bem moral, como dizem os dicionários, que um senti-mento. Todavia, tantas são as circunstâncias de resposta violentaa provocações (por exemplo, no trânsito, ou entre torcidas defutebol) que, embora de maneira enviesada, revelam preocupa-ção constante com a imagem veiculada: mesmo que não sejadito com todas as letras, os sujeitos agridem para manter a face,reagem, em suma, por orgulho ferido, em defesa da honra, mes-mo se o sentido que a palavra encerra perdeu em clareza.

Honra e orgulho não são intercambiáveis, diferem em algunsaspectos dos quais citamos um fundamental: na primeira, aimagem valorizada tem de ser sancionada pela sociedade, é, arigor, construção sua; no último, tudo se passa entre o sujeito... esi mesmo, basta a ele a opinião positiva que tem a respeito de sipróprio. Curiosa figura, então, a de orgulho ferido! Se o orgulhoindepende de, ou melhor, não pressupõe a opinião positiva alheia,como pode a opinião alheia feri-lo? Como pode uma provocaçãoatingir alguém que basta a si próprio? E como é possível reaçãoem nome do orgulho ferido de um grupo?

Brasileiros têm orgulho de serem brasileiros, americanosare proud of being American, franceses ont l�honneur d�êtrefrançais; nos esportes, franceses jouent l�honneur national, brasi-leiros, o orgulho nacional. São americanos e brasileiros seme-lhantes entre si e distintos dos franceses em sua forma de ufanis-mo? Seria materializar a palavra, querer identificar palavras ecoisas, afirmá-lo. Honra e orgulho, entrelaçados naquilo que têmde semelhante, unem brasileiros, americanos e franceses na ten-tativa de se defenderem da vergonha: vergonha de ser brasileiropela desigualdade social; vergonha de ser americano, vide guerrado Vietnã; vergonha de ser francês na assinatura do armistício,na Segunda Guerra Mundial.

Orgulho e honra mesclam-se e sugerem sociedades nãomonolíticas, cujo pêndulo oscila entre indivíduo e grupo, diferen-

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tes dos universos socioletais estáveis e restritos estudados, peloviés da antropologia, em El Concepto del honor en la sociedadmediterránea (PERISTIANY: 1968). Honra, aparentemente es-quecida, superficialmente em desuso, adquire coloração sépia,de vocábulo de livro de história ou literatura, e perde a funçãobalizadora de condutas morais. DE LA TAILLE, Y. (1997: 228)discute o declínio da honra na sociedade ocidental:

�Hoje, expressões como �La lessive de l�honneur ne se coule qu�ausang�, ou �antes morrer do que perder a honra� soam exageradas,desproporcionais, patológicas até. Matar ou morrer por amor parecefazer mais sentido. Várias razões, e de ordem muito diversas, podemser evocadas para explicar tal declínio: críticas às condutas humanasinspiradas pela honra (�A honra fez morrer mais gente do que apeste�, escreve PITT-RIVERS, 1991 23 : 20), críticas aos conteúdosda honra, em geral ligados à virilidade e à força, advento de umasociedade individualista ou intimista (SENNET: 1979) onde as apa-rências têm menos valor do que a �autenticidade�, valor atribuído àvida e conseqüente temor do preço freqüentemente pago pela defe-sa da honra, a morte (RIBEIRO: 1993 24 ). Dentre as variadas razõespara o declínio da honra enquanto valor moral e baliza para condu-tas, uma delas deve aqui ser aprofundada: a crítica ao valor do juízode outrem...�

Entretanto, enquanto honra e valores morais se dissociam,e enquanto a palavra honra, nas conversas, é gradativamentesubstituída por orgulho, mantêm-se os vários �códigos de honra�do mundo, digamos, das empresas, do esporte, do cangaço, daconstrução civil, do escotismo, do quartel, das torcidas organizadas,da prisão, da máfia, etc., tão diferentes entre si quanto fortes edifundidos internamente aos grupos, mesmo se nunca nem mesmo

23 Em �La maladie de l�honneur�, texto constante de L�Honneur, Série Morales, n. 3,Éditions Autrement, Paris: 1991.

24 Renato Janine Ribeiro, no texto �A Glória�, em Os Sentidos da Paixão, Companhiadas Letras, São Paulo: 1993.

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uma linha foi dedicada à sua formalização. Interessantemente, osindivíduos submetem-se a esses códigos de honra por orgulho depertencer ao grupo em questão. A plasticidade do conceito honrarepete-se agora na delimitação semântica do par honra/orgulho:não há linha de fronteira, mas uma área difusa que caracterizaum ou outro conceito segundo as características socioculturais dogrupo consultado.

Continua, porém, verdadeiro o caráter de conduta balizada,socialmente estabelecida. Essas regras de conduta ficam maisevidentes em pequenas aldeias, em sociedades monolíticas dotipo das mediterrâneas, da obra citada acima, e é através delasque percebemos que faltar com essas regras é entregar-se à ver-gonha, e mais, faltar com as regras de um grupo monolítico é,por transitividade, conduzir o grupo todo à vergonha.

A honra, através de seu código de conduta, constitui umrefinado aparato simbólico para demarcar a superioridade sim-bólica de um determinado grupo sobre outro, de um determina-do indivíduo sobre outro. Falhar significa comprometer a ima-gem valorizada e expor uma outra que, sendo outra, é necessa-riamente inferior aos olhos do grupo. Daí à exclusão é um passo:como ameaça, é a forma de controle de possíveis transgressores;como punição, é o modo pelo qual o grupo se purga do ser noci-vo, do indivíduo que não é mais um dos seus, que, portanto, não é.

Contudo, o código de honra não é um conjunto de exigên-cias unilaterais. A honra coloca-se entre iguais, entre pares, e,como tal, faz corresponder direitos aos deveres. Se o sujeito agesegundo uma linha de conduta socialmente reconhecida comodigna de respeito, ou inspiradora de medo, como na honra cava-lheiresca, a contrapartida é que terá uma certa ascendência so-bre a conduta alheia que lhe concerne. Adquire � embora não demaneira estática, deve estar sempre alerta, pronto a defender-sede quaisquer ataques � uma espécie de passaporte para o mun-do público, um direito de interagir no mercado simbólico, exigin-

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do dos outros o respeito que sua conduta inspira. �Respeto a laregla, respeto al adversario, respeto de sí, son inseparables.�(BOURDIEU, 1968: 186).

Enquanto valor moral, a honra é uma forma de controlesocial entre semelhantes e, por isso, um sentimento que legitimarevolta contra injustiças, estas compreendidas como internas aogrupo dos �iguais�. Não cabem aqui reflexões sobre honra e justiçasocial � este tema, do ponto de vista de valores morais, vem depar com a idéia de dignidade ou de honra burguesa25, conceitosque não desenvolveremos, mas que repousam sobre a premissade que todos os homens, independentemente de cor, raça, riqueza,fé, são merecedores de respeito. Para a dignidade e para a honraburguesa, é a condição humana que fundamenta o respeito queo homem deve ao homem; para a honra em geral, é a condiçãode pertencer à cidade X, ou à nobreza Y, ou à religião W, ou àraça Z, aquilo que fundamenta o direito ao respeito.

�Entre a honra e o dinheiro, o segundo é o primeiro.� diz oditado que conhecemos como espanhol. A honra, conceito deespectro amplo, que assume desde a característica de valor moralsupremo, dotador da condição humana ao animal homem, podeser a mãe da lei do mais forte, a justificativa simbólica para adominação, para o aviltamento do adversário, enfim, para a con-clusão, em coro com ORWELL, do verso-chave de Revoluçãodos Bichos: �Todos os animais são iguais / mas alguns são maisiguais que outros.�

BOURDIEU (1968: 190) define o homem de honra �esen-cialmente por la fidelidad a sí mismo (constantia sibi, como decíanlos latinos), por la preocupación de ser digno de una cierta imagen

25 SCHOPENHAUER (1989/1943: 48): �L�honneur bourgeois possède la sphère la plusétendue: il consiste dans la présupposition que nous respecterons absolument les droitsde chacun et que, par conséquent, nous n�employerons jamais, à notre avantage, desmoyens injustes ou illicites. Il est la condition de la participation à tout commercepacifique avec les hommes.�

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ideal de sí mismo�. Essa leitura é válida para todo o espectrocoberto pelo conceito honra. É só questão de preencher a �ima-gem ideal� com um dado conteúdo. Por exemplo, o mesmo Bour-dieu aponta que honra pode não ter nada em comum com ho-nestidade: �... el robo no se considere condenable en sí mismo,sino sólo cuando se cometa en el seno del grupo. (...) Venderengañando en el peso, mentir sobre la cantidad, la calidad o lanaturaleza de las mercancías, hacer trampas en el juego, dar fal-sos testimonios, son otros tantos tipos de conducta a los que no seasignaba ningún deshonor, siempre que se trate com extranjeros;es decir, con gentes con las cuales no hay deberes de honor.�(idem: 207)

Seja qual for o sentido atribuído à palavra honra, sempre aele será subjacente a construção de uma imagem valorizada porum universo socioletal: humano versus inumano, no ápice dapirâmide moral (dignidade), pertencente ao círculo X versus não-pertencente ao mesmo círculo26 , no seu subsolo. Entre a imagemvalorizada e as outras imagens possíveis, sempre menosprezadas,estabelece-se um jogo em que as aparências � as imagens �determinam a essência: o sujeito é o que sua imagem o faz parecer.Nesse jogo entre ser e parecer, entre essência e aparência, oscódigos de honra são complexos aparatos simbólicos que dotamo sujeito da competência necessária para realizar um programade construção e/ou manutenção de uma imagem valorizada pelogrupo contemplado. É claro que essa imagem não é estática, dada,imutável, mas resultado de um constante jogo de tensões e ajustesentre indivíduo e grupo. O indivíduo, obviamente, é o pólo fracodessa relação.

26 Em 1989, um desses círculos, na Cidade do México, há pouco havia sido aberto aoutros que não espanhóis da mais �pura estirpe� e descendentes. Os critérios para aadmissão e manutenção de um membro em seu quadro eram tão rígidos que, durantesua explicação, foi sugerido que o clube abrira seu quadro por necessidade desobrevivência, caso contrário acabaria sem sequer um membro que correspondesseaos critérios de nobreza de sangue ali defendidos.

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Falhar nesse programa de liquidação da falta fiduciária enão assegurar para si uma imagem digna de respeito é instaurara equação dever-ser, querer-ser, não-poder-ser, saber-não-ser, odispositivo passional da primeira definição de vergonha. Alémdisso, é expor essa contradição, pois a honra é pública: �El hombrede honor es el que da la cara (qabel), el que hace frente a losdemás mirándoles a la cara� (BOURDIEU, 1968: 210). Portanto,pressupondo a possibilidade da vergonha da primeira macrode-finição � como um evento disfórico prospectivo �, assim como opudor e o brio, a honra culmina num programa de construçãosimbólica cuja finalidade é proteger o sujeito de possíveis vergo-nhas. Pensamento circular? Sim e não. Sim, porque a honra tema vergonha �a montante� e �a jusante�. Não, porque a honrafunciona como uma espécie de �vacina�: é uma sensibilidade (àvergonha) que contribui com a produção de uma defesa (da ver-gonha).

Concluímos, aqui, a discussão dos parassinônimos de ver-gonha que incluem programas de liquidação de falta, todos per-tencentes à segunda macrodefinição. A seguir, voltaremos à ver-gonha da posição intensa, desta vez para discutir o que acontececomo sua seqüência: até que ponto ela é superável, do que de-pende sua superação e como a literatura retrata essas questões.

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O que vem após a vergonha? Existe alguma forma possívelde se a superar?

A seqüência à sintaxe da vergonha � suas condições deinstauração, as transformações de estados experimentadas pelosujeito que caracterizam seu estado patêmico como o da paixãovergonha � não poderia deixar de ser uma tentativa de resposta aessa questão.

Na literatura psicológica, a referência mais freqüente aoestado posterior à vergonha concerne ao conceito de desvio: osujeito (psicológico) raramente supera a vergonha, mas a desvia.Fugiríamos ao escopo deste estudo se passássemos agora a ana-lisar a vergonha sob as luzes da psicologia; não temos a intençãode, nem a competência para enveredar por seus caminhos ou osda psicanálise, a fim de propor uma explicação para o tema empauta. Interessa-nos uma pequena incursão na área somente namedida em que nos auxilie a compreender, do ponto de vista dasemiótica, o que sucede à vergonha.

A literatura psicológica a que tivemos acesso levanta al-guns pontos extremamente interessantes e que apresentaremosbrevemente a seguir.

LEWIS (1992), a partir de prática psicoterápica e pesqui-sas sobre o tema, discute duas formas de se experienciar a vergo-nha: assumindo-a, ou a desviando. O autor dedica-se exclusiva-mente a casos de vergonha do tipo da primeira macrodefinição(vergonhas da posição intensa) e defende que a maneira de se aviver determina diferentes conseqüências.

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1 A VERGONHA ASSUMIDA

A vergonha assumida pode ser superada de três maneiras:através de esquecimento/negação, do humor, ou da confissão.Em todos os casos, na perspectiva psicológica, está em jogo umadivisão do sujeito entre aquele que julga (a si mesmo) negativa-mente e aquele que é julgado1.

1.1 ESQUECIMENTO OU NEGAÇÃO

Sobre o esquecimento, LEWIS (1992: 128) coloca:

�The use of forgetting, simply dismissing something from activeconsideration, is a way of separating the self from the feeling.�

Em termos da teoria semiótica, esquecer ou negar 2 a cau-sa da vergonha (esquecer ou negar para si mesmo a projeção deuma imagem inferior à �boa imagem�) correspondem ao não-saber-não-ser (esquecimento) e ao fazer-não-saber-não-ser (ne-gação). Como a vergonha é dependente do saber sobre a não-projeção da �boa imagem�, ela deixa de ter uma das condiçõesnecessárias à sua instauração.

1 Em diferentes textos da literatura psicológica, a idéia de desdobramento do sujeitoestá presente, mas com diferentes interpretações: ora se trata das instâncias do ego edo superego; ora do ego e do ideal de ego, e assim vêm à tona aspectos relacionadosao narcisismo; e ora, ainda, de separação entre o ego e seu ego ideal. Passando aolargo dessas discussões, sublinhamos apenas a interpretação constante da vergonhacomo um sentimento que desdobra ou separa o sujeito em duas instâncias psicológi-cas.

2 Pensamos aqui em situações em que o sujeito atribui a projeção de uma má imagema fatores externos: �Fui mal na prova porque faziam muito barulho na sala ao lado�;�Fui grosseiro com você porque você me provocou�, etc.

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1.2 HUMOR

No relativo ao humor, LEWIS (1992: 130) fala também emdistanciamento entre o sujeito e o sentimento:

�First, laughing at one�s self serves to distance one�s self from theemotional experience.�

E, mais adiante, completa:

�...the self metaphorically moves from the site of the shame to thesite of observing the shame with the other... Such a movement allowsfor identification with the observer rather than identification as theobserved, and has a very similar mechanism to the movement Freudreported as identification with the aggressor.� (idem: ibidem)

Novamente, questões psicológicas à parte, vemos o sujeitoenvergonhado desempenhando dois papéis: sujeito de estado �em conjunção imaginária com a �boa imagem� � e sujeito dofazer � projeção de imagem inferior à �boa imagem�. Além dedesempenhar ambos os papéis, ele se reconhece sincretizandopapéis conflitantes. A consciência de sua situação e de seu senti-mento � vergonha intensa, para nós � coloca-o na posição tensa,posição a partir da qual se torna possível investir num programade liquidação de falta. Como a falta fiduciária pressupõe a faltado objeto-valor (decepção pressupõe insatisfação), é na liquida-ção da falta fiduciária que o sujeito investe. O humor, nesse con-texto, é estratégico 3: sabendo que é o que sua imagem o faz pare-cer, o sujeito, ao rir de si mesmo � juntando-se aos outros que ovêem ou os convidando a rirem de seu infortúnio �, faz parecer

3 O humor, estratégia válida para diminuir ou superar a vergonha em diversos contextos,jamais é aceitável em casos de vergonha moral: ele passa a ser representativo decinismo.

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que é o que gostaria de ser, isto é, distancia-se do papel risível e,ao colocar-se na posição dos que riem, faz parecer que não estádisjunto da �boa imagem�.

1.3 CONFISSÃO

Finalmente, a confissão, terceira forma de se superar a ver-gonha.

A confissão é mais um tipo de programa de liquidação dafalta4, realizado através de um desdobramento do sujeito: ao ad-mitir ter errado, �the person is able to move from the site of theobserved to the site of the observer� (LEWIS, 1992: 132). Essapassagem para o terreno do espectador 5 pressupõe, evidente-mente, a consciência sobre o sentimento: procura confessar-sequem sente vergonha e quer �limpar-se� da mácula, quer serperdoado ou reconfortado, em outras palavras, quer ser aceito.

Prática corrente em certas religiões, a confissão não se res-tringe ao contexto religioso, mas invade o domínio laico. É ape-nas exigido que o confessor eleito seja alguém legítimo para per-doar, ou, ao menos, ponderar com o sujeito e oferecer-lhe algumtipo de conforto psíquico � complacência, por exemplo, uma vezque o objetivo do envergonhado é tentar, através de sua confis-são, ser aceito. O confessando exerce um fazer caracterizado porum auto-rebaixamento: assume e condena seu erro, apresentan-do a outrem seu juízo negativo a respeito de si próprio (ver rebai-xamento de si, cap. 2). Porém, o caráter polêmico da confissão

4 Na superação da vergonha, o humor e a confissão são incompatíveis: faltas �tratadas�através do humor não o são através da confissão, e vice-versa.

5 Preferimos o termo espectador a observador, por entendermos que o �fazer escópico�do espectador é parte integrante da configuração da vergonha; ao abdicarmos dotermo �observador�, que nos remete ao aspecto, evitamos uma possível confusãoentre os níveis narrativo e discursivo.

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reside no fato de que o auto-rebaixamento estratégico subsumeum ato de autovalorização: aquele que (se) julga se coloca naposição superior de quem está em conjunção com determinadosvalores e realiza sua superioridade através da condenação da-quele que é julgado por não estar em conjunção com esses mes-mos valores. Em outras palavras, o sujeito, novamente, desem-penha dois papéis: o confessando mostra-se (faz parecer-se) me-lhor do que o confessado, responsável pela transgressão que le-vou (à vergonha e) à própria confissão.

Por isso, dissemos, anteriormente, que a confissão é umprograma de liquidação de falta. Assim como no caso da curapelo humor, a superação da vergonha pela confissão significa orestabelecimento da confiança em si mesmo, através do restabe-lecimento da própria aceitabilidade. Em ambos os casos, o sujei-to afasta-se da imagem indesejável e aproxima-se da imagemalmejada: só é capaz de rir de si quem não se acha ridículo; só sepode condenar quem se considera, no mínimo, bom o suficientepara exercer essa condenação. Se o sujeito envergonhado sincre-tiza dois papéis conflitantes, com o emprego do humor ou daconfissão (opção regida pelo tipo de falta cometida), ele investena dissociação desses dois papéis e na reiteração da �boa ima-gem� como projeção de seu ser 6.

O sucesso de seu projeto dependerá de inúmeros fatoresque fogem ao seu controle, entre eles, na confissão, o poder quetem o outro de não conceder o perdão. Todavia, isso já é outrahistória e, como tal, dá início a outros programas narrativos quenão nos cabe analisar no âmbito deste estudo.

Concluindo a superação da vergonha assumida, três possi-bilidades foram tratadas, todas operantes sobre a consciência do

6 O fazer-parecer do humor e da confissão subseqüentes à vergonha são sinceros.Lembremos, apenas, que, para o sujeito envergonhado, ele é aquilo que parece ser;investir em parecer é lutar pelo direito ao reconhecimento de seu valor (não basta serhonesto...) enquanto sujeito.

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sentimento: o esquecimento, que tenta descaracterizar a falta fi-duciária ao tirá-la da consciência, e o humor e a confissão, pro-gramas de liquidação da falta fiduciária através do fazer-parecer,que procuram promover a dissociação dos papéis conflitantessincretizados na vergonha.

2 A VERGONHA NÃO-ASSUMIDA

Vejamos, em linhas muito gerais, o que dizem LEWIS (1992)e WURMSER (1981) sobre a vergonha não-assumida7. Em pri-meiro lugar, ela tende a ser desviada, isto é, reprimida e converti-da em outro sentimento, freqüentemente tristeza ou raiva. Paci-entes do sexo feminino tendem a empregar a tristeza como senti-mento substituto, e pacientes do sexo masculino, a raiva; a expo-sição prolongada e repetida à vergonha causaria a transforma-ção da tristeza em depressão e da raiva em fúria. A superação davergonha desviada, quando chega a ocorrer, é mais rara e difícilna medida em que o sujeito tem consciência apenas parcial ouenviesada de seu estado emocional.

Finalmente, os pacientes repetidamente submetidos à ver-gonha e incapazes de desviá-la (e de, portanto, dela se defen-der) seriam ou casos limítrofes, ou descritos como no quadro deMultiple Personality Disorders, entre os quais, esquizofrenia. Serrepetidamente envergonhado causaria até desintegração do self.

Contudo, nosso estudo debruça-se sobre a �vergonha depapel�, isto é, a vergonha em textos e não no íntimo do indiví-duo; desse modo, essas colocações interessam-nos por levanta-rem cinco questões:

a) sugerem que tristeza e raiva são, de algum modo, próximas à paixãovergonha; isso nos leva a pensar que deve haver, na sintaxe da

7 Termo empregado por Lewis apenas.

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vergonha, condições que permitam a instauração de tristeza ou rai-va como seus substitutos;

b) levantam questões socioculturais no tangente a reações tipicamentefemininas ou masculinas e, assim, provocam interesse em verificarse essas substituições � dadas por coordenadas ideológicas � sãoretratadas em textos literários;

c) colocam a questão da intensidade passional na transformação detristeza em depressão e de raiva em fúria, instigando-nos a procuraruma interpretação semiótica dessas transformações;

d) apontam novamente a relação entre a consciência sobre o senti-mento e sua eventual superação e reforçam nossa posição segundoa qual a consciência sobre a vergonha transforma o estado do sujei-to envergonhado da posição intensa para a posição tensa, conse-qüentemente, capacitando-o a iniciar um programa de liquidaçãode falta;

e) refletem, na eventual desintegração do self, a natureza conflitual einconciliável do dispositivo modal da vergonha, causa da fraturainterna do sujeito munido de duas concepções incompatíveis de seu

papel no mundo.

Vejamos, doravante, algumas possíveis respostas a essasquestões.

2.1 TRISTEZA E RAIVA

RELAÇÃO COM A VERGONHA

Barros (1986: 101) coloca:

�a insatisfação e/ou a decepção que não conduzem, de forma obri-gatória, à liquidação da falta e que se prolongam ou não, durativa-mente, definem três grupos de paixões, exemplificadas, respectiva-mente, por amargura ou mágoa, decepção ou desilusão e frustraçãoou tristeza.�

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Mais abaixo, na mesma página:

�a insatisfação e a decepção que geram um programa narrativo deliquidação de falta caracterizam, por exemplo, efeitos de cólera ourancor.�

As paixões do primeiro grupo, isto é, que não conduzem àliquidação da falta, são chamadas, �nos termos de Zilberberg,paixões de ausência� (Barros, 1985: 102), em contraponto comas do segundo grupo, paixões de falta.

Partindo da posição intensa do sujeito envergonhado, am-bos os estados são seqüências possíveis: ou o sujeito permanecenessa posição, ou atinge a situação de tensão; ou ele se entrega àresignação amarga, desiludida, triste, ou reage à insatisfação edecepção com raiva, ira, cólera.

As escolhas lexicais que trazemos de Lewis (1992) dirigemnosso olhar à fidúcia: a �tristeza� � apresentada por Barros (1985)como seqüência a uma insatisfação (relação objetal) � é colocadacomo substituta da vergonha, uma paixão intersubjetiva, portan-to, de relação objetal, mas, e sobretudo, fiduciária. Já a raiva (po-sição tensa), paixão de malevolência, é subseqüente a uma de-cepção e, como tal, �herdeira� de uma falta fiduciária.

Uma pergunta impõe-se: aceitando-se a escolha �tristeza�(sadness), o que acontece à dimensão fiduciária da vergonha nessatransformação? Esvai-se? E o que acontece a essa mesma dimen-são na transformação em raiva?

A resposta parece-nos recair sobre o percurso da confiançano simulacro interno do sujeito. No exame da sintaxe da vergo-nha, apontamos que a vergonha intensa (primeira macrodefini-ção, novamente tratada neste trecho) caracteriza-se pela suspen-são da confiança do sujeito de estado � que se projeta conjuntocom a �boa imagem� em seu simulacro existencial � no sujeito dofazer � incapaz de projetar a �boa imagem� �, sujeitos sincréticose conflitantes.

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Vejamos agora o que constitui a transformação da vergo-nha em tristeza ou raiva, do ponto de vista da colocação ou reti-rada de confiança do sujeito em si mesmo ou em outro.

CONDUTAS FEMININAS X MASCULINAS

Em primeiro lugar, a tristeza. A permanência do sujeito naposição intensa, na posição de suspensão da confiança, pareceacabar por �esvaziar� a dimensão fiduciária, deixando em pri-meiro plano a não-conjunção com o objeto-valor. Tudo parecese passar como se a decepção � relação com o sujeito do fazer �se esvaecesse e restasse quase que somente a relação com o ob-jeto-valor. A tristeza é decorrente de relação objetal, da não-con-junção com o objeto-valor; o pseudocontrato rompido, a crisefiduciária, esses sim seriam �desviados�. Ocupando sua consciên-cia com a insatisfação, o sujeito afasta-se da decepção; opta, as-sim, por dar primazia à relação objetal e distanciar-se da dimen-são intersubjetiva, como se houvera uma ausência de contrato.

VITALE (1994), em tese intitulada Vergonha: um estudoem três gerações, analisa os conteúdos causadores de vergonha,em homens e mulheres na faixa dos 60, 40 e 20 anos. Num dadomomento, tece a seguinte observação: �o sentimento de vergo-nha parece ser um bloqueador da ação, no universo feminino 8 �(p. 148). Ora, se a inação é conduta feminina usual quando setrata de vergonha (tanto para evitá-la, como em resposta a ela),desviando-se do fazer, diluindo-se a dimensão fiduciária, pode-sechegar a uma paixão mais suportável... e confessável: a tristeza!

A tristeza, como modo de se viver vergonha, é coerentecom um sujeito não emancipado, desligado de questões relativas

8 A autora faz essa afirmação a respeito do plano sexual. Pensamos poder generalizá-lacomo descritiva da postura tradicionalmente feminina perante à vergonha.

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à confiança e, portanto, à responsabilidade: inibindo a relevânciada ação, a não-conjunção com o objeto-valor toma ares de �leida natureza�. Assim como os objetos caem pela ação da gravida-de e nada se pode fazer quanto a isso, assim também o sujeito seencontra não-conjunto com o objeto-valor. E essa não-conjun-ção seria um fato que em nada seria mudado por se achar umresponsável (culpado?) por ele. Em nada muda a vergonha dapequena Emily, em David Copperfield, o conhecimento do nomedo homem que a seduz: é a não-conjunção com a �boa ima-gem�, sugerindo a aniquilação de seu ser, e a tristeza decorrenteque contam:

�...Oh, if you knew how my heart is torn. If even you, that I wrongedso much, that can never forgive me, could only know what I suffer! Iam too wicked to write about myself. Oh, take comfort in thinkingthat I am so bad (...) try to think as if I died when I was little, and wasburied somewhere.� (DICKENS, 1966/1850: 513-514) (grifo nosso)

Deixemos, porém, a tristeza e a inação de lado, por ummomento. Antes de discutirmos algumas cenas literárias de ver-gonha, vejamos como compreendemos o segundo tipo de des-vio: a raiva.

Quando o desvio se dá pela raiva, a suspensão da confian-ça, da situação intensa, dá lugar à negação da confiança, carac-terística da posição tensa. A raiva é uma paixão de malevolência,de querer-fazer-mal a alguém (BARROS: 1986). Esse alguém podeser o próprio sujeito � raiva de si mesmo �, ou, e a experiênciafreqüentemente aponta, outro. Se a estratégia é a de escolher umsentimento mais socialmente tolerável, mais de acordo com opapel do sujeito na cultura, a raiva dá chance não apenas aodesempenho do papel viril de extravasamento da agressividadecomo ao direcionamento dessa agressividade a outrem, notada-mente a alguém mais fraco, o que possibilita ao sujeito envergo-nhado-enraivecido compensar sua própria fraqueza. Em outras

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palavras, possibilita ao sujeito liquidar a falta fiduciária, restabe-lecer a confiança em si mesmo, nem que seja por uns poucosminutos 9 ...

Um outro aspecto complementar, relativo à ação, é apon-tado por VITALE (1994: 148): a vergonha parece ser �uma san-ção para a falta de ação, no universo masculino�. Ao contrário damulher, o homem sentiria vergonha por aquilo que não faz.

Nada mais coerente do que tentar, com uma ação, escaparde um sentimento doloroso provocado por uma inação, sobretu-do quando se trata de um sofrimento causado por uma quebrade contrato (mesmo imaginário) que caracteriza a má colocaçãoda confiança. Concentrando a atenção na decepção (que, lem-bramos, pressupõe a insatisfação), o sujeito �traído� � em seusimulacro interno � substitui a relação predominantemente con-tratual por outra, predominantemente polêmica. Daí a viver umapaixão de malevolência é apenas um passo: basta ter consciênciade que o contrato presumido não existia, ou não foi cumprido,basta passar da suspensão para a negação da confiança.

Concentrar a atenção no não-cumprimento de um contra-to traz à tona a questão da responsabilidade. Ora, de quem é aresponsabilidade no caso de um contrato imaginário não cum-prido?

Vejamos, primeiro, um exemplo de desvio da vergonha porraiva que trazemos ainda de LEWIS (1992: 150):

�Recently, I was talking to a couple. The wife related an experiencethat had just occurred while they were driving to my office. Thehusband failed to stop for a traffic light as the yellow turned to red.This error was compounded by the fact that a policeman saw him gothrough the light. He was stopped by the officer, who lectured him

9 Essa, aliás, é a interpretação mais corrente para casos de maus-tratos contra crianças:a pessoa humilhada, esmagada profissionalmente que, em casa, desconta suafrustração e impotência sobre os que dela dependem.

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about his failure to stop in time. He, in his wife�s terms, was humiliatedby the policeman�s attitude and by the fact that he was given a ticket.After the policeman left, his wife reported that he turned toward her,red-faced, and said angrily, �Why didn�t you warn me there was apoliceman?��

Arriscamos a seguinte resposta (para o caso da vergonhadesviada em raiva): assumindo que o contrato não-cumprido sóexistia como parte de seu simulacro, provavelmente o sujeitoaceitará a responsabilidade pela má colocação da confiança (emsi!) e terá raiva de si mesmo; se o sujeito não reconhece que ocontrato previsto era imaginário, tenderá a atribuir a outro, ou afatores externos, a causa de seu fracasso. No exemplo acima, omarido acusa a esposa por sua punição � ela não o avisou de quehavia um guarda. Censurando-a, a falta fiduciária fica recaracte-rizada: sua esposa devia tê-lo avisado e não o fez. Esquece-se avergonha e concentra-se a atenção na atribuição de responsabili-dade pelo evento, ou se acha um bode expiatório.

A seguir, vejamos algumas cenas literárias de vergonha pro-tagonizadas por personagens femininas, em primeiro lugar, emasculinas, em seguida, a fim de verificar se e até que ponto osdesvios em tristeza e raiva e a ênfase na inação ou ação, comoseqüência à vergonha, se verificam.

PERSONAGENS FEMININAS X MASCULINAS

Primeiramente, personagens femininas.

a) SofiaEm Os Desastres de Sofia (LISPECTOR, 1973: 83-85), a

menina, profundamente envergonhada por receber um elogio quejulga não merecer, acreditando ter enganado seu professor, che-

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ga a considerar dizer-lhe a verdade: �Eu bem quis lhe avisarque não se acha tesouro à toa. Mas, olhando-o, desanimei: fal-tava-me a coragem de desiludi-lo.�(grifo nosso). Mais adiante,ao emergir da confusão mental em que a vergonha a colocou,tentando entender o que acontecera, bruscamente interrompesuas reflexões:

�...E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suporteium instante mais � sem ter pegado o caderno, corri para o parque, amão na boca como se tivessem me quebrado os dentes. Com a mãona boca, horrorizada, eu corria, corria para nunca parar, a preceprofunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que nãopede mais � eu corria, eu corria muito espantada.� (grifos nossos)

Sofia primeiro perde �a coragem� de esclarecer a situação� decorrência direta da suspensão da confiança em si e no outro�; em seguida, escolhe a fuga e uma prece �que não pede mais�,como respostas à vergonha. Três decisões de bloquear a ação:perda de coragem, fuga, resignação. Tristeza também?

O texto intrincado de Lispector, pleno de complexas refle-xões cognitivo-afetivas, não nos permite afirmar que Sofia desviesua vergonha em tristeza ou raiva. Pelo contrário, apesar de men-cionar sua desilusão, como seqüência à vergonha, a menina viveum turbilhão afetivo em que não se pode identificar um senti-mento predominante... até que, cansada demais para ainda cor-rer, começa a parar:

�Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que umadoçura toda estranha fatigava meu coração.� (p. 86)

b) Kironmoyee DattaUma outra figura feminina a viver vergonha, e neste caso

uma vergonha prolongada, profunda e repetida, é Kironmoyee,mãe da família hindu Datta, do romance Lajja (NASREEN: 1994).

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Num texto de características mais políticas que literárias, Kiron-moyee, após sofrer, com sua família, anos de discriminação daparte de muçulmanos do Bangladesh e, nos últimos dias, inúme-ras atrocidades, culminando no rapto, estupro e assassinato desua filha por um grupo de jovens, vê-se com o marido parcial-mente paralisado e com o filho entregue à indolência e à bebida.Profundamente envergonhada pela violência sofrida e pela im-potência dos homens de sua casa (não faz parte do papelsociocultural feminino hindu agir em nome da família, a reaçãoclaramente caberia ao filho, no caso de o pai ser velho e se en-contrar doente, mas ele se limita a embriagar-se):

�Ces derniers jours, Kironmoyee s�est montrée de plus en plusapathique. Des cernes se dessinent sous ses yeux, elle a les traitstirés, elle semble garder le silence et refuser tout sourire.� (p. 246)

O narrador tece a seguinte consideração a seu respeito:

�N�a-t-elle donc rien à dire sur ce mari malade, sur ce fils qui n�estprésent que physiquement, ou sur sa fille, perdue à jamais? A-t-elleun coeur de pierre pour témoigner de tant d�indifférence? N�y a-t-ilaucune révolte en elle? Comme son comportement est étrange! Ellene réagit pas, et poursuit sa routine implacablement sans laissertransparaître le moindre sentiment: on dirait un cadavre ambulant.�(p. 246)

A vergonha vivida por Kironmoyee impõe-lhe o silêncio ea inação. Sem lugar nem mesmo para um germe de revolta, Ki-ronmoyee abandona-se à tristeza, até atingir a depressão.

c) Lisa (I)E como reage Lisa, a prostituta de Memórias do Subterrâ-

neo (DOSTOIÉVSKI: 1963/1864), ao ser humilhada pelo prota-gonista da história?

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Inicialmente, surpreendida pelas cruéis palavras de seu pre-tenso salvador, com confusão e pânico, como nos mostra o nar-rador:

�Eu sabia que a moça ficaria desorientada e não compreenderia ospormenores. Sabia também que entendia perfeitamente o fundo daquestão. E assim aconteceu. Pôs-se extremamente pálida, gaguejoualgumas palavras, os seus lábios franziram-se numa careta dolorosae, como aturdida por uma pancada na cabeça, desfaleceu sôbre umacadeira. E foi nessa atitude que continuou a escutar-me, a bôca aberta,os olhos exorbitados e tremendo tôda num terror atroz. O cinismo, ocinismo de minhas palavras assustava-a.� (p. 742)

Mais adiante, após ceder ao homem, percebe que seu �apai-xonado arrebatamento fôra pura vingança, uma humilhação amais para ela� (p. 746); Lisa fecha-se em si mesma:

�Estava sentada no chão, a cabeça reclinada contra a cama, e, pro-vavelmente, chorava. Não dizia palavra...� (p. 745)

A evolução da cena é assim descrita pelo narrador dasMemórias:

�Decorreram alguns segundos e ela continuava sem levantar-se, comose afundada no esquecimento. Cometi a indiscrição de bater umaspancadinhas no biombo, a chamá-la... Ela estremeceu, levantou-see pôs-se a procurar o chapéu e a peliça... Passados dois minutos,saiu detrás do biombo, devagar, e olhou-me com uns olhos melan-cólicos. Pus-me a rir, trocista; mas fazia-o forçadamente, por decôro,e evitava o seu olhar.� Adeus � disse ela encaminhando-se para a porta.� (p. 746)

Lisa também reage com tristeza, ensimesmando-se e se re-tirando em silêncio. Nem uma queixa, nem uma palavra, alémde adeus, em todo o capítulo. Apenas �uns olhos melancólicos�acusam seu sentir.

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d) Lisa (II)Já a menina Lisa, de O Eterno Marido (DOSTOIÉVSKI:

1963/1870), ao perceber-se abandonada pelo pai, a caminho dacasa de pessoas estranhas que informalmente a adotariam, assu-me um olhar sombrio, cala-se e conserva-se pensativa:

�Parecia, entretanto, sofrer menos à idéia de que a conduziam à casade desconhecidos, a uma casa onde nunca estivera. O que a obceca-va era outra coisa e Vielthtcháninov adivinhava-o: tinha vergonhadele, tinha vergonha de que seu pai a tivesse abandonado tão facil-mente a um outro, que a tivesse lançado às mãos de outrem.� (p. 716)

Recebida pela família com amor e carinho, tratada comouma irmã pelas crianças da casa, Lisa, no entanto, não conseguesuperar a vergonha de ter sido abandonada pelo pai e adoece�dos nervos�. Sem visitas de seu pai, o estado da menina pioragradativamente até a morte:

�Fora de seu orgulho humilhado que morrera aquele coraçãozinhode criança, ou então os três meses de sofrimento que seu pai lheinfligira, o amor mudado subitamente em ódio, as palavras de des-prezo, o desdém pelas suas lágrimas e, finalmente, seu abandonoem mãos estranhas.� (p. 741)

Lisa, a menina, entrega-se a um profundo sofrimento quese transforma em doença envenenando-a até a morte. Introspeti-va, mesmo sendo tratada com carinho pelos donos da casa, recu-sa-se a estabelecer um verdadeiro contato com eles: está ali acontragosto, foge de qualquer comunicação e lá permanece comoum corpo inerte... até que abandona a própria vida.

*

Além de Emily, mais quatro figuras femininas: duas crian-ças e duas mulheres. Todas as cinco optam, como resposta à ver-

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gonha, pela inação e por um tipo de fuga, seja no ensimesma-mento e no silêncio (Kironmoyee), seja também literalmente par-tindo (Emily, Sofia e Lisa, a prostituta), seja até na morte (Lisa, amenina). Quatro delas vivem a vergonha como uma tristeza pro-funda � Emily, Kironmoyee, e as duas Lisas �; Kironmoyee e Lisa(a menina), como uma depressão. Sofia foge à regra, vive-a comouma �espécie de doçura�.

Agora, personagens masculinas.

a) FabianoFabiano, de Vidas Secas (GRACILIANO RAMOS: s.d.), é

um homem rude que passa por uma desagradável aventura (�OSoldado Amarelo10 �): cedendo a uma provocação, reage xingan-do a mãe do outro e, por esse outro se tratar de uma autoridade,acaba preso e surrado. Não é, todavia, o fato de ter sido vítimade uma arbitrariedade que o envergonha, mas de o operador daarbitrariedade ter sido um soldado magrinho, �amarelo�, que nãomerece ser considerado como homem:

�A idéia de ter sido insultado, preso, moído por uma criatura mofinaera insuportável. Mirava-se naquela covardia, via-se mais lastimosoe miserável que o outro.� (p. 147)

�Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque,estava certo. Enfim apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano atésentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo...� (p. 149)

Dividido entre sua relação com uma autoridade, mediadapelo medo, e com um arremedo de homem, causadora de vergo-nha, Fabiano oscila entre a submissão e o desejo de vingança:

10 Para uma análise do medo e da vergonha nesse texto, ver FIORIN (1992).

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�Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isso lhe pareceutão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma pessoatremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? não pisava ospés dos matutos, na feira? não botava gente na cadeia? Sem-vergo-nha, mofino.Irritou-se. Por que será que aquele safado batia os dentes como umcatitu? Não via ele que era incapaz de vingar-se? Não via? Fechou acara. A idéia do perigo ia sumindo. Que perigo? Contra aquilo nemprecisava facão, bastavam as unhas.� (p. 145)

�Durante um minuto a cólera que sentia por se considerar impoten-te foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo.�(p. 146)

Fabiano, por um lado, teme o homem-autoridade e refreiaseu desejo de vingança; por outro, envergonha-se de sua inaçãofrente àquele que considera um homúnculo, enraivece-se (contrao outro e contra si, sua impotência) e realimenta seu desejo devingança. Alterna as duas posições até que encontra, na inferiori-dade física do outro, um motivo para não agir sem, portanto,sentir-se desonrado:

�Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria irpara baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada quevadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia apena inutilizar-se. Guardava sua força.� (p. 152)

Assim, investindo em desprezo pelo outro, Fabiano deixafinalmente o simbólico (a farda, autoridade) prevalecer sobre onatural (o homúnculo, recaracterizado como um �doente quebambeava�, p. 152) � se eles não podem competir no camposimbólico, tampouco o podem no campo natural, já que o outronão passa de um doente que bambeia � e sentencia sua submis-são, sem desonra:

�� Governo é governo.

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Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldadoamarelo� (p. 152)

Dois percursos narrativos entrecruzam-se ao longo de todoo capítulo, o da relação homem-autoridade e o da relação ho-mem-homem. Só existe vergonha quando se trata da segundarelação, quando Fabiano pensa poder �competir� com seu inimi-go. Mas tão inferior é esse inimigo e, por coincidência, tão supe-rior no outro nível que Fabiano, mesmo enraivecido e desejandovingar-se, não o consegue. Sua maneira de escapar do círculovergonha � raiva � desejo de vingança � impotência � vergonhaé provando a si mesmo que não há desonra em abrir mão davingança, pois o outro não �compete� com ele enquanto homem,é apenas um doente que bambeia...

b) Adam Ivânitch SchultzNo início de Humilhados e Ofendidos, DOSTOIÉVSKI

(1963/1861) retrata um duelo de olhares que citamos na primei-ra parte deste estudo. Voltamos àquele trecho expandido, agora,a fim de apontar ao leitor a reação de Adam Ivânitch Schultz, oalemão, ao perceber-se encarado pelo velho:

�...Lia com deleite o Dorfbardier e saboreava o seu ponche, quandode repente lhe aconteceu levantar a cabeça e encontrar o olhar pa-rado do ancião fixo na sua pessoa. Aquilo aborreceu-o. Adam Ivânitchera muito rabugento e suscetível como o são em geral todos os ale-mães �importantes�. Pareceu-lhe estranho e ofensivo que se puses-sem a examiná-lo com aquela insistência descortês. Com mal conti-do descontentamento afastou a vista do pouco delicado freguês, res-mungou qualquer coisa consigo próprio e, em silêncio, tornou a apli-car-se à leitura do jornal. Entretanto não pôde conter-se e, passadosdois minutos, observou o velho furtivamente por cima do jornal: omesmo olhar obstinado, o mesmo exame imbecil. Ainda por aquelavez Adam Ivânitch se calou. Mas, ao repetir-se aquilo pela terceiravez, irritou-se e julgou do seu dever sair em defesa da honra e não

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deixar mal vista diante de um público notável a nobre cidade deRiga, da qual, pelo visto, se julgava representante. Com um gesto deenfado pôs o jornal na mesa, deu sôbre ela uma pancada enérgicacom a vareta a que estava seguro o periódico e, arrebatado por umsentimento de dignidade pessoal, todo vermelho do efeito do ponchee da indignação, pousou por sua vez os olhinhos injetados de sangueno velho maçador. Dir-se-ia que ambos, o alemão e seu adversário,se esforçavam por se dominarem com o poder magnético dos olha-res e esperavam, a ver qual dos dois se rendia primeiro, baixando avista. Aquela pancada com a vareta e a extravagante atitude de AdamIvânitch atraíram para ele a atenção dos presentes. Todos, a seguir,deixaram suas ocupações e, com grave e tranqüila curiosidade, pu-seram-se a contemplar os dois contendores.(...) O velho, sem se pre-ocupar com coisa alguma, continuava a olhar o furioso Senhor Schultz(...) Por fim a paciência de Adam Ivânitch esgotou-se e explodiu.� Por que me olha o senhor com tal fixidez? � interpelou em alemão,com voz cortante e estentórea e aspecto ameaçador. Mas o adversá-rio persistiu no silêncio, como se nada tivesse percebido nem ouvi-do. Adam Ivânitch interpelou-o então em russo:� Pergunto-lhe por que me olha com tanta insistência � exclamoucom redobrada fúria. � Sou conhecido na côrte e o senhor não! �acrescentou saltando da cadeira.� (p. 25)

Adam Ivânitch Schultz sente-se vexado pela insistência doolhar do outro e altera-se progressivamente ao longo da cena:seu estado passional �progride� de aborrecimento a um �malcontido descontentamento�, depois irritação, indignação e, final-mente, fúria. O colorido do relato é dado pelo contraste entre ouniverso essencialmente simbólico da honra e o descontrole gra-dual das reações físicas de Schultz: considera-se ofendido, evocao dever de defender a imagem de sua cidade � ele é �importan-te� �, chama a atenção dos presentes (resposta pública), enfrentao olhar do velho, sem sucesso, encara-o fixamente, também semsucesso, explode numa pergunta-ultimato com �voz cortante eestentórea�, vê-se obrigado a se repetir, redobra a fúria, salta dacadeira.

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Por pouco o alemão não investe fisicamente contra o velhoque, nesse tempo todo, mantém fixo o olhar e parece não perce-ber o que se passa. Adam Ivânitch Schultz ofende-se por se con-siderar examinado. Assim como quem examina está na posiçãoprivilegiada de julgar, quem é examinado encontra-se na posiçãosubalterna de quem é julgado. Ora, o �Senhor Schultz�, sendoum homem �importante�, não pode ocupar posição subalterna;tenta, pois, mostrar ao velho, através de seus atos (resmungar,bater com a vareta na mesa, encarar, dirigir-lhe a palavra em vozalta, saltar da cadeira), que lhe é superior, que tem mais força oupoder e deve, portanto, vencer o embate. Como todas as tentati-vas fracassam, resta somente declarar-se superior ao outro: �Souconhecido na corte e o senhor não!� Ora, a necessidade de sedeclarar superior denota a dificuldade que encontra para ser re-conhecido como tal e mostra, assim, sua fraqueza.

Forte como acredita ser, ou fraco como se caracteriza, o�pequeno alemão�, enraivecido, deve agir para defender suahonra. Caso contrário, permanecerá em vergonha.

c) narrador de Memórias do SubterrâneoDOSTOIÉVSKI (1963/1864) retrata, nesse texto, a humi-

lhação, tanto aquela sofrida quanto a impingida a outros. AsMemórias são tão repletas de reflexões sobre a vergonha que foigrande a dificuldade em selecionar trechos mais significativos.Optamos, primeiramente, por situar o leitor.

O protagonista das Memórias é um homem de seus qua-renta anos, doente, de �consciência hipertrofiada� (p. 670). Ohomem de consciência hipertrofiada é uma espécie de rato: detanto pensar, torna-se incapaz de agir, �...com a reflexão desapa-rece o motivo, confundem-se as razões, não há processo de atinarcom o culpado, a ofensa deixa de sê-lo para converter-se em fata-lidade, em qualquer coisa como uma dor de dentes, da qual nin-guém tem culpa e, por conseguinte, só nos fica esse último recur-

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so: arremeter contra a parede. Por isso pomos de lado a vingançapor não termos podido inventar para ela uma razão de peso.� (p.674) Tendo passado os quarenta e poucos anos de sua vida no�subterrâneo� � que não é um espaço físico, mas uma referênciaa sua personalidade, a suas características e motivos mantidosescondidos de quaisquer olhares �, na inação, submetendo-se ahumilhações e baixezas como a leis da Natureza ou da Aritméti-ca, como �dois e dois são quatro� (p. 671), esse homem deciderealizar sua vingança: descrever toda sua maldade, explicar suaspiores ações, em busca de alívio. Mas não se trata de um alíviomoral, de um homem que almeja a recuperação. Pelo contrário,seu alívio é realizável na medida em que se �enlameia� em suaslembranças e atinge, pelo menos no papel, o prazer da vingança.

Um dos episódios das Memórias relata um jantar de despe-dida oferecido a um antigo colega de escola, então oficial, queestava de partida. Mesmo não pertencendo ao grupo de amigosdo oficial e nem nutrindo por eles qualquer simpatia, o que erarecíproco, o homem insiste em participar da homenagem, pordespeito, causando desagrado entre os homenageantes, mas lhestornando impossível impedirem-lhe a presença. Num dado mo-mento do jantar, abandonado num canto, faz a seguinte reflexão:

��Meu Deus! Será digna de mim essa gente? � pensava eu � Comofui desajeitado com êles! Consenti que Fierfítchkin tomasse demasi-adas liberdades. Êsses imbecis julgam ter-me dado uma grande hon-ra, concedendo-me lugar à sua mesa e não compreendem que soueu quem o faz...� �Como está magro! Mas que roupa ele traz!� Oh,malditas calças! Zvierkov reparou logo na mancha do joelho... Mas,no fim das contas, para que suportar tantos vexames? Se me tivesselevantado da mesa, pegado no chapéu e saído sem me despedir...Fazer-lhes notar assim o meu desprêzo! Se quiserem, amanhã bato-me com todos êles. Grandes covardes! Mas porque hei de desprezaros meus sete rublos? Pode ser que julgassem que... O diabo que oscarregue! O que interessa menos ainda são os sete rublos. Vou-meembora já...�

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Escusado dizer que me deixei ficar.� (p. 712)

Nessa luta interior entre o desejo de humilhar e o sentir-sehumilhado, encetava a todo momento uma vingança abortada:

��Chegou o momento de atirar-lhe uma garrafa à cabeça!�, penseieu e, pegando numa garrafa... enchi outra vez o copo.� (p. 714)

E, no final da noite, num ímpeto de arrependimento, ten-tou uma reaproximação rechaçada:

�� Desculpe, Zvierkov! � disse-lhe eu sem rodeios e em tom resolu-to. � E você também, Fierfítchkin, e todos, todos aquêles a quemofendi.� Ah, ah! Isso é para evitar o duelo � insinuou venenosamente Fier-fítchkin.(...)� Só quero ser seu amigo, Zvierkov; sei que o ofendi, mas...� Ofender-me? Você?! A mim?! Fique sabendo, cavalheiro, que nun-ca nem em ocasião alguma pode ofender-me.� (p. 715-716)

E, adiante, depois de mais uma humilhação, toma um tre-nó e segue os outros até uma casa de prostituição, vivendo men-talmente sua vingança:

�Assim que chegar, aplico-lhe uma bofetada 11 . Não seria melhordizer antes algumas palavras à guisa de preâmbulo? Não, Aproxi-mo-me dêle e prego-lhe dois estalos, sem palavreado. Devem estartodos reunidos na saleta, e êle ao lado de Olímpia, no canapé �malvada Olímpia! Um dia fêz troça da minha cara e não me deuimportância. Hei de puxar-lhe os cabelos, e a Zvierkov, as orelhas!Não; o melhor é pegar-lhe numa orelha e puxá-lo assim por tôda asala. Talvez brigue comigo e me expulse. É quase certo. Tanto pior

11 Refere-se a Zvierkov.

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para êle! Sempre fui eu quem deu a primeira bofetada, quem teve ainiciativa e, segundo as leis da honra, isso é o principal (...)� (p. 717)

Imagina a reação dos outros, a obrigação de Zvierkov ba-ter-se em duelo, imagina onde e como achar as pistolas, os padri-nhos, etc., até que se pergunta:

�Não seria melhor... não seria preferível ir já para a cama?� (p. 718)

Esse é o homem e essa é a disposição de espírito em que seencontra quando tem o primeiro contato com Lisa, a prostituta,do exemplo feminino acima. Do auge de sua fraqueza de caráter,abusa de sua eloqüência para tocar os sentimentos da mulher e,por vingança, fazê-la acreditar que teria sua ajuda se quisessedeixar o prostíbulo. É sobre ela e somente sobre ela que leva acabo sua vingança, alguns dias mais tarde, ao ser por ela procu-rado para ajudá-la a mudar de vida.

Flagrado por Lisa quando brigava com seu criado, o ho-mem fica �acabrunhado em frente dela, vexado, morto de vergo-nha� (p.739). Confunde-se entre justificativas, explicações sobresua pobreza material, explosões de ira contra o criado ausente:

�� Mato-o! � exclamei de repente, descarregando um sôco tão fortesôbre a mesa, que a tinta saltou do tinteiro.� (p. 740)

Em seguida, compreendendo �o ridículo de semelhantecólera�, chora, em crise. �E como me envergonhavam aquelaslágrimas! Não podia dominar-me.� (p. 741).

Recuperado de sua crise-comédia, o homem passa a aber-tamente agredir Lisa:

�Para que vieste? Responde! Responde! � gritava eu, fora de mim.(...) Sim, trocei de ti! Fôra insultado a uma mesa por aquêles que láestiveram antes de mim. Fui a essa casa, para ver se punha as mãos

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sôbre o militar; não consegui fazer a minha vontade, porque êlesaíra. Tinha de vingar-me à custa de alguém, tomar uma desforrafôsse com quem fôsse. Encontrei-te e descarreguei minha cólera sôbreti e trocei de ti à grande. Humilharam-me e quis também humilharalguém; trataram-me como um farrapo e quis mostrar o meu valor......O que eu precisava naquele momento era de demonstrar o meupoder. Uma comédia! Precisava de arrancar-te lágrimas, de humi-lhar-te, de conseguir que tivesses uma crise de nervos: era disso queeu precisava.� (p. 742)

�...Ainda não compreendes que eu nunca poderei perdoar-te de te-res-me apanhado com êste roupão, no momento em que, como umcão, me atirava em perseguição de Apolon? O teu salvador, o teuherói, lançando-se sôbre o seu criado, como um cão lazarento,tinhoso, e, para maior irrisão, sem conseguir assustá-lo! Tambémnunca te perdoarei as minhas lágrimas de há pouco, que não pudeesconder na tua presença, como se fôsse uma mulherzinha envergo-nhada! E também não te perdoarei isso que agora te confesso! Sim,tu e só tu, hás de responder por tudo isto ...� (p. 744)

Os trechos citados falam por si só: a vergonha transforma-da em malevolência, a malevolência cristalizada em raiva, a raivagerminando o desejo de vingança, a vingança exercida contra ofraco... até mesmo a responsabilidade sobre a vingança é transfe-rida para o outro. E o protagonista das Memórias, em seu simula-cro, faz o quê? Defende-se, atacando. Até de sua vítima ele sedefende atacando: é dela a culpa de ter-se deixado humilhar e deter-lhe causado vergonha. Por isso ele não a perdoa (em seu si-mulacro ele estaria em posição de perdoá-la). Por isso ele ainda adomina e avassala, submetendo-a a mais uma humilhação e de-pois a mandando embora, com um pagamento de cinco rublospor seus serviços.

Sua vergonha enviesada, desviada em raiva, dirigida con-tra o fraco � contra quem pode competir � não chega a ser supe-rada. Alterando estados de tristeza e ódio, o homem oscila entreas posições de fraco e forte, sem nunca deixar de acreditar que,

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�como dois e dois são quatro�, ele é um homem-rato para quemnão há saída. A chance de haver uma saída estaria em ser umhomem de ação, mas...:

�Já disse e repito que as pessoas que saem do vulgar e todos oshomens de ação são precisamente assim porque são estúpidos e devistas curtas.� (p. 674)

Ele é inteligente demais, tem amor-próprio demais, paralutar contra sua natureza paradoxal, amada e odiada, e que, àscustas de tanto pensar, o impede de agir e se vingar de quemgostaria.

d) Suranjon DattaDo romance Lajja (NASREEN: 1994), Suranjon é filho de

Kironmoyee, mencionada, acima, entre as personagens femini-nas. Na rígida estrutura familiar retratada no romance, Suranjoné responsável por sua família, agora que seu pai é velho e doen-te, parcialmente paralisado. Inicialmente um idealista, por heran-ça intelectual do pai, Suranjon pouco a pouco abandona seusideais humanistas ao observar acirrarem-se os conflitos entremuçulmanos e hindus. Contrariamente às expectativas familia-res, ao invés de buscar um lugar seguro para os seus, passa osdias entre dormir, perambular e se embriagar. Numa aparenteapatia que mascara sua humilhação por sempre ter defendido oconvívio pacífico entre muçulmanos e hindus e se ver abandona-do por seus amigos muçulmanos, Suranjon rumina sua revolta epassa a propor-se idéias terroristas. Após o rapto e provável estu-pro de sua irmã por jovens muçulmanos, Suranjon, do auge desua desintegração moral, inicia a única e patética, mas não me-nos cruel, vingança de que é capaz: subjugar uma prostituta mu-çulmana � �il veut la violer afin de se venger de ce qu�on a fait àsa soeur� (p. 256). Sua profunda vergonha transformada em rai-

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va exala de cada palavra das considerações posteriores à execu-ção de seu plano:

�Il n�a pas prononcé son nom devant Shamima. Il aurait dû lui direqu�il s�appelait Suranjon Datta. Elle aurait su alors que l�homme quil�a mordue, labourée et blessée était un Hindou. Oui, les Hindousaussi savent violer. Et eux aussi ont des mains, des pieds, et des idéesplein la tête. Ils ont les dents pointues et les ongles acérés comme desgriffes...Que Shamima ait été une fille douce et docile, peut importe.Elle n�en était pas moins une Musulmane. Quel bonheur s�il pouvaitne serait-ce que gifler un Musulman!� (p. 258-259)

Suranjon é mais um exemplo de personagem que usa araiva como desvio da vergonha e, no ato da vingança, a fúria;sua vingança é uma busca de alívio. Novamente surgem ele-mentos que mostram a vingança contra alguém com quem osujeito operador pode �competir� � e de quem pode ganhar �,ou seja, um fraco, na escala de valores implícita. Na impossibi-lidade de vingar-se de quem provocou a humilhação, Suranjonprocura a figura relegada ao último plano da sociedade muçul-mana: não apenas uma mulher, mas uma prostituta. Mas, assimcomo a vingança do protagonista das Memórias acima não ofaz superar sua vergonha, a vingança de Suranjon, tambémexercida sobre uma prostituta, tampouco alivia o seu sentimen-to de vergonha.

e) RiobaldoComo reage Riobaldo (GUIMARÃES ROSA, 1983/1967)

ao perceber que está apaixonado por Diadorim?

�Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim� de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foide repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assom-bro, não achei ruim, não me reprovei � na hora.� (p. 206)

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Passa o tempo, mas amor de jagunço por jagunço não pas-sa impunemente...:

�O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim.Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente � �Diadorim, meuamor...� Como era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor:como se drede fosse para eu não ter vergonha maior, o pensamentodele que em mim escorreu figurava diferente, um Diadorim assimmeio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum,desmisturado de todos, de todas as outras pessoas � como quando achuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo temseus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçavacom meu corpo aquele Diadorim � que não era de verdade. Nãoera?� (p. 207)

Mesmo criando para si um Diadorim etéreo, desmateriali-zado, Riobaldo, inquieto com as próprias idéias, interrompe ofluxo de seu pensamento:

�Levantei, por uma precisão de certificar, de saber se era firme exato.Só o que a gente pode pensar em pé � isso é o que vale.� (p. 207-8)

��Se é o que é� � eu pensei � �eu estou meio perdido...� Acertei minhaidéia: eu não podia, por lei de rei, admitir o extrato daquilo. Ia, porpaz de honra e tenência, sacar esquecimento daquilo de mim. Se não,pudesse não, ah, mas então eu devia de quebrar o morro: acabarcomigo! � com uma bala no lado de minha cabeça, eu num átimopunha barra em tudo. Ou eu fugia � virava longe no mundo, pisavanos espaços, fazia todas as estradas. Rangi nisso � consolo que medeterminou. Ah, então eu estava meio salvo! Aperrei o nagã, preciseide dar um tiro � no mato � um tiraço que ribombou. � �Ao que foi?� �me gritaram pergunta, sempre riam do tiro tolo dado. -� Acho que ummacaquinho miúdo, que acho que errei...� � eu expendi.� (p. 208)

Inicialmente, Riobaldo vê seu amor por Diadorim com pra-zer: �O nome de Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em

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mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente -�Diadorim, meu amor...�� (p. 207). Esse evento eufórico, no en-tanto, vai-se transformando em disfórico, na medida em queRiobaldo dele se conscientiza. Para apaziguar a consciência, usados seguintes recursos:

Primeiro, cria um �outro� Diadorim, diferente, sem maté-ria. A estratégia, todavia, não resolve; mesmo assim, o sentimen-to lhe é inconcebível. Transformar o objeto-valor Diadorim-ho-mem em Diadorim-fantasma não torna seu sentimento menoscondenável.

Em seguida, verifica �se era firme exato� o seu pensamen-to; para sua decepção, mesmo em pé, sua idéia é a mesma: ele,jagunço Riobaldo, está apaixonado por um homem. Não cabe,no simulacro existencial de um jagunço, um amor homossexual;está, portanto, instaurado o conflito entre o papel de homemmacho e o amor que reconhece sentir por outro homem.

Ainda hesitando em reconhecer a verdade � ��Se é o queé� � eu pensei � �estou meio perdido...�� (p. 208), toma por deci-são �sacar esquecimento daquilo� (p. 208). Esquecer, vimos aci-ma, é uma forma de superação da vergonha: tenta-se resolver oconflito interno �apagando-se� da consciência sua causa. Aqui oconflito entre Riobaldo e seu sentir revela a suspensão da con-fiança do jagunço em si mesmo.

Suspeitando, porém, que pode não conseguir esquecê-lo,imagina resolver seu conflito interno através de autodestruição,pensa em �quebrar o morro: acabar comigo!� Dito de outro modo,se vir que não merece a própria confiança (passar da suspensãopara a negação da confiança), terá suficientemente raiva de si (�Ran-gi nisso�, p. 208) para se matar. Não podendo ser o que crê ser,não podendo ter a �boa imagem�, melhor é simplesmente não ser.A morte resolve o conflito, ao eliminar as partes conflitantes.

Ou ainda, alternativa de quem não se acredita disposto aosuicídio, resta a fuga. Diferente das personagens femininas, que

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fogem do opressor, a fuga vislumbrada por Riobaldo é ativa, éuma fuga para algo: virar o mundo, pisar nos espaços, fazer todasas estradas. É uma tentativa de, longe da tentação (Diadorim),recriar para si mesmo a imagem consistente de um �homem ma-cho�. Através desse tipo de fuga, Riobaldo arranca-se da vergo-nha, oferecendo-se uma nova vida em que o conflito não se colo-ca.

De qualquer modo, enquanto não resolve seu conflito esupera a vergonha, dá um tiro a esmo, no mato, sujeitando-se aoriso dos outros.

*

Fabiano debate-se entre vingar-se ou não e só sossega quan-do encontra uma justificativa para não fazê-lo; Adam IvânitchSchultz encara o velho; o protagonista das Memórias vinga-se nafigura da prostituta Lisa; Suranjon também se vinga sobre umaprostituta, Shamima; e Riobaldo coloca-se três alternativas: es-quecimento (estratégia de superação de vergonha assumida),suicídio, ou fuga � acaba dando um tiro no mato.

Todas as personagens masculinas funcionam no registro daação e têm como forma privilegiada a vingança. Até Riobaldopensa em �vingar-se� de si mesmo com uma bala no lado dacabeça. No entanto, nos dois casos em que a vingança é levada acabo, o sujeito, com o avassalamento do outro, não supera suavergonha, apenas a alivia momentaneamente, até que a própriavingança se torna mais um motivo de vergonha (�Suranjon serecroqueville dans son lit maintenant qu�il reconnaît cette réalité.Il se sent submergé de honte�, p. 259). Todos também passam davergonha para a raiva, e é a raiva que os impulsiona a agir. Schultze Riobaldo investem em ação contra a instância provocadora devergonha, o protagonista das Memórias e Suranjon desviam aação sobre um terceiro.

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Um outro exemplo masculino de vergonha transformadaem raiva, porém sem a idéia de vingança, traz-nos Althusser (1992:52-53):

�Estávamos em Marseille, e eu ia para meus treze anos. Há algumassemanas observo com intensa satisfação que, à noite, prazeres pro-fundos e ardentes vêm de meu sexo, seguidos de uma agradáveltranqüilidade � e, de manhã, grandes manchas opacas em meu len-çol. (...) Ora, uma manhã, eis que chega minha mãe, grave e solene,e me diz: �Venha, meu filho.� Leva-me a meu quarto. Diante demim, levanta os lençóis de minha cama, mostra-me com o dedo,sem tocá-las, as grandes manchas opacas e endurecidas de meuslençóis, contempla-me um instante com um orgulho constrangidomesclado à convicção de que chegou o momento supremo, de queela deve estar à altura de seu dever, e me declara: �Agora, meu filho,você é um homem!�.Fiquei morto de vergonha e senti uma insustentável revolta em mim.Que minha mãe se permitisse bisbilhotar meus próprios lençóis,minha intimidade mais distante, o recanto íntimo de meu corpo nu(...). Não digo nem uma palavra, saio batendo a porta, perambulopelas ruas, desamparado e ruminando uma vergonha incomensu-rável.�

Mesmo numa cena de �vergonha masculina� em que osujeito assume uma posição de impotência, não se menciona vin-gança, tampouco tristeza ou depressão, mas revolta.

Concluindo, os exemplos femininos e masculinos de ver-gonha apresentam predominância das seguintes particularidades:

a) personagens femininas � vergonha vivida como tristeza, com possí-vel progressão para depressão; ênfase na relação objetal (não-con-junção com objeto-valor) e decorrente apagamento do contratoimaginário, com conseqüente ausência de atribuição de culpa ouresponsabilidade; ensimesmamento e/ou fuga do opressor;

b) personagens masculinas � vergonha vivida como raiva, com possí-vel progressão para fúria; ênfase na relação intersubjetiva e possível

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distorção do contrato imaginário, com conseqüente atribuição deculpa ou responsabilidade a outrem; revolta e/ou tentativa de vin-gança, fuga para outras paragens.

As características acima sugerem que as personagens femi-ninas tenderiam a um fechamento de seu universo, a uma retração,enquanto as masculinas, ao contrário, procurariam proporcionar-se uma abertura; o exemplo da fuga, quando existe, é ilustrativo:as primeiras fogem de (o opressor), os últimos fogem para (novasterras, estradas, ruas, etc.).

2.2 DA TRISTEZA À DEPRESSÃO, DA RAIVA À FÚRIA:DUAS PALAVRAS SOBRE A INTENSIDADE PASSIONAL

�Humiliate people for long enough and a wildness bursts out of them�RUSHDIE, 1983: 117)

As observações de LEWIS (1992) e WURMSER (1981), arespeito de a exposição prolongada e repetida à vergonha con-duzir à depressão ou fúria, encontram ressonância, inclusive notangente aos papéis feminino e masculino, em duas personagensfemininas e duas masculinas das citadas acima: Kironmoyee Datta(Lajja), Lisa, a menina (O Eterno Marido), Suranjon Datta (Lajja)e o protagonista de Memórias do Subterrâneo.

Para a análise semiótica, essas observações levantam aquestão da transformação de estados, sem recurso à ação. Asgramáticas trabalham sobre unidades discretas, o contínuo é pre-sumido inatingível e, como tal, as transformações só podem serconcebidas com saltos (maiores ou menores) de um patamar aoutro, de uma unidade discreta a outra, enfim, de uma modalida-de a outra. Quando nos debruçamos sobre a intensidade passio-nal, entramos no domínio do contínuo. Como se transforma o

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querer-fazer-mal da raiva em uma espécie de necessidade, emnão-poder-não-fazer-mal da fúria? Como a tristeza, a combina-ção de querer e saber impossível a conjunção desejada, evoluipara a depressão, estado de um querer aniquilado frente à im-possibilidade de sua realização?

No primeiro caso, da posição tensa, o querer parece deter-minar a passagem do contingente ao necessário; no segundo, daposição intensa, a impossibilidade parece determinar o apaga-mento do querer. A intensidade crescente da raiva a faz desaguarna fúria, a intensidade crescente da tristeza conduz à depressão;querer muito faz ser o necessário, o impossível prolongado extin-gue o querer. A vergonha não-assumida, vivida como tristeza, demaneira recorrente e/ou durativa, modifica-se e se transforma emdepressão; quando vivida como raiva, de forma recorrente e/oudurativa, passa à fúria.

Várias são as referências a muito ou pouco, a mais ou me-nos, à duração e à repetição, portanto, à aspectualização. O pro-blema da intensidade exige recurso à aspectualização e nos re-mete à moralização, a que reservamos algum espaço no capítulo5. Finalmente, desenvolver a moralização a partir de depressão efúria fugiria ao tema em pauta; por isso, detemo-nos aqui, embo-ra registrando o interesse que tal estudo desperta e deixando-opara outra empreitada.

2.3 CONSCIÊNCIA E SUPERAÇÃO

Um dos estados iniciais característicos do sujeito envergo-nhado é a confusão mental, como apontamos no capítulo 2,nota 412 . O sujeito, ainda se vendo no mundo através de seu

12 Os outros são o desejo de desaparecer e os fisiológicos: rubor, suor frio, taquicardia,às vezes tremor.

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simulacro existencial, num imaginário de relaxamento e con-fiança, percebe que algo importante está fora de lugar, que seupapel presumido não corresponde ao papel desempenhado. Atri-buímos a confusão mental ao trabalho cognitivo que conduz àconstatação desse desencontro entre seu simulacro existencial,isto é, as projeções de si que o sujeito faz, e a forma como se vêvisto, por isso a pensamos como no percurso entre as posiçõesrelaxada e intensa. Assim, a vergonha propriamente dita subsumea confusão mental e se caracteriza pelo estabelecimento da faltafiduciária � a percepção de que o simulacro existencial de parti-da e sua �versão reformulada� após o evento disfórico não seconfundem �, isto sem mencionar a exposição.

O estado patêmico do envergonhado é determinado poressa discrepância entre as duas maneiras de o sujeito perceber-seno mundo e pelo conflito que elas significam; é instaurado aoviver essa fratura interna.

A consciência dessa complexa articulação de expectativas,realizações, insatisfações e decepções, isto é, da impossível con-ciliação entre os simulacros inicial e final, é condição sine quanon da caracterização da falta e de seu reconhecimento pelo su-jeito. E sanar a vergonha � descaracterizar o conflito � dependeda liquidação da falta fiduciária.

A consciência da própria vergonha pode conduzir a tenta-tivas de esquecimento ou negação; a estratégias de fazer-parecer,como o humor e a confissão; a condutas defensivas, como o pu-dor, o brio e a honra; ou, no limite, ao aniquilamento de si ou dovalor.

Já discutimos o esquecimento, a negação, o humor, a con-fissão e as condutas defensivas. Apresentaremos agora o último �o aniquilamento de si ou do valor �, a partir da idéia de �desinte-gração do self� (LEWIS: 1992), (WURMSER: 1981).

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2.4 DESINTEGRAÇÃO DO SELF

A idéia de desintegração do self parece fértil em psicologia,por representar, entre outros distúrbios, esquizofrenia e MultiplePersonality Disorders. Em semiótica, ela adquire um quê de me-táfora, self passa a significar simulacro do sujeito, e sua �desinte-gração� se compreende enquanto fratura modal, refletida, aqui,no dispositivo modal conflitual da vergonha.

Uma experiência de vergonha � assumida ou não-assu-mida � pode afetar o sujeito em vários níveis de profundidade,provocando desde desconforto (gêne, do francês) ou insegu-rança, até mesmo um profundo desejo de desaparecer. Vergo-nha repetida e prolongada teria a característica de afetar até avalência e o sujeito tensivo � por isso a idéia de desintegração.Novamente, como no desespero, �le conflit est insoluble et nepeut aboutir qu�à l�anéantissement de l�être, pour le moins, àune solution de continuité dans l�être du sujet� (GREIMAS eFONTANILLE, 1991: 74).

Diferentemente do sujeito psicológico, indivíduo que cons-titui uma unidade de análise, o sujeito semiótico é um funtivodefinível através da relação que mantém com outro funtivo, oobjeto-valor. O �anéantissement de l�être� pode ocorrer tanto peloquestionamento do estatuto do sujeito, quanto do objeto-valor.Para o sujeito contínua e profundamente envergonhado, a se-miótica prevê duas soluções finais possíveis e não apenas uma,como freqüentemente apontam os estudos de cunho psicológico:afora a aniquilação do ser, incluindo até mesmo o suicídio (SHRE-VE e KUNKEL: 1991; KLEIN: 1991), resta ainda o questionamentodo valor do valor, solução responsável pelo abandono do quadroaxiológico subjacente à vergonha. Em sua forma definitiva, é essaa solução difundida pelos cínicos em seu projeto de �des-cultura-ção�, de recusa a qualquer regulação de seus atos, como buscalibertária:

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�... le cynique n�est pas seulement celui qui récuse les systèmes devaleur, ou fuit la dépendence qu�ils impliquent; c�est aussi un véritablemilitant anti-axiologique, qui propose de faire table rase, qui s�evertueà miner toute axiologie qui aurait le moindre rapport avec une con-trainte sociale.� FONTANILLE (1993: 71)

É claro que uma postura radical de recusa da cultura, derecusa de seus valores, institui um novo sistema de valores emque o homem, mais próximo da natureza e independente dosobjetos-valor, afasta-se do estatuto de humano. Sem objetos-va-lor não se instituem sujeitos semióticos e, conseqüentemente,desaparece a possibilidade de estabelecimento de contrato. Porisso o cínico aprende �à n�accorder sa confiance à rien ni àpersonne� (idem: 61). Sem confiança, não se reconhece o valordo valor � a valência. Solapa-se, assim, a condição primeira parainstaurar-se a vergonha, essa configuração tão particularmentehumana que opera a transformação do homem animal em ho-mem cultural.

Que todo cínico tenha experienciado profunda vergonhaantes de optar pelo cinismo como método de vida, isso não sepode afirmar. Pode-se seguramente dizer que o cinismo é previsí-vel, �semioticamente�, como reação à vergonha contínua e pro-funda, além de consistir em uma conduta segura a fim de evitarvergonhas futuras. No lugar de matar-se, o cínico mata a culturae se liberta.

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A COMPLEXA INTERSUBJETIVIDADEDA VERGONHA

Várias dificuldades rondam o estudo deste complexo senti-mento chamado vergonha. Já vimos, na explicitação de sua sin-taxe, que as definições de vergonha nos conduzem à contempla-ção do evento disfórico sob duas perspectivas: retrospectiva eprospectiva. Dentre as formas prospectivas de vergonha, há aque-las que englobam um programa de liquidação de falta e há aque-las em que o sujeito permanece em tensão. No geral, há vergo-nhas superáveis, vergonhas desviáveis e vergonhas que engen-dram, em sua própria sintaxe, um programa de superação.

Há mais, porém, a respeito da vergonha, do que o que jáfoi discutido. E não nos referimos a conteúdos, a �coisas� de queo homem ou a mulher podem envergonhar-se; falar de conteú-dos de vergonha não consiste propriamente em estudar o senti-mento � salvo, e até um certo ponto, ao tratar-se do corpo �, masmuito mais a época, a sociedade, o aparato ideológico de umcerto universo socioletal. Resta-nos, no âmbito deste estudo, abor-dar as variadas organizações actanciais e actoriais reconhecíveisem cenas de vergonha, assim como a moralização que a acom-panha, esta última tema do capítulo 5.

A organização actancial de base da vergonha parece relati-vamente simples. Há, por um lado, o sujeito da inferioridade,sincrético e conflitual, dividido entre o querer, ou crer ter determi-nada imagem, e o reconhecer-se dela desprovido. Ao sujeito pa-têmico da inferioridade junta-se o sujeito patêmico da exposição,aquele que se sente exposto, potencialmente ou de fato. A ques-tão complexifica-se ao se tentarem definir os papéis internos àinstauração da inferioridade e da exposição.

A categorização dos tipos básicos de situações causadorasde vergonha opera a intersecção da sintaxe e da semântica: pen-

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A COMPLEXA INTERSUBJETIVIDADE DA VERGONHA

1 A �vergonha pura� de Sartre sugere-nos a seguinte consideração: a consciência dainterdependência do Bem e do Mal estaria profundamente relacionada com aconsciência da interdependência dos papéis Sujeito e Objeto.

sar os actantes e atores na vergonha leva-nos a conteúdos. Dessemodo, as categorias propostas baseiam-se, também, em critériosde delimitação de efeitos de sentido. Não deixa de ser uma arma-dilha: ou não propomos categorização alguma e deixamos umalacuna importante; ou optamos por uma, sempre passível de crí-ticas, e tentamos, com o auxílo de textos, ilustrá-la. Nossa opçãoé a segunda.

Adotando como critério a crescente responsabilidade dosujeito envergonhado sobre sua vergonha, pensamos em cincocategorias, de delimitação arbitrária.

Apenas a título de exemplo dos problemas encontradosnuma tal delimitação, adiantamos duas críticas, uma de ordemfilosófica, outra de ordem ideológica.

Para Sartre, existir torna-nos todos responsáveis; sob esteolhar, todas as categorias abaixo se resumiriam numa só. Se aresponsabilidade, como decorrência direta da existência, é total,o ser objeto de outrem resume, numa fórmula geral, a vergonhaessencial do ser humano, seu �pecado original� 1. Assim sendo, acategorização abaixo caracteriza-se como limitadora: qualquerreferência a conteúdos sempre será limitada em relação ao uni-verso dos possíveis � e do contingente.

Sob um outro olhar, podem nos questionar onde colocar,por exemplo, a vergonha pelo fim de um casamento. Seria naárea do fracasso � um plano de vida abortado �, ou da falta mo-ral � separar �o que Deus uniu�? Pessoas de diferentes microuni-versos socioletais tenderão a interpretar o fato de uma ou outramaneira, ou talvez ainda de uma terceira. Conclusão? Os �fatos�não são neutros. Muito pelo contrário! São construções decor-rentes e reveladoras das coordenadas ideológicas daquele quedeles fala.

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Feitas essas ressalvas e observações, assumimos o ônus daescolha e sugerimos a categorização abaixo, composta de cinco�situações básicas� de vergonha. O homem ou a mulher podemsentir vergonha:

a) ao estar em evidência: falar em público, chegar cedo demais a umacomemoração, etc.;

b) de expor sua condição: �loira-aguada�, diferente, pobre, doente,ignorante, etc.;

c) ao revelar sua impotência: vítima de riso, roubo, traição, tortura, etc.;d) de revelar um fracasso: ser demitido, reprovado num exame, sofrer

o rompimento de uma relação amorosa, etc.;e) de expor uma falta moral: crime, maldade, omissão de socorro, omis-

são ou mentira por silêncio, etc.

Não é tudo! Alguém pode sentir vergonha mesmo sem seencontrar em qualquer das situações acima. Ao contrário do quediz Aristóteles (1987: 77), que �nos envergonhamos de nossasações voluntárias�, alguém pode envergonhar-se mesmo sem tera menor participação na ação causadora de vergonha. Isto ocor-re quando há identificação com o sujeito envergonhado, ou comum sujeito que, aos olhos do indivíduo identificado, deveria sen-tir vergonha. Nestes casos se encaixa o envergonhado por umaadvertência ao cônjuge no emprego, ou ao filho na escola, ouporque o irmão, o pai, ou a mãe bebe, ou ainda porque o amigose mostra injusto, ou porque a instituição para a qual trabalharevela-se antiética, etc. Não se trata apenas de envergonhar-sepor �ter falhado como pai�, ou por ter mal empregado a confian-ça, embora tais interpretações possam estar presentes, mas desentir a vergonha do outro, de assumi-la como se sua causa resi-disse em algo relativo ao sujeito identificado. Este último podeestar em relação de reciprocidade ou de inclusão com a parteque, a seus olhos, sente ou deveria sentir vergonha e a dividecom ela, assumindo-a como numa espécie de �contágio�.

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Além desse contágio, há um outro tipo, em segundo grau,por �derivação�: há a vergonha de ter vergonha, de inflingir ver-gonha a outrem, ou, ainda, de presenciar um outro passandovergonha. E, é claro, pode se sentir vergonha de ter vergonha deter vergonha... e assim por diante.

Tanto o contágio por �derivação�, quanto o contágio ime-diato, do sujeito identificado, podem se organizar de várias for-mas, a partir de praticamente qualquer conteúdo. Essa organiza-ção, entretanto, não é nova a cada instauração de vergonha, masrepete as formas acima.

Agora passaremos, com o apoio de textos, a examinar ce-nas de vergonha do ponto de vista de sua organização de base.

1 EVIDÊNCIA

Eis dois exemplos de situação em que o sujeito está emevidência:

a) �... Avec la plus grande politesse, je le remerciai de son invitation etl�assurai que je ne manquerais pas de venir à l�heure. Et, effective-ment, je vins à l�heure, et même avant l�heure. Dois-je vous dire quemon impatience me fit arriver le premier dans la grande salle dupalais gouvernamental? Je restai là, silencieux, entouré des serviteursjaunes qui allaient et venaient rapidement en se balançant sur leurspieds nus et � comme je me l�imaginais dans mon trouble � semoquaient de moi par derrière. Pendant un quart d�heure, je fusl�unique Européen au milieu de tous ces préparatifs discrets...�(ZWEIG, 1991/1922: 67)

b) �Não só ainda ali não estava qualquer dos comensais, como me deubastante trabalho encontrar o nosso gabinete. Ainda não tinham pôstoa mesa. Qual o fim de tudo aquilo? Depois de formular várias per-guntas, consegui saber pelos criados que o banquete fôra marcadopara as seis e não para as cinco. No balcão confirmaram-me estaindicação. Sentia-me envergonhado destas perguntas. Eram apenas

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cinco e vinte cinco. Se haviam mudado a hora, deviam ter-me avisa-do; para isso existia o correio, sem me exporem àquele vexame di-ante dêles e... dos criados.� (DOSTOIÉVSKI, 1963/1864: 709)

Duas situações muito parecidas, ambas retratando um su-jeito envergonhado de chegar cedo demais a uma festa. Na pri-meira, é por iniciativa própria, por não conter sua ansiedade,que o sujeito chega cedo; na segunda, a reunião fora adiada emuma hora sem que o sujeito fosse avisado. O primeiro, portanto,deve a si mesmo o descompasso entre sua hora de chegada e ados outros convidados; o segundo foi vítima de uma espécie decomplô: não sendo bem-vindo à celebração, para a qual ele mes-mo se convidara, os convivas alteraram seu horário e não lheparticiparam a decisão. Na primeira cena, sujeito de fazer e sujei-to de estado, na instauração da inferioridade, são sincréticos; nasegunda, estes mesmos papéis actanciais são desempenhados poractantes distintos. No tangente ao sentimento de exposição, am-bos evocam os criados: estão sob os olhares julgadores dos servi-çais. Por outro lado, estar em meio aos preparativos faz confundi-rem-se com os criados, por isso temem o olhar dos outros convi-dados que estão para chegar e que poderão fazer esse juízo.

2 CONDIÇÃO

a) �Comment faire comprendre d�ailleurs qu�un enfant pauvre puisseavoir honte sans jamais rien envier?� (CAMUS, 1994: 188)

b) �Quando estávamos em Argel, minha mãe sempre mandava umaempregada nativa, que trabalhava para ela, me acompanhar à esco-la municipal, afastada de nossa casa (rua Station-Sanitaire) somentetrezentos metros e com uma única rua tranqüila para atravessar. Paranão nos atrasarmos (essa fobia de minha mãe), chegávamos à escolamuito adiantados. Os meninos, franceses e nativos, jogavam bolinhade gude contra os muros ou apostavam corrida, na liberdade da

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infância barulhenta. Eu chegava rígido como o dever imposto, acom-panhado por minha �mourisca� sempre silenciosa, sentindo-me dig-no de desprezo e envergonhado, no fundo d�alma, por esse privilé-gio de rico (quando nessa época éramos pobres) e, em vez de espe-rar do lado de fora que a porta da escola abrisse, eu tinha, por pro-teção dos antigos colegas de minha mãe, o privilégio de entrar sozi-nho e antes de todos os outros e de esperar no pátio pela chegadados professores. (...) Eu suportava, se posso dizer assim, esmagadopela vergonha de ser apontado como o �xodó� dos professores, essacerimônia insuportável, que tinha como única utilidade tranqüilizarminha mãe contra todos os perigos da rua: as más companhias, ocontágio dos micróbios, etc.� (ALTHUSSER, 1992: 53)

c) �He (Mahmoud the Woman) had been named The Woman by thestreet urchins because, being a widower, he had been obliged to actas a mother to Bilquìs ever since his wife died when the girl wasbarely two. But now this affectionate title came to mean somethingmore dangerous, and when children spoke of Mahmoud the Womanthey meant Mahmoud the Weakling, the Shameful, the Fool.�Woman�, he sighed resignedly to his daughter, �what a term! Is thereno end to the burdens this word is capable of bearing? Was thereever such a broad-backed and also such a dirty word?�� (RUSHDIE,1983: 62)

Três temas diferentes, com uma organização de base seme-lhante, apresentam sujeitos vítimas de discriminação: a pobreza,para o primeiro; a aparente riqueza e a excessiva proteção, parao segundo; e a comparação com uma mulher, para o terceiro.Todos se encontram na situação evocada por motivos externos àsua vontade e fora de seu poder. O primeiro e o terceiro motivosde vergonha são de fácil compreensão: a pobreza é algo de quese deve fugir na sociedade capitalista, e a mulher, no ideáriomuçulmano, é um ser relegado ao último degrau da sociedade.Ninguém, em sã consciência, desejaria encontrar-se nessas situa-ções (salvo, talvez, por vocação militante) � situações de inferiori-dade fundamental.

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Como compreender a vergonha do garoto com privilégiosde rico, mantido à distância dos outros por superproteção mater-na?

Primeiramente, examinemos esse �privilégio de rico�. Imedi-atamente corrigido: �quando nessa época éramos pobres�, o talprivilégio caracteriza-se como uma imagem falsa e frágil. Ora,nada mais comprometedor, no mundo infantil masculino, do queo escancaramento da mentira de uma pretensa superioridade,representada pela aparente riqueza. Sua insustentável imagemde rico revela a fragilidade de sua condição; ora, fragilidade écaracterística associada a meninas. Em segundo lugar, a mesmafragilidade revela-se na superproteção materna. Impedido de mis-turar-se com os outros meninos e obrigado a ficar só ou em com-panhia de professores, o pequeno sujeito envergonha-se de sertratado, novamente, como um ser frágil, diferente dos outros, al-guém que necessita escorar-se nos professores, como se estes, enão os alunos, fossem seus pares. Seus �privilégios�, mais do queprotegê-lo de perigos, contribuem para classificá-lo como �não-menino�.

Os três sujeitos entendem seu estado como uma lei da na-tureza, como um dado da realidade e não como uma transforma-ção operada por alguém. A quem atribuir a causa da pobreza doprimeiro?: a um conjunto de fatores que transcende seu universode ação. E a fragilidade do segundo?: sua mãe, toda-poderosa,decide tudo o que ele pode, ou não pode fazer; só lhe resta obe-decer. O terceiro, Mahmoud the Woman, também não tem esco-lha: assim foi feito pela morte da esposa e necessidade de cuidarda filha, ambos fatores externos, inicialmente, a seu universo deação; transformou-se em �Mahmoud the Weakling, the Shameful,the Fool� pela ação das crianças de seu universo socioletal. Aqui,crianças surgem como sujeito do fazer da transformação de suaimagem pública, mas são sujeitos intocáveis, representantes de umaforça incontrolável, pois não são responsabilizáveis por sua ação.

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A condição dos sujeitos acima retrata uma competênciamodal negativa, é uma espécie de prisão, da qual não podemsair e na qual não querem ficar. São colocados nessa situação poruma instância que foge ao seu alcance, mas que tem poderespara transformá-los em verdadeiros objetos do fazer de outrem:o Destinador � um Destinador (quase) transcendente �, esse ac-tante intangível que, através do emprego de Destinatários de vá-rias ordens, manipula-os como fantoches.

Dotados dessa condição indesejável, os sujeitos vêem-serepresentados por sua imagem, circulando como um objeto en-tre os espectadores, membros de seu microuniverso de eleição:os outros alunos da escola, nos dois primeiros exemplos, e apopulação da nação da qual Mahmoud é chefe, no terceiro.São, potencialmente ou de fato, julgados negativamente por essepúblico.

3 IMPOTÊNCIA

O critério de diferenciação entre condição e impotência é oestatuto do sujeito do fazer: na primeira, o sujeito do fazer, nainstauração da inferioridade, é (quase) transcendente, portanto,inelutável, de tão poderoso; na impotência, está conjunturalmenteem situação de força, é visto como um anti-sujeito, possivelmen-te momentâneo. Vejamos quatro exemplos:

a) �These ghosts, like Anna, inhabit a country that is entirely unghostly:no spectral �Peccavistan�, but proper London. I�ll mention two: a girlset upon in a late-night undergroung train by a group of teenageboys is the first. The girl �Asian� again, the boys predictaby white.Afterwards, remembering her beating, she feels not angry butashamed. She does not want to talk about what happened, she makesno official complaint, she hopes the story won�t get out: it is a typicalreaction and the girl is not one but many (...) My Anna, like Kafka�s

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Joseph, died under a knife. Not so Sufiya Zinobia Hyder; but thatsentence, the ghost of an epigraph, hangs over her story still:��Like a dog!� he said: it was as if he meant the shame of it to outlivehim.�� (RUSHDIE, 1983: 117-8)

b) �Il (Suranjon) a même honte d�entrer dans la chambre de ses parents,comme s�il portait à lui seul la responsabilité de l�enlèvement deMaya. D�ailleurs, c�est peut-être vrai, parce que, plus que tout autre,il a voulu se leurrer en s�imaginant que son pays n�était pascommunautariste. Bien évidemment, c�est à lui plus qu�à personned�autre qu�il revient de porter le poids de cette honte. Commentpourrait-il se présenter devant son père, cet homme honnête etidéaliste?� (NASREEN, 1994: 263)

c) �Sudhamoy convoque Suranjon dans sa chambre. Voilà longtempsqu�il ne l�a pas fait. Il lui demande de s�assoir à son côté et, d�unevoix brisée, il dit: �Ça me remplit de honte de rester enfermé derrièredes portes et des fenêtres cadenassées.� De honte? Eh, bien, moi, ça me remplit de colère.�� (NASREEN,1994: 263)

d) �Histoire sans importance, direz-vous? Sans doute. Simplement, jemis longtemps à l�oublier, voilà l�important. J�avais poutant desexcuses. Je m�étais laissé battre sans répondre, mais on ne pouvaitpas m�accuser de lâcheté. Surpris, interpellé de deux côtés, j�avaistout brouillé et les avertisseurs avait achevé ma confusion. Pourtant,j�en étais malheureux comme si j�avais manqué à l�honneur. Je merevoyais, montant dans ma voiture, sans une réaction, sous les regardsironiques d�une foule d�autant plus ravie que je portais, je m�ensouviens, un costume bleu très élégant. J�entendais le �pauvre type!�qui, tout de même, me paraissait justifié. Je m�étais en sommedégonflé publiquement. Par suite d�un concours des circonstances, ilest vrai, mais il y a toujours des circonstances (...)(...) Où en étais-je? Ah! oui, l�honneur! Eh bien, quand je retrouvaile souvenir de cette aventure, je compris ce qu�elle signifiait. Ensomme, mon rêve n�avait pas résisté à l�épreuve des faits. J�avaisrêvé, cela était clair maintenant, d�être un homme complet, qui seserait fait respecter dans sa personne comme dans son métier. Moitié

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Cerdan, moitié de Gaulle, si vous voulez. (...) Mais, après avoir étéfrappé en public sans réagir, il ne m�était plus possible de caressercette belle image de moi-même. (CAMUS, 1956: 59-60)

O binômio �superioridade alheia, inferioridade própria�pode estabelecer-se por razões sociopolíticas, como nas três pri-meiras situações.

A garota da primeira citação, de origem asiática, provavel-mente indiana, ou paquistanesa, é vítima de discriminação porparte de um grupo de brancos. Ela se cala, não registra queixa eespera que sua história não seja difundida. Quem é o espectadorde quem ela quer esconder que foi vítima de espancamento?:toda e qualquer pessoa, na medida em que ser espancado é sertratado como um objeto, como um animal � como um cão! � , éser destituído de dignidade por ação da força.

O rapaz da segunda, Suranjon, não cumpre com seu papelfamiliar, no rapto da irmã, por estar em situação de fraqueza emrelação aos bengaleses muçulmanos: sendo bengalês hindu, Su-ranjon seria uma espécie de cidadão de segunda categoria, naprática, sem direito a ajuda oficial nem oficiosa, da parte de anti-gos companheiros de luta pelos direitos humanos, para garantirsegurança aos seus, ou para tentar recuperar sua irmã em vida.Sua impotência é principalmente dolorosa face a seu pai, ho-mem idealista por quem nutre respeito e admiração e a quemdeve uma conduta coerente com os princípios humanistas.

A terceira citação conduz novamente à questão de ideais eprincípios. Sudhamoy, o pai, confessa ter vergonha de ficar tran-cado: ora, trancam-se os bengaleses hindus por não terem con-fiança nos bengaleses muçulmanos e, conseqüentemente, poradmitirem a condição de cidadãos de segunda categoria. Sudha-moy, tendo dedicado a vida à profissão de firmes princípios hu-manistas, tem vergonha diante da própria consciência por tran-carse: trancando-se, age incoerentemente em relação à sua cren-

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ça no estado bengali, como respeitador dos direitos humanos. JáSuranjon alude à raiva, causada pela mesma situação, talvez des-viando a vergonha que compartilharia com o pai.

A personagem central da última citação, o advogado Jean-Baptiste Clamence, não é vítima de preconceitos ou arbitrarie-dades de um grupo sociocultural, como nos exemplos anterio-res, mas de um conjunto de circunstâncias, como ele própriocoloca. Sua experiência é predominantemente pessoal, decor-rente de um forte desajuste entre a maneira como se vê e aimagem de si projetada ao público. Despido do respeito, ou daveneração, que sua atividade profissional lhe assegura, vê-setratado como homem comum, apostrofado, agredido pelas cos-tas com uma bofetada, ridicularizado como �pauvre type�, clas-sificação que reconhece merecer. Habituado a intervir no pro-cesso de estabelecimento da justiça a favor de seus clientes, vê-se incapaz de reagir em defesa própria, contra uma agressãopública e arbitrária. Profissional brilhante, o advogado reagecom a ridícula passividade de um �pauvre type�, um coitado,quando a vítima é ele mesmo. Desperto de seu sonho de �ho-mem completo�, é obrigado a reconhecer-se como um simpleshomem comum. Sua passividade e impotência fazem-no�desinflar-se publicamente�, causando-lhe um tipo de vergo-nha diante da multidão que assiste ao episódio. Não é, porém,o único tipo que o advogado experimenta: conhece a vergonharelativa a um profundo engano � sua imagem pessoal cultivadanão resiste aos fatos, à vida. A consciência da vergonha da im-potência o faz refletir e viver um novo tipo de vergonha, a dofracasso de seu projeto de vida, nessa cena em que sua imagempública rui.

Desse último ponto de vista, o episódio envolvendo Jean-Baptiste Clamence poderia vir citado no item seguinte, ao qualpassamos agora, de cenas de vergonha por algum tipo de fracas-so.

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4 FRACASSO

a) �A verdade é que o marinheiro não se matou. No dia seguinte, al-guns dos companheiros bateram-lhe no ombro, cumprimentando-opela noite de almirante, e pediram-lhe notícias de Genoveva, se es-tava mais bonita, se chorara muito na ausência, etc. Ele respondia atudo com um sorriso satisfeito e discreto, um sorriso de pessoa queviveu uma grande noite. Parece que teve vergonha da realidade epreferiu mentir.� (MACHADO DE ASSIS, 1994/1884: 196)

b) �IRÉNÉEOnze heures vingt. La scène d�amour. Ils sont en train de se foutredemoi.

FRANÇOISEMais non, il y a plusieurs façons de rire...

IRÉNÉEIl y a aussi plusieurs façons de ne pas rire et d�avoir du chagrin...

FRANÇOISEPourquoi en auriez-vous? Demain vous serez celèbre...

IRÉNÉEA quoi bon? Il m�arrive le malheur le plus ridicule. Ne pas atteindreson but, c�est grave, c�est une grande déception. Mais atteindre unbut tout à fait opposé, et réussir, pour ainsi dire, à l�envers, c�est lapreuve la plus éclatante que l�on est un véritable idiot.�

(PAGNOL, 1990: 35-6)

c) �Le jour s�est levé et à travers les fissures des volets, la lumière pénètreà flots. �Viens, dit Sudhamoy, partons.� Où allons-nous, Baba? s�étonne Suranjon, déconcerté.� En Inde�, réplique Sudhamoy. Et sa voix se brise tandis qu�il sesent ravagé para la honte. Mais il l�a dit, il s�est obligé, il s�est forcé àle dire: ils partiront. Et il comprend qu�il en sera nécessairement ainsiparce que la solide forteresse qu�il avait édifiée en lui se démantèlede jour en jour.� (NASREEN, 1994: 277)

d1)�...Alors, je balance ma byciclette en travers du chemin, à côté ducoquin qui se relève tout sanglant et qui s�écarte... Et puis � non,

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vous ne pouvez pas vous rendre compte combien cela est ridicule,là-bas, aux yeux de tous, quand un Européen... Mais je ne savaisplus ce que je faisais... je n�avait plus qu�une seule pensée: la suivreet la rejoindre... Je me mis à courir, à courir comme un fou, le longde la route, en passant devant les huttes où la canaille jaune se pressait,étonnée, pour voir un Blanc, un Monsieur, le Docteur courir.�(ZWEIG, 1991/1922: 60, grifo nosso)

d2)�...j�étais comme paralysé avant de saisir qu�elle partait... Quand jele compris, elle se trouvait déjà à l�autre bout de la salle, juste devantla porte... Alors... oh! je rougis encore aujourd�hui en y pensant...une force m�empoigna soudain et je courus � entendez-vous, je nemarchais pas, je courais � derrière elle en traversant la salle quiretentissait du bruit de mes souliers. J�entendais mes pas, je voyaistous les regards étonnés se diriger vers moi... J�aurais pu succomberde honte... Je courais toujours alors que déjà j�avais conscience dema folie... mais je ne pouvais plus... je ne pouvait plus revenir... Je larejoignis à la porte... Elle se retorna... Ses yeux gris me pénétrèrentcomme un lame d�acier, ses narines tressaillaient de colère...� (ZWEIG,

1991/1922: 71-2, grifo nosso)

Casar-se com a amada, tornar-se um grande ator dramáti-co, ou agir coerentemente com os próprios princípios são trêsprojetos de vida de alcance e peso variados, mas que resumem,respectivamente, o investimento do marinheiro Deolindo Venta-Grande, na primeira citação; de Irénée, na segunda; e de Sudha-moy, na terceira. Cada um deles acaba por abandonar seu proje-to, levado pela constatação das circunstâncias: o marinheiro ésurpreendido ao encontrar a amada, presumida futura esposa,vivendo com outro; Irénée decepciona-se ao perceber suas cenasmais românticas, mais dramáticas, recebidas como cômicas; eSudhamoy, face aos acontecimentos políticos e ao rapto, estuproe assassinato de sua filha, resigna-se a colocar o valor segurança(de sua família) como superior ao valor confiança na democraciae no cumprimento dos direitos humanos, no país de seus ances-

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trais, e decide imigrar para a Índia, com os que restam de suafamília, a fim de preservá-los.

Nesses três exemplos vêem-se sujeitos forçados a abando-nar um projeto e envergonhados por isso. Poderíamos pensar emvergonha por impotência, semelhante aos exemplos anteriores,não fosse a parcela de decisão (responsabilidade?) relativa aoabandono do projeto. A rigor, mesmo o marinheiro poderia obs-tinar-se a reconquistar a amada... mas tanto havia falado, tantohavia se vangloriado, em meio aos colegas, pela sorte de estarapaixonado pela moça, que investir em reconquistá-la significa-ria banalizar seu romance sonhado. Melhor mentir!... e tentaresquecê-la.

Um tanto diferente é o último exemplo, do médico euro-peu, cumprindo contrato na Malásia, acometido de vergonha porcorrer. Se correr parece pouco ou nada ter que possa causar ver-gonha, imaginemos se os seguintes indivíduos, nos seguintes con-textos, se pusessem a correr:

a) o decano da Universidade em direção a uma comemoração em suahonra;

b) o Ministro da Fazenda tentando manter jornalistas à distância;c) um juiz ou um advogado, no Fórum;c) um padre atrasado para começar uma missa;d) um empresário em direção a uma reunião com um comitê de repre-

sentação de seus empregados;e) o comitê de representação de empregados acima em direção à reu-

nião com o patrão;

f) etc.

As cenas acima rapidamente adquirem um colorido inusi-tado, até mesmo ridículo, em nosso contexto sociocultural, aofazermos suas personagens centrais correrem. Não é a mesmacoisa ao imaginarmos um aluno atrasado correndo para a salade exame, ou jornalistas correndo para tentar uma entrevista com

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um Ministro, ou talvez um garçon responsável por servir café aopatrão durante a reunião com o comitê de empregados.

Esse pequeno exercício de fazer personagens correrem jogaluzes sobre um aspecto da atividade quando não realizada poresporte: existe uma relação de poder subjacente ao ato de correr.Quem corre para algo ou de algo está em situação de inferiorida-de, é o pólo fraco de uma relação. Por isso seria cômico um Mi-nistro correr de jornalistas: inverteria a relação de forças, subver-teria a hierarquia; engraçado também seria um empresário correrpara uma reunião com seus empregados: daria a entender queos teme.

Se a questão hierárquica tem um papel dominante, existetambém uma certa indignidade no correr, uma demonstração deperda de autocontrole, de deselegância, incompatíveis com quemquer ser reconhecido como forte, dominante 2 . O correr, em suma,dentro de culturas ocidentais, alia a perda da superioridade faceao outro com o descontrole de si próprio. Quem corre quer de-mais alguma coisa e revela o excedente passional (GREIMAS EFONTANILLE, 1991: 67-68) que a reserva obrigaria a guardarpara si. Em microuniversos socioletais que prezam a contenção

2 O ato de correr parece-nos considerado vergonhoso, para aquele que corre, em doistipos de circunstâncias:a) quem corre é �superior� àquele ou àquilo de que corre - como um ministro correndode jornalistas -;b) quem corre é considerado, por relação de inclusão, representante de um grupocom uma imagem �superior�; ao correr, não se portaria à altura do grupo e agiria deforma a manchar a imagem do mesmo.A título de exemplo do segundo tipo de circunstância, citamos uma cena, presenciadaanos atrás, entre uma jovem secretária e um diretor de uma empresa de tradiçãobritânica. Ela, no frescor de seus dezoito anos e primeiro emprego; ele, um senhor deseus cinqüenta, mais realista que o rei. Ele está dentro do elevador, que pára nosegundo andar; ela, saindo de uma sala, ouve o sinal sonoro de parada e corre emsua direção, no afã de cumprir rapidamente a tarefa designada. Entra no elevador,radiante por não precisar esperá-lo, e, com a respiração um pouco ofegante e o rostolevemente corado pelo esforço, cumprimenta o diretor com um largo sorriso. Recebeem troca um olhar fulminantemente gelado e engole, frente ao pequeno público doelevador, a sentença: �Espera-se mais dignidade dos funcionários desta casa�.

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dos sentimentos, qualquer paixão é compreendida como perigode descontrole de si. Ora, o correr revela a existência de umapaixão e é, portanto, passível de censura.

O médico europeu de Amok (ZWEIG: 1991/1922) rompe,pelo menos duas vezes, com o código de honra ao lançar-se numacorrida desenfreada atrás de uma mulher: em primeiro lugar, de-monstra falta de controle de si; em segundo, abdica da posiçãohierárquica superior aos nativos. Como se não bastassse, seucomportamente é comparável ao de um tipo folclórico de de-mência regional: Amok é um sujeito tomado de uma necessidadeincontrolável de correr, destruindo tudo o que encontra à suafrente, até cair de cansaço, ou ferido, ou morto. Por isso o médicose envergonha de um fracasso: sua incompetência para manter aimagem de europeu, frente aos nativos, e de homem-dono-da-situação, face à mulher. Com efeito, age contrariamente a comodeveria agir: sua necessidade de dominar a mulher é tão intensaque o leva a perder o autocontrole e deixar-se dominar inteira-mente. Abdicando da imagem de europeu e, finalmente, de ho-mem que controla a situação, o médico despe-se de suas coor-denadas ideológicas e se vê sem identidade, sem, portanto, exis-tência simbólica admissível. A vergonha de ser visto correndo re-vela-se, na verdade, uma profunda vergonha por perder a ima-gem que acreditava ter o direito de gozar e, com ela, suas coorde-nadas ideológicas. O médico, como nos três exemplos anteriores,falha também num projeto; a diferença é que seu fracasso incidesobre o projeto de vida dentro do qual os outros europeus e,mais importante, ele próprio reconhecem sua identidade.

5 FALTA MORAL

a) �Quand je pense à cette période où je demandais tout sans rien payermoi-même, où je mobilisais tant d�êtres à mon service, où je les mettais

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en quelque sorte au frigidaire, pour les avoir un jour où l�autre sousla main, à ma convenance, je ne sais comment nommer le curieuxsentiment qui me vient. Ne serait-ce pas la honte? La honte, dites-moi, mon cher compatriote, ne brûle-t-elle pas un peu? Oui? Alors,il s�agit peut-être d�elle, ou d�un des ces sentiments ridicules quiconcernent l�honneur.� (CAMUS, 1956: 73)

b) �... Je l�accusai d�avoir fait ce que je voulais faire, et de m�avoirdonné le ruban, parce que mon intention était de le lui donner. Quandje la vis paraître ensuite, mon coeur fut déchiré, mais la présence detant de monde fut plus forte que mon repentir. Je craignais peu lapunition, je ne craignais que la honte; mais je la craignais plus que lamort, plus que le crime, plus que tout au monde. J�aurais voulusm�enfoncer, m�etouffer dans le centre de la terre; l�invincible hontel�emporta sur tout, la honte seule fit mon impudence; et plus jedevenais criminel, plus l�effroi d�en convenir me rendait intrépide.Je ne voyais que l�horreur d�être reconnu, déclaré publiquement,moi présent, voleur, menteur, calomniateur. Un trouble universelm�ôtait tout autre sentiment.� (ROUSSEAU, 1972: 131)

c) �...Alors elle s�arrêta soudain, me tendit la main et me dit négligem-ment: �Merci de m�avoir accompagnée. Vous viendrez ce soir à sixheures voir mon mari, n�est-ce pas?�Je dus devenir cramoisi de honte. Mais avant que j�eusse pum�excuser, elle avait monté prestement l�escalier et j�étais là immobile,songeant avec terreur les propos stupides que, dans ma balourdiseet mon insolence, je m�étais permis.� (ZWEIG, 1991/1927: 47-8)

d) �Il se tourne et se retourne dans son lit toute la nuit, sans trouver derepos. Il est comme en transe et ne parvient pas à s�endormir, avecpour seule compagnie le silence, l�immobilité et un horrible senti-ment d�insécurité. Il a voulu prendre une revanche aujourd�hui, maisil a échoué. Il n�en est pas capable. Le souvenir du visage de Shamimarevient le torturer. Il ressent maintenant pour elle une immense pitiélà où il espérait éprouver de la colère et le sentiment de sa proprepuissance (...) Pour elle, il n�y a aucune différence entre l�amour et leviol. Suranjon se recroqueville dans son lit maintenant qu�il reconnaîtcette réalité. Il se sent submergé de honte.� (NASREEN, 1994: 259)

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Uma característica fundamental da vergonha por falta mo-ral é a auto-responsabilização do sujeito. Todo envergonhado porfalta moral atribui a si mesmo algum tipo de responsabilidade �seja esta objetiva, ou decorrente de ignorância, ou de ingenuida-de inadmissíveis � sobre o motivo que o leva a ter vergonha.

Sempre existe uma vítima quando há vergonha por faltamoral, normalmente, mas nem sempre, distinta do sujeito patê-mico. Não se trata, porém, apenas de uma relação direta entreofensor e vítima, com o primeiro ultrapassando certos limites ide-ológicos e, posteriormente, arrependendo-se e se envergonhan-do.

Tomemos o ofensor arrependido. Trata-se de um sujeitocindido: ele se projeta � em seu simulacro existencial � como do-tado de uma �boa imagem� e age no quadro de um outro simu-lacro, antagônico ao simulacro existencial. Tudo se passa, inicial-mente, como se as projeções que o sujeito faz de si próprio e osefeitos de seus atos � contrários ao quadro axiológico subjacenteà �boa imagem� � não se comunicassem, como se a imagem quetem de si pudesse passar incólume por qualquer ato, de qualquerordem, por ele realizado. Quando o sujeito percebe uma �conta-minação� de sua imagem por sua atuação, poderá haver vergo-nha na medida em que, em conjunção com os valores relaciona-dos à �boa imagem� e em sincretismo com o Destinador julgador,sancionar negativamente a performance e, por pressuposição,também a competência modal; conseqüentemente, sancionaránegativamente a si mesmo, sua imagem, uma vez que atribui a siuma imagem a partir da competência modal que reconhece ousupõe possuir. Insistimos, para instaurar-se a vergonha, o sujeitodeve estar em sincretismo com o Destinador julgador da sançãonegativa; caso contrário, sofrerá uma punição unilateral, semcompartilhá-la em seu âmago.

O papel de sujeito do fazer, na instauração do sentimentode inferioridade que poderá levar à vergonha por falta moral,

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tenderá a ser visto como tendo sido desempenhado pelo própriosujeito patêmico, uma vez que ele atribui a si mesmo responsabi-lidade por sua vergonha. Por exemplo, na tortura, tanto podesentir-se moralmente diminuído o torturador, por objetivamentetratar um ser humano como meio para a obtenção de vantagem,como o pode o torturado, se chega a revelar alguma informaçãoimportante. E pode vir a ter vergonha por falta moral um médicochamado a assistir um torturado, na medida em que o mantémvivo apenas para que possa ser submetido a mais tortura. Podetambém ter vergonha moral algum humanista, ao ver até queponto o homem pode ser lobo do homem. E assim por diante.

As citações selecionadas retratam quatro episódios em quepessoas são usadas como meio, em busca de satisfação, pelo su-jeito que acaba por se envergonhar. O primeiro, Jean-BaptisteClamence, quer o mundo a seus pés, todos prontos para realizarqualquer desejo seu a qualquer momento; o segundo, o jovemJean-Jacques Rousseau, rouba uma fita a fim de presentear Marione obter sua simpatia; o terceiro, Roland, tenta seduzir uma belamulher para obter companhia para suas horas de lazer; e o quar-to, Suranjon, procura satisfazer seu desejo de vingança, estuprandouma prostituta muçulmana.

Realizados, os quatro projetos têm, porém, um fim distintoda satisfação presumida: o primeiro deixa de considerar legítimodispor de pessoas como de coisas; o segundo, flagrado, agravasua falta acusando a moça que presentearia com o fruto de seuroubo; o terceiro descobre que a mulher que tão abertamentecobiçou é esposa do professor por quem nutre veneração e porquem espera, mais que tudo, ser respeitado; o último percebe quesua vingança, patética, foi realizada sobre alguém tão ou mais fra-co que ele próprio, na escala de valores de seu universo socioletal.

Não fosse o relato de Rousseau, sobre a fita e Marion, po-deríamos ter dificuldade em dissociar vergonha por falta moral esentimento de culpa. Rousseau diferencia os dois sentimentos com

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muita clareza: culpa é aquilo que sente em relação a Marion, víti-ma de sua injustiça; vergonha é o que sente � e que tenta escon-der e evitar, via brio � pela possibilidade de se ver exposto aospresentes como ladrão, mentiroso, caluniador. Mais imperioso quea necessidade moral de estabelecer justiça é o desejo de controlara imagem veiculada, na medida em que esta é a representaçãode sua pessoa; daí a obstinação em manter sua versão, acusandoa moça, como estratégia para não revelar aos outros a face queteme que conheçam.

Pode se pensar a atitude do jovem Rousseau através dareflexão de Charles Darwin, para quem o rubor é a principal ex-pressão da vergonha:

�C�est ne pas la conscience qui force à rougir; car, si sincères quesoient ses regrets d�une peccadille commise sans témoins, si cuisantsque soient ses remords à la suite d�un crime inconnu, un homme nerougit pas. �Je rougis, dit le docteur Burgess (Essays on Practical Edu-cation, vol II, p. 30), en présence de mes accusateurs.� Ce n�est pasle sentiment de la culpabilité, mais la pensée qu�autrui la supçonneou la connait, qui fait monter la rougeur au visage.� (DARWIN, 1981/1865: 357)

Ou se pode, também, pensá-la a partir de La Rochefou-cauld, que, cerca de um século antes do episódio relatado porRousseau, anunciava: �L�hypocrisie est un hommage que le vicerend à la vertue�. Rousseau, conhecendo ou não a máxima, co-loca-a em prática, no pavor de perder a imagem de si cultivada.

Adotando a perspectiva de La Rochefoucauld, a hipocrisiado jovem Rousseau aponta para dois aspectos correlativos à cenada fita, para os quais abrimos parênteses: primeiro, a vergonhade ser caluniador lembra-nos a vergonha do caluniado e, segun-do, a vergonha descrita por Rousseau poderia muito bem se en-quadrar em outra categoria, a de �fracasso�, se for correto afir-mar que a construção e divulgação de determinada imagem de siresumem um projeto seu de vida.

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Ambos os aspectos podem ser tratados conjuntamente. Queser vítima de calúnia ou difamação pode causar vergonha pare-ce-nos ponto pacífico. Parecer moral ou imoral pode ser tão oumais importante que o ser, mas se trata, nesse caso, de vergonhapor falta moral? Suponhamos um indivíduo publicamente acusa-do de uma falta moral grave que não cometeu: independente-mente da veemência de sua reação, em defesa própria, parece-nos que ele sentirá tão mais vergonha quão mais rígidos foremseus princípios e mais coerente sua ação. Dito de outro modo,um indivíduo pode afetar, fingir vergonha por ser caluniado, porsaber que é esse o comportamento socialmente esperado. No casode o sujeito realmente se envergonhar por conta de uma calúnia,será de vergonha da condição, da impotência, ou de um fracassoque ele estará padecendo, mas não de vergonha decorrente deuma falta moral. Fechando os parênteses, o conteúdo moralizanteda cena da calúnia se deve aos seus efeitos, pois a calúnia podeser desonrosa, mas não é este o conteúdo inicialmente presenteno simulacro interno que o sujeito envergonhado constrói e re-constrói continuamente para si mesmo.

Afora o exemplo dado por Rousseau, vergonha moral eculpa freqüentemente aparentam ser um só sentimento, apenascom nuanças atribuídas ao universo masculino ou feminino. Se-gundo o velho hábito de enxergar o mundo como masculino oufeminino, o primeiro, mundo dos homens, da virilidade, da agres-são, estaria mais afeito ao sentimento de culpa e o segundo, mundodas mulheres, da fraqueza, da submissão, à vergonha. Apenas atítulo de ilustração de quão arraigada é essa compartimentalizaçãodo mundo e de como ela pode moldar o pensamento, é Freudquem sentencia:

�shame �to be a feminine characteristic par excellence� which �has asits purpose, we believe, concealment of genital deficiency�� (FREUD,1933: 132; apud SEVERINO, MCNUTT & FEDER: 1987: 94)

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Se tal afirmação, descontextualizada feito coelho tirado decartola, faz erguer as sobrancelhas, ela revela, no entanto, muitodo ideário relativo à falta de virilidade de homens que admitemvergonha, ou à inferioridade fundamental feminina, que tornariaa mulher passível de envergonhar-se por ser mulher.

É sabido que, na tradição judaico-cristã, a figura femininagoza de pouca consideração, é tida como maléfica, infantil, dignade desprezo, quando não de ódio � fato, aliás, que gerou umpedido oficial de desculpas do Papa João Paulo II pelas injustiçascontra as mulheres pelas quais a igreja católica foi e é responsá-vel. Entretanto, não há registro, na Bíblia, de que o Deus judaico-cristão tenha dado vergonha à mulher e sentimento de culpa aohomem. Na verdade, culpa e vergonha entrelaçam-se desde osprimórdios da criação, mas como causa e sentimento: é a vergo-nha o primeiro sentimento humano; Deus condena o homem e amulher a pagarem sua culpa com suor e lágrimas, com trabalho edor. Não se fala em sentimento de culpa, mas culpa simplesmen-te � a culpa ou a responsabilidade relativa à infração cometida �e em vergonha decorrente de ter se deixado manipular, de teroptado pelo Destinador errado, em suma, de ter depositado con-fiança em quem não a merecia. A busca de sabedoria leva o ca-sal Adão e Eva à constatação da inépcia em depositar a própriaconfiança: tanto são tentados a conhecer, que conhecem sua pró-pria limitação... Bem que Adão ainda tenta eximir-se da culpa,explicando a Deus que �A mulher, que me deste por companhei-ra, deu-me (do fruto) da árvore, e comi� 3 . Deus, porém, nãoperdoa a desobediência e expulsa Adão, junto com a maléficaEva, do paraíso.

Enquanto organização actancial e actorial, a vergonha porfalta moral apresenta-nos sujeitos claramente em comércio comdois Destinadores concorrentes. No relato bíblico há Deus e o

3 Bíblia Sagrada, 1977: Gênesis 3, p. 28, Edições Paulinas

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demônio, os arquétipos do Destinador e do anti-Destinador; nasquatro citações acima, há também um Destinador transcenden-te, em cujo quadro axiológico se dá a sanção negativa, e outro, oanti-Destinador, responsável pela manipulação do sujeito e pro-vocador de sua performance. Além disso, neste tipo de vergo-nha, o sujeito patêmico vive a seqüência toda de papéis actan-ciais necessários ao longo do processo de estabelecimento daconfiguração (ele estabelece e reconhece sua inferioridade morale ele mesmo determina a qualidade do observador legítimo). Àexceção dos Destinadores, com quem está alternadamente emsincretismo, outros sujeitos, quando existem, são �coadjuvantes�.Observando-se do fim para o começo a história da vergonha porfalta moral, vê-se que o sujeito patêmico se coloca, ele mesmo,nessa condição: julgando-se negativamente dentro do quadroaxiológico do Destinador julgador por ter agido manipulado peloanti-Destinador, o sujeito estabelece a própria inferioridade mo-ral. Além disso, ao reconhecê-la, percebe-se exposto, no mínimo,diante do Destinador, com cujos valores está em conjunção.

Por isso o jovem Jean-Jacques, no episódio de Marion, senteum tipo de vergonha � ele diante da própria consciência, ou doolhar alheio internalizado � e tenta, a todo custo, evitar outro tipode vergonha � diante do público presente, do olhar alheio defato. O outro, o espectador legítimo, pode assumir vários graus deconcretude: pode ser individual ou coletivo, pode existir em car-ne e osso ou ser interiorizado, pode ser uma instância que obser-va ou que pode observar, em suma, uma instância cujo juízo étemido. E em se tratando do juízo temido, mais relevante do quea materialidade desse outro é o estatuto que ele assume na cons-ciência do sujeito que poderá ter vergonha: Jean-JacquesRousseau não menciona vergonha diante de Marion... e, valedizer, Marion, melhor que ninguém, sabe que ele é autor do rou-bo, da mentira e da calúnia da qual ela é vítima. Jean-Jacques,no entanto, não lhe atribui legitimidade: frente a ela pode fazer

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qualquer coisa, a fim de garantir sua imagem perante os outros,estes sim, espectadores legítimos.

Moral da história? A vergonha por falta moral não garantecomportamento moral. Se sua força enquanto freio e controle depossíveis transgressões é indiscutível, uma vez transgredidas asnormas morais, seu valor pode inverter-se: a vergonha pode setornar um trampolim para outras transgressões. �Se fosse eu, eupensava assim: já estou todo danado, posso fazer o que eu quero�é a resposta de um garoto de 12 anos, sujeito de uma pesquisa 4,ao ser perguntado sobre a eficácia da humilhação � contar para aclasse que um aluno roubou � como sanção expiatória. Em suma,a vergonha moral pode ser um sentimento eficaz para deter açãocontrária à moral, mas, e, sobretudo, quando impingida, em nadagarante conduta moral subseqüente.

6 CONTÁGIO

À guisa de conclusão, quatro exemplos de vergonha porcontágio.

a) �Jacques, de son côté, désireux d�une part de ne pas gêner les voisinset soucieux surtout de ne pas annoncer à la salle que la grand-mèrene savait pas lire (elle-même parfois, prise de pudeur, lui disait àhaute voix, au début de la séance: �tu me liras, j�ai oublié meslunettes�), Jacques donc ne lisait pas les textes aussi fort qu�il eût pule faire.� (CAMUS, 1994: 92-93)

b) �Sudhamoy a entendu ce qui s�est passé dans la chambre de son fils,y compris les conversations à haute voix pendant qu�on s�enivrait.Ce garçon a-t-il perdu toute décence? C�est la première fois à sa

4 Em �Construção da fronteira moral da intimidade: a humilhação e a vergonha naeducação moral�, de Yves de La Taille e colaboradores, publicada em Cadernos dePesquisa no. 82, agosto de 1993, Fundação Carlos Chagas.

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connaissance que Suranjon se soûle à la maison. Peut-être se moque-t-il de tout et de tous. Aurait-il déjà oublié Maya? Après seulementdeux jours! Sudhamoy ne peut y croire. La transformation de son filsvient s�ajouter au terrible fardeau qui pèse sur ses épaules. Suranjonest-il en train de définitivement mal tourner?� (NASREEN, 1994:233)

c) �En franchissant ainsi très vite la porte et en sortant dans le couloirqui n�était pas éclairé, je heurtai dans l�obscurité quelque chose dedoux, qui céda aussitôt: c�était la femme de mon maître, qui, mani-festement avait écouté à la porte. Mais, chose étrange, bien que lechoc eût été brutal, elle ne poussa pas un cri, se bornant à reculersans rien dire; et moi aussi, incapable de faire un mouvement, je metus, effrayé. Cela dura un moment; tous deux nous étions muets,honteux l�un devant l�autre, elle surprise en flagrant délitd�espionnage, moi figé par la surprise de cette rencontre.� (ZWEIG,1991/1927: 81)

d) �Jacques se mit à écrire le mot 5 , s�arrêta et d�un seul coup connut lahonte et la honte d�avoir eu honte.� (CAMUS, 1994: 187)

Os exemplos a) e b) trazem cenas de contágio por identifi-cação. O primeiro apresenta uma relação de reciprocidade: o jo-vem Jacques compartilha a vergonha da avó, por ser iletrada.Numa espécie de �curto circuito� cognitivo, Jacques assume acompetência negativa da avó como se fosse sua, como se elepróprio não soubesse ler, e vive a vergonha dela como se fossesua própria. Para Jacques, ele e a avó formam uma única instân-cia passível de juízo negativo dos presentes na sala, por conta dacompetência negativa da segunda.

A cena seguinte coloca em pauta um contágio compreensí-vel tanto no quadro da reciprocidade quanto da inclusão. Os doisenvolvidos, pai e filho, podem se perceber como o segundo sen-

5 Quando Jacques (personagem do romance autobiográfico de Camus) deve escrevera palavra �domestique�, no Lycée, para definir a profissão de sua mãe.

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do a extensão do primeiro, ou como ambos sendo membros deum grupo sociocultural, a família. O tema explicitamente coloca-do é o segundo, a família: para o pai, membro máximo, a condu-ta do filho vem aumentar o peso nos ombros. Não lhe ocorre aidéia de ter falhado na educação do filho, mas tão somente aconstatação de que seu filho está falhando moralmente e se tor-nando indigno de seus princípios. Ora, o filho indigno contagia afamília e a torna toda indigna, um pouco como nos moldes dasnobrezas de sangue: qualquer mácula afeta a honra de toda afamília e a destitui do direito à nobreza.

O terceiro trecho exemplifica uma situação um pouco me-nos direta, em que a relação entre os envolvidos não é previa-mente estruturada, como no caso de uma família. Por isso a ver-gonha vivida não é a vergonha do outro, mas uma vergonha pelavergonha atribuída ao outro, em outras palavras, uma vergonhapor derivação: flagrar a esposa de seu professor fazendo algo dig-no de censura � escutar atrás da porta � é constrangedor 6 . Nãose trata de compartilhar a vergonha da mulher, como poderiaocorrer numa situação de identificação, mas do constrangimentode materializar o olhar julgador da ação indevida da mesma.

O último exemplo coloca um segundo tipo de derivação: avergonha da vergonha. O jovem Jacques, em primeiro lugar, en-vergonha-se de sua pobreza, patente na profissão da mãe, do-méstica. Imediatamente, porém, percebe a vergonha por sua con-dição como uma falta moral: sua mãe trabalha arduamente paraque nada falte aos seus; ser doméstica em nada diminui seu va-

6 Uma apresentação da ópera O Barbeiro de Sevilla, no Teatro Municipal de São Paulo(fim da década de 70 ou começo da de 80, cito de memória), teve um momentoinusitado, quando Fígaro sai de cena, munido de toda decisão exigida de um homemde honra. Para partir, era necessário abrir uma porta do cenário... e eis que nossoherói, no clímax da obra, puxa a porta com decisão � ela abria para fora! �, perde ocompasso e a empurra, já tendo balançado o cenário e transformado o momentotrágico em cômico. A platéia do Teatro Municipal dividiu-se entre os que se divertiramcom o infortúnio do artista e os que ruborizaram com ele. Eis um exemplo de vergonhapela vergonha do outro.

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lor, ao contrário, acrescenta, pois o esforço necessário para per-mitir que ele, Jacques, estude ao invés de trabalhar é ainda maior.A vergonha de sua condição rapidamente se recaracteriza comouma traição à mãe e, como tal, gera vergonha por falta moral.

Poderíamos enumerar ainda mais alguns exemplos de con-tágio; como os quatro acima apontam, repetiríamos a organiza-ção de base dos tipos de vergonha arrolados anteriormente epouco, ou nada, acrescentaríamos de novo. Concluímos, portan-to, a discussão da organização actancial e actorial na base daconfiguração e passamos ao último tópico teórico a discutir: amoralização incidente sobre a vergonha.

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A VERGONHA SUB JUDICE

Nada está livre do olhar julgador de uma cultura: nem atos,nem palavras, nem sentimentos, nem o juízo sobre sentimentosque lhes pode dar o nome de paixão.

O tema vergonha é comumente discutido como um juízonegativo de alguém ou algum grupo, na posição de observador,sobre uma determinada situação ou pessoa. Freqüentemente seescuta dizer que algo é vergonhoso, que determinada situação �éuma vergonha!�, repetindo o bordão-assinatura de um jornalistafamoso. Diferentemente dessa acepção da palavra, pensamos aquinum observador que julga que um sujeito tem ou sente vergo-nha.

A escolha do léxico paixão, em semiótica, é por si só indi-cativa da ação de um juízo, visto como uma interpretação, oumelhor, uma moralização do observador efetuada sobre umaseqüência de papéis estereotipada do sujeito. É a articulação des-ses papéis, desempenhados a partir de modalizações que seencavalam, se seguem e se transformam, que, quando estereoti-pada, cria, para um observador externo, o efeito de sentido deuma paixão. É claro que esse observador pode ser o próprio su-jeito patêmico, num momento em que olha a si próprio comooutro, como objeto de seu juízo, e avalia seu estado patêmico.Em outras palavras, uma paixão é reconhecida como tal porquetem �marcas� reconhecíveis e porque se enquadra num scriptinserido na cultura e por ela reconhecido.

É ponto pacífico que reconhecer diferenças é uma opera-ção cognitiva mais simples do que reconhecer semelhanças. En-quanto as diferenças são �dadas� � acusam-se por sua existência�, as semelhanças são �invisíveis�, não chamam a atenção sobresi; percebê-las implica a suposição da existência de possíveis dife-renças e a não-verificação de sua existência. Do mesmo modo, o

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A VERGONHA SUB JUDICE

reconhecimento de uma seqüência estereotipada como o de umscript implica o reconhecimento de diferenças, de �marcas�, comochamamos acima. O que é uma �marca�, numa seqüência depapéis, senão algo que foge ao equilíbrio, algo que destoa, quequebra a harmonia, enfim, que rompe a homeostase? Esse algoincide sobre as modalizações, tem o nome de excedente modal(GREIMAS e FONTANILLE: 1991) e participa de uma cadeia deefeitos de sentido que vem criar o excedente passional. É justa-mente esse algo que revela a moralização do observador, con-cluída em seu juízo.

Paixão, em semiótica, não altera (ou não precisa alterar) oritmo cardíaco do observador, mas sim lhe fornece elementospara reconhecer que o sujeito observado tem seu estado alteradopor uma dada seqüência modal em que incide um, ou mais deum, excedente modal. Um excedente é um �a mais� e, como tal,pressupõe uma situação em que a condição �normal� não o acu-sa. A operação cognitiva de reconhecimento desse �a mais� é,em si mesma, um juízo. Tanto mais porque a constatação de suaexistência nada tem de neutra, mas coincide com a conclusão deque esse �a mais� excede, isto é, vai �além do que é natural,justo, conveniente� 1; vale apontar que uma constatação dessetipo encerra um juízo moral. Uma coisa é descrever os gestos queacompanham o rubor e �qui consistent à se cacher le visage, àl�abaisser vers la terre ou à le porter de côté. Le plus souvent lesregards sont detournés ou mobiles...� (DARWIN, 1981/1865: 372),outra é denominar vergonha esse conjunto de reações; a deno-minação necessariamente acompanha um juízo moral.

Existe, portanto, uma moralização básica, aquela que dá onome de paixão à seqüência de papéis estereotipada. Existe tam-bém, além dessa, uma moralização secundária, aquela que julga-rá se tal ou tal paixão pertence, em suma, ao domínio do Bem ou

1 Dicionário Aurélio.

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do Mal. Em outras palavras, decidirá se uma determinada paixãoserá indicativa de qualidade ou de defeito, de força ou de fraque-za morais.

Pouca discordância existe no nível da moralização primá-ria. Produto e processo de uma cultura, a interpretação de umadeterminada seqüência como indicativa de uma determinadapaixão acusará uma tendência quase uniforme dos membros dessacultura em seu reconhecimento. Quase. A título de exemplo, umamesma seqüência de papéis pode ser interpretada como, diga-mos, ambição ou egoísmo. A própria ambição poderá ser consi-derada uma boa ou má qualidade, dependendo de variáveis ine-rentes ao contexto. Assim também ocorre com o par honra e or-gulho, entendidos como força e fraqueza moral, respectivamen-te. Mas não há nem sombra de consenso sobre considerar-se or-gulho como fraqueza moral... há os que o vêem como força su-prema (SCHOPENHAUER 1989/1943, por exemplo) e o contra-põem à vaidade, esta, por sua vez, ligada à honra. Entretanto,mesmo se os membros de uma cultura não nomeiam em unísso-no uma certa seqüência de papéis, tampouco empregarão, paradefini-la, nomes díspares, salvo em casos idiossincráticos, logo,não representativos. A escolha do léxico para uma dada seqüên-cia recairá sobre um eixo, uma espécie de dégradée do efeito desentido, uns indivíduos optando pelo tom mais vibrante, outrospelo tom mais pastel.

Quando se fala em vergonha, esse dégradée lexical tam-bém se coloca, deixando entrever opções que variam desde o�ficar sem jeito� até o �querer desaparecer�, no campo da inten-sidade; desde a desonra até ao sentimento de culpa, no domíniopúblico; desde o recato até a inibição ou a frieza, na área dasrelações amorosas; e assim por diante.

Quanto à moralização secundária, aquela que incide sobrea operação que nomeia a paixão em pauta � já com tantas varia-ções �, apresentará também inúmeros posicionamentos e várias

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matizes dos mesmos. Faz-se necessário, portanto, optar. Optar épegar um deixando outros, é reduzir a favor de maior precisão.Optamos, então, pelo seguinte estratagema: assumimos que osautores doravante citados, ao mencionarem vergonha, estarãofalando da mesma �coisa� e, conseqüentemente, tecerão juízossobre o mesmo objeto. Acreditamos que a cultura garante umgrau de uniformidade que nos permite esta assunção, sem quesejam cometidas violências contra o verbo.

Três temas principais destacam-se no tratamento moral davergonha: seu �parentesco� com o Bem ou o Mal, sua relaçãocom o domínio público e sua circulação no universo socioletalcontemplado. Analisaremos estas três questões com o apoio decitações de poetas, escritores, pensadores e filósofos, tendo comocritério de seleção a variedade, concisão e vivacidade dos pontosde vista emitidos, sem, no entanto, a intenção de exaustividade.

1 PRIMEIRO TEMA: O BEM OU O MAL?

O MAL

�La honte, compagne de la conscience du mal, était venu avec lesannées; elle avait accru ma timidité naturelle au point de la rendreinvincible (...)� ROUSSEAU, les Confessions, III 2

Para Rousseau, implicação do Mal, a vergonha infiltra-seno sujeito desde o instante em que adquire consciência de tertransgredido um preceito moral. Dela não há como escapar, elasegue, inexorável, ao longo da vida do sujeito, tomando espaçoem seu íntimo, aguçando características �naturais�. Não há cura,não há remédio: o Mal estando feito e não podendo ser desfeito,

2 Citamos a partir de Le Robert.

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a vergonha habita o indivíduo até o último dia, como pano defundo de sua personalidade para sempre maculada.

�The most unhappy hours in our lives are those in which we recollecttimes past to our own blushing � If we are immortal that must be theHell� KEATS, 1818, s/l, s/e 3

Já Keats vê na vergonha uma punição: esse sentimentoterrível e insuportável confunde-se com o próprio inferno. É ocastigo supremo, o próprio Mal. Não é, porém, nem implicaçãonem pressuposição do Mal praticado, mas sim pressuposição dosofrimento e, neste sentido, do Mal infligido ao sujeito por umainstância transcendente. O jogo de circunstâncias subjacentes àinstauração da vergonha cede lugar ao sofrimento que o senti-mento representa para o sujeito. Aqui não se coloca a questão seo sujeito está envergonhado por uma falta moral, por um fracas-so, por sua condição, ou por outro motivo. Voltando os olhosexclusivamente às conseqüências da vergonha no íntimo do su-jeito, o poeta desconsidera a discussão de suas causas e coloca osujeito envergonhado unicamente como vítima � de si mesmo,de sua paixão.

O BEM

�He that has no shame has no conscience�THOMAS FULLER, Gnomologia. N. 2148 4

�Where there is yet shame, there may in time be virtue.�SAMUEL JOHNSON, Works, Vol. X, p. 319 5

3 Citamos KEATS a partir de uma anotação pessoal com referências incompletas.4 Citação extraída de The Home Book of Quotations, de Stevenson, 10 ed., 1967,

publicado por Dodd, Mead & Company, N. Y.5 Idem.

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Companheira ou não do Mal, a vergonha é indicativa deum Bem: para Fuller, revela a consciência no sentido de capaci-dade de o sujeito julgar moralmente seus atos; para Johnson,aponta a possibilidade da virtude. Ambos estão falando, portan-to, de vergonha por falta moral. Ora, se é preciso ser (pelo menosum pouco) mau para mal agir, é preciso ser um pouco bom paraenvergonhar-se de sua má ação: é aqui que se revela a compe-tência positiva do sujeito envergonhado, competência que pode-rá, eventualmente, consolidar sua consciência, no sentido de Fuller,e (re)conduzi-lo à virtude. A vergonha, portanto, pressupõe algu-ma bondade do sujeito e pode ser indicativa de caminho parasua recuperação.

O BEM E O MAL

�O sentimento de vergonha não fica bem em todas as idades, masapenas à juventude. Pensamos que os moços são sujeitos a envergo-nhar-se porque vivem pelos sentimentos e por isso cometem muitoserros, servindo a vergonha para refreá-los; e louvamos os jovensque mostram essa propensão, mas a uma pessoa mais velha nin-guém louvaria pelo mesmo motivo, visto pensarmos que ela nãodeve fazer nada de que tenha de envergonhar-se. Com efeito, o sen-timento de vergonha não é sequer característico de um homem bom,uma vez que acompanha as más ações (...) É característico de umhomem mau ser capaz de cometer qualquer ação vergonhosa.�ARISTÓTELES (1987: 76-77).

Valorizada e desejável no jovem, a vergonha indica umapropensão ao uso da consciência como freio para os sentimentose para as ações por eles comandadas. Entretanto, se ela é sinal daação do Bem no jovem, é indicativa da ação do Mal na pessoamais velha. Tendo tido tempo e oportunidade para aprender ediscernir as boas e más ações, a pessoa mais velha que comete

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atos vergonhosos � lembramos que, para ARISTÓTELES (1987:77), �envergonhamo-nos de nossos atos voluntários� � só podeser uma pessoa má; afinal, é mau quem comete más ações. Des-se modo, envergonhar-se (por uma ação voluntária) implica oconhecimento do Bem e do Mal e a fraqueza moral que permitiuao sujeito optar pelo Mal como parâmetro de ação. Essa opçãonão tem perdão, por mais que faça o sujeito sofrer posteriormen-te: o homem só é bom se não comete más ações.

NEM O BEM NEM O MAL

�(...) sentimos vergonha de não ser desavergonhados, quando nosdizem: �Vamos, façamos�.�AGOSTINHO (1987: 36)

Contemplando o aspecto eminentemente social da vergo-nha, Santo Agostinho aponta que envergonhar-se não pressupõeum caráter nem bom nem mau. O sentimento é moralmente neu-tro, cabe à análise de seu objeto, ou de seu complemento, o juízosobre a bondade ou maldade a ele inerente. Envergonhamo-nosde alguma coisa. É esse algo que é passível de juízo moral esten-dido à pessoa. Há aquele que se envergonha de ser generoso,sendo a generosidade valorizada culturalmente, e há o que seenvergonha de ser fraco, sendo a fraqueza condenável pelosmesmos juízes. Logo, a vergonha, por si só, não indica a presen-ça do Bem nem tampouco a presença do Mal.

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2 SEGUNDO TEMA: A CIRCULAÇÃO DA VERGONHA– O PAPEL DO DOMÍNIO PÚBLICO

ABSOLUTO

�Why shameful, if the spectators do not think so?� ARISTOPHANES, The Frogs, I. 1475 6.

Juiz implacável, o olhar alheio pareceria, para Aristófanes,todo poderoso na atribuição e instauração da vergonha; o sujeitoenvergonhado não teria nem poder nem direito sobre o seu sen-timento.

Mais interessante do que apenas enxergar o espectador dosentimento de exposição como juiz absoluto � isso pressuporiaser a vergonha resultante de um controle apenas externo � é pen-sar que a colocação acima dirige o olhar em duas direçõesconcernentes à (des)adaptação do sujeito a seu contexto socio-cultural. Em primeiro lugar, o sujeito envergonhado pode ser exi-gente demais em relação a si mesmo, devendo, então, reduzirsuas expectativas a seu próprio respeito e viver mais coerente-mente com seu microuniverso socioletal. Em segundo lugar, osujeito envergonhado pode pressupor um nível de exigência daparte de seu microuniverso socioletal alto demais em relação aopraticado, devendo, portanto, rever sua ação no mundo, prova-velmente tolhida por receio de uma sanção cognitiva negativaque não acontecerá.

O sujeito é convidado a considerar o não-censurável comoparâmetro para ação; transforma, assim, a decorrência de umasanção negativa passada � a vergonha � em um freio para suaação futura. A vergonha assume seu papel de controle social:

6 Citação extraída de The Home Book of Quotations, de Stevenson, 10 ed., 1967,publicado por Dodd, Mead & Company, N.Y.

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faz-se o que o olhar alheio permite; não se faz o que o olharalheio não permite (ou, com uma freqüência assustadora, hojeem dia, transgride-se a regra, às escondidas: faz-se qualquercoisa, permitida ou não, desde que fora do alcance do olhar dooutro).

IRRELEVANTE

�Le crime fait la honte et non pas l�échafaud.�CORNEILLE, le Compte d�Essex, IV, 37

Numa posição oposta à de Aristófanes, Corneille é um crí-tico ferrenho do utilitarismo que pode decorrer da vergonha: oque o outro vê, o que ele pensa, é irrelevante diante da consciên-cia do Mal praticado. É aí que reside a vergonha, no Mal pratica-do, e jamais na sua punição. Esta nunca deveria ser consideradavergonhosa, parece-nos, por pelo menos dois motivos: se ela éjusta, é o preço justo pago pelo sujeito por seu erro e, seu erroestando pago, não há mais dívida social, e só a própria consciên-cia pode ainda puni-lo; se é injusta, pode sê-lo de duas maneiras,ou indevida, ou insuficiente; em ambos os casos, seria motivo devergonha não para o sujeito que a recebe, mas para a instânciaque a aplica. A vergonha cornelliana, portanto, seria mais umassunto de auto-reflexão 8 , de �foro íntimo�, do que decorrentedo olhar alheio.

7 Citação extraída de Le Robert.8 É claro que se o sujeito é capaz de envergonhar-se por um crime, ele se revela em

conjunção com o quadro axiológico a partir do qual tal crime é consideradovergonhoso; sua consciência íntima decorre de sua imersão nesse quadro axiológico,eapenas se apresenta como se os valores por ela assumidos fossem valores puramente�do indivíduo�.

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APENDICULAR

�(...) il arrive que l�on ait honte simplement par crainte de l�opiniondéfavorable d�autrui � c�est l�aspect �vain� de la honte; la hontevéritable comporte la révélation sincère de notre bassesse ou de notreincapacité; elle est l�expérience douloureuse de notre indignité.� J.MAISONNEUVE, les Sentiments, p. 72.9

O sujeito pode envergonhar-se por conta da opinião alheia,ou diante da própria consciência; a qualidade da vergonha vivi-da dependeria da natureza do olhar, alheio ou próprio... O pri-meiro tipo de vergonha seria superficial, vão; o segundo, profun-do, sincero. Está nas entrelinhas que a consciência do sujeito se-ria uma entidade autônoma dissociada da opinião alheia.

Sabemos, entretanto, que a �consciência�, tão evocadano tema da vergonha, não é um objeto impermeável que o su-jeito desenvolve, ao longo da vida, a despeito do mundo. Ela éuma construção do sujeito a partir das coordenadas ideológicasque vai assumindo dentro do quadro axiológico em que estáinserido.

Até um certo ponto, Maisonneuve ecoa Corneille ao apon-tar que a verdadeira vergonha não diz respeito ao olhar ou àpunição alheios. Em nossa interpretação, essa verdadeira ver-gonha não diz mais respeito ao olhar alheio como tal, mas aoolhar alheio introjetado, apoderado pelo sujeito e seu senhor,esse olhar que o sujeito constrói para si ao ser construído pelacultura, como sujeito cultural. A consciência, de instância autô-noma impermeável decorrente do caráter do sujeito, passa a seruma construção cultural do mesmo em sua interação com omundo. O apêndice que seria o olhar alheio revela-se, numareflexão de fim do século vinte, como uma instância integranteda consciência do sujeito.

9 Citação extraída de Le Robert.

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3 TERCEIRO TEMA: A CIRCULAÇÃO DAVERGONHA – O CONTÁGIO

VER E MOSTRAR VERGONHA

�(...) le vague sentiment de honte que l�on a en présence des genshumiliés au delà de ce qu�ils méritent.� JULIEN GREEN, Adrienne Mesurat, I, X.10

�� Un éclat!... non... mais le divorce... � Moi, publier ma honte!Quelques lâches l�ont fait! c�est le dernier dégré de l�avilissement dusiècle. Que l�opprobre soit le partage de qui donne un pareil scandale(...)�BEAUMARCHAIS, la Mère coupable, III, 9, p. 468.11

Ver a vergonha alheia, ou mostrar a própria ferem um có-digo ligado à reserva, envergonha tanto o já envergonhado comoaquele a quem a vergonha é mostrada. Por um lado, evita-se vero outro em situação constrangedora; por outro, tenta-se escon-der esse tipo de situação. Aliás, é típico da melancolia, uma pato-logia, a capacidade de exibir as próprias mazelas despudorada-mente (FREUD, 1973/ 1915 [1917]: 2093). Mostrar é uma formade confessar, confessar é enunciar:

�...l�aveu implique un énonciataire qui va se trouver pris dans lesimulacre passionnel: en effet, en énonçant sa passion, le sujet meten circulation un dispositif modal sensibilisé, avec des effets de�contagion� que l�on sait.� (GREIMAS E FONTANILLE, 1991: 245)

Exibir a vergonha contagia por derivação12 : captura o enun-ciatário no simulacro passional do envergonhado e realimenta o

10 Citação extraída de Le Robert.11 Idem.12 Sobre o contágio por derivação, ver capítulo 4.

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mesmo simulacro para o sujeito patêmico. Isso se dá por contado papel do sentimento de exposição na configuração da vergo-nha. Intrínseco a ela, sua exacerbação implica o fortalecimentodo outro enquanto juiz e, conseqüentemente, o enfraquecimentodo envergonhado, cada vez menos sujeito da situação e maisobjeto do juízo do outro. O outro, espectador no sentimento deexposição, é o enunciatário capturado na enunciação do simula-cro passional, passível de contágio pelo dispositivo modal sensi-bilizado. Por isso, exibir a vergonha fere um código: aquele �quitient de la pudeur et d�une forme de courtoisie qui veut qu�onn�implique pas trop fortement l�énonciataire dans les effets enspirale de la sensibilisation� (idem: 245). Fazer ver, ou deixar ver(não-fazer-não-ver) a própria vergonha implica o outro; ver avergonha alheia é ser por ela implicado: é a espiral da sensibiliza-ção.

PARENTESCO

�Viens mon fils, viens mon sang, viens réparer ma honte (...)�CORNEILLE, le Cid, I, 5.13

Diferentemente dos anteriores, o sujeito evocado tem odever de assumir a vergonha. A transformação tímica, típica deum discurso apaixonado, cede lugar à competência passional,própria de discursos passionais; o papel patêmico é substituídopor um papel temático: o filho deve reparar a vergonha do pai. Osujeito evocado é pressuposto capaz de assumir e resolver a ver-gonha paterna, apontando a clara valorização moral da posiçãopressuposta e deixando perceber, por oposição às citações ante-riores, a relativa valorização � quase sempre negativa � das posi-

13 Larousse Citations Françaises.

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ções implicadas no simulacro passional. Ao mesmo tempo emque a posição do sujeito surge pressuposta e não implicada pelosimulacro passional, o efeito de sentido da palavra �honte� desli-za do pólo desonra para o pólo honra. Da frase de Corneille,voltamos à reflexão tecida por GREIMAS e FONTANILLE (1991:245) a partir do pensamento de La Rochefoucauld sobre o ciú-me, que explica, a nosso ver, também a oscilação entre desonra ehonra como sinônimos de vergonha:

�Si l�on suit La Rochefoucauld dans ses jugements éthiques, la honteirait à la transformation passionnelle manifestée ici et maintenant,comme une souffrance qui réclame vengeance et que les dictionnairesstigmatisent toujours comme �sentiment mauvais�; en revanche,l�honneur irait aux présupposés, permettant au sujet de se glorifierseulement de ce qui permet d�être jaloux 14 , de ce que la transforma-tion thymique présuppose et réactive comme identité modale.�

A circulação da vergonha pela hereditariedade remete-nosao par desonra/honra e complementa nossa exposição sobre asegunda como um parassinônimo de vergonha que pressupõeliquidação da falta fiduciária. A honra transporta o sujeito do não-poder-ser para o não-poder-não-ser. O saber, próprio e do outro,sobre o estado é decorrência da ação pública reparatória.

Encerramos, aqui, nossas reflexões a respeito da moraliza-ção incidente sobre a vergonha. Embora sempre pensada a partirdo eixo Bem/Mal, optamos também por ressaltar a moralizaçãoincidente sobre sua circulação por publicidade e contágio, doisoutros temas recorrentes nos pensamentos coletados sobre a ver-gonha.

Finalmente, uma vez que a grande maioria das citaçõesacima apresenta o envergonhado como sujeito do fazer, respon-

14 Assim como a honra vai ao que tem a capacidade de enciumar-se, vai a honra tambémàquele que pode se envergonhar; ao que se enciuma e ao que se envergonha resta avergonha da transformação tímica aqui e agora.

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sável por uma falta moral geradora de vergonha, concluímos estecapítulo complementando-o com Paul Morand 15 :

�La honte n�est pas toujours la conscience du mal que nous faisons,elle est souvent la conscience du mal qu�on nous fait.�

15 Larousse Citations Françaises.

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A VERGONHA NOS TEXTOS:DOIS EXEMPLOS

Não são poucos os textos literários que desenvolvem, emalgum momento, estados de alma identificados à vergonha. Noscapítulos anteriores, sobretudo terceiro e quinto, citamos umavariedade de situações e reflexões em torno desta que pode seruma paixão assoladora. Desfilaram desde nomes de autores con-siderados da grande literatura, como outros, de menor reconhe-cimento, dentre os quais citamos, um cujo romance, de valorpolítico-ideológico superior ao literário, valeu uma fátwa (conde-nação à morte por fundamentalistas muçulmanos) a seu autor, amilitante Taslima Nasreen. Na variedade das citações apresenta-das, encontram-se cenas de vergonha mais ou menos suscintas econtundentes, cuja temática abarca desde o diz-que-diz-que coti-diano até a problemática da condição humana. Neste espectrode conteúdos, os motivos de vergonha podem ser toscos ou refi-nados, chãos ou elevados; a intensidade da paixão vivida pelosujeito, porém, parece não ter relação previsível com a qualidadede seu motivo gerador.

Das vergonhas tratadas literariamente, dois textos, deproblemáticas distintas e precisas, caracterizam a paixão comoo simulacro existencial da personagem central: La Chute, deCamus, e Os Desastres de Sofia, de Lispector. Não são os úni-cos, vale apontar que o tema é caro a Dostoiévski, tão caro, defato, que permeia grande parte de sua obra, sugerindo ser avergonha, juntamente com o orgulho e a honra, um simulacroexistencial da humanidade, um motor das ações e intençõeshumanas. Numa outra perspectiva, outras tantas cenas de ver-gonha trazem um observador discorrendo sobre alguém ou algocondenável, observador este externo, pouco ou nada patemiza-do, responsável pela apresentação de juízos de valor estabeleci-

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dos a respeito da vergonha abordada. Este último tipo fornece-nos elementos restritos para a compreensão da vergonha doponto de vista do sujeito patêmico, isto é, de seu simulacro in-terno.

O estudo de La Chute deixa entrever, através do meticulo-so desenvolvimento de um projeto cínico levado a cabo porClamence, o �juge-pénitent�, um palimpsesto da vergonha. Sobas várias investidas de Clamence, a cada momento esvaziandoum novo valor, solapando a confiança do enunciatário nos ou-tros, em si mesmo e, no limite, na própria confiança, lêem-se ascondições de base para a instauração da vergonha, como tenta-remos apontar. Trata-se de uma desintegração de valores funda-mentalmente lógica, operada com os recursos que a razão podefornecer ao homem.

Os Desastres de Sofia traduzem a vergonha de uma meni-na crescendo e provando do �fruto da árvore do conhecimento�.Suas descobertas, relatadas num complexo emaranhado de sen-sações e emoções, em que o intelecto encontra ainda um espaçolimitado e indefinido, acusam uma vergonha de quase puro afe-to, anterior à reflexão, asséptica ainda em relação a tentativas deelaboração. É, em vários sentidos, um relato diametralmente opos-to à exaustiva elaboração apresentada em La Chute.

Temos, assim, de um lado, a pedra lapidar �camusiana�:homem, adulto, advogado eloqüente, com pleno domínio da lin-guagem, da razão e das motivações do gênero humano, exacer-bando sua racionalidade espraiada por sobre os valores funda-mentais à instauração da confiança, em busca de uma saída paraa vergonha por sua queda moral. De outro lado, a pedra bruta deLispector: menina, aprendiz do mundo e da condição humana,dos limites próprios e alheios, confundida por suas descobertas edesorientada pelas emoções delas decorrentes, perplexa diantede uma experiência perturbadora de sua visão do mundo e daordem das coisas. Desse modo, faz par ao homem adulto, expe-

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riente e cínico, uma menina ingênua, inexperiente e crente. Am-bos sujeitos patêmicos da vergonha.

Vejamos, a seguir, a construção simbólica que permite ainstauração da vergonha em cada um desses textos. A análiseque segue não se quer exaustiva nem tampouco almeja cobrirtodas as etapas do percurso gerativo de sentido, isto é, desde asestruturas fundamentais, passando pela sintaxe e semântica nar-rativas, até os temas e figuras da manifestação discursiva. Ao con-trário, trata-se de um breve exame temático-figurativo dos per-cursos dos sujeitos patêmicos da vergonha � Jean-BaptisteClamence, em La Chute, e Sofia, em Os Desastres de Sofia �exclusivamente visando a inferir a �história� modal e passionalque os caracteriza como tal; dito de outro modo, interessa-nosinvestigar os elementos que contribuem à caracterização de cadaum dos sujeitos acima como sujeitos patêmicos da vergonha.

Para tanto, cobriremos três etapas. Em primeiro lugar, im-põe-se reconstruir, em poucas linhas e a partir dos textos de ori-gem, a imagem que o sujeito tem de si mesmo, isto é, a maneiracomo se vê e se crê visto no mundo. Este conjunto de caracterís-ticas que o sujeito projeta, ou acredita projetar a seu microuniver-so cultural constitui o simulacro existencial de partida � aqueleque encerra em seu bojo as projeções que o sujeito faz de si emum imaginário de relaxamento e confiança �, anterior ao eventodisfórico inerente à vergonha. Em segundo lugar, é necessárioabordar o evento disfórico que, em ambos os textos, teremos aocasião de verificar, constitui-se a partir de um programa narrati-vo de desenvolvimento não previsível pelo quadro axiológicosubjacente ao simulacro existencial de partida. Finalmente, ten-taremos mostrar que a articulação � e não a simples justaposição� da imagem que inicialmente o sujeito tem de si (construída den-tro de seu simulacro existencial) e do evento disfórico (relaciona-do a um PN não previsível) estabelece um novo percurso, �envie-sado�, culminando na dupla sanção cognitiva negativa, isto é, no

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saber sobre si mesmo como não-conjunto com a �boa imagem�e no saber o (possível) saber do outro sobre a não-conjunção.Passemos agora aos textos.

1 LA CHUTE

�Pour que la statue soit nue, les beauxdiscours doivent s�envoler�.

CAMUS (1956: 74)

�Camus a tenté, de son côté, de donner dans La Chute l�illustrationd�un monde sans valeur, d�où la confiance serait exclue (...).

Platitude indéfinie, lointains noyés, absence de tout repère topogra-phique et temporel, effacement de toutes les différances figuratives,tout se perd dans une durée stagnante: voilà bien la fin de toutevalence, et a fortiori des systèmes de valeurs articulés qui pourraiten émerger. (...) Chez Camus (...) s�étale une protensivité �mole�,saisie avant sa première articulation, et cela permet de comprendre,comme dans un raisonnement par l�absurde, pourquoi la premièrearticulation de la phorie, en séparant le presque-sujet et le presque-objet, engendre la fiducie: retourner au chaos mou des tensions nonarticulées, c�est, littéralement dans La Chute, ne plus croire en rien,et surtout ne plus croire au croire; la foi dans telle ou telle valeurparticulière présuppose toujours en effet un �méta-croire�, qui n�estautre que la fiducie généralisée (non spécifique) propre à l�espace dela phorie, la précondition de toute croyance particulière. Aussi le�juge-pénitent� de Camus, actant syncrétique par excellence, prati-que-t-il, à la manière des cyniques antiques, le dénigrement systé-matique et la provocation sarcastique. (...)� (GREIMAS e FONTA-NILLE, 1991: 28-9)

De maneira suscinta, os autores resumem o projeto levadoa cabo por Jean-Baptiste Clamence, o �juge-pénitent� de Camus:esvaziar os valores fundamentais ao estabelecimento da confian-

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ça. Apagando o valor do valor, a personagem solapa a confiançana confiança e extingue a pré-condição fundamental da vergo-nha � o que é a confiança relaxada anterior ao evento disfórico,estado que caracteriza o sujeito anteriormente à patemização eque lhe é condição de base1, senão a confiança na confiança?Este projeto de desintegração realiza-se concomitantemente emdois sentidos. Primeiramente, no desenvolvimento do tema du-plicidade, ilustrado abaixo com alguns exemplos:

a) do homem � �Mon métier est double, voilà tout, comme la créature.�(14); �J�aime ce peuple, grouillant sur les troitoirs, coincé dans unpetit espace de maisons et d�eaux, cerné par des brumes, des terresfroides, et la mer fumante comme une lessive. Je l�aime, car il estdouble. Il est ici et il est ailleurs.� (16-7); �Toujours est-il qu�après delongues études sur moi-même, j�ai mis au jour la duplicité profondede la créature. J�ai compris alors, à force de fouiller dans ma mémoire,que la modestie m�aidait à briller, l�humilité à vaincre et la vertue àoprimer.� (90)

b) das coisas e dos atos � �Avez-vous remarqué que la mort seule réveillenos sentiments? Comme nous aimons les amis qui viennent de nousquitter, n�est-ce pas? (...) Mais savez-vous pourquoi nous sommestoujours plus justes et plus généreux avec les morts? La raison estsimple! Avec eux, il n�y a pas d�obligation. Ils nous laissent libres (...)c�est le mort frais que nous aimons chez nos amis, le mort douloureux,notre émotion, nous-mêmes, enfin!� (36-7); �Ah!, cher ami, que leshommes sont pauvres en invention. Il croient toujours qu�on se sui-cide pour une raison. Mais on peut très bien se suicider pour deuxraisons. Non, ça ne leur entre pas dans la tête. Alors, à quoi bonmourir volontairement, se sacrifier à l�idée qu�on veut donner desoi? Vous mort, ils en profiteront pour donner à votre geste des motifsidiots, ou vulgaires.� (80-1); �La face de toutes mes vertues avaitainsi un revers moins imposant. Il est vrai que, dans un autre sens,mes défauts tournaient à mon avantage. L�obligation où je me trouvais

1 Sobre a confiança e o relaxamento, ver capítulo 2.

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de cacher la partie vicieuse de ma vie me donnait par exemple un airfroid que l�on confondait avec celui de la vertue, mon indifférenceme valait d�être aimé, mon égoïsme culminait dans mes générosités.�(90-1)

c) dos bens morais � �...il est bien difficile de démêler le vrai du fauxdans ce que je raconte (...) Qu�importe après tout? Les mensongesne mettent-il pas finalement sur la voie de la vérité? (...) On voitparfois plus clair dans celui qui ment que dans celui qui dit vrai. Lavérité, comme la lumière, aveugle. Le mensonge, au contraire, estun beau crépuscule, qui met chaque objet en valeur.� (126); �...laliberté n�est pas une recompense (...) Oh, non, c�est une corvée, aucontraire, et une course de fond, bien solitaire, bien exténuante (...)Au bout de toute liberté il y a une sentence; voilà pourquoi la libertéest trop lourde à porter (...) Il faut donc choisir un maître, Dieu n�étantplus à la mode� (138-9); �Vive donc le maître, quel qu�il soit, pourremplacer la loi du ciel. �Notre père qui êtes provisoirement ici...Nos guides, nos chefs délicieusement sévères, ô conducteurs cruelset bien-aimés...�Enfin, vous voyez, l�essentiel est de n�être plus libreet d�obéir, dans le repentir, à plus coquin que soi. Quand nous seronstous coupables, ce sera la démocratie.� (141-2)

Paralelamente ao tema duplicidade, cujo desenvolvimentocontempla muitos outros tópicos além dos acima citados, o �juge-pénitent� investe no apagamento das diferenças figurativas,cultuando a desejabilidade da ausência de relevo, da miscuidadede céu e chão através da água na forma de nuvem, bruma e mar,da fusão e diluição das cores no cinza:

�Voilà, n�est-ce pas, le plus beau des paysages négatifs! Voyez, ànotre gauche, ce tas de cendres qu�on appelle ici une dune, la diguegrise à notre droite, la grève livide à nos pieds et, devant nous, lamer couleur de lessive faible, le vaste ciel où se reflètent les eauxblêmes. Un enfer mou, vraiment! Rien que des horizontales, aucunéclat, l�espace est incolore, la vie morte. N�est-ce pas l�effacementuniversel, le néant sensible aux yeux?� (77-8);

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�Mais le Zuiderzee est une mer morte, ou presque. Avec ses bordsplats, perdus dans la brume, on ne sait où elle commence, où ellefinit. Alors, nous marchons sans aucune repère, nous ne pouvonsévaluer notre vitesse. Nous avançons, et rien ne change. Ce n�estpas de la navigation, mais du rêve.� (103)

Assim, ao longo da execução do projeto do �juge-pénitent�,desponta como ideal o insípido, o inodoro, o incolor � a exemploda água, símbolo da vida, que traspassa esse texto sobre a morte!�, um mundo em que tudo se funde e se confunde: tudo sendoduplo e indiferenciável, amalgamam-se o alto e o baixo, o sim e onão, o lá e o aqui, o Bem e o Mal. Desse modo, não existe integri-dade ou inteireza definíveis; por decorrência, não existe possibili-dade de confiança. Plasmando o indiferenciável, Clamence re-constrói um espaço do nada, do vazio, e pode reencontrar o �pa-raíso� perdido: escapar, finalmente, à vergonha por sua quedamoral.

O projeto de esvaziamento dos valores é, portanto, realiza-do através do desenvolvimento de um tema principal, a duplici-dade, e do apagamento das diferenças figurativas. Subjaz, po-rém, à sua execução a abordagem das diferenças a serem apaga-das. Se a confiança, dentre os valores, depende do crer, e se ocrer inexiste sem articulação das tensões, isto é, sem diferencia-ção dos opostos, a abordagem destes � com a finalidade de se osapagar no texto � deixa entrever, num movimento contrário aoexecutado pelo �juge-pénitent�, as condições de base da con-fiança e, conseqüentemente, da vergonha. Por isso dissemos aci-ma que La Chute contém um palimpsesto da vergonha: aquilo �a vergonha � a ser aniquilado é um construto, sua destruiçãopressupõe seu reconhecimento.

Vejamos agora a história � a construção simbólica � da ins-tauração da vergonha motivadora do projeto acima.

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A VERGONHA NOS TEXTOS: DOIS EXEMPLOS

1.1 O SIMULACRO EXISTENCIAL DE PARTIDA

Sob o discurso de Clamence, estabelece-se o percurso deum célebre advogado, apresentado como o próprio �juge-péni-tent�, no passado, antes de assumir suas presentes funções. Daesfera pública por excelência, esse homem das leis realizado cons-trói seu simulacro existencial rebatendo seu papel profissional atodo seu ser:

�Je jouissais de ma propre nature (..) Je jouissais, du moins, de cettepartie de ma nature qui réagissait si exactement à la veuve et àl�orphelin qu�elle finissait, à force de s�exercer, par régner sur toutema vie. Par exemple, j�adorais aider les aveugles à traverser les rues.Du plus loin que j�appercevais une canne hésiter sur l�angle d�untrottoir, je me précipitais, devançais d�une seconde, parfois, la maincharitable qui se tendait déjà, enlevais l�aveugle à toute autresollicitude que la mienne et le menais d�une main douce et ferme surle passage clouté, parmi les obstacles de la circulation, vers le havretranquille du trottoir où nous nous séparions avec une émotionmutuelle. De la même manière, j�ai toujours aimé renseigner lespassants dans la rue, leur donner du feu, prêter la main aux charrettestrop lourdes, pousser l�automobile en panne, acheter le journal de lasalutiste, ou les fleurs de la vielle marchande, dont je savais pourtantqu�elle les volait au cimetière Montparnasse. J�aimais aussi, ah! celaest plus difficile à dire, j�aimais faire l�aumône. Un grand chrétien demes amis reconnaissait que le premier sentiment qu�on éprouve àvoir un mendiant approcher de sa maison est désagréable. Eh bien,moi, c�était pire: j�éxultais.� (24-5)

�Ce sont des petits traits, mais qui vous feront comprendre lescontinuelles délectations que je trouvais dans ma vie, et surtout dansmon métier. Être arrêté, par exemple, dans les couloirs du Palais, parla femme d�un accusé qu�on a défendu pour la seule justice ou pitié,je veux dire gratuitement, entendre cette femme dire que rien, non,rien ne pourra reconnaître ce qu�on a fait pour eux, répondre alorsque c�était bien naturel, n�importe qui aurait fait autant, offrir mêmeun aide pour franchir les mauvais jours à venir, puis, à fin de couper

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court les effusions et leur garder ainsi une juste résonance, baiser lamain d�une pauvre femme et briser là...� (27)

�Ma profession satisfaisait heureusement cette vocation des sommets.Elle m�enlevait toute amertume à l�égard de mon prochain quej�obligeais toujours sans jamais rien lui devoir. Elle me plaçait au-dessus du juge que je jugeais à son tour, au-dessus de l�accusé que jeforçais à la reconnaissance.� (29-30)

Convencido de possuir a competência necessária para es-tar sempre do lado do Bem, do lado da Justiça � �On aurait cruvraiment que la justice couchait avec moi tous les soirs� (22) �, lêsua ação no mundo como coerente com essa imagem de si mes-mo. Simpático, afável, bem sucedido profissionalmente e nas con-quistas amorosas, esse sujeito tem como ambição suprema seruma espécie de super-homem: �atteindre plus haut que l�ambitiuexvulgaire et se hisser à se point culminant où la vertue ne se nourritplus que d� elle même� (27). Dono de tão favorável imagem de simesmo, o advogado acredita viver acima dos homens e das leis:

�...je vivais impunément. Je n�étais concerné par aucun jugement, jene me trouvais pas sur la scène du tribunal, mais quelque part, dansles cintres, comme ces dieux que, de temps en temps, on descend,au moyen d�une machine, pour transfigurer l�action et lui donnerson sens.� (30)�Les juges punissaient, les accusés expiaient et moi, libre de toutdevoir, soustrait au jugement comme à la sanction, je régnais,librement, dans une lumière édénique.� (31)

O jovem e célebre advogado é apresentado, portanto, comoum sujeito:

a) fortemente modalizado pelo querer: quer ser superior e quer serreconhecido como tal;

b) dotado da competência necessária para realizar seu querer, tanto nocampo profissional: �(..) Je jouissais, du moins, de cette partie de ma

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nature qui réagissait si exactement à la veuve et à l�orphelin...� (24),quanto no âmbito pessoal: �(...) Je n�ai jamais eu besoin d�apprendreà vivre. Sur ce point, je savais déjà tout en naissant. Il y a des gensdont le problème est de s�abriter des hommes, ou du moins de s�arran-ger d�eux. Pour moi, l�arrangement était fait. Familier quand il lefallait, silencieux si nécessaire, capable de désinvolture autant quede gravité, j�étais de plein-pied.� (31); ambas competências �natu-rais� para o sucesso;

c) agindo no mundo de acordo com o quadro acima e reconhecidocomo tal: �Aussi ma popularité était-elle grande et je ne comptaisplus mes succès dans le monde. Je n�étais pas mal fait de ma personne,je me montrait à la fois danseur infatigable et discret érudit, j�arrivaisà aimer en même temps, ce qui n�est guère facile, les femmes et lajustice, je pratiquais le sports et les beaux-arts, bref, je m�arrête...�(31-2);

d) fortalecendo, através das sanções positivas próprias e de seu micro-universo, sua imagem favorável, realimentando seu querer a pontode este subsumir o dever � só existe o dever autodestinado: �...moi,libre de tout devoir, soustrait au jugement comme à la sanction, jerégnais, librement, dans une lumière édénique.� (31); �Mais imaginez,je vous prie, un homme dans la force de l�âge, de parfaite santé,généreusement doué, habile dans les exercices du corps comme dansceux de l�intelligence, ni pauvre ni riche, dormant bien, et profondé-ment content de lui-même sans le montrer autrement que par unesociabilité heureuse. Vous admettrez alors que je puisse parler, entoute modestie, d�une vie réussie.� (32); �La vie, ses êtres et ses donsvenaient au-devant de moi; j�acceptais ces hommages avec unebienveillante fierté. En vérité, à force d�être homme, avec tant deplénitude et de simplicité, je me trouvais un peu surhomme (...) àforce d�être comblé, je me sentais, j�hésite à avouer, désigné. Désignépersonnellement, entre tous, pour cette longue et constante réussite(...) je ne pouvais croire que la réunion, en une personne unique, dequalités si différentes et si extrêmes, fût résultat du seul hasard.� (33).

Nesse simulacro existencial, o jovem advogado projeta-secomo bom, justo, generoso, bem sucedido, amado e respeitado,

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etc. Em suma, um homem perfeito, um super-homem. Envoltonessa formidável imagem de si mesmo, reconhece ter �plané,littéralement, pendant des années (...) jusqu�au soir où...� (34).Falaremos dessa noite adiante, pois é dela que surge o elementotransformador do advogado em �juge-pénitent�. Entrementes,falemos de outra noite, uma noite fria de outono, de chuva fina,numa ponte de Paris...

1.2 O EVENTO DISFÓRICO

�Cette nuit-là, en novembre, deux ou trois ans avant le soir où jecrus entendre rire dans mon dos, je regagnais la rive gauche, et mondomicile, par le pont Royal. (...) Sur le pont je passait derrière uneforme penchée sur le parapet, et qui me semblait regarder le fleuve.De plus près, je distinguai une mince jeune fille, habillée de noir. Entreles cheveux sombres et le col du manteau, on voyait seulement unenuque, fraîche et mouillée, à laquelle je fus sensible. Mais je poursui-vis ma route, après une hésitation. Au bout du pont, je pris les quaisen direction de Saint-Michel, où je demeurais. J�avait déjà parcouruune cinquantaine de mètres, à peu près, lorsque j�entendis un bruit,qui, malgré la distance, me parut formidable dans le silence nocturne,d�un corps qui s�abat sur l�eau. Je m�arrêtai net, mais sans me retourner.Presque aussitôt, j�entendis un cri, plusieurs fois répété, qui descendaitlui aussi le fleuve, puis s�éteignit brusquement...� (74-5)

Voltando da casa de uma amiga, de madrugada, contenteconsigo mesmo e com a noite agradável que passara, o célebreadvogado é surpreendido por um drama: a poucos passos deonde se encontrava, uma jovem atira-se ao rio, indubitavelmentecom o fim de suicidar-se. Chamado a exercer sua competênciaem favor dos fracos e oprimidos � aliás, competência natural emseu simulacro existencial � eis que nosso sujeito hesita, querendoe não querendo agir:

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�Je voulus courir et je ne bougeai pas. Je tremblais, je crois, de froidet de saisissement. Je me disais qu�il fallait faire vite et je sentais unefaiblesse irrésistible envahir mon corps.� (75)

Habituado a viver �bien au-dessus des fourmis humaines�(29), �libre de tout devoir, soustrait au jugement comme à la sanc-tion� (31) , �sans autre continuité que celle, au jour le jour, dumoi-moi-moi� (55), o jovem advogado age segundo o código daindependência, da liberdade 2, e opta pela inércia, pela inação,em suma, pela omissão de socorro, como resposta ao aconteci-mento que tenta invadir sua vida:

�J�ai oublié ce que j�ai pensé alors. �Trop tard, trop loin...� ou quelquechose de ce genre. J�écoutais toujours, immobile. Puis, à petits pas,sous la pluie, je m�éloignai. Je ne prévins personne.� (75)

O desconforto, ligado a uma certa confusão mental, que ex-perimenta retrata a suspeita de incompatibilidade entre seu simu-lacro existencial de partida � o homem perfeito, justo, bom � e suaação � omissão de socorro. A fim de resolver a questão, decide in-vestir no esquecimento do ocorrido: �Cette femme? Ah! je ne saispas vraiment, je ne sais pas. Ni le lendemain, ni les jours qui sui-vrent, je n�ai lu les journaux.� (76). Na ausência de testemunhas, épreciso apenas �esquecer�: apagando de sua memória o episódio esua atuação no mesmo, a personagem retira da consciência qual-quer possibilidade de suspeita a seu próprio respeito. Desse modo,sua atuação em relação ao suicídio da moça � o programa narrativoque desempenha na circunstância � não o incomoda pelo únicomotivo de não lhe ocupar a consciência. Além disso, a ausência de

2 O texto La Chute discorre sobre a liberdade de decisão do sujeito autônomo; nestaanálise, liberdade e independência são termos tomados como representativos dapossibilidade, como o faz FONTANILLE (1993: 63), e não contrários, a exemplo dadenominação sugerida por GREIMAS e COURTÈS (1979: 338), na qual �liberdade�vem associada ao poder-fazer e �independência�, ao poder-não-fazer;

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testemunhas, além de não lhe perturbar o conforto do esqueci-mento, garante-lhe a impunidade e, conseqüentemente, a con-servação de sua �boa imagem�. Desse modo, por alguns anos, osujeito assegura sua paz de espírito e vive de consciência tranqüi-la, até a noite, mencionada acima, em que �deixa de planar�.

1.3 O RISO

Um riso se faz ouvir, às costas do advogado, uma noite emque passa por sobre uma outra ponte de Paris. Desagradavel-mente surpreso, procura em vão por sua origem, que acaba sus-peitando ser sua própria consciência. Esse riso torna-se um ope-rador da transformação do advogado em �juge-pénitent� � figu-ra dupla, actante sincrético �, através de um longo processo queinclui recuperação da memória e severa autocrítica.

Dentre as lembranças despertadas desde o riso enigmático,destaca-se, como a mais cuidadosamente subtraída à memória,aquela em que a imagem pessoal que tem de si e sua atuação � frutounicamente de sua decisão, sem fatores externos ao seu controle e àsua vontade � são absolutamente incompatíveis: a do suicídio dajovem, citado acima. Essa será a lembrança-chave da personagem.

Até recordar-se, sob o jugo do riso misterioso, do episódiodo suicídio, o sujeito conseguia eficientemente manter dissociadosseu simulacro existencial de partida e sua atuação na circunstânciaevocada. Tudo se passa como se, discordando de ARISTÓTELES(1987: 77), quando este afirma: �É característico de um homemmau o ser capaz de cometer qualquer ação vergonhosa�, o advo-gado nem suspeitasse que a �boa imagem� � sua imagem de sujeitoperfeito � pudesse não emergir imaculada de ações más, como seser e fazer corressem independentes. E teria prosseguido no confor-to da ignorância, ou da indiferença, não fosse uma espécie de jus-tiça imanente fazer explodir às suas costas um riso perturbador:

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�Surpris, je fis volte face: il n�y avait personne. J�allai jusqu�au garde-fou: aucune péniche, aucune barque. Je me retournai vers l�île et, denouveau, j�entendis le rire dans mon dos, un peu plus lointain, commes�il descendait le fleuve. Je restai là, immobile. Le rire décroissait,mais je l�entendais encore distinctement derrière moi, venu de nullepart, sinon des eaux.� (42-3)

Arrancado de sua espera relaxada por um riso que repete acena do suicídio de anos antes � noite deserta; ponte de Paris;som que vem das águas, desce o rio e decresce até se extinguir;imobilidade... �, o sujeito suspende a confiança em si e nos ou-tros. Com a suspensão da confiança está apto a se recordar deepisódios, na maioria vexatórios ou condenáveis, em que esteveenvolvido e refletir sobre sua atuação neles. O riso, portanto, tor-na-se um catalisador de descobertas a respeito de si próprio, atra-vés da memória que ativa:

�Avec quelques autres vérités, j�ai découvert ces évidences peu àpeu, dans la période qui suivit le soir3 dont je vous ai parlé. Pas toutde suite, non, ni très distinctement. Il a fallu d�abord que je retrouvela mémoire. Par degrés, j�ai vu plus clair, j�appris un peu de ce que jesavais.� (54)

Com a recuperação da memória, vêm à tona lembrançasincompatíveis com sua �boa imagem�, o conjunto de projeções apartir do qual se enxergava no simulacro existencial:

�Eh bien, quand je retrouvai le souvenir de cette aventure 4, je comprisce qu�elle signifiait. En somme, mon rêve n�avait pas résisté à l�épreuvedes faits. J�avais rêvé, cela était clair maintenant, d�être un homme

3 Noite em que ouviu o riso às suas costas.4 Refere-se a um episódio vexatório no trânsito: tendo descido do carro para reclamar

com um motociclista que não avançava ao sinal verde, acabou ouvindo buzinadas,xingos, levou um soco pelas costas e voltou para o carro confuso, estonteado, sob umcomentário de �pauvre type!� e um coro de buzinas.

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complet, qui se serait fait respecter dans sa personne comme dansson métier. Moitié Cerdan, moitié de Gaulle, si vous voulez. Bref, jevoulais dominer en toutes choses (...)Mais, après avoir été frappé enpublic sans réagir, il ne m�était plus possible de caresser cette belleimage de moi-même.� (59-60)

�Quand j�étais menacé, je ne devenais pas seulement un juge à montour, mais plus encore: un maître irascible qui voulait, hors de touteloi, assommer le délinquant et le metrre à genoux. Après cela, moncher compatriote, il est bien difficile à se croire une vocation de justicier,de défenseur prédestiné de la veuve et de l�orphelin.� (61)

Ora vítima de circunstância vexatória, ora ardendo de dese-jo de humilhar, aos poucos esvai-se a �boa imagem� em favor deoutra, imperfeita, dupla. Em suma, neste ponto, o sujeito, já arran-cado de sua espera confiante e relaxada, reconhece-se não-con-junto com a �boa imagem� e experimenta insatisfação e decepção.

A percepção da não-conjunção com o objeto-valor tem pelomenos duas decorrências. Em primeiro lugar, instaura o senti-mento de inferioridade: ele não é quem pensava ser, não é nemperfeito, nem superior, nem mesmo extraordinário. Na esquizoti-mia que o caracteriza nesse momento, tenta neutralizar o senti-mento de inferioridade �colando-se� à instância julgadora: �Jeriais de mes discours et de mes plaidoiries. Plus encore de mesplaidoiries, d�ailleurs, que de mes discours au femmes. À celles-ci, du moins, je mentais peu.� (70). O riso, porém, sendo insufi-ciente, investe na deslegitimização dos valores com os quais sereconhece não-conjunto: �Malgré les apparences, j�étais donc plusdigne dans ma vie privée, même, et surtout, quand je me condui-sais comme je vous l�ai dit, que dans mes grandes envolées pro-fessionnelles sur l�innocence et la justice. Du moins, me voyantagir avec les êtres, je ne pouvais pas me tromper sur la vérité dema nature. Nul homme n�est hypocrite dans ses plaisirs...� (70-1).

No quadro do sentimento de inferioridade, o julgar temlugar de destaque, tanto enquanto sua função como enquanto

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seu conteúdo. Explicamos: para considerar-se inferior à �boaimagem�, o sujeito tem de julgar a si mesmo: acreditava projetar-se como A, projetou-se como B; é, portanto, reconhecido comoB (não A). Em seguida, a reação de nosso sujeito é de, na tenta-tiva de defender-se de seu próprio juízo, estendê-lo aos outros:�Quand j�étais menacé, je ne devenais pas seulement un juge àmon tour, mais plus encore...� (61). Todavia, ao julgar os outros,coloca-se em posição digna de desprezo em relação a seu simula-cro existencial de partida, quando era movido pela �satisfactionde se (me) trouver du bon côté de la barre et un mépris instinctifenvers les juges en général� (22). O sujeito, portanto, por julgar asi mesmo sente-se inferior e, por sentir-se inferior, estende o juízoaos outros. Porém, sempre tendo desprezado quem julga, reali-menta, ao julgar, seu sentimento de inferioridade.

Se julgar, porém é ato ou característica desprezível e reali-menta a inferioridade, julgar comanda ser julgado e abre espaçoà vulnerabilidade:

�J�ai compris cela d�un coup, le jour où le soupçon m�est venu que,peut-être, je n�étais pas si admirable. Dès lors, je suis devenu méfiant(...) je me sentais vulnérable, et livré à l�accusation publique. Messemblables cessaient d�être à mes yeux l�auditoire respectueux auqueldont j�avait l�habitude. (...) À partir du moment où j�ai appréhendéqu�il y eût en moi quelque chose à juger, j�ai compris, en somme,qu�il y avait en eux une vocation irrésistible au jugement.� (83)

Através da capacidade de julgar, característica inerente aohomem, está preparado o campo para o sentimento de exposi-ção: todos estão expostos ao juízo dos outros. E, como para �lejugement, aujourd�hui, nous sommes toujours prêts� (82), existeapenas uma solução: �surtout, la question est d�éviter le jugement(...), d�éviter d�être toujours jugé� (82).

Decorrências da percepção da não-conjunção com a �boaimagem�, a inferioridade e o juízo, o segundo realimentando a

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primeira e conduzindo à exposição, instauram a vergonha. Delaescapar é o projeto do �juge-pénitent�, resumível na sentença �ils�agit (...) de couper au jugement� (82). Entender a �históriamodal� de sua instauração é nossa intenção, à guisa de conclu-são desta breve análise de La Chute.

Tanto o simulacro existencial de partida quanto o progra-ma narrativo em torno do suicídio presenciado possuem cada umuma seqüência modal característica. Estas seqüências resumem,de maneira clara e concisa, a dinâmica da formação da �boa ima-gem�, no primeiro, e da atuação do sujeito, no segundo:

Seqüência I

a construção da �boa imagem�: satisfação e confiança

(realimenta querer-ser)

querer-ser poder-ser fazer-ser saber-ser

reconhecido competência natural excelência em tudo: satisfação, respeito,

publicamente para defender fracos e todos os atos praticados, honra, veneração,

como super-homem, oprimidos e para se públicos e privados sucesso, dinheiro,

como superior colocar na vida etc.

Seqüência II

envolvimento no suicídio : hesitação e opção pela independência

(dever-fazer) q-e-não-q-fazer poder-não-fazer não-fazer** n-saber-n-fazer

(só existe dever hesitação: luta independência omissão de socorro esquecimento

autodestinado entre consciência liberdade* impunidade

= querer) e desejo

Observações:fazer = tentar salvar a moça;* = lembramos que liberdade e independência são termos tomados como repre-sentativos da possibilidade (ver nota n. 2, neste capítulo);** = a omissão de socorro não é uma simples �ausência de fazer�, mas sim umarecusa de fazer, isto é, o cumprimento da decisão de não fazer; por isso a consi-

deramos da ordem da performance.

↓ ∧< < < <

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Vimos que essas duas seqüências coexistem sem comuni-cação, ao longo de alguns anos. À flor da consciência, num ima-ginário de relaxamento e confiança, o sujeito continua a projetar-se como bom, justo, superior, etc., e a colher os frutos de suaadmirável existência; em seu limbo, escondido da memória, oepisódio do suicídio, sua deplorável conduta e a impunidade de-corrente são mantidos �congelados�. E nada teria mudado, nãofosse o riso enigmático às suas costas.

PAGNOL (1990) avança a hipótese de que existem doistipos de riso, um positivo e um negativo, um saudável, repousante,outro duro, quase triste. O segundo tipo retrataria um raciocínioverbalizável aproximadamente como:

�Je ris parce que tu es inférieur à moi. Je ne ris pas de ma superiorité,je ris de ton infériorité.C�est le rire négatif, le rire du mépris, le rire de la vengeance, de lavendetta, ou, toute au moins, de la revanche�. PAGNOL (1990: 26)

KARASSEV (1993: 31-44), sob uma perspectiva mais filo-sófica, também sugere dois tipos principais de riso: �...derrière ladiversité réelle du rire se dessinent les contours de deux de sesformes supérieures qui symbolisent l�opposition et le lien du mondede la nature et du monde de la culture.�

O riso ouvido pela personagem de La Chute parece ser oda revanche da natureza sobre a cultura, o da revanche de suanatureza sobre sua atuação pública: todos os sucessos, a alta opi-nião de si. É o riso da sanção negativa vinda sabe-se lá de onde,mas capaz de arrancá-lo do universo de relaxamento e confian-ça. É operador de sua mudança em �juge-pénitent�.

Para compreender o efeito devastador desse riso, tomemosas duas sequências modais acima, contrapondo-as. Assim se pode,numa leitura diagonal, encontrar o lugar que o riso ocupa e en-tender seu poder:

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Seqüência Diagonal � articulação das seqüências I e II a partir do riso

querer-ser poder-ser fazer-ser saber-serreconhecido competência natural excelência em tudo: satisfação, respeito,publicamente para defender fracos e todos os atos praticados, honra, veneração,como super-homem, oprimidos e para se públicos e privados sucesso, dinheiro,como superior colocar na vida etc.

suicídio: manipulação 5 paraexercer competência �natural�

(dever-fazer) q-e-não-q-fazer poder-não-fazer não-fazer n-saber-n-fazersomente dever hesitação: luta independência omissão de socorro esquecimentoautodestinado entre consciência liberdade impunidade (=querer) e desejo

saber-não-sersanção cognitiva: independênciae liberdade não compatíveis com�competência natural�;sanção pragmática: risoestabelecimento da falta

recuperação da memória:reconhecimento da falta

�juge-pénitent�:

liquidação da falta

5 Num encadeamento lógico, a manipulação antecede a competência. Para o sujeitoenvergonhado, sua competência presumida � em La Chute, a �competência natural�� é percebida como um dado da natureza; tudo se passa como se a manipulaçãosurgisse para que a competência presumida fosse exercida, invertendo a ordem depressuposição lógica. Assim, a ruptura que a performance acusa na articulação dasduas seqüências coloca em questão a crença do sujeito na competência presumida e,por extensão, em si mesmo.

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O percurso enviesado, construído por pressuposição a par-tir do relato do �juge-pénitent�, revela, na articulação das duasseqüências anteriores, uma alteração do lugar que os eventosocupam. O suicídio, evento disfórico em torno do qual se deli-neia o PN da omissão de socorro � Seqüência II �, comparece,na Seqüência Diagonal, como agente manipulador, chamandoo advogado a exercer sua competência �natural� � Seqüência I� em favor dos necessitados. Na Seqüência Diagonal, é a per-formance, a omissão de socorro, que tem valor de eventodisfórico, por ser imprevisível dentro do quadro de Seqüência Ie incompatível com a mesma: �mes actions les plus graves ontété souvent celles où j�étais le moins engagé� (94). O riso, pivôda articulação enviesada, é a sanção específica à Seqüênciadiagonal.

É o riso cínico, confrontador da �boa imagem�do sujeito ede sua ação, daquilo que o sujeito acredita ser e do que é, doparecer e do ser:

�Le rire cynique convoque donc l�autre face des choses, des condui-tes et des valeurs, il met en évidence la duplicité des conduites et,comme disent les philosophes, il est la �mauvaise conscience de lacivilisation�. En tant qu�opération véridictoire, il consacre l�altérité duréel par rapport à la culture� (FONTANILLE: 1993: 62)

De caráter duplo, por definição � há a instância que ri eaquela de quem se ri � o riso faz o sujeito:

a) �colar-se� ao quadro axiológico subjacente à performance, quadroesse que, obviamente, pressupõe a independência, prevista na Se-qüência II, mas inadmissível, na Seqüência diagonal, esta últimaabarcando a �competência natural�, da Seqüência I � �Pour prévenirle rire, j�imaginai donc de me jeter dans la dérision générale (...) Jevoulais mettre les rieurs de mon côté ou, du moins, me mettre deleur côté� (96-7);

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b) zombar, em primeiro lugar, da �competência natural� para a justiça,bondade e perfeição, constante da Seqüência I e incapaz de levar osujeito a agir coerentemente com ela, na Seqüência diagonal; e, emsegundo lugar, mudar o foco de zombaria: �Alors, il valait mieux

tout recouvrir, jugement et estime, d�un manteau de ridicule.� (99).

O riso aponta a falta fiduciária: �...il me semblait que chacunde ceux que je rencontrait me regardait avec un sourire caché.J�eus même l�impression, à cette époque, qu�on me faisait descrocs-en-jambe. Deux ou trois fois, en effet, je butai, sans raison,en entrant dans des endroits publics. Une fois même, je m�étalai.Le Français cartésien que je suis eut vite fait de se reprendre etd�attribuer ces accidents à la seule divinité raisonnable, je veuxdire le hasard. N�importe, il me restait de la défiance.� (83-4).

Uma vez estabelecida e reconhecida a falta, o sujeito podeexperimentar a paixão �vergonha�. Com a recuperação da me-mória, a confiança suspensa não pode ser restabelecida, seus atosnão deixam dúvida: �...Quand je pense à cette période où jedemandais tout sans rien payer moi-même, où je mobilisais tantd�êtres à mon service, où je les mettais en quelque sorte aufrigidaire, pour les avoir un jour ou l�autre sous la main, à maconvenance, je ne sais comment nommer le curieux sentimentqui me vient. Ne serait-ce pas la honte? La honte, dites-moi, moncher compatriote, ne brûle-t-elle pas un peu?� (73)

Que fazer? Padecer de eterna vergonha? Insuportável. Es-quecer novamente? Impossível. Confessar sua falta? A quem, se�...nous avons le nez sale et nous nous mouchons mutuellement.�(117)? A solução de Jean-Baptiste Clamence é o reconhecimentode seu duplo papel, de julgar e ser julgado � �juge-pénitent� � e aproposta de um novo �sistema de valores�, se assim podemosdizer, a proposta de um universo em que a falta fiduciária é liqui-dada de maneira cabal e indiscutível: através da liquidação dafidúcia, através do esvaziamento dos valores, da extinção da con-

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fiança e, portanto, da própria falta e da vergonha de que é pivô.Afora essa solução, resta apenas a definitiva, a morte: �Pour cesserd�être douteux, il faut cesser d�être, tout bellement.� (80); �Masolution, bien sûr, ce n�est pas l�idéal. Mais quand on n�aime passa vie, quand on sait qu�il faut en changer, on n�a pas le choix,n�est-ce pas? Que faire pour être un autre? Impossible. Il faudraitn�être plus personne...� (150)

Concluímos aqui a análise da construção da vergonha emLa Chute.

2 OS DESASTRES DE SOFIA

Sofia adulta evoca a memória de Sofia adolescente, aostreze anos, a partir da notícia da morte de um professor. Esseprofessor tem um papel muito importante para a Sofia menina,aos nove anos de idade, momento em que se passa a históriaque o conto relata.

Conto multiforme e fugidio, suas muitas isotopias permi-tem uma variedade de leituras quase tão grande quanto o futuroaberto à Sofia criança. Segue, abaixo, uma leitura possível dotexto, destacando as condições de transformação patêmica dapersonagem e instauração da paixão vergonha.

2.1 O SIMULACRO EXISTENCIAL DE PARTIDA

Sob a perspectiva da instauração da vergonha, Sofia é umaaprendiz da vida, solta em meio a um turbilhão de afetos que aassaltam, transmutam sua ação e a colocam em situações inespe-radas. Face a um homem triste e pesado, seu professor, �amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adul-

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to, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homemforte de ombros tão curvos� (71) e se acredita dotada de um de-ver e de um não-poder salvá-lo � �Era de se lamentar que tivessecaído em minhas mãos erradas a tarefa de salvá-lo pela tenta-ção.� (72)

Menina que se crê má � �Essa não é flor que se cheire�(72), dizia a empregada, �Ser matéria de Deus era minha únicabondade.� (73), reflete a personagem � vê-se investindo num pro-grama e realizando outro: �Cada dia renovava-se a mesquinhaluta que eu encetava pela salvação daquele homem. Eu queria oseu bem, e em resposta ele me odiava. Contundida, eu me torna-ra o seu demônio e tormento...� (71). Assistindo ao despertar doódio, em resposta a seus esforços, resigna-se e aceita sua malda-de intrínseca: �ter nascido era cheio de erros a corrigir� (74).

Sofia menina, portanto, vê-se como uma criança má quedeve e quer salvar o professor de ombros curvos de seu mundotriste. Para tanto, tenta insistentemente manipulá-lo:

�Eu me tornara sua sedutora, dever que ninguém me impusera. Erade se lamentar que tivesse caído em minhas mãos erradas a tarefade salvá-lo pela tentação...� (72, grifos nossos)

�Estudar eu não estudava, confiava na minha vadiação sempre bemsucedida e que também ela o professor tomava como mais umaprovocação da menina odiosa.� (73, grifo nosso)

�... na falta de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu tambémo acossava com o olhar...� (75, grifo nosso)

Sedução, tentação, provocação, intimidação, qualquer for-ma de manipulação vale para tentar arrancar o professor de seumarasmo. Passando de sua competência �de mãos erradas� aoato, Sofia, na aula: �Falava muito alto, mexia com os colegas,interrompia a lição com piadinhas, ...� (70); �... a tudo que ele

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dizia (eu) respondia com um simples olhar direto...� (75-6). Suaação atinge um outro objetivo; o presumido programa de salva-ção toma a forma contrária:

�...minhas gargalhadas só conseguiam fazer com que ele, fingindo aque custo me esquecer, mais contraído ficasse de tanto autocontrole.�(73)

�Era um olhar que eu tornava bem límpido e angélico, muito aberto,como o da candidez olhando o crime. E conseguia sempre o mesmoresultado: com perturbação ele evitava meus olhos, começando agaguejar.� (76)

E culmina na sanção negativa, tanto da parte do professor,que não se deixa manipular pelo programa de �salvamento�,quanto da parte da menina: �A antipatia que esse homem sentiapor mim era tão forte que eu me detestava.� (73)

Resumindo, Sofia acredita dever salvar o professor de suaestagnação, quer fazê-lo, mas se julga fadada ao fracasso: teriacompetência para manipulá-lo e, assim, arrancá-lo de sua apatiaperante a vida? Tudo o que consegue, como fruto de seus esfor-ços, é despertar sua antipatia e reforçar sua imagem de má, parao outro e para si. Mas Sofia é obstinada: o fracasso repetido emnada diminui seu desejo de intervir na vida do professor.

2.2 O EVENTO INICIALMENTE EUFÓRICO QUE SE

REVELARÁ DISFÓRICO

Um dia o professor conta uma história, pede aos alunosque, a partir dela, escrevam uma composição, com suas própriaspalavras, e que saiam para o recreio assim que a acabarem, mes-mo antes do sinal.

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Sofia, sem duvidar de que é má aluna, deixa-se tentar pelorecreio antecipado. Sabendo somente contar histórias �com suaspróprias palavras�, rapidamente escreve sua composição, ape-nas mudando o final; entrega-a, orgulhosa de sua rapidez, e, semreceber nem mesmo um olhar do professor, sai correndo para orecreio no parque, �...onde fiquei sozinha com o prêmio inútil deter sido a primeira� (77).

Uns minutos de recreio a mais constituem a manipulaçãoque faz Sofia rapidamente concluir seu texto, com um final origi-nal. A composição, dessa perspectiva, nada mais é que um meiopara se libertar mais rapidamente da sala de aula. Mas � coisa deque Sofia não se lembrara em sua avidez pelo recreio � a mesmacomposição é submetida ao juízo do professor com um resultadoinusitado.

2.3 O ELOGIO E O SORRISO

De um lado, Sofia má, habituada a detestar-se; aluna odio-sa, ocupada em exasperar o professor; menina mística,�Freiraalegre e monstruosa� (73), tentava seduzir o professor �para asescuridões da ignorância� (73); etc.: tudo isso articulado comocausa e conseqüência de seu simulacro existencial, formando aimagem de si, que chamamos de �boa imagem�, não por serrelacionada a um ideal de Bem, mas por ser aquela que Sofiaprojeta de si mesma em um imaginário de relaxamento e con-fiança. É nesse quadro que Sofia quer �salvar�seu professor.

De outro lado, uma composição. Uma mera composiçãoescrita às pressas pela promessa de um recreio antecipado:

�Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras escondidasjá me chamava. Apressei-me. Como eu só sabia �usar minhas pró-

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prias palavras�, escrever era fácil. Apressava-me também o desejode ser a primeira a atravessar a sala...� (76)

Nenhum mérito, portanto, já que a menina apenas se sub-metera à sua natureza errada: o recreio �chamando�, a composi-ção de que quis se desvencilhar, a vaidade da rapidez, o finaloriginal escrito apenas por falta de conformação (�qualidade� tãovalorizada!): �... levianamente eu concluíra pela moral oposta:alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça...� (77). Situaçãoem que tudo o que a menina quer é ceder a seus desejos e inves-tir em busca de prazer, coisa, bem sabe ela, pertencente ao domí-nio do mal, da preguiça, da leviandade, ainda mais porque de-corrente de uma invenção: �Naquele tempo, eu pensava que tudoo que se inventa é mentira.� (83)

É, portanto, crendo nesse quadro de clara maldade intrín-seca, do simulacro existencial de Sofia, que a menina recebe, emtroca da leviandade e da preguiça, �a bola de mundo� (79) queela mesma jogara ao professor. Voltando à classe para buscaralgo, é arrancada de sua espera relaxada e confiante por um ines-perado olhar:

�... Já tendo na mão a coisa que fora buscar, e iniciando outra corri-da de volta � só então meu olhar tropeçou no homem.Sozinho à cátedra: ele me olhava.Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta.Ele me olhava...(...) Apenas isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava.� (78)

Temerosa, de sorrate, Sofia tenta aproximar-se da porta,para de lá escapar da sala e do olhar do professor. �Foi quandoouvi meu nome (...) Ao som de meu nome a sala se desipnotizara(...) Como é que um homem se vingava?� (79)

Assustada, Sofia, em primeiro lugar, perde sua arroganteautoconfiança:

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�Mas meu passado era agora tarde demais. (...) Pela primeira vez aignorância, que até então fora meu grande guia, desamparava-me.Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era oúnico eu.� (80)

Junta-se à suspensão da confiança em si, representada pelaperda do passado, o sentimento de exposição causado pelo olhardo professor. Perscrutada, Sofia sente-se desamparada e expos-ta, e perde a compostura:

�Para minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamenteos óculos. E olhou-me com olhos nus que tinham muitos cílios. (...)Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um ho-mem. (...)� (80)

�Aquele olhar que não me desfitava � e sem cólera... Perplexa, e atroco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o surpre-endida. Que é que ele quer de mim? Ele me constrangia. E seuolhar sem raiva passava a me importunar mais do que a brutalidadeque eu temera.� (81)

De desconfortável a constrangida, de constrangida a im-portunada pelo medo do mundo desconhecido que se desenha-va à sua frente, a aluna, apesar de tudo, junta coragem e olha,embora furtivamente, o professor:

�E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Não sei contar.Eu era uma menina muito curiosa e, para minha palidez, eu vi...embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tãofundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo... Viuma coisa se fazendo na sua cara... vi a careta... O que vi, vi de tãoperto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivessecolado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outrolado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho....Por si mesmo om olho chora, por si mesmo o olho ri....Eu vi umhomem com entranhas sorrindo.� (82)

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Mais difícil do que suportar uma inesperada visão indiscre-ta é a consciência de ter sido vista vendo esse algo indiscreto.Porém, além do perturbador sorriso que a faz sentir-se em �fla-grante delito�, mais sentimento de exposição a aguarda:

�� Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é sódescobrir. Você... � ele nada acrescentou por um momento. Perscru-tou-me suave, indiscreto, tão no meu íntimo como se ele fosse omeu coração. -Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.�(83, grifo nosso)

Só que, desta vez, o sentimento de exposição decorre doelogio duplo, à composição e à menina, mas age na dimensãocognitiva desta, que julga ter conquistado o professor por quali-dades que não possui. Esse �curto-circuito�cognitivo não passaimpunemente:

�Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei os olhos, sempoder sustentar o olhar indefeso daquele homem que eu enganara.(...) Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele dealgum modo havia confiado em mim, e que então eu o enganaracom a lorota do tesouro. (83)

E conduz a menina, já sem confiança em si, à perda decoragem, à resignação, e, finalmente, à fuga6 :

�Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditarem mim, tive que engolir a piedade por ele, a vergonha por mim...Ele matava em mim pela primeira vez a minha fé nos adultos: tam-bém ele, um homem, acreditava como eu nas grandes mentiras...... E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suporteium instante mais � sem ter pegado o caderno corri para o parque, a

6 Para maior atenção aos estados posteriores à vergonha em Os Desastres de Sofia, vercapítulo 3, condutas de personagens femininas.

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mão na boca como se me tivessem quebrado os dentes. Com a mãona boca, horrorizada, eu corria, corria para nunca parar...� (84)

Como compreender que uma sanção que se quer positiva� um sorriso e um elogio � seja recebida de maneira tão forte-mente negativa? Pensamos que, a exemplo de La Chute, tam-bém Os Desastres de Sofia formam um percurso �enviesado�, daperspectiva de seu protagonista. Um percurso que retrataria atentativa, inútil, de conciliar o inconciliável: o não-poder da com-petência pressuposta no simulacro existencial e o poder pressu-posto à performance atinente a outro simulacro. Propomos o se-guinte quadro-resumo dos programas narrativos de base a estaanálise e uma articulação diagonal dos mesmos que parece sercapaz de explicar a possibilidade de instauração da paixão ver-gonha no simulacro interno do sujeito patêmico:

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Seqüência I 7 � �salvamento�

manipulação competência errada performance sanção negativa:dever e querer-salvar poder presumido risos, gargalhadas, professor: antipatia�predestinação� para manipular olhar direto Sofia: detesta-se,

professor é má

proposta composição 8

prazer, vadiagem

Seqüência II 9 � composição

manipulação competência performance Sanção positivaquerer-fazer poder e saber-fazer composição com imediata: recreiorecreio palavras próprias, palavras próprias, com posterior : sorriso

rapidez final original e elogio (mentira!)

Sanção vivida como negativa:elogio e sorriso a uma mentira;Sofia conhecida a partir de umamentira e elogiada por aquilo que

julga não ser

O percurso enviesado coloca algumas fases sob nova pers-pectiva. Por exemplo, a composição, de simples passaporte parao recreio, passa a ser uma janela para o interior de Sofia, uma�chave� para seu �eu�. Fruto de prazer na vadiagem e de umamentira (o final original), a composição e sua autora só poderiamser sancionadas negativamente, no simulacro interno da perso-nagem! Entretanto, o inimaginável acontece: a composição é bem

7 Atinente ao simulacro existencial de Sofia, num imaginário de confiança, programade �salvamento�.

8 Ver nota 4, neste capítulo, a respeito da manipulação na seqüência diagonal.9 Programa da composição.

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recebida e desperta positivamente a atenção do professor sobresua autora. Sofia, numa bela amostra de materialismo simbólico,entende que uma sanção positiva a uma invenção � a uma ficção� implica a crença na mentira veiculada e se deixa atingir pelaconstatação de que, finalmente, teria atingido o professor � comosempre quisera fazer � mas por meios ilícitos:

�Tive que engolir como pude a ofensa que ele fazia ao acreditar emmim (...) Ele matava em mim pela primeira vez a minha fé nos adul-tos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes men-tiras...� (84)

A confiança que o professor deposita em Sofia faz desabartodo um conjunto de crenças da menina e permite entender suaobstinação em �salvá-lo�:

�Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redençãonos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futurafazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha ima-gem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitênciado crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo issso oprofessor agora destruía, e destruía meu amor por ele e por mim.Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu.�(85)

�Salvá-lo�, portanto, seria redimir-se. Vivendo �humilhadapor não ser uma flor, e sobretudo, torturada por uma infânciaenorme que (eu) temia nunca chegar a um fim� (73), eis que amenina começa a suspeitar de que não existe redenção: não háidade de fim das incertezas e nem passam, necessariamente, coma infância, os males a ela atribuídos. O sorriso e o elogio, sançõesque se querem positivas, são, nesse quadro, a indicação de con-fiança mal colocada. Daí a vergonha deles decorrente: vergonhade ser elogiada pelo que ela, Sofia, não é; de reconhecer a falibi-

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lidade � a má colocação da confiança � de seu ídolo; e, enfim,vergonha por descobrir que o gênero humano, trate-se de crian-ças ou adultos, não é nem perfeito, nem justo, nem mesmo sabedas coisas. �E foi assim que no grande pátio do colégio...� (87)Sofia experimentou �do fruto da árvore do conhecimento� e co-meçou a abandonar o paraíso da ignorância infantil pela cons-trangedora complexidade do ser humano.

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CONCLUSÃO

A vergonha dissecada, compartimentada em cada um doscapítulos acima, quando de sua instauração, chega como um blocodisforme estalando sobre a cabeça do sujeito e o enleia na teiadas relações intersubjetivas por vários ângulos ao mesmo tempo.Chega de chofre, potente, complexa; feito polvo com seus tentá-culos aprisiona e sujeita sua vítima a seu domínio. Efeito letal?Improvável. Mas com certeza deixará marcas, envenenará:

�I came upon you when you were magicalBefore you could know I was there...I brought you feelings of distrust... and unworthiness...I told you there was something wrong with youI soiled your GodlikenessMY NAME IS TOXIC SHAME.�

(BRADSHAW: 1990)

Dentre as características que fazem da vergonha uma pai-xão especialmente �tóxica�, empregando o termo de Bradshaw,difícil de suportar e entender, uma se destaca como a mais mar-cante: sua complexidade. Alguém poderia sentenciar: �Bem, éclaro que é complexa; a própria definição de paixão complexa ��várias organizações modais constituindo, no nível discursivo, umaconfiguração patêmica, vários percursos, etc.� � a define assim�.É verdade, mas é pouco. A vergonha mostrou-se multifacetada:todos os capítulos anteriores tratam algum aspecto dessa suaintrincada complexidade.

O capítulo 1 propõe uma tradução prática da definição teóri-ca de paixão complexa: a vergonha é apresentada como resul-tante da coincidência de duas outras configurações passionais: ainferioridade e a exposição. A colocação em discurso dos dispo-

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CONCLUSÃO

sitivos evocados pressupõe um sujeito � que será o sujeito patê-mico � sincrético e conflitante: ele (parafraseando Camus, emLa Chute) �acumula as funções� de Destinatário e Destinadorjulgador. Este último actante, porém, não tem nada de simples:seu papel é desempenhado por pelo menos mais um ator: o�outro� legítimo, real ou virtual. Com uma certa liberdade aotomar os níveis de análise, pode-se concluir que a vergonhatem uma estrutura triádica: Eu (instância A) tenho vergonha demim (instância B) diante de outrem / minha consciência (instân-cia C). A e B são dois actantes e um só ator; A e C são dois (oumais) atores � damos autonomia à consciência por entendê-lacomo interiorização do outro1 � e um só actante, o Destinadorjulgador.

Não são apenas duas as faces da complexidade dessa pai-xão. O capítulo 2, sobre sua sintaxe, discorre sobre uma vergo-nha retrospectiva e uma vergonha prospectiva, uma intensa euma tensa. Junta-se a este o capítulo 3, a fim de mostrar que aqualidade da vergonha determina um tipo de continuação desua história modal: seja uma tendência à superação, ou ao des-vio; sejam novos agenciamentos em torno da liquidação da faltafiduciária.

A dinâmica das transformações dos estados da alma dosujeito em torno da vergonha pode ser ilustrada com auxílio deum quadrado semiótico, unindo, a partir dos capítulos 2 e 3, asduas macrodefinições e suas mais prováveis evoluções:

1 Lembramos que o �outro� é uma instância supostamente conjunta com o quadroaxiológico dentro do qual o sujeito se projeta, inicialmente, em seu simulacroexistencial, como dotado da �boa imagem�.

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possibilidade contingênciapoder-ser poder-não-sersimulacro existencial do sujeito insegurança, timidezimaginário de confiança medo [exposição (inferioridade)]relaxamento tensão � reconhecimento da falta

necessidade impossibilidadenão-poder-não-ser não-poder-serpudor, brio, honra rebaixamento, humilhação, desonra�sans peur et sans reproche� 2 exposição (inferioridade)

distensão � liquidação da falta intensão � estabelecimento da falta 3

As quatro posições do quadrado não são assumidas demaneira estanque: o sujeito pode hesitar entre uma e outra, avan-çar ou retroceder, dependendo de variáveis imprevisíveis. Entre-tanto, o caminho percorrido será necessariamente o mesmo, semsaltos de posições, uma vez que as mesmas são unidas por pres-suposição-implicação.

O sujeito da posição 1 é aquele que (em seu simulacroexistencial de partida, num imaginário de confiança e relaxamen-to) pode projetar a �boa imagem�. Vive no mundo do possível,do poder-ser, até que, surpreendido por um evento disfórico, éretirado da espera relaxada, imerge em confusão mental e atingea posição 2, aquela em que a realização da �boa imagem� é im-possível � não pode ser. Experimenta aí a combinação da inferio-ridade e da exposição, a vergonha intensa, que poderá ser nega-

↓↓

2 Embora em francês, trazemos do Dicionário Aurélio esta expressão bem representativado estado característico do sujeito patêmico. Acrescentamos que não conseguimoslocalizar sua fonte em dicionários franceses.

3 A evolução deste ponto depende:a) da consciência sobre o sentimento � riso, confissão, até mesmo esquecimento;b) da não-consciência � paixão de ausência (tristeza), ou paixão de falta (raiva)

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CONCLUSÃO

da, esquecida, tornar-se motivo de riso, ou de confissão, ou ain-da desviada em tristeza, ou raiva.

O sujeito consciente das implicações da posição 2 passa dacrise de confiança para o reconhecimento da falta fiduciária, oque significa dizer que �evolui� da situação intensa para a situa-ção tensa. Nesta posição de tensão, caracterizada pelo poder-não-ser, da contingência, experimenta insegurança em relação a oumedo da exposição da inferioridade: é a posição do envergonha-do-inseguro e do envergonhado-tímido. É também a posição pres-suposta de pudor, brio e honra.

Recusando a si mesmo a posição tensa da contingência, osujeito pode munir-se de uma armadura simbólica, um conjuntode regras de conduta, capaz de lhe assegurar a realização de uma�boa imagem�. Desse modo, desenvolve o pudor, o brio, ou ahonra, sentimentos e estratégias a partir dos quais não pode nãoser reconhecido como dotado de �boa imagem� por seu micro-universo socioletal. É o sujeito que age �sans peur et sans repro-che�. Aproxima-se, assim, do pólo da necessidade e da distensão.Atingindo-o, sua tendência será a de considerar esse novo qua-dro como projeções de si mesmo, num imaginário de confiança erelaxamento, ou seja, sua tendência será a de deslizar de volta àposição 1, com um novo simulacro existencial.

Mais um aspecto da complexidade da vergonha é aborda-do no capítulo 4: as organizações actanciais e actoriais em suabase. O capítulo 4 traz exemplos em que o sujeito patêmico évítima, ou ofensor, ou se identifica com uma vítima ou com umofensor, como numa forma de contágio. O sujeito patêmico podeter ou não responsabilidade sobre sua vergonha, pode ter agido,intencionalmente ou não, no sentido de provocá-la, ou pode sermera vítima de circunstâncias, ou ainda objeto de calúnia ou di-famação. Em suma, basta ter uma imagem de si próprio e viverem sociedade para estar sujeito à vergonha.

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E seus conteúdos? Pensar a vergonha através de seus con-teúdos é penetrar um cipoal, talvez, intransponível. Terreno mo-vediço, os conteúdos de vergonha variam com a época e cultura,com as sensibilizações e inclinações do sujeito, com o papel queo �outro� desempenha num dado momento histórico. No tangen-te aos conteúdos, deixa-se o âmbito da complexidade para en-trar no das complicações: seria temerário, se não impossível, ten-tar, através da vergonha, estabelecer objetos-valor e os valoresneles inscritos.

Pouco pode ser dito a respeito dos conteúdos causadoresde vergonha; por outro lado, no capítulo 5, diz-se um pouco so-bre os juízos exercidos sobre a paixão do sujeito envergonhado:

a) sinal evidente do mal, a vergonha é também indício da existênciado bem, no sujeito;

b) se, para uns, quem age mal deve envergonhar-se como pena porseu mau feito, para outros, quem sente vergonha purga-se, só porsenti-la, através do sofrimento que ela imprime; para outros ainda,a vergonha e a pureza ou impureza da alma não se relacionam ne-cessariamente;

c) a vergonha é uma punição social; ela é também um eficiente meiode controle;

d) na oposição grupo � indivíduo, os valores a preservar ora são confe-ridos pelo olhar alheio, ora pelo �olho da consciência� (ver cap. 5,sobre o papel do domínio público na circulação da vergonha);

e) deve-se evitar ver a vergonha de outrem: pode causar vergonha emqualquer das partes envolvidas; não se deve, tampouco, mostrar aprópria vergonha, pelo mesmo motivo;

d) a vergonha é �transmissível� por ligações sangüíneas, de parentes-co ou de afinidade: por exemplo, ainda é por muitos consideradovergonhoso ser parente, ou amigo de um portador de HIV.

São muitas as faces da complexidade dessa paixão. As prin-cipais, acreditamos, foram apresentadas e discutidas neste estu-do. Resta ainda um enfoque, acrescentado pela análise de La

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CONCLUSÃO

Chute e Os Desastres de Sofia: o caráter �enviesado� do percursoinstaurador da vergonha.

Na literatura, a vergonha-paixão de um protagonista nãotem uma evolução linear, mas surge enviesada, como um carro,na estrada, que atravessa as duas pistas e pára no acostamento.A vergonha é um acidente, do ponto de vista do sujeito patêmi-co. Ela se instaura cortando programas narrativos contrários oucontraditórios, relacionando através da sanção a competência deum e a performance do outro, deixando o sujeito com uma equa-ção impossível nas mãos. O sujeito envergonhado vê-se no regis-tro do �não sou mais� ou �ainda não sou� � logo, �não sou� � oque pensava ser. Nos textos, pouco se fala da vergonha �em si�da personagem, mas fala-se dos programas ou percursos inde-pendentes e incomunicáveis que acabam articulados por um even-to disfórico e incompreensivelmente (con)fundidos. Tal articula-ção, nos exemplos analisados, aponta a falácia do simulacro exis-tencial do sujeito � suas projeções de si, quando confiante, e suaação no mundo são inconciliáveis! Contar sobre uma vergonha-paixão é, portanto, contar pelo menos duas histórias: aquela dopapel que o sujeito crê desempenhar no mundo e aquela do de-sempenho propriamente dito. A boa literatura é verossímil.

No dia-a-dia, vergonha é coisa de que não se fala, é coisapara não ser vista, para não ser mostrada. �Roupa suja se lavaem casa�, diz o ditado. Em inglês fala-se do �family skeleton�,aquele escondido no armário, vergonha da família, que todosconhecem, mas guardam a sete chaves da publicidade. Revelar o�esqueleto�, �lavar a roupa suja� em público, implica contar aomenos duas histórias conflitantes e tomar posição em favor deum dos lados do conflito. Como esse conflito diz respeito ao serdo sujeito, a tomada de posição sempre será reveladora de suafalibilidade: em qualquer dos quadros, a realização do outro pro-va que sua confiança foi mal colocada e, decorrentemente, que aconfiança em sua capacidade de bem colocar sua confiança é

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insustentável. Revelar a própria vergonha é, portanto, admitir umadesadaptação básica em relação ao mundo.

A idéia de desadaptação introduz outros enfoques sob osquais se pode analisar a configuração da vergonha. Assinalamosalguns:

a) o papel da vergonha em sociedades intimistas e sua relação com amoralidade (DE LA TAILLE, Y.: 1993, 1995 a, b);

b) a vergonha como mecanismo de controle social (FIORIN: 1992;LOTMAN: 1981; HELLER: 1985)

c) relação entre gênero e idade e causas de vergonha (VITALE: 1994);d) a vergonha e o humor: provocação, superação, cinismo (FONTA-

NILLE: 1993; KARASSEV: 1993).

Outras aberturas para possíveis pesquisas das quais nãotemos referências são:

a) vergonha versus honra ou orgulho � referenciamento predominanteem outrem ou em si;

b) o carnaval medieval: grotesco libertador do medo ou da vergonha? 4;

c) formas de pudor em sociedades intimistas.

Outras ainda existem. Muito é possível pensar a respeito deum tema tão amplo e complexo.

Paixão complexa, relações complexas, decorrências com-plexas, enfim, no final deste estudo a vergonha fica como a pró-pria manifestação patêmica de um termo complexo: contém umafratura modal intrínseca; retrata a tentativa de conciliação do in-conciliável; é vivida por um sujeito cindido, de papéis sincréticose conflitantes; tem como sinônimos desonra e honra; é preciso tê-la para não a ter...

4 Pensamos principalmente numa releitura da análise de Bakhtin sobre o carnavalmedieval em Rabelais.

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CONCLUSÃO

Ao longo da redação deste texto, por vezes uma incógnitase colocava: além das conclusões técnicas, algo mais se podepensar, de maneira fundamentada, a respeito da vergonha? To-mando a ousadia da tradição, concluímos com a cena primordialda transformação do homem animal em cultural. De tradição ju-daico-cristã, era quase inevitável fechar este texto com Adão eEva e a maçã: qual seria, afinal, o fruto da árvore do conheci-mento, fruto tão poderoso que fez fugir nossos antepassados,envergonhados, do alcance dos olhos de Deus 5? E que lhes reti-rou o gozo do paraíso?

Amargo fruto, esse que ensina no nível da cognição aquiloque a vergonha sintetiza na dimensão patêmica: não existe simsem não, anverso sem reverso, Bem sem Mal. O conhecimento éfruto da articulação de um termo complexo. A vergonha, paixãopor definição sincrética e conflitual, é o sentimento por excelên-cia relacionado ao estabelecimento da função semiótica.

5 Deus, aliás, todo-poderoso, onisciente e onipresente, que não precisaria procurá-los,nem tampouco chamá-los, para descobrir onde estavam!

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BIBLIOGRAFIA

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Ficha Técnica

Divulgação Humanitas Livraria � FFLCH/USP

Mancha 10,5 x 18,5 cm

Formato 14 x 21 cm

Tipologia Souvenir e Arial

Papel Off-set 75 g/m2 (miolo)

e Cartão Branco 180 g/m2 (capa)

Impressão da capa Preto e Laranja

Impressão e acabamento Gráfica FFLCH/USP

Número de páginas 222

Tiragem 500