Entre a dádiva e a súplica: Retratos de Paternalismo e assistência aos órfãos e ingênuos no...
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UNIRIO – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCCH – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAISDEPARTAMENTO DE HISTÓRIAESCOLA DE HISTÓRIACURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Entre a dádiva e a súplica: Retratos de Paternalismo e assistência aos órfãos eingênuos no Asilo dos Meninos Desvalidos (1875 – 1880)
ISABELA DUARTE PIMENTEL
Rio de Janeiro
2009
ISABELA DUARTE PIMENTEL
Examinada pela Comissão abaixo assinada: Aprovada pela ComissãoExaminadora abaixo assinada__________________________________________________________________
Prof. Dr. Joaquim Justino - Escola de História/ UNIRIO
__________________________________________________________________
Prof. Dr Ricardo Salles - Escola de História/ UNIRIO (Orientador)
__________________________________________________________________
Profª. Drº Anita Correia - Escola de História/ UNIRIO
Escola de História/ UNIRIO
Dezembro/2009
Projeto Final apresentado a Escola de Históriada Unirio como parte dos requisitosnecessários à obtenção do grau em História.Orientação: Prof. Dr. Ricardo Henrique Salles,para a Graduação em História.
A Força Maior da vida, por ter guiado meus
Passos e sido luz para meus olhos. A meu pai,
Por seu exemplo de amor às lutas de seu tempo e à História
Agradecimentos
Ao meu orientador, o professor Ricardo Salles, pela dedicação, paciência e empenho,
mesmo nos momentos em que os documentos tornavam-se esfinges prestes a devorar-
me.
A meu Pai, cuja lembrança foi força e combustível para caminhar sempre, mesmo que a
passos vacilantes.
A minha mãe, por ser um exemplo de vida, dignidade, honra, dedicação e fé.
A minha irmã, pela amizade, carinho e esperança.
A minha avó, pela sabedoria, companhia e orações.
Agradeço muitíssimo aos meus queridos amigos feitos ao longo do curso de História,
em especial Bárbara Loureiro, Bianca Izumi, Raquel Caé, Rodrigo Braga, Aline
Salgado e Mari Abossamara, sempre presentes nas alegrias e tristezas. A conclusão
deste trabalho não seria possível sem a presença e amizade dos companheiros de
jornada da UFRJ: Leonardo Alves, Carolina Souza, Vivian Andreozzi e Luisa Clements.
Ao olhar para trás, recordo a importância que alguns mestres tiveram para a minha
formação acadêmica, relembrando o exemplo de Jayme Lucio Rodrigues, que, desde os
tempos de escola, em que fazer história era um sonho, motivou-me a seguir em frente,
sem temer o futuro, mostrando-me que história é antes de tudo paixão por tudo aquilo
que é humano.
Não posso esquecer de agradecer a todos os funcionários da Unirio, em especial a Érica,
sempre disposta a me ajudar prontamente e também aos arquivistas do PROGRAMA
DE ESTUDOS DE EDUCAÇÃO E SOCIEDADE DA UFRJ (PROEDES).
SUMÁRIO
Introdução.................................................................................................
Capítulo 1 – Abolição e abolicionismos – Soluções para um regime em transição
1.1 A Lei do Ventre livre e o futuro dos “ingênuos”
1.2 Destino dos ingênuos: incorporar ao mundo do trabalhoCapítulo 2 - Breve História da assistência à Infância pobre...............2.1 O Asilo dos Meninos Desvalidos.........................................................
2.2 A instituição ideal................................................................................Capítulo 3 – Entre a dádiva e a súplica..................................................
3.1 O Asilo Real: a Majestade entre ricos e pobres...................................
3.2 Análise de casos................................................................................. .
Considerações Finais...........................................................................
Referências Bibliográficas..................................................................
FICHA CATALOGRÁFICA
PIMENTEL, ISABELA DUARTE.
Entre a dádiva e a súplica: Retratos de Paternalismo e assistência aos órfãose ingênuos no Asilo dos Meninos Desvalidos. Rio de Janeiro, 2009.80 p. 29,7 cm. (CCH / Graduação, Escola de História).
Resumo
Este trabalho tem como objetivo relacionar de que forma a criação de uma
instituição voltada à assistência dos pobres e desvalidos da Corte – o Asilo dos Meninos
Desvalidos (1875) - se insere no quadro geral de transformações políticas e sociais pelos
quais passava a capital do Império, já que havia o ideal de preparação dos desvalidos
para atuarem como “cidadãos” em uma sociedade que se “civilizava” através de um
amplo programa de reformas postas em execução pelo governo.
A capital do Império será tomada como lócus privilegiado para a compreensão
das contradições existentes entre os ideais de reforma e modernização, convivendo lado
a lado com práticas que ainda denotavam marcas da sociedade colonial (paternalismo,
privilégios, personalismo nas relações políticas e sociais), seguindo a perspectiva de
Henri Lefebvre (1968: 67), segundo o qual “a cidade é obra de determinados agentes
históricos”, e estes ideais de reforma não são inócuos, mas referem-se a uma estratégia
de classe, ou seja, o urbano e as relações que são travadas entre os diversos atores
sociais não podem ser compreendidos fora das condições históricas em que se realizam.
Palavras-chaves
Lei de Ventre Livre, assistência, infância desvalida.
Introdução
A idéia deste Trabalho de Fim de Curso nasceu de um interesse em especial: a
História Social da na Infância no Brasil. No quinto período da faculdade, durante um
Seminário de Pesquisa, tive a oportunidade de elaborar um artigo sobre a questão da
tutela e sua relação com o uso da mão-de-obra infantil e assim, após ler e pesquisar
sobre este assunto, percebi que era algo ainda pouco abordado, mas que havia
importantes estudos na área, como os realizados por Venâncio (2004).
Decidi, então, investigar um pouco da história dos órfãos durante o período
posterior a Lei do Ventre Livre (1871), buscando, ainda, traçar uma possível rota de seu
destino e da criação das primeiras instituições de amparo aos “desvalidos”.
Em meio à busca pela bibliografia, encontrei diversos artigos, monografias e
teses que abordam a questão e pude entrar em contato com um caso que muito me
chamou atenção: a criação do Asilo dos Meninos Desvalidos, no ano de 1875, pelo
gabinete de Rio Branco por meio da atuação do Ministro e Secretário dos Negócios do
Império, João Alfredo Correia de Oliveira.
A instituição merece destaque por se apresentar como modelo ao restaste do país
e unir em suas diretrizes, a preocupação com uma formação humanista à necessidade de
formação “profissional” da infância pobre e desclassificada, tentando livrar os meninos
do vício das ruas e praças, a fim de transformá-los em cidadãos “úteis a si e à pátria”.
Apesar de a comprovação do estado de pobreza ser condição necessária para o
ingresso no órgão, a análise dos documentos revela que nem sempre os itens presentes
no Regimento Interno foram respeitados. Há casos de favorecimento a menores que
contaram com “auxílio” de pessoas com notoriedade pública no momento da admissão
e, em oposição, diversos exemplos em que os verdadeiros desvalidos foram
abandonados à própria sorte, continuando a viver em dificuldade junto à suas mães
viúvas, padrinhos idosos ou mesmo sobrevivendo da mendicância e caridade alheia.
Entender o processo de abolição, as diversas propostas de abolicionismo e as
concepções da época sobre que destino dar aos ingênuos é um caminho interessante
para compreensão dos motivos que levaram o Estado Imperial a tomar a educação
profissionalizante e pública como assunto de seu trato.
As massas de crianças que vagavam pelas ruas da Corte não mais poderiam
continuar a ermo. Agora, seu futuro era auxiliar na construção de um novo e moderno
país, através do aprendizado de um ofício que os transformassem em cidadãos dignos de
sua pátria.
Tratados nos documentos da época como “desclassificados”, “internos” e
“desvalidos”, os órfãos e menores ganharam a cena em uma cidade que se “civilizava”.
E neste processo civilizatório, a atuação do estado ganha destaque, em especial pelo fato
de o Asilo estar subordinado diretamente ao imperador e ao Ministério de Negócios.
Ao remeter os pedidos de admissão diretamente ao Imperador D. Pedro II, mães,
viúvas (em sua maioria as autoras dos pedidos de admissão), avós (com idade avançada
e em mau estado de saúde), tios e padrinhos de batismo (com numerosa prole a
sustentar), responsáveis pelos infantes, acreditavam na pia bondade da “Vossa
Majestade”, que se torna quase figura divinizada, como se percebe pela análise dos
discursos presentes nos 17 atestados de pobreza referente ao período de 1875 a 1880.
Ao relacionar o contexto histórico da criação do Asilo às concepções
educacionais da época e aos ideais de construção de novos cidadãos para a pátria via
formação profissional e aprendizado de um ofício, este trabalho analisará, além dos
discursos das autoridades (presentes nas atas e documentos oficiais, como o Regimento
Interno), as práticas cotidianas que separam a instituição ideal, cujas normas estavam
previstas em documentos, e a real, na qual o favorecimento e paternalismo levaram
muitos desvalidos a permanecer do lado de fora, ainda à margem.
Em seguida à apresentação do contexto histórico do processo de abolição e as
conseqüências da Lei do ventre livre, haverá uma descrição das políticas de assistência à
infância pobre desde a colônia, passando pela laicização do ensino e a Reforma Couto
Ferraz, do ano de 1854, que constitui marco para educação pública e profissionalizante.
Após percorrer este longo caminho, serão apresentados os princípios que
regeram, no papel, a criação do Asilo e as normas de seu regimento. Aí então, se poderá
transpor as paredes da instituição e conhecer seu dia-a-dia, pela ótica daqueles, que, do
lado de fora dos muros, suplicavam ao “magnífico coração” de “Vossa Majestade
Imperial”, um espaço e um futuro para seus pequenos.
Serão Marias, Guilherminas, Teodoras e por vezes, João, Augusto e José:
contando um pouco de sua origem, moradia e as dificuldades enfrentadas por suas
família para educar filhos, agregados e sobrinhos. Mas, também serão Carlos, Peregrino
e tantos outros desvalidos, cujas micro histórias entrelaçadas merecem um capítulo à
parte, seja pela dramaticidade com a qual foram separados de suas mães, perda de seus
pais e criação na casa dos padrinhos. Entre os livres e os ingênuos (libertos, muitas
vezes, na pia batismal ou mediante autorização dos donos de suas falecidas mães),
houve, de fato, um destino comum: O Asilo dos Meninos desvalidos.
Objetivos
O foco central da análise é situar o surgimento do Asilo na Reforma Educacional
de 1854, conhecida como “Reforma Couto Ferraz” e como seu objetivo de “formar” e
“recolher” os menores de doze anos em estado de pobreza se articulam às concepções
educacionais da época.
Além disso, se pretende fazer uma análise do regimento interno da instituição,
relacionando as diretrizes propostas com as práticas cotidianos do Asylo em seus cinco
primeiros anos de funcionamento (1875 – 1880), a fim de contrapor os valores presentes
nos ideais de criação da instituição e seu cotidiano, na prática, utilizando como fonte as
42 solicitações de admissão analisadas e os 17 atestados de pobreza dos menores.
Se, por um lado, existia a instituição ideal, cuja proposta de funcionamento se
encontra no regimento interno, por outro, há o Asilo real, dotado de contradições,
naquilo que Lefebvre identificou como a existência de duas esferas dialéticas: uma
ordem distante na cidade, relacionada aos preceitos impostos pelas intituições, tal qual o
Asilo, e uma ordem próxima, definida pelas relações construídas cotidianamente pelos
indivíduos, mediadas pela cidade, no caso, a capital do Império, entendida como “sede
das lutas sociais (...) e dos poderes políticos” (Barros, 2007: 62).
Outro eixo analítico será o papel desempenhado pela instituição ao se apresentar
como modelo nacional para assistência e formação dos menores, exercendo papel de
atração, como pode ser percebido pela análise das fontes, das quais se apreende que
grande parcela dos matriculados provinha de regiões distantes, em consonância com o
que Barros (2007: 62) descreveu como papel de centralidade que a capital “assume em
relação a toda uma região limítrofe, ao campo circundante, a uma rede de cidades
menores ou dependentes”.
Quem eram os menores “assistidos” pela instituição? De onde provinham? É
possível conhecer suas famílias? Quais os reais motivos que levavam mães, viúvas
desafortunadas, em sua maioria, a recorrer, em súplica, à figura imperial para conseguir
um destino mais digno aos seus filhos? Que critérios determinavam ou não a seleção
dos desvalidos? O regimento era, de fato, levado em consideração para admissão dos
menores?
Ao focalizar este trabalho na crítica interna dos atestados de pobreza, tenho por
objetivo responder estas questões, dando um rosto e história aos menores que viveram
na citada instituição. Como define Martins (2007:53), pela análise destas fontes, é
possível estabelecer um perfil institucional, a partir de informações sobre a clientela que
procurava o Asilo”, marcada pela “heterogeneidade das ocupações dos pais, das
identidades sociais e das características étnicas”.
Problemática
Este trabalho abordará um momento do Segundo Reinado em que diversas
reformas foram feitas pelo governo imperial, em decorrência das mudanças sociais que
estavam acontecendo. Nesta época de transição do regime de trabalho, definir o destino
de ingênuos e desvalidos equivalia a estabelecer qual seria seu papel na nova sociedade
que se configurava através de um jogo de poderes e interesses das diferentes classes.
Uma nova postura modernizadora foi adotada em relação à educação, que
passou a ser encarada como meio de propagar valores como ética e trabalho. No seio
deste conjunto de medidas, cria-se o criado o Asilo dos Meninos Desvalidos (1875),
com a função de estimular o processo de “civilizar” as camadas mais pobres, compostas
por órfãos, ingênuos (libertos do ventre escravo) e menores abandonados, por meio da
educação.
A instituição ganha destaque por ter uma visão diferente dos demais
estabelecimentos da época. Não era um simples internato criado para abrigar os
desvalidos, mas tinha como ideário promover socialmente os “desclassificados”,
investindo em sua formação e profissionalização.
A missão do Asilo não pode ser encarada de forma unilateral, como uma
instituição voltada meramente a disciplinar os desvalidos e controlar socialmente esse
segmento. Sua função deve ser analisada por uma concepção dialética na qual, se por
um lado, os desvalidos, enquanto grupo social potencialmente perturbador da ordem
necessitava ser controlado, por outro, se encarado como elemento excluído, precisava
ser incorporado ao quadro das instituições, para participar do processo de modernização
e mudanças pelas quais estava passando a sociedade.
A idéia é relativizar seu papel como “instituição de controle” e encará-lo a partir
da dualidade existente entre suas propostas de reforma (o desejo de ser um exemplo
para os demais estabelecimentos educacionais no país, por visar “incluir” os menores no
universo do trabalho) e as ambigüidades que caracterizaram seu funcionamento, como o
ingresso de menores por favorecimento.
Quadro Teórico Metodológico
O objetivo central deste trabalho é conhecer, através da análise de fontes
manuscritas, relatórios e fichas sobre os menores que ingressaram no Asilo dos Meninos
Desvalidos no período de 1875 a 1880, um pouco mais do cotidiano da instituição e
como as práticas educativas eram pensadas pelos sujeitos sociais envolvidos no
contexto de seu dia-a-dia.
Além disso, é importante que seja feita uma análise da relação entre os discursos
das autoridades da época que se posicionaram sobre a questão da educação profissional
aos órfãos e desvalidos e o as relações de poder e atividades desenvolvidas na realidade.
Para tanto, deve ser feito um exercício de crítica histórica com as fontes
selecionadas, buscando-se tecer as possíveis relações entre os sujeitos e seus discursos,
seguindo a perspectiva de Certeau, citada por Maria Zélia Maia de Souza: “que a
história não existe fora de um lugar social, que esta é constrangida por este lugar: que
não existe fora de uma prática e também fora de uma escrita”. 1
Fontes
Para tornar possível a pesquisa, serão analisados os Relatórios de Controle
Interno dos Alunos e fichas pessoais contendo informações sobre os alunos, período de
1875 a 1880.
Cabe destacar que grande parte da documentação relativa ao cotidiano da
instituição, a exemplo de fichas e dados sobre os alunos podem ser encontradas no
arquivo do PROEDES (Programa de Estudos e Documentação Educação e Sociedade)
da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Já os
relatórios e contratos e a massa documental referente à administração podem ser
localizados no Arquivo Nacional.
Capítulo 1
Abolição e abolicionismos – Soluções para um regime em transição
Para que seja possível uma compreensão mais aprofundada sobre o conjunto de
leis e medidas que propunham pôr fim ao regime de trabalho escravo durante o Segundo
Reinado, é necessário, antes de tudo, reconhecer a existência de diversos projetos
políticos que punham em pauta o destino dos “braços” que continuariam a mover as
engrenagens econômicas do país.
A pluralidade e complexidade de pensamentos em relação à que regime de
trabalho seria mais adequado aos “novos tempos” levam ao surgimento de diversas
correntes, que Priore e Venâncio (2001: 253) identificam como emancipacionistas,
“partidários da extinção lenta e gradual da escravidão”, abolicionistas, “que propunham
a libertação imediata dos escravizados” e escravistas, “defensores do sistema, ou, pelo
menos, da indenização dos proprietários caso a Abolição fosse sancionada”.
Cabe destacar que, ao contrário da historiografia tradicional, as novas tendências
presentes em obras como a de Chalhoub (1990: 19) defendem a adoção do conceito de
“processo histórico” para explicar o período de transição do regime escravista.
Nesta mesma perspectiva, a abolição é encarada como um:
“Conjunto de políticas públicas que aos poucos levou a
extinção da escravidão”, constituindo um “ponto privilegiado
para explorar as relações entre o governo, isto é, o rei e seus
burocratas e a classe de proprietários rurais”. (Carvalho, 2007:
293)
O escravo era, até o decreto do Ventre Livre, a mão de obra predominante na
lavoura de exportação, ou seja, pólo gerador de rendas para o Estado Imperial. A
escravidão estava presente na pequena agricultura voltada para o mercado interno e
também no meio urbano, na figura do negro de ganho, fonte de renda para muitas
pessoas que moravam na urbe. Mas, o setor mais dependente dos escravos era mesmo a
grande lavoura voltada para a exportação e este setor reagiu à tentativa de extingui-la.
De acordo com Carvalho, esse conflito foi fundamental ao deixar claro o pacto
entre as classes que sustentavam o poder imperial, já que no período em que se começou
a discutir a abolição, foi notória a discordância entre os interesses dos grupos
burocráticos e do pólo social e econômico.
A defesa do fim do tráfico começou por volta de 1807 quando a Inglaterra
proibiu sua prática entre seus súditos e iniciou uma campanha para acabar com ela em
outros países, em especial nos mais vulneráveis às suas pressões. Tal prática fica clara
nos acordos entre Portugal e Inglaterra de 1810, 1815 e 1817, que progressivamente
começaram a minar a legitimidade do tráfico negreiro.
No ano de 1810, com o império luso enraizado no Rio de Janeiro, Dom João
concordou, em um tratado de aliança, a cooperar com o monarca britânico na abolição
gradual do comércio de escravos e tornar ilegal o tráfico em territórios portugueses da
África. O resultado desses acordos não foi uma redução ou limitação do tráfico de
cativos, mas um súbito surto no seu volume, bem como o incremento do contrabando e
transações interprovinciais.
Em 1831, um ano após o previsto pela Lei de 1826, o governo assinou uma
medida que tornava o tráfico de escravos pirataria e que, por isso, deveria ser
combatido. Essa lei ficou conhecida como “Lei para inglês ver”, mas o comércio de
escravos não se reduziu. Aliado ao incremento do tráfico, a presença maciça de escravos
na sociedade colonial passou a constituir um problema, temia-se o “haitianismo”.
Durante os anos de 1839 a 1842, a apreensão de navios portugueses e brasileiros
aumentou. A partir de 1849, o governo conservador começou a pensar em uma Lei para
fazer oposição a Bill Aberdeen, tentando solucionar os problemas do tráfico. Os
conservadores acusavam os liberais de apenas condenar o tráfico, mas não fazer nada
para extingui-lo.
Neste contexto, o aumento da importação de escravos após a lei de Aberdeen
gerou receios na população, pois se temia o desequilíbrio entre o número de homens
livres e o de escravos. A abolição imediata era vista com maus olhos porque
prejudicaria a produção, mas, a indenização arruinaria as finanças. O menor mal seria a
abolição gradual acompanhada de medidas que contivessem as inquietações escravas, e
possíveis rebeliões.
No ano de 1850, o gabinete conservador, liderado por Eusébio de Queirós
sancionou a lei que extinguia o tráfico internacional de escravos. Os motivos que
levaram a adoção desta medida merecem especial atenção. Voltada para uma
explicação meramente economicista, a historiografia tradicional entende que a lei foi
resultado das pressões britânicas, já que a Grã-Bretanha, desejosa de mercados, passou a
criticar o sistema político mercantil, considerado um entrave às trocas comercias dos
tempos modernos.
Por outro lado, estudos como os de Chalhoub e Carvalho indicam que há uma
trama de interesses políticos e sociais entre os diversos grupos no momento em que a
medida foi sancionada.
Carvalho (2007: 300) identifica a lei com o pensamento político que permeava
diversos setores, alegando que até o ano de 1850, “não houve no Brasil qualquer
corrente de opinião de alguma importância que fosse abertamente contra o tráfico (...)
Quase todos os políticos reconheciam a obrigação moral e legal de terminá-lo, mas
temiam as conseqüências econômicas da medida”.
José Murilo de Carvalho (2007: 304) tece uma importante argumentação que
relativiza o papel de importância que é atribuído às pressões externas, dando destaque e
um papel mais ativo ao Estado Imperial, identificando – o como:
“Principal responsável pela eliminação do tráfico, inicio
da libertação da força de trabalho”, defendendo o caráter dual
da presença britânica: “a própria pressão inglesa se era
liberalizante no Brasil, tinha cunho protecionista no que se
referia à Inglaterra, contraria que era ao livre jogo do mercado
(...) Do lado Brasil foi o governo imperial o principal
responsável pela eliminação do trafico, inicio da libertação da
força de trabalho”.
Além do reconhecimento do papel ativo desempenhado pelo Estado Imperial, é
necessário compreender que o governo, apesar de sua apresentação enquanto entidade
orgânica e homogênea, na realidade, era fragmentado por disputas políticas e
ideológicas entre os grupos dominantes.
Ao contrário de uma instituição monolítica, o Império brasileiro revela suas
contradições quando se vê a presença de emancipacionistas nas fileiras dos
conservadores, “embora fossem mais numerosos entre os liberais” (Priore e Venâncio,
2001: 254).
Tais historiadores apontam que a bandeira que unia liberais e conservadores era
o pensamento de que “o sistema escravista inviabilizava a constituição de uma nação
civilizada”, mas, por outro lado, havia também, por parte destes grupos, o receio de que
o fim abrupto da escravidão enquanto “base” que sustentava a economia nacional
provocasse a desorganização nas forças produtivas e pusesse fim à sustentação política
do Império.
Wehling (1988: 64) aponta que, apesar de ter sido assumida pelos liberais, a
questão do “elemento servil” estava acima da fidelidade partidária, já que “quando da
apresentação de projetos, se fazia em nome do gabinete: liberal ou conservador”.
Em São Paulo, iniciava-se a utilização da mão-de-obra imigrante para o cultivo
do café e os paulistas, desejosos de maior participação na vida política, por se
afirmarem como “pólo mais dinâmico da economia nacional”, identificaram-se com os
ideais republicanos de descentralização política e maior autonomia local, afastando-se
do apoio ao governo imperial. Viotti (2000: 490) explica o processo de construção desta
nova mentalidade:
Abriam-se novas perspectivas para o capital. Não
mais convinha mantê-lo imobilizado em escravos,
mercadorias que se depreciavam a olhos vistos e estava
fadada a desaparecer. Modificava-se a mentalidade dos
fazendeiros das zonas mais dinâmicas. Não mais
pensavam em comprar escravos, mas em livrar-se deles.
Associado a tais fatores, o projeto gradualista entrou em pauta como solução
para a extinção lenta e pacífica do sistema escravista, prevendo a indenização dos
fazendeiros, de forma que “era preciso encaminhar a questão da extinção gradual da
escravidão evitando-se o perigo de desavenças ou divisões entre os próprios grupos
proprietários e governantes”. (Chalhoub, 2001: 122).
Pela análise da Fala do Trono de 1867, pode-se apreender que D. Pedro II
declarou ao Senado e a Câmara dos Deputados, seu parecer favorável ao
emancipacionismo:
O elemento servil no império não pode deixar de
merecer oportunamente a vossa consideração,
promovendo-se de modo, que respeitada a propriedade
atual, e sem abalo profundo em nossa primeira indústria,
a agricultura, sejam atendidos os altos interesses que se
ligam à emancipação1.
Por trás deste cenário, a iniciativa do Gabinete Rio Branco de, em 1871,
promulgar a Lei do Ventre Livre, aumenta os descontentamentos da massa de
fazendeiros escravistas e das oligarquias regionais, em especial as do Centro – Sul, o
que somado às críticas ao poder moderador e à representação política desproporcional
das províncias leva ao início de derrocada do apoio ao regime.
Wehling (1988: 66) explica que o Gabinete Conservador, pressionado a agir,
tentou, com a apresentação da Lei em 12 de maio de 1871, conciliar o interesse de
diversos grupos, através de uma “proposta moderada que adiava a abolição: dar
liberdade aos filhos da mulher escrava nascidos a partir da data de aprovação da lei”.
O historiador destaca, ainda, que a lei de 1871 tentou pôr freios ao movimento
abolicionista, ou seja, através da tentativa de prorrogar o máximo o fim do regime
escravista, representou:
Um compromisso, uma conciliação entre os
setores conservadores e progressistas, já que (...) pela lei,
o nascituro deveria permanecer com a mãe ate a idade de
oito anos, quando o senhor poderia optar entre entregá-lo
ao estado, sob indenização, ou permanecer com o
trabalho até os 21 anos, utilizando-se de seus serviços, em
troca de subsistência.
Para Carvalho (2007: 314), a declaração de que o ventre era livre não foi fruto
de pressões materiais externas, tratando-se de um disputado jogo interno, envolvendo, a
Coroa e os partidos políticos atuantes no processo, uma iniciativa:
“Sem dúvida da Coroa, secundada pelo gabinete conservador e apoiada pela
imprensa abolicionista e parte do partido liberal. Segundo o depoimento de Joaquim
1
(Rio - Branco, Miguel P. do. Centenário da Lei do ventre livre, Brasília, CONSELHO FEDERAL DE CULTURA. P.59)
Nabuco, fora o imperador ‘o principal impulsor e o principal sustentáculo da reforma
de 1871’, auxiliado por um grupo de políticos em que sobressaíam Rio Branco, São
Vicente e Nabuco”.
Cabe destacar, como lembra Wehling, que neste período, “o escravo
representava apenas 15 % da população total do país, e deste percentual de escravos, 65
% concentravam-se nas províncias de Minas Gerais, SP, RJ, ES e RS, de onde saíram os
votos contrários ao projeto”. Chalhoub apresenta que 70 % dos deputados dos três
maiores províncias cafeicultoras votaram contra a lei.
A lei de 1871 tornou inequívoco que o fim da escravidão estava próximo, e
mostrou ao escravagistas que a coroa não mais estava ao seu lado, pois a abolição seria
uma questão de tempo. Alguns vendiam os escravos, outros os libertavam
gradualmente, outros tentavam atrair os imigrantes como uma forma de reduzir o
impacto do fim da escravidão.
O fato de possibilitar aos senhores a utilização do trabalho dos ingênuos até os
21 anos serviu para amortecer os efeitos da lei, em longo prazo. Os estudos de José
Murilo de Carvalho (2007: 318) apontam que:
Pouquíssimos donos de escravos utilizaram a opção de
entregar os ingênuos ao governo ao completarem oito anos em
troca de títulos que venceriam juros de 6% ao ano por um
período de 30 anos (...) O próprio governo equivocou-se ao
prever grandes gastos com a indenização e com a educação dos
ingênuos que seriam entregues.
Cabe ressaltar que a continuidade das relações de dependência pessoal entre senhor x
escravo foi uma marca presente entre os períodos de 1866 a 1888, quando, finalmente,
ocorre a abolição. De acordo com Sidney Chalhoub, essa permanência se dá em função
das decisões de cunho político, em especial a Lei do Ventre Livre, em 28 de Setembro
de 1871, pois se enquadra em um conjunto de propostas que previa uma gradual
abolição da escravidão. 2
Neste sentido, como destaca Martins (2004:25):
O Asilo de Meninos Desvalidos representou uma saída perfeita
para a questão, pois acolhia os ingênuos e demais desvalidos,
recebia parte do fundo de emancipação, pertencia ao orçamento
da secretaria de Instrução Pública e ainda gerava uma receita
através de suas oficinas. Oficinas que cumpriam também com a
determinação da Lei do Ventre Livre de conferir ao ingênuo uma
ocupação após a maioridade.
1.1 - A lei do Ventre Livre e o futuro dos “ingênuos”
Com a crise da escravidão, começou-se a discutir sobre a necessidade de
formação de trabalhadores livres para as atividades que regiam o mercado interno.
Neste contexto, surgiram as primeiras preocupações com as crianças pertencentes aos
setores mais pobres, que passaram a ser encaradas como uma “questão social”, fato que
pode ser percebido nos discursos da época.
Embora juridicamente livres, segundo Viotti (1989:51), após o ato emancipador,
os ingênuos foram lançados à própria sorte, fato que persistiria por muito tempo: “uma
situação de miséria e ignorância comparável aos tempos de escravidão (...) já que o ato
jurídico não poderia remover de chofre uma estrutura e mentalidade que se forjaram
durante séculos de escravidão”.
Ao lado da “questão social” que envolvia que futuro e destino a dar aos menores
e órfãos, havia ainda a questão da cidadania no Segundo Reinado, que perpassava as
propostas de incorporação efetiva dos “desvalidos” no mundo livre.
Salles (1996:39) aponta a dialética existente entre abolição e permanência dos
vícios morais da escravidão:
Superada a instituição da escravidão pela pressão do
movimento abolicionista e do novo contexto moral internacional,
permaneceu o lugar da exclusão, mesmo que sem seu arcabouço
jurídico e ideológico. A crítica moral da escravidão, por si só,
não correspondeu a sua crítica efetiva e superação. Foi uma
crítica parcial de seus efeitos, de fora para dentro,
suficientemente forte para desferir um golpe mortal e impedir a
reprodução e expansão do regime escravista, insuficiente para
remover, no entanto, o restante do edifício escravocrata. Este
permaneceu – e em larga medida permanece lançando sua
sombra sobre o presente, resistindo a quaisquer mudanças
subseqüentes, mantendo uma situação em que a exclusão moral e
material é marca da organização social e que a cidadania formal
é espoliada de seus direitos mais elementares.
Como analisa Martha Abreu:
Além do evidente problema econômico da construção do
trabalho livre e das tentativas conseqüentes de manutenção do
controle social, encontravam-se visões a respeito das crianças
como verdadeiros responsáveis pelo devir, futuros cidadãos
sobre quem recairiam as tarefas de elevação da pátria ao
‘progresso’ e à ‘civilização. 3
Ser desvalido era estar sujeito aos vícios e mazelas de uma sociedade, que, antes
de tudo, necessita regenerar-se via modernização. Desta forma, a atuação do Estado
como “promotor da modernidade” foi de grande importância (Salles, 1996: 101), visto
que sua ação:
Definia um círculo que continha seus
cidadãos – portadores de cultura, da técnica e do progresso
europeus, em contraposição ao meio físico e natural americano
(...) Esta definição se fazia também pela exclusão de uma parcela
significativa da população – os escravos negros, mestiços e até
os brancos pobres – do projeto civilizatório.
Com a proibição da entrada de africanos no país, em 1850, se acreditava que a
reprodução endógena permitiria a perpetuação do sistema escravista, porém, quando a
lei de 1871 libertou o ventre das cativas, essa proposta foi descartada e outros projetos
sobre como contornar o problema da crise da mão - de - obra surgiram.
Então, a possibilidade de utilização da mão-de-obra nacional emergiu no cenário
político e econômico brasileiro, e para qualificar novos trabalhadores, seria necessário
investir no desenvolvimento de instituições para qualificação e ensino profissional. Era
preciso preparar trabalhadores para a agricultura e as crianças passaram a ser
consideradas uma possibilidade de suprir os desafios desta nova realidade.
Para que tal fim fosse atingido, o caminho a ser traçado era investir na educação
pública, e um fato que merece destaque é a elaboração de um regulamento voltado à
reforma do ensino primário e secundário do município da Corte, em 1854, prevendo a
construção de escolas de primeiro grau e cursos normais para preparação dos docentes.
Segundo este projeto, os menores de 12 anos abandonados e em estado de
pobreza deveriam ser matriculados em instituições de ensino subordinadas ao Estado e
deveria ser criado um asilo que oferecesse educação profissional aos meninos
desvalidos.
Conforme analisa Martinez,
A relação entre ensino elementar e instrução popular, então
estabelecida pelos legisladores da Instrução Pública na Corte,
torna-se evidente (...) no que se refere aos objetivos de matricular
nas escolas públicas parcela específica da população livre: os
meninos pobres. Este Regulamento determinava que os menores
de 12 anos, encontrados "vagando pelas ruas" da Corte, em
estado de "pobreza ou indigência", fossem matriculados nas
escolas públicas ou particulares su1bvencionadas pelo Estado. 4
A preocupação sobre quem seriam os futuros braços que sustentariam a
economia do país se acentuou com o advento da Lei do Ventre Livre, em 1871, e o
“fruto” do ventre das escravas entrou em cena como protagonista das discussões com
propostas de projetos filantrópicos de apoio e amparo à criança abandonada. O enorme
contingente de meninos e meninas nas ruas da corte começou a ser notado enquanto
problema social. O cronista João do Rio (1987: 135) traça uma descrição tão vigorosa
da vida infantil nas ruas e vielas da cidade, que é possível voltar no tempo e visualizar a
cena:
O vento fustigava-lhes as carnes semi-nuas e eles,
agarrados uns aos outros, na fraternidade do sofrimento, sem
pai, sem mãe, sem amparo, erguiam os olhos para o céu numa
angustiosa súplica.
Na análise de diversos relatórios da Polícia da Corte, feita por Arethuza Helena
Zero, se percebe que o infante desvalido passou a ser visto pelas autoridades como uma
ameaça à ordem constituída, em especial nos documentos produzidos pelo Ministério da
Justiça, entre os anos de 1879 e 1889.
Novas diretrizes em relação à criança foram sendo implantadas, com uma
filosofia voltada à “instrução elementar, a formação cívica e a capacitação profissional
das crianças desvalidas, que assim não seriam ‘entregues a si mesmas, senão depois de
terem cumprido os deveres do homem para com a Nação, defendendo-a, e habilitadas
para só dependerem de seus braços e da sua habilidade’”. 5
Porém, como será analisado mais adiante, nem sempre o desejo de “formar
cidadãos” tornou-se viável, visto que em algumas instituições criadas em prol da
profissionalização e assistência aos desvalidos, verificou-se um verdadeiro abismo entre
os regimentos e as práticas cotidianas.
Como havia poucas instituições, realizar o projeto de educar os menores era uma
atividade complexa. Cabia ao Juizado dos Órfãos encaminhar os menores pobres a eles
enviados e também aos ingênuos devolvidos pelos senhores de suas mães ao governo
imperial.
Abandono e pobreza: Os pequenos nas ruas da Corte
Com as alterações trazidas pela presença da Corte de D. João VI, o Rio de Janeiro
modificou-se, tornando-se a sede da administração da metrópole que aqui havia se
enraizado. Apesar das reformas e dos ideais de “civilização” e “progresso” que as elites
pregavam como forma de “apagar” toda memória da época colonial, considerada
obscura e atrasada, nas ruas e becos estreitos da cidade a vida urbana pulsava, com
todas as suas desigualdades e contradições. Como descreve Alessandra Martinez:
Trabalhadores braçais, serventes, domésticos, mercadores,
jornaleiros, quitandeiras, costureiras, carregadores, pajens,
mestres-escolas, e outras categorias de trabalhadores urbanos
buscavam o seu ganha-pão diário, circulando apressados pelas
ruas, dominando o espaço público, movimentando e
impulsionando a vida nas cidades. Em meio a essa população
que dominava as ruas, as crianças e jovens representavam seus
papéis de "pequenos agentes" na luta cotidiana. Moleques de
recados, vendedores ambulantes, criados e aprendizes, as
crianças populares, escravas, livres nacionais ou estrangeiras,
exerceram diversas funções na sociedade e teceram com suas
mãos um quinhão da história. 6
Como já foi dito anteriormente, é na metade do século XIX que a educação das crianças
e jovens das camadas mais pobres da população começa a ser inserida como
preocupação nos projetos de reforma feitos pelo Estado e outros setores dirigentes, o
objetivo era a instrução e a educação popular, com construção de diversas instituições.
Aos menores, o estado oferecia material escolar e vestuário e depois que eles
concluíssem as aulas primárias, podiam ser encaminhados aos Arsenais da Marinha e de
Guerra, ou às oficinas particulares para o aprendizado de uma profissão, meio pelo qual
poderiam ser transformados em trabalhadores considerados livres naquela sociedade.
1.2 - Destino dos órfãos: Incorporar ao mundo do trabalho
A educação profissional dos menores passou a ser vista como garantia de mão –
de - obra e uma possível solução para a “ameaça” social representada pelas crianças
abandonadas. Por meio do trabalho, buscava-se incutir na criança a filosofia do trabalho
e afasta-las dos vícios da ociosidade das ruas e da marginalidade. Educar e disciplinar
eram formas de, incorporá-los ao mundo do trabalho e manter a “ordem”.
Imbuídos desta concepção, diversas instituições foram criadas para receber
meninos e meninas pobres, como Colônias Orfanológicas, Asilos, Companhia de
Aprendizes Artífices, visando à formação cívica e a capacitação profissional, além da
educação agrícola e aprendizado de um ofício.
O “cuidado” aos menores desvalidos poderia ser feito, também, sob o sistema de
tutela, através do quais os juízes de órfãos encaminhavam as crianças sem proteção
familiar a residências onde sua educação e subsistências fossem garantidas.
Cabe destacar que a prática da tutela sobre crianças pobres tornou-se mais
comum na segunda metade do século XIX, em especial após 1871, havendo também
contratos de soldada, pelos quais as crianças recebiam pagamento de acordo com o
serviço prestado às famílias.
Ao final do processo de formação da criança, esperava-se encontrar um
trabalhador adequado ao sistema de trabalho que substituiria o trabalho escravo. Nesse
sentido, as crianças passam a ser vistas como verdadeiras responsáveis pelo futuro da
nação, ao mesmo tempo bons trabalhadores e cidadãos. O que pode ser notado é que se
acreditava na educação como uma forma de produzir riquezas, incutindo nos menores o
apreço ao trabalho, livrando - os dos vícios e mazelas sociais que caracterizavam a vida
de abandono nas ruas e praças da Corte.
Capítulo 2
Breve histórico da assistência aos desvalidos
A fim de que se possa compreender os objetivos presentes na criação do Asilo
dos Meninos Desvalidos, em 1875, é necessário recorrer à história da assistência à
infância pobre e desclassificada desde os tempos da Colônia até o Segundo Reinado,
associando a atuação das instituições existentes à luz das concepções da época.
O objetivo é identificar as teias de relações existentes entre os projetos ditados
pelo Estado Imperial e as realidades vivenciadas pelos sujeitos históricos, seguindo a
perspectiva de Morgado (2005: 89), que relaciona as “relações com o nível macro das
decisões políticas e o nível micro relativo às representações e ações dos sujeitos
históricos”.
No caso do Asilo, o nível macro refere - se à sua estruturação e funcionamento,
baseados nas diretrizes ditadas pelo Estado, e a esfera micro, compreende a “instituição
real”, dotada de contradições, ou seja, o conjunto de práticas cotidianas dos sujeitos
históricos envolvidos no processo: crianças, mães, tutores, tios, avós e tantos outros.
Nos primeiros internatos destinados à formação de meninos pobres, desde o
século XVII, havia ensino de trabalhos manuais e agrícolas, em especial devido às
iniciativas de instituições de cunho religioso, a exemplo da Casa Pia de Órfãos de São
Joaquim, instalada em Salvador no ano de 1799. Estes órgãos visavam “resolver
problemas sociais relacionados à falta de educação, saúde e asilos públicos”. (Martins:
2007: 38)
No Império, já cabia às Assembléias Provinciais legislar sobre a instrução,
culminando na criação de diversos internatos para aprendizes artífices. Dados da
pesquisa desenvolvida por Rizzini (2007:3) indicam a existência, no período, de 30
instituições nas 16 províncias do Império destinadas a educação primária e
profissionalização.
Havia ainda “outras iniciativas no período, responsáveis pela formação de
consideráveis contingentes para o Exército e a Marinha, como as Companhias de
Aprendizes Artífices dos Arsenais de Guerra e as Companhias de Aprendizes
Marinheiros”. (GERTZE, 1990; CASTRO 2008; NASCIMENTO, 1999; VENÂNCIO,
1999).
Há uma notória mudança em quem geria os assuntos educacionais quando ocorre
a Reforma da Instrução Pública, no ano de 1854, cujo principal ponto era a defesa da
instrução primária. Segundo Rizzini (2007: 8):
“O Regulamento para a Reforma do ensino primário e
secundário do Município da Corte determinou a criação de
“casas de asilo” para os meninos que vagassem pelas ruas,
devendo os mesmos morarem com os párocos ou professores
públicos para receberem a instrução de primeiro grau, enquanto
não se criarem essas casas”.
A partir de então, é possível perceber a atuação estatal em questões antes
restritas ao âmbito das instituições religiosas. Tal reforma apresenta-se enquanto marco
no campo da educação pública no Brasil e ocorreu no Gabinete do Visconde de Paraná,
encabeçada pelo Ministro e Secretário dos Negócios do Império Luiz Couto Ferraz.
O Ministro elaborou um regulamento, no qual estavam previstas modificações
no ensino primário e secundário dos municípios da corte, construção de escolas de
primeiro grau. É importante destacar que neste projeto estava presente o ideal de criação
de um asilo para meninos desvalidos.
A partir dos anos de 1860, os ideais de modernização e o temor das autoridades
em relação ao futuro dos desvalidos - encarados como “trabalhadores” cujos braços
sustentariam a pátria, em seu processo de modernização – fizeram com que fossem
criados “obstáculos mais eficazes para as fugas e a evitar a “contaminação” dos
meninos com os vícios da cidade, instalando as oficinas intramuros”. (Rizzini, 2007: 5)
Caberia ao Asilo, seguindo a perspectiva da época, fornecer instrução aos
menores, ministrando-lhes do ensino primário de primeiro e segundo graus, além do
ensino de ofícios mecânicos.
Até a morte do Marquês do Paraná, em 1856, o regulamento não havia sido
implantado. Decorreriam ainda vinte anos para que o regulamento entrasse em vigor, o
que ocorreu em 1874, com a Reforma da Instrução Pública, feita pelo Gabinete do
Visconde do Rio Branco e pelo ministro e Secretário dos Negócios do Império, João
Alfredo Correia de Oliveira.
O estadista merece destaque por sua atuação nas reformas educacionais do
século XIX e pela luta em prol da aprovação da Lei de 1871 e durante a reforma da
instrução pública de 1874, atuando como diretor do Asilo no ano em que este foi
fundado.
Cabe destacar que a reforma de 1874 possuía como base as aspirações contidas
no regulamento apresentado por Couto Ferraz, vinte anos antes, como a defesa da
educação pública e o incentivo à formação profissional.
Para o Ministro e Secretário dos Negócios do Império e também primeiro diretor
do Asilo dos Meninos Desvalidos, João Alfredo, a educação deveria ser leiga, algo
fundamental para o progresso e desenvolvimento do país. Sua concepção estava em
consonância com os ideais de laicização dos órgãos de assistência no Brasil: o estado
deveria tomar a educação para si, tratando-a como questão prioritária, através de
investimentos na ampliação e melhoria na qualidade das instituições de ensino. Martins
(2007: 30) explica que:
“O projeto se reconhecia como responsável pela
reorganização do ensino primário e secundário na corte e pelo
auxílio ao desenvolvimento da instrução pública nas províncias a
partir das seguintes disposições: tornava o ensino primário
obrigatório para todos os indivíduos que tivessem entre 7 e 18
anos, inclusive prevendo a criação de escolas para adultos, e
impunha multa para os tutores e pais que não observassem esta
determinação e, no caso de reincidências da advertência, o
responsável poderia perder a tutela do menor para o governo”.
2.1 - O Asilo dos Meninos Desvalidos
O Asilo dos Meninos Desvalidos foi inaugurado em 14 de março de 1875, na
Chácara dos Macacos, Vila Isabel, bairro projetado pelo Dr. Bittencourt da Silva,
seguindo os moldes arquitetônicos ditados pela França, marcado por um eixo central,
uma avenida de dois quilômetros e meio de extensão, chamada Boulevard.
Essa região afastada do centro não foi escolhida por acaso, mas seguia os
preceitos da medicina higienista da época: com ares menos poluídos e insalubres, a
escola se localizaria em uma área arejada, propícia à formação dos novos cidadãos.
Para ingressar na instituição, era necessário apresentar atestado de pobreza, e
comprovar a condição de órfão. Mas, há indícios de que o Asilo recebeu crianças que
não atenderiam a proposta para a qual a instituição fora pensada. Esses indícios
aparecem em matrículas, nas quais são encontradas cartas e bilhetes de recomendação,
como por exemplo, pedidos direcionados ao Diretor e ao Prefeito para que determinados
alunos fossem admitidos.
É interessante destacar que o Ministério que declara a Lei do Ventre Livre em
1871 e o mesmo que, em 1875, apóia a criação de um instituto voltado à educação para
o trabalho. Percebe-se, então, que as realizações pelo Gabinete Rio Branco (1871-1875)
como a Lei do Ventre Livre e a Reforma da Instrução Pública em 1874 estão
intimamente relacionados com as ações do Gabinete de João Alfredo (1888-1889) e a
abolição da escravidão.
A vitória do projeto de abolição gradualista se associa às preocupações com o
destino das crianças órfãs e pobres, que agora, representariam braços livres para o
mercado em um momento de transição do regime de trabalho escravo para as relações
de assalariamento. Caberia, ao estado e não mais às entidades religiosas, gerir o destino
dos “futuros cidadãos”, daí a preocupação com o ensino de ofícios e da educação
voltada para o trabalho.
Características principais e objetivos
O Asilo dos meninos desvalidos foi criado no ano de 1875, por meio da ação do
Ministro e Secretário dos Negócios do Império, João Alfredo Correia de Oliveira, já que
este realizou projetos que vinham sendo discutidos desde 1850 e visavam modernização
das estruturas arcaicas submetidas ao assistencialismo e cujo controle deveria passar às
mãos do Estado. Como descreve Martins (2007: 56):
A escolha do lugar onde a instituição iria
funcionar também nos diz muito sobre o caráter exemplar
do internato. Não foi um lugar qualquer, mas um palacete
selecionado para essa finalidade e que foi preparado,
como nos indica a menção às obras de adaptação, para
receber os asilados. (...) Tratava-se de um lugar muito
agradável e bonito, pois o casarão preserva até hoje as
características coloniais e o que restou da antiga senzala,
cercado por uma área arborizada com o rio Maracanã ao
fundo.
A Instituição ganha destaque ao apresentar características singulares: ao
completar maioridade, o asilado deveria cumprir três anos de trabalho compulsório nas
oficinas e depois seria encaminhado a oficinas privadas ou públicas, conforme descreve
Maria Zélia Maia de Souza (Souza: 2003, p. 18):
Durante este período, metade do produto do trabalho era
recolhido à Caixa Econômica, e deveria ser devolvido por
ocasião da saída dos alunos. Os jovens aprenderiam ofícios
mecânicos de encanador, alfaiate, carpinteiro, marceneiro,
torneiro e entalhador, funileiro, ferreiro, serralheiro, serrador,
correeiro e sapateiro.
O Asilo contou ainda com a presença de ingênuos (filhos de escravas nascidos
após a lei de 1871) e pela a qualidade de seu ensino, tornou-se objeto de desejo de
outras classes não desvalidas, levando a ocorrência de desvios no regulamento, como
políticas de favorecimento no ingresso.
O ensino: das letras aos ofícios mecânicos
O decreto que instituiu a criação do Asilo pode ser inserido no conjunto de
reformas na instrução pública promovidas por João Alfredo de Corrêa, Ministro e
Secretário dos Negócios do Império, no Gabinete Rio Branco, pelo decreto 5532, de 24
de agosto de 18742:
“Hei por bem, em virtude do § 25 do art. 2o da Lei nº.
2348 de agosto de 1873, criar no Município da Corte 10
escolas públicas de instrução primária, do primeiro grau,
2 Leis do Brasil, 1874.
das quais serão estabelecidas: Nove, nas seguintes
freguesias: uma para cada sexo na de Jacarepaguá, Serra
da Tijuca, duas para o sexo masculino e uma para o
feminino na de Nossa Senhora da Conceição do Engenho
Novo, duas para o sexo feminino na de São João Batista
da Lagoa, uma para o sexo masculino na de Santo
Antonio e outra para o mesmo sexo na de Guaratiba. E a
10a para a execução das disposições dos artigos 62 e 63
do Regulamento aprovado pelo Decreto de no 1331 a 17
de fevereiro de 1854, sendo destinada a servir de Casa de
Asilo para os meninos que se acharem nas circunstâncias
declaradas no primeiro dos ditos artigos e regida pelo
regulamento especial que o Governo Imperial expedirá. O
Dr. João Alfredo Corrêa de Oliveira, do meu Conselho,
Ministro e Secretario de Estado dos Negócios do Império,
assim o tenha entendido e faça executar.
Palácio do Rio de Janeiro em vinte e quatro de janeiro de
mil oitocentos e setenta e quatro. Com a rubrica de Sua
Majestade o Imperador. João Alfredo Corrêa de Oliveira.
O ensino no primeiro grau era composto pelas disciplinas de leitura, escrita,
aritmética, instrução moral e religiosa, enquanto o secundário visava formação
profissional, e neste segmento, os jovens aprenderiam ofícios mecânicos como o de
encanador, alfaiate, carpinteiro, marceneiro, torneiro e entalhador, funileiro, ferreiro,
serralheiro, serrador, correeiro e sapateiro.
De acordo com Martinez (1997:7):
O currículo da escola primária seguia a orientação das
demais escolas públicas quanto ao 1º grau do ensino: leitura,
escrita e aritmética, instrução moral e religiosa. O nível
secundário visava à formação profissional dos meninos, a
aprendizagem das artes e dos ofícios de sapateiro, funileiro,
ferreiro e serralheiro. O trabalho no Asilo de Meninos
Desvalidos era obrigatório e realizava-se nas oficinas da escola.
Entretanto, nos quatro primeiros anos do asilo apenas as oficinas de sapateiro e de
alfaiate encontravam-se em funcionamento. Pode-se perceber que o Asilo começou a
existir como instituição em 1874, mas sua inauguração se deu apenas em 14 de março
de 1875. Além disso, é visível que este projeto passou a desempenhar o papel de escola
modelo para todo o resto do país, pois era expressão de uma mentalidade que encarava a
educação como forma de modernizar o país, dando aos desvalidos, um destino para
construção de um futuro melhor, via formação profissional, afastando-os do mundo do
vício e vadiagem.
O episódio da fundação do Asilo teve grande importância para a época, como se
pode apreender através do texto publicado no Jornal do Commercio, dois dias depois do
acontecimento, em 16 de março3:
Asilo da Infância Desvalida
O antigo palacete Rudge, à Vila Isabel, foi, anteontem, às
5 horas da tarde, teatro de uma bela festa de caridade. Fora este
edifício há tempos comprado pelo governo imperial e a fim de
estabelecer ali o Asilo da Infância Desvalida e anteontem, àquela
hora, na presença de S.M. o Imperador, do Sr. Ministro do
Império e de numerosos convidados teve lugar a sua inauguração
oficial. A benção do palacete foi celebrada pelo Reverendo
Vigário Geral Monsenhor Félix Maria de Freitas e Albuquerque.
Depois da cerimônia serviu-se um copo d’água aos convidados.
S.M. o Imperador conservou-se no palacete até 8 horas da noite,
em que se retirou com a sua comitiva. O Sr. Emilio Simonsen,
antigo negociante desta praça, fez ao novo asilo uma valiosa
oferta de lençóis, fronhas, colchas e cobertores de melhor
qualidade. É este um ato de filantropia digno de encômios e que
muito honra o Sr. Simonsen. O edifício em que tem de funcionar
3 Jornal do Commercio, 16 de março de 1874.
o Asilo com as suas dependências, depois dos melhoramentos e
consertos por que passou, reúne todas as condições que poderão
desejar-se. As salas e dormitórios são espaçosos e pode dizer-se
que a requisição desta propriedade para tal fim foi das mais
felizes. O estabelecimento desta importante casa de caridade que
devemos considerar como o gérmen de uma vasta instituição que
se ramificará por todo o país moralizando o povo na sua mesma
fonte, a infância, é mais um título de glória que ficará ligado ao
nome do atual ministro do Império.
2.2 O Asilo Ideal: regimento e normais
As condições básicas de admissão eram idade e condição de saúde: os menores
deveriam ter de 6 a 12 anos e estar devidamente vacinados, caso ainda não o fossem e
era totalmente vedada a presença de meninos que sofressem de moléstias contagiosas e
tivessem "defeitos físicos que os impossibilitem para os estudos e para a aprendizagem
de artes ou ofícios”, como consta no artigo 2 do Regimento, criado em 1875.
No Regimento Interno da instituição (Em anexo), destaca-se o regime disciplinar
ao qual estariam submetidos os alunos, havendo vários níveis de punição, de acordo
com a reincidência e tipo de falta (1o Advertência em particular; 2º Advertência em
público; 3o Repreensão em particular; 4o Repreensão em público; 5º Privação simples
do recreio ou de passeio; 6o Privação de passeio ou recreio, com trabalho; 7o Privação
da mesa; 8o Prisão até 8 dias, sem prejuízo do estudo e trabalho; 9o Expulsão).
Os internos poderiam ser entregues novamente às suas famílias caso os pais ou
parentes provassem ter condições de cuidar de sua educação. Pode-se perceber
claramente a importância dada ao poder imperial nas decisões relativas ao destino dos
alunos: “o Ministro do Império o entregará, se julgar conveniente, sob as condições
que parecerem necessárias”.
O Regimento previa ainda os casos em que os asilados podiam ser despedidos da
instituição. De acordo com o artigo 4, seriam despedidos:
§ 1. Os asilados que forem de tal procedimento que não dêem esperanças de correção epossam prejudicar a disciplina ou a moralidade do estabelecimento.
§ 2. Os que por inaptidão nada tenham aprendido durante três anos.
§ 3. Os que tiverem completado a sua educação no Asilo e satisfeito a obrigação imposta no artigo seguinte.
A instituição deveria admitir meninos desvalidos, órfãos ou em estado de
pobreza, com idade entre 6 e 12 anos e se responsabilizar por sua educação até os 21.
Educação para o trabalho
Para “ressarcir” o que o estado havia investido em sua educação, o asilado deveria
cumprir três anos de trabalho obrigatório e depois poderia ir para oficinas públicas e
privadas. Nestas oficinas, os meninos produziam bens que seriam utilizados na própria
instituição. Segundo o Regimento, o “produto de seu trabalho, durante esse tempo (...)
será recolhido no fim de cada mês, à Caixa Econômica, para lhes ser entregue à sua saída
do Asilo”.
O número de alunos ingressante deveria ser fixado pelo Ministro do Império, a
cada ano, no mês de dezembro. O caráter diferencial do Asilo é que ele oferecia, além do
ensino primário, oficinas para que os alunos aprendessem um ofício. De acordo com o
artigo 9, o ensino compreenderia:
§ 1. Instrução primária do 1. o e 2o graus
§ 2. Álgebra elementar, geometria plana e mecânica aplicada às artes
§ 3. Escultura e desenho.
§ 4. Musica vocal e instrumental.
§ 5. Artes tipográfica e litográfica.
§ 6. Ofícios mecânicos de:
Encadernador
Alfaiate
Funileiro
Ferreiro ou serralheiro
Surrador, correeiro e sapateiro.
A partir da análise das disciplinas ministradas, nota-se a articulação do ensino ministrado
no Asilo com as reflexões do Oitocentos. A necessidade de educar para o mundo do
trabalho tem como pano de fundo a busca pela formação de um contingente de
trabalhadores livres, via ensino primário e de ofícios mecânicos. Nota-se que o Asilo foi
pensado segundo esta concepção, ao associar o ensino primário ao de ofícios.
As primeiras oficinas previstas no primeiro regulamento do Asilo e que foram instaladas
com mais rapidez foram as de alfaiate e sapateiro. A razão da “prioridade” dada a estes
ofícios é clara: nestas oficinas se produzia artefatos utilizados pelos próprios internos.
Segundo Souza (2004: 7), a oficina de alfaiate teve seu início em 17 de julho de 1876 e a
de sapateiro em 02 de julho de 1877, e nelas aprendiam 14 menores, dentre os 96
matriculados no internato.
A presença de ofícios notoriamente urbanos permite afirmar que as práticas educativas do
Asilo se voltam para a formação profissional, aliada à humanística e à transformação de
“internos” em aprendizes e cidadãos do futuro. De acordo com Souza (2004: 8):
“A pretensão em educar os “meninos desvalidos”,
capacitando-os para o exercício de ‘todos os
diferentes serviços’, foi expressa pelo diretor da
instituição Rufino Augusto de Almeida. Já em
1877, aquele diretor afirmava que formaria ‘bons
operários e que poderia em breve ter
‘excellentes marceneiros, carpinteiros, ferreiros,
alfaiates, optimos professores de música, bons
cozinheiros, horteleiros, trabalhadores de enxada, e
excellentes criados’”.
A Casa estaria subordinada à inspeção de um Comissário do Governo Imperial, nomeado
por decreto e ao diretor caberia:
Ҥ 1 Manter a ordem, a disciplina e a moralidade do
estabelecimento (...),
§ 4. Advertir, repreender e castigar os asilados que
cometerem faltas e despedi-los do Asilo, precedendo
autorização do Comissário do governo, nos casos previstos
no art. 4,
§ 6. Admitir os meninos que lhe forem apresentados com
portaria do Comissário do Governo, Dirigir ao Ministro do
Império, na segunda quinzena do mês de Janeiro de cada
ano, por intermédio do Comissário do Governo, um
relatório circunstanciado de todos os serviços do
estabelecimento durante o ano anterior, com as observações
que lhe ocorrerem sobre os melhoramentos provenientes e
acompanhados:
1º) - De uma relação nominal dos asilados com declaração
das aulas e oficinas que freqüentam e de seu aproveitamento
e procedimento moral;
2º) - de uma relação nominal dos empregados com
informação sobre sua aptidão, zelo, assiduidade e
procedimento moral;
3º - de um balanço geral da receita e despesa do
estabelecimento durante o ano financeiro findo e um
balancete do 1o semestre do exercício corrente.
O conjunto de normas também previa medidas preventivas contra famílias que
tentassem burlar a lei e solicitar ingresso de crianças que não eram desassistidas. (ATOS
DO PODER LEGISLATIVO. Decreto 5848: Regulamento disciplinar do Asilo de
Meninos Desvalidos, 1875).
O documento estabelecia também as relações entre o Asilo e o governo imperial,
como se pode perceber pela análise do art. 18, segundo o qual a instituição estava
subordinada a duas instâncias: à Secretaria de Instrução Pública (acionada para resolução de
problemas disciplinares, como expulsão de alunos), e ao Ministério dos Negócios do
Império (para a prestação de contas das verbas públicas repassadas ao diretor).
Apesar de ser um órgão ligado diretamente à esfera do poder oficial, o Asilo
também vivia de doações, especialmente nos primeiros anos de seu funcionamento
(Martins: 2007 58):
Até 1877, o Asilo registrou uma intensa
entrada de itens recebidos através de doações de
particulares que entregavam desde livros, lençóis,
uniformes, sapatos, toalhas, até bonés.
Cabe ressaltar que o diretor da instituição possuía grande grau de autonomia para
realizar a admissão de funcionários, contratação de professores, desde que estes
cumprissem os requisitos previstos pela Secretaria de Instrução Pública, sendo que os
funcionários efetivos eram nomeados pelo Ministro dos Negócios do Império.
No ano de 1875, o Asilo ainda encontra-se precariamente estruturado e a partir de
1887, o exame médico foi alocado como caráter pré - admissional, apesar de tal norma já
estar prevista no art. 7o do regulamento desde 1875, mas só passou a ser realmente válida
quando menores foram transferidos por motivos de doença. Em 1881, é feita uma reforma
de expansão do espaço físico da Instituição.
Em 1881, realiza-se uma expansão das instalações do Asilo, sob a gestão do
Gabinete liberal de especificamente no gabinete de José Antônio Saraiva (1880-1882). O
diretor João Joaquim Pizarro encaminhou ao Ministro dos Negócios do Império, Barão
Torres Homem de Melo, seu pedido de reformas, destacando as necessidades que a
instituição apresentava:
(...) No estado atual as dimensões dos dois
dormitórios não tem a capacidade estabelecida pelos
princípios higiênicos para conter cem alunos, e se não fosse
a sua boa orientação, o grande número de janelas bem
rasgadas, que tem em suas faces, e o mais exato
cumprimento dos preceitos higiênicos no que se refere aos
exercícios ginásticos, a alimentação simples e higiênica, o
acúmulo de meninos em cinqüenta camas separadas apenas
por um palmo de intervalo, quando deveriam se afastar um
metro ou mais uma das outras, traria aos organismos d’essas
crianças todos os malefícios efeito do ar confinado, da
atmosfera viciada. Para evitar os inconvenientes da
capacidade atmosférica dos dormitórios, tenho me
desvelado em distribuir metodicamente as horas de
trabalho, das refeições, do recreio etc., de modo que se
sucedam sempre com a maior regularidade. (...)4
Capítulo 3 – Entre a dádiva e a súplica
A partir do momento em que eram admitidas no Asilo, as crianças convertiam-se em
números, registrados nas chamadas “solicitações de admissão”. Tais documentos eram, em
geral, feitos por mães viúvas, que, impossibilitadas de dar aos filhos a educação necessária e
que recorriam ao Diretor do Asilo e muitas vezes, dirigiam seus pedidos ao Imperador, na
esperança de vê-los atendidos. De acordo com Souza5,
Para se ter acesso à matrícula, os responsáveis pelos
alunos precisavam apresentar documentos que
comprovassem a condição financeira da família e da
criança, como previsto nos artigos 5º dos
regulamentos de 1875 e 1883. Com o advento da
República, a assistência e educação dos “meninos
desvalidos”, ficaram a cargo da Casa de São José 17
e do Asilo de Meninos Desvalidos. A condição de
4 Arquivo Nacional. Série Educação: Asilo de Meninos Desvalidos, 188
5 Souza, Maria Zélia de. Cultura Escolar Migrações e Cidadania Actas do VII Congresso LUSOBRASILEIRO de História da Educação 20 23 Junho 2008, Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (Universidade do Porto)
indigência da criança que possuísse pais ou tutores
precisava ser provada, de acordo com o artigo 2º do
decreto 439 de 31, de maio de 1890, que
estabeleceu as bases para a organização da Infância
desvalida.
Cabe, no entanto, destacar algumas marcas presentes das cartas de admissão. No
documento, havia nome completo de menor, idade, data de nascimento, filiação, data de
ingresso e saída do Asilo e nome do requerente. É interessante notar que havia, por vezes,
referências étnicas dos requerentes e da própria criança, acompanhados também de status
como “liberto”, “escravo”.
O regulamento interno do Asilo previa critérios sociais, jurídicos e de idade para que a
criança desvalida pudesse receber assistência da instituição. Apesar de tais requisitos,
Rizzini (23: 2006) destaca a relação existente entre as práticas institucionais, a
administração provincial, havendo casos em que “o favorecimento político podia
particularmente alterar os critérios regulamentares dos institutos, criando obstáculos à
operacionalização dos fins previstos para as instituições educacionais”.
A partir da análise das fontes, pode-se notar que filhos de escravas e ex-escravas contavam
também com protetores importantes, fato mais frequente entre crianças não tão desvalidas.
Pode-se notar também que a referência à cor se relaciona à necessidade de comprovar a
liberdade do aluno, havendo protocolos de alunos que contavam com cartas de alforria da
mãe ou do filho.
Pelo fato de atender ingênuos da Lei do Ventre Livre e filhos de ex-escravas, o primeiro
Regimento do Asilo não restringia presença de crianças escravas. A restrição era “somente
às que sofrem de doenças contagiosas e defeitos físicos que as impeçam de aprender artes e
ofícios”. (Rizzini, 28: 2006)
De acordo com os dados analisados por Martins (2004: 67), mesmo que o
regimento estabelecesse a que entrada de meninos de 7 a 12 anos, nos primeiros anos de
funcionamento, havia concentração de crianças na faixa dos 10 anos6. Além disso, a
freqüência de crianças negras e pardas nas solicitações de admissão era elevada.
Pode-se construir a seguinte tabela a partir da análise das 43 pastas de alunos entre
os anos de 1875 a 1880:
Tipo de documento Quantidad
eFicha individual 40
Solicitação de admissão 42Solicitação de desligamento 4
Confirmação de desligamento 1Certidão de batismo 40
Certidão de nascimento 2Atestado de pobreza 17
Carta de alforria 1Certidão de óbito do pai 4Certidão de óbito da mãe 4
Atestado de libertação do escravo 1Atestado de vacina 3
Certidão de casamento 1Certidão de nascimento 1
Fichas individuais e solicitações de admissão
Nas fichas individuais, há referências ao nome e idade da criança, além da data
6 Arquivo Nacional e PROEDES. Relação dos meninos recolhidos ao Asilo de Meninos Desvalidos, com indicação de idade, cor, filiação e designação das aulas que freqüentavam maço IE 5 22, 1876.
de ingresso e saída da instituição e nome do requerente. Estes elementos também são
freqüentes nas solicitações de admissão feitas entre 1875 e 1880, nas quais:
Requerente Número de pedidos
Mães 23
Pais 5
Avós 3
Tios/Tutores 5
Donos das mães/ pais escravos 3
Incógnitos 3
.
Há também nos documentos admissionais, referência à cor da criança
desvalida, como se pode notar no exemplo a seguir, do dossiê do interno Manoel
Maranhão. Sua mãe, D. Luisa Maria, viúva, solicitou sua admissão quando menor
tinha 8 anos de idade7:
“Preto, nascido a 17 de junho de 1866, filho legítimo de Caetano da Costa Maranhão e Luisa Maria da Conceição”.
Requerente: D. Luiz e D. Maria L. Conceição (1874)
Em seguida, é apresentada a certidão de Batismo de Manoel, na qual se reconhece
a existência de padrinhos, Lourenço Bezerra e Adriana Albuquerque Maranhão. Para atuar
como elemento de confirmação de sua condição social, de viúva, sem meios, a requerente
7 Asilo dos Meninos desvalidos, Pasta Joma 002MM (1874)
utiliza-se da certidão de óbito de seu marido:
Dis Luisa Maria da Conceição, natural desta
freguesia de Águas Bellas, que a bem de seu direito
financeiro V. Reverendíssimo lhe dê por certidão a
theor do assunto de óbito de seu finado marido
Caetano da Costa Maranhão, cujo falecimento teve
lugar nesta freguesia, no assumo de pouco mais ou
menos de 186.
D. Luisa Maria da Conceição
A certidão de óbito é expedida, revelando dados como localização geográfica
(Freguesia de N. Senhora da Conceição de Águas Bellas), idade do falecido pai do interno
e sua condição, africano liberto8:
Certifico que revendo o livro em que se
tem feito os assuntos de óbito desta freguesia
de N. Senhora da Conceição de Águas
Bellas em um d’elles a folha 65 encontra-se
de que a petição é do theor seguinte: Aos 31
de Março de 1876, nas salas das Catacumbas
desta matriz de Águas Bellas sepultou-se
Caetano da Costa Maranhão, africano
liberto, com 70 anos de idade, falecido de
8 Asilo dos Meninos desvalidos, Pasta Joma 002MM (1874)
inflamação no peito.
Águas Bellas, 4 de julho de 1876.
João Felisdoro da Silva
Por vezes, a condição social dos pais, requerentes no processo de admissão, também era
presente nos documentos, como no caso de Antônio Barnabé9:
“Antonio Barnabé, nascido a 13 de junho de
1868, filho legitimo de Barnabé e Angélica,
livres. Matriculado sob o numero 40 em
1875 e desligado em 1887”.
Solicitação de desligamento
Da massa documental analisada, encontram-se quatro solicitações de desligamento.
Em geral, são estas redigidas pelos responsáveis da criança, neste caso, pais em sua maioria
(há apenas um documento remetido por uma mãe).
Dentre os motivos alegados para que o aluno deixasse o Asilo dos Meninos
Desvalidos, predomina o argumento de que os pais possuem condições de dar
continuidade à educação que os filhos vinham recebendo e que se responsabilizam por seu
sustento. Um exemplo é o caso de José Carlos Donevant, que ingressou na instituição aos
11 anos, matriculado sob o número 14, em 1875 e foi desligado em 1883, aos 19 anos de
idade10:
9 Proedes – Série Asilo dos Meninos Desvalidos Pasta ALJO 004 AF ( 1875)10 Proedes – Série Asilo dos Meninos Desvalidos Pasta ALJO 009 JCD 009 JCD (1875)
Solicitação de desligamento
Eu, abaixo assignada moradora a Rua dos Inválidos,
número 16, pai do menor José Carlos Donevant, de
19 annos e 3 meses de idade recolhido ao Asylo dos
Meninos Desvalidos desde 11 de março de 1875 e
matriculado sob o numero 14 declaro que por meu
pedido e informação favoravel do Ilmo Sr Diretor
do Asylo a autorização de sua Ex. Ministro do
Imperio receba o meu filho que nesta data é
desligado do Asylo e me responsabilizo por sua
manutenção e continuação da proveitosa educação
que aí recebeu”.
Asylo dos Meninos Desvalidos, 1 de abril de 1883.
Jose Carlos Donevant
Nota-se que, em geral, os meninos eram desligados da instituição com a idade de 15 anos,
tendo como máximo 19 anos, como o caso acima apresentado.
Certidão de batismo e nascimento
As certidões de batismo contém dados importantes sobre os menores como
origem, ou seja, Freguesia em que foi batizado, condição social dos pais e nome dos
padrinhos. Pela enorme disparidade existente entre o número de certidões de batismo e de
nascimento, pode perceber que a chegada ao mundo ainda era, em muito, controlada pela
igreja: no período de 1875 a 1880, há 40 certidões de batismo e apenas 2 certidões de
nascimento, realizada em cartórios da Corte.
A certidão de nascimento aparece como um documento adicional no processo de
admissão e também era utilizada de forma singular, como no caso de Alberto Judé dos
Santos Braga, filho de Antônio Judé dos Santos Braga e D. Guilhermina dos Santos Braga,
admitido no Asilo aos dez anos de idade, em 1875, sob o número 27 e desligado em 1886,
aos 21 anos11:
Ilmo. Reverendíssimo Vigário da Freguesia de S.
Antônio,
Dis Alberto Jose dos Santos Braga, filho legítimo de
Manoel dos Santos Braga e Guilhermina dos Santos
Braga, brasileira, que desejando saber se já
completou 21 anos de idade, visto ter nascido a 21
de maio de 1865, vem requerer a Vossa
Reverendíssima que lhe mande passar por certidão o
que constar do assentamento de seu baptisado. Pede
Defferimento.
Rio de Janeiro, 21 de Maio de 1875.
O interno, já tendo atingido a idade máxima para receber instrução no Asilo,
procura o Vigário da Freguesia de Santo Antônio para saber se já completou 21 anos.
11 PROEDES - Asilo dos Meninos Desvalidos Pasta ALJO 001JSB (1875)
Nos 43 dossiês estudados, há ainda atestados de óbito da mãe e do pai, além de
atestados de vacina, certidão de casamento, carta de alforria e atestado de libertação do
escravo.
Origem das crianças desvalidas
Grande parte das crianças assistidas provinha da Corte e não eram brancas. De
acordo com Martinez (2004: 63), “de um total de 96 meninos de todas as cores e lugares,
certamente os 47 meninos não-brancos da Corte representavam um reflexo dessa ‘cidade
negra’ que era o Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX’”. Chalhoub (1990:
184) descreve com propriedade o processo em que os libertos do ventre e ex- escravos
passaram a construir sua própria cidade:
“Com efeitos, os escravos libertos e negros livres
pobres da corte haviam instituído uma cidade própria,
arredia e alternativa, ao longo das décadas de luta contra a
instituição da escravidão no século XIX. Esta cidade negra
se fez através de movimentos e racionalidades cujo sentido
fundamental, independentemente ou não das intenções dos
sujeitos históricos, foi inviabilizar a continuidade da
escravidão na Corte’.
A tabela abaixo indica a origem dos candidatos à internos do Asilo e o número de
solicitações12:
12 Arquivo Nacional. Asilo de Meninos Desvalidos, maço IE 5(22), 1876.
Pode-se notar também referência a outras Freguesias nos documentos, seguida pelo
número de vezes em que aparecem como: Engenho Velho (1), Freguesia de Santana (3),
Ilha de Paquetá (1), Irajá (1), Nossa Senhora da Conceição do Engenho Novo (2), Nossa
Senhora da Glória (1), São João Batista da Lagoa Rodrigo de Freitas (1), Águas Belas (2),
Nossa Senhora de Conceição de Pouso Alto (1), Macaé (2), Santa Cruz dos Mendes (1),
Espírito Santo (2), Santo Antônio (1), Niterói (4).
Nota-se a presença de uma minoria de crianças brancas, como é o caso de Amaro
Ferreira dos Santos Amorim, nascido em 1863 e matriculado no Asilo em 1875. Em sua
ficha de admissão, encontram-se informações como cor, localização geográfica (Freguesia
de Macaé) e até mesmo sobre a vida conjugal de sua mãe, Isabel Maria da Conceição13:
Amaro Ferreira dos Santos Amorim, Branco,
nascido a 27 de dezembro de 1863, filho legítimo
de Isabel Maria da Conceição (depois Isabel de
Amorim) e José Ferreira da Silva Amorim foi
matriculado sob o número 3 em 1875 e desligado
em 1888. Joaquim da Fonseca e Cruz, presbítero da
Freguesia da cidade de Macahé.
13 Proedes – Série Asilo dos Meninos Desvalidos Pasta ALJO 002 AJA (1875)
Os dados são confirmados em sua Certidão de Batismo14:
Joaquim da Fonseca e Cruz,
Presbítero da Freguesia da cidade de Macahé:
Certifico que a folha 41 do livro dos assuntos de
baptisados dos livros desta freguesia o assunto do
theor seguinte: Aos 27 de março de 1864, nesta
freguesia de S. João de Macahé, baptisei e pus os
santos óleos ao innocente Amaro, branco, da idade
de 3 meses, filho natural de Isabel Maria da
Conceição (teve casamento subseqüente com Jose
Ferreira da Silva Amorim) e se farão padrinhos o
Reverendíssimo Vigário Joaquim da Fonseca e D.
Adelaide Julia.
Vigário Joaquim da Fonseca
11 de Abril de 1874.
3.1 O Asilo Real: a Majestade entre ricos e pobres
Para que se possa contrapor o Asilo ideal, ou seja, aquele cujo funcionamento estava
14 Proedes – Série Asilo dos Meninos Desvalidos Pasta ALJO 002 AJA (1875)
previsto no Regimento Interno e a instituição real, é necessário citar alguns dados sobre a
quantidade de alunos que atendeu, além de traçar um perfil dos mesmos, a fim de revelar a
distância entre as práticas cotidianas e o que estava escrito nas normas da casa.
Souza15 propõe que o Asilo “real” seja analisado em três dimensões: a casa, a escola e a
oficina, idéia que parece ter inspiração no clássico de Ilmar Mattos.16, na qual o autor
analisa as relações entre luzias e saquaremas pela dialética entre o mundo da casa, da rua e o
do trabalho:
Residência para um grupo de funcionários diretor, ajudante
do diretor, mestres de ofícios, porteiro, e alunos cujo
número era fixado anualmente pelo ministro do Império
(...) além dos alunos, parte significativa dos profissionais que
trabalhavam no Asilo, nele também residiam. Mas apenas o
diretor tinha o privilégio de residir com a família no espaço
do palacete.
Na esfera da “escola”, o Asilo apresenta-se como espaço de educação para o ensino
primário e aprendizado de ofícios. No caso da oficina, há idéia valorização de ofícios e
profissionalização. Martins (2004: 68) ressalta o caráter dual do Asilo, ao disseminar valores
como culto ao trabalho e também às letras, contando um pouco sobre o cotidiano da
“oficina”:
Eles também trabalhavam em oficinas e produziam
bens que serviam internamente, o que diminuía os
custos de manutenção. Porém, havia uma
15 Souza, Maria Zélia de. Cultura Escolar Migrações e Cidadania Actas do VII Congresso LUSOBRASILEIRO de História da Educação 20 23 Junho 2008, Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação (Universidade do Porto)
16 Mattos, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 5ªedição, São. Paulo: Editora Hucitec, 2004.
preocupação constante em formar cidadãos
adequados ao seu tempo, o que requeria muito mais
do que o amor ao trabalho e necessitava também de
um estímulo às artes e letras, atividades bem
desenvolvidas nas aulas de desenho, música e
literatura.
Apesar de o objetivo primordial do Asilo ser atender, prioritariamente, órfãos e crianças
em estado de pobreza, dados de 1876 indicam que o número de meninos órfãos atendidos
foi muito menor que o esperado, como se pode notar pela Tabela 4 (Martins, 2004: 64).
Pode-se, desta forma, questionar se ser órfão e desvalido realmente era um critério
fundamental no processo de admissão. De acordo com Martins (2004:64), “os números
apontam que havia uma população de crianças/ famílias desvalidas maior do que de órfãos
sem família”.
Em relação às categorias raciais, nos cinco primeiros anos de funcionamento da instituição,
encontram-se alusões a branco, preto, pardo e caboclo. Dados do Censo de 187217
auxiliam na compreensão do quadro que compunha o Asilo, já que a grande quantidade
de “pardos” e pretos se relaciona a seu estatuto de liberdade. Historiadores como Lana
Lage e Venâncio relacionam o aumento deste percentual com as leis
17 Recenseamento do Brasil em 1872. Rio de Janeiro. Biblioteca do IBGE, setor deDocumentação Censitária (DECEN).
abolicionistas e o crescente abandono de crianças de “cor” após a Lei do Ventre Livre. 18
Já para
Carvalho19, “ao
contrário do que se previa apenas 118 ingênuos foram entregues ao governo imperial, e os
demais permaneceram sob as mesmas condições servis de suas mães”.
Deve-se ressaltar que o caráter de admissão no Asilo dos Meninos desvalidos seguia alguns
critérios como alegação de desamparo e pobreza. Como dito anteriormente, a clientela na
Instituição, em seus primeiros anos de funcionamento (1875-1880) revela a presença
maciça de crianças negras e pardas e dentre estas, destacam-se, em menor quantidade,
filhos de escravas e ingênuos.
A seguir, serão analisados os atestados de pobreza dos alunos ingressantes no período de
análise, a fim de comprovar que relações paternalistas permeavam o processo de admissão
no Asilo e nem sempre ser desvalido era critério fundamental para admissão, como ocorre
no caso em que crianças conseguem a vaga por “indicação” de pessoas de renome como
Vigários, políticos e funcionários imperiais.
Os pedidos de admissão eram, muitas vezes, dirigidos ao Imperador, revelando, de um
lado, o desejo que responsáveis por crianças não desvalidas possuíam que seus filhos fossem
admitidos, pela mediação de pessoas com notoriedade pública e, por outro, a concepção
que mães, viúvas e os demais requerentes possuíam do poder: ter seu filho escolhido era
18 Ver: LAGE, Lana & VENÂNCIO, Renato. Alforria da criança escrava no Rio de Janeiro do século XIX.Resgate, 2, 1991.
19 Ver: MORAIS, Evaristo. A escravidão africana no Brasil. Brasília: UNB,1986; CARVALHO, JoséMurilo de. Teatro de Sombras, Op. Cit, 1988.
receber uma dádiva após a súplica, daí o caráter simbólico que “Vossa Majestade Imperial”
assume nestas cartas.
3.2 - Análise de casos: Atestados de pobreza e relações paternalistas
No caso das cartas de requerimento, o responsável pelo menor deveria escrevê-la próprio
punho ou solicitar a outrem e em geral, os documentos dirigiam-se à autoridades como a
“Sua Majestade Imperial”, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império ao;
diretor do Asilo de Meninos Desvalidos e ao diretor da Secretaria de Estado dos Negócios
do Império.
Um argumento freqüente nas cartas para admissão da criança é a necessidade de educá-la
para tornar-se “útil a si e a pátria”, além das alegações de extrema pobreza.As cartas eram
assinadas por sujeitos diversos, de médicos, advogados, funcionários públicos até senhores
de escravos e tutores.
A maior parte das solicitações é feita por viúvas, que “sobrecarregadas de filhos” e
“onerosa família”, alegavam ser paupérrimas. É preciso destacar que os pedidos de
admissão possuem uma linguagem que lhe é típica, carregada de formalismos para se
referir ao imperador: os pedidos eram creditados ao “caráter justiceiro de Vossa
Excelência”.
Além da necessidade de transformar os meninos desvalidos em “trabalhadores úteis”, havia
o argumento da viuvez, daí muitas mulheres anexarem ao processo de solicitação de
admissão o atestado de óbito do marido. Para além da figura dos pais, mães e avós
requerentes havia também proprietários de escravas que desejam admissão para crianças
nascidas do ventre-livre.
Em muitos atestados de pobreza, encontra-se o uso de uma linguagem comovente e
apelativa, estratégia argumentativa utilizada para sensibilizar o governo imperial, como no
caso do liberto Augusto, nascido em 1870 e tornado livre na pia batismal, que ao um ano
de idade foi afastado de sua mãe, Anna, pois esta foi vendida para fora da província
fluminense.
Anna, parda e mãe de Augusto, era escrava de Antônio Maria Teixeira, e tendo sido
vendida para fora da província, foi separada de seu filho, que ficou sob tutela da esposa de
seu dono, Emiliana Maria da Conceição Teixeira, esta última requerente no processo de
admissão de Augusto, como descrito no Atestado de pobreza20:
“Ao Sr Dr do Asilo dos Meninos Desvalidos, para informar, Diretoria da Secretaria de Estado dos Negócios do Império, em 18 de dezembro de 1878:Na ausência do diretor, o subdiretor interino, Dr Luis de Almeida Araújo Cavalcante.
“Emiliana Maria da Conceição Figueira, pobre, doente e sobrecarregada de família, tem em sua companhia há seis anos o menino Augusto, seu afilhado de 7 anos de idade, o qual tendo sido liberto na pia batismal, fica sem mãe por ter se sido vendida para fora da província quando ele tinha um ano de idade. Não podendo a suplicante, por falta de recursos e de saúde continuar a tê-lo em sua companhia e dar-lhe uma educação condigna a vir aser um cidadão útil e prestante a Pátria, vem com a devida vênia e submissão implorar a VMI a mercê e caridade de mandar admitir o seu afilhado no asilo da infância desvalida, ou em qualquer outro estabelecimento semelhante ao referido”.
20 PROEDES - Arquivo Asilo dos Meninos Desvalidos Pasta AARO 001
Rio de Janeiro, 11 de Dezembro de 1878.
A partir deste atestado, são obtidas informações preciosas como a trajetória de um menino
liberto na pia batismal e que com um ano de idade é separado de sua mãe escrava e acaba
em companhia da “madrinha”, que, sem meios de criá-lo, suplica que ele seja admitido
em qualquer estabelecimento como o Asilo, para tornar-se cidadão “prestante à Pátria”.
Há também casos em que a solicitação não é feita pelas mães dos desvalidos, mas por
nobres e proprietários de escravos ou ainda funcionários públicos influentes, assim como
ao imperador, senadores, deputados e direção do Asilo.
Nos atestados de pobreza, encontram-se, majoritariamente, registro das crianças apenas
pelo primeiro nome, além de outras informações como filiação (filho de escrava, de alferes
do Exército, de professor público e de coronel do Exército; órfão de mãe).
Percebe-se a influência da ação clientelista no processo admissional, que atingia com mais
facilidade filho de escravas e ex-escravas, o que segundo Souza (2004:8) transformou “um
asilo que pretendia educar crianças que vagavam pelas ruas (portanto, desvalidas), em um
instituto para meninos cujas famílias contavam com protetores”.
Ainda segundo a autora, há uma distorção que o cotidiano das práticas clientelistas traz ao
Asilo, o que o distancia dos ideais contidos em seu regimento:
A instituição que foi pensada para crianças
desvalidas, pobres ou indigentes, parece encaminhar para
“recolher” os filhos das famílias empobrecidas pela morte,
em geral do marido, profissional com algum grau de
qualificação ou posto na estrutura funcional do Estado.
No que se refere à ausência dos sobrenomes, Alessandra de Frota Martinez (1998) afirma
que estaria relacionada ao fato de serem filhos de escravos, uma característica comum
naquela população.
Nota-se que a partir de 1878, sete anos depois da Lei do Ventre Livre, há matrículas de
ingênuos no Asilo, porém, a ausência de sobrenome não pode ser considerada prova para
identificação dos menores como filhos de escravos. Como destaca Souza (2004:12)
A documentação da instituição aponta a presença de
sobrenome num grupo de meninos, comprovado
pela “certidão de batismo”, ser composto por filhos
de escravos. Saber se os sobrenomes são dos
proprietários de seus pais ou não é uma questão
difícil de responder.
Um fato que se pode concluir é que com a promulgação do Ventre livre, em 28 de
setembro de 1871, os proprietários deveriam torna-se responsáveis socialmente pela
criação dos filhos de suas escravas. De acordo com Marcus Vinicius Fonseca (2000), a
palavra “educar” foi trocada por “criar”, na letra da Lei, eximindo os proprietários da
obrigação legal de destinar instrução aos ingênuos.
O Estado concedeu aos proprietários de suas progenitoras a alternativa de entregar os
ingênuos às associações autorizadas que tivessem como objetivo a formação profissional
das crianças, quando completassem oito anos de idade e em troca, os senhores de escravos
receberiam uma indenização paga com títulos no valor de 600$000.
Porém, no ano de 1880, quando os nascidos do ventre livre completaram 9 anos de idade,
de um total de 181.115 meninos e 182.192 meninas, somente 113 desses menores tinham
sido encaminhados ao governo imperial (CHALHOUB, 2003; FONSECA, 2000).
A pobreza estampada em letras: atestados e admissão
Para além do pedido feito pelas famílias para que o jovem, ao ingressar no Asilo, tornasse-
se útil a si a à pátria, pela via do trabalho, havia ainda a argumentação da condição de
pobreza extrema da mãe. Cabe destacar que havia outros documentos que acompanhavam
os atestados de pobreza.
A fim de que a situação das mães viúvas fosse comprovada, um recurso recorrente era
solicitar ao subdelegado do respectivo distrito que atestasse sua “vida digna”, regida por
princípios morais e valores como honestidade e trabalho, como se pode perceber no caso
de Theodora Maria Baptista, que em 1876, solicita a admissão de seu filho Álvaro, pardo,
no Asilo dos Meninos Desvalidos21:
Ao Ilmo. Subdelegado do Distrito de Santana:
Theodora Maria Baptista moradora da Rua do
Princípe dos Cajueiros, nº 165, requer que por
despacho o inspetor do quarteirão em que reside a
supplicante atestar se primeiro a suplente é ou não
pobre, segundo se seu procedimento tem sido bom,
o que se faz necessário em bem direito da
Supplicante.
2 de maio de 1876.
Theodora Maria Baptista21 PROEDES – Arquivo Asilo dos Meninos Desvalidos – Pasta ALPE 001AC
Há casos como o do menor Carlos Augusto em que a pobreza da mãe viúva é também
associada ao argumento da doença. Carlos Augusto, nascido em 24 de junho de 1866 e
ingressante no Asilo aos dez anos de idade, tem o pedido de admissão feito por sua mãe,
Carlota Augusta, que sofria por “moléstia que a tira toda liberdade e que muitas vezes a faz
recolher-se de cama por muito tempo22”:
Ao Illmo Sr Dr do Asylo dos Meninos Desvalidos
para informar segundo Diretor da Secretaria de
Estado dos Negócios do Império 15 de março de
1876.
Carlota Augusta, desejando uma educação mais ou
menos a seu filho Carlos de dez annos como prova
com a certidão junto e faltando-lhes os recursos por
ser sumamente pobre, vem respeitosamente
emplorar a V.M.I a graça de mandar admitir no
Asylo dos Meninos Desvalidos a seu filho órfão de
pai, a fim de este receber a necessária educação”...
Rio de Janeiro, 8 de março de 1876.
O pedido foi dirigido ao Imperador, de forma que a viúva, nomeada no documento como
“suplicante” chega a implorar a “graça” da admissão de seu filho.
Há casos singulares como o de Rosa Batisma, que, tendo apenas a documentação de um
22 PROEDES ALPE 002 CA
de seus filhos, tenta a admissão de dois, Pedro e Carlos Batista, em 1876, como se nota
pelo Atestado de pobreza dirigido ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do
Império23:
Ilmo. Ex mo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios
do Império, 9 de março de 1876:
“Rosa Baptista, viúva, inteiramente pobre, sobrecarregada
de filhos e não podendo mantê-los devidamente em sua
companhia, vem muito submissamente emplorar a V.M.I a
graça de conceder-lhe a admissão no Asilo dos meninos
desvalidos, a seus filhos menores Carlos e Pedro, como
consta das certidões juntas, passada pelo despacho da
freguesia de Engenho Velho. A supplicante recorre do
caráter justiceiro dde Vossa Majestade Imperial.
Em seguida, o subdelegado da Freguesia de Engenho Velho atesta “ser correto
oficialmente que a senhora Rosa Baptista é mui pobre, viúva e vive com 3 filhos
menores”.
Há casos em que o atestado de pobreza foi produzido com a mediação de Vigários, a
exemplo de Delfim da Conceição24, nascido a 18 de abril de 1869, a igreja de São João
Batista de Niterói e ingressante no Asilo aos 7 anos. Antes que o atestado de pobreza fosse
encaminhado ao Diretor do Asilo em 22 de setembro de 1876, passou pelo crivo do
Vigário Antonio da Conceição, que emitiu um atestado de pobreza em 18 de setembro do
mesmo ano.
Merecedora de análise também é a história dos menores filhos de “pais incógnitos” e que
23 ALPE 003CB24 Pasta OO4 DCF
ficaram sob tutela de tios, como o menor Francisco Jose Guimarães, nascido a Nascido a15
de janeiro de 1868 e tutelado pelo tio Francisco Pereira de Mello, morador à Rua Senador
Eusébio, que dirige sua súplica ao diretor do Asilo:
Ao Ilmo. Sr. Dr. do Asilo dos Meninos Desvalidos.
Segundo Dr. da Secretaria de Estado dos Negócios do
Império,
Dis Francisco Pereira de Mello, morador a Rua
SENADOR Eusébio, nº 130, que tendo em sua companhia
um afilhado de baptismo por nome Francisco Jose
Guimarães de idade de 8 annos, filho de pais incógnitos,
pretende o supplicante que seja o dito menor admitido no
colégio vila isabel como interno e possa ahi receber a
educação necessária, por isso é que o supplicante pobre (...)
e sem meios de dar-lhe a educação precisa. O supplicante
confia na paternal bondade de V.M.I mui submisso.
Rio, 21 de fevereiro. 1876.
Alguns menores parecem ter a saga de suas vidas escritas em seu próprio nome, como
Peregrino de Freitas, nascido a 10 de novembro de 1867, filho natural de Maria de Freitas
e João de Mello e Azeredo Gomes.
Em 1876, Maria dirige sua súplica ao Imperador25:
25 ALPE 014PF
Ao Ilmo Sr Dr do Asylo dos Meninos Desvalidos
para que se sirva informar segundo Diretora da
Secretaria de Estado dos Negócios do Império, 22
de setembro de 1876 Dr campos de medeiros
“Maria de Freitas, moradora à Rua da União
numero 13, tendo um filho de nome Peregrino de
Freitas com 9 annos de idade e faltando-lhe meios
ara educá-lo em conseqüência de sua pobreza como
provam os documentos juntos, vem com todo
respeito impetrar de V. Alteza Imperial Regente a
graça de mandar admitir no Asylo dos meninos
desvalidos. Confiada na bondade que caracteriza os
actos justiceiros da Vossa Alteza Imperial.
Corte, 16 de setembro de 1876.
Ao que tudo indica, antes que o pedido fosse feito ao imperador, era necessária a
expedição de um documento pelo subdelegado da freguesia, que assim o fez em 13 de
setembro, três dias antes da apresentação do pedido a Vossa Majestade Imperial:
Ilmo Sr Subdelegado do segundo districto da
Freguesia de Santa Ana
“Maria de Freitas, moradora n’esta corte, a Rua da
União n 13, Gamboa, precisa a bem de seu direito
que V.S mande que o Ilmo Inspetor do respectivo
quarteirão lhe ateste si ella é pobre e honesta e si
com o producto de seu trabalho pode educar seu
filho Peregrino de Freitas, 9 anos de idade, confiada
na justiça...
Em alguns casos, o atestado de pobreza era redigido pelo pai, como no caso de Joaquim
Francisco de Melo26, pardo,nascido a 26 de novembro de 1867, filho de Henrique
Francisco de Mello e Maria Marques de Melo. O pedido de admissão é feito por
Henrique e o atestado de pobreza é endereçado ao Conselheiro de Estado e ao Ministro
de Negócios do Império.
O documento traz dados interessantes como o fato de o requerente ter participado da
Guerra do Paraguai, e por isso, ter tido uma perna mutilada, além de apresentar a
debilidade de saúde e pobreza como argumentos para que o menor seja admitido.
Porém, nem sempre ser desvalido era condição suficiente para o ingresso na instituição.
Joaquim do Nascimento, pardo, nascido a 26 de novembro de 1862, filho de Antônio
Joaquim e Maria Francisca do Nascimento tem sua solicitação feita pela tia com a qual
vivia desde a morte dos pais, Dona Josefa Maria, em 1876, como se certifica no atestado
de pobreza endereçado ao Diretor do Asilo27:
Ao Ilmo Sr Dr do Asylo dos Meninos Desvalidos
Dr Campos de Medeiros
D. Josefa Maria de Jesus que em sua companhia tem
um órfão de pai e mãe de nome Joaquim (...) o que
26 ALPE 006 HF27 ALPE 007JN
prova com os documentos juntos, ora não tendo a
supp mais de dar-lhe a necessária educação recorre
a Altissima Magnificencia de V.M.I, pedindo que se
digne mandar admitir o referido Orfão no Asylo.
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1876
Mas, sua vaga foi negada pelo subdelegado, que alegou a inexistência de vagas no asilo:
“Além de não haver mais lugar e o menor tem mais
de 12 annos, pois nasceo segundo a certidão a 26 de
outubro de 1862, tem hoje 14 anos”.
No dossiê de Joaquim ainda se encontra o atestado de óbito de seu pai, expedido pelo
Vigário da Freguesia de São João Batista de Macaé. Joaquim da Fonseca:
“Certifico que a folha 89 do livro dos assuntos de óbitos
desta freguesia: A hum de dezembro de 1863 nesta
Freguesia de S. João de Macahé faleceu com todos os
sacramentos Antonio Joaquim de Lombo, pardo, de idade
de 38 anos, casado com Maria Francisca de Nascimento, foi
amortalhado em pano preto, sepultado no cemitério da
Câmara e encomendado por mim”.
Vigário Joaquim da Fonseca
Há ainda a certidão de óbito da mãe, expedida pela Santa Casa de Misericórdia do Rio de
Janeiro:
“Certifico a folha 101 do livro dos assentamentos
de óbitos das pessoas que se enterram no cemitério
de S. Francisco Xavier que D. Maria Francisca do
Nascimento, branca, de 38 anos, moradora na Rua
dos Inválidos, 616, faleceu de febre perniciosa”.
6 de julho de 1863
Tendo em sua companhia o menor desde que este tinha um ano de idade, D. Josefa Maria
busca ajuda do Vigário da Freguesia de Santana e do Subdelegado do Distrito, Francisco
Manoel Pereira, para que atestassem sua condição de pobreza extrema e que vivia
dignamente.
Por outro lado, houve ainda casos em que os órfãos eram filhos de escravas e que,
mediante a morte da mãe, acabaram tutelados pelos “senhores” ou “senhoras” de suas
mães. Jorge Marco Aurélio28, pardo, nascido em 14 de outubro de 1864, filho de
Felismina, escrava de Constantino Gomes de Faria.
Na certidão de batismo do menor conta que ele foi registrado nos “livros dos assuntos de
batismo de pessoas escravas desta Freguesia de São João Batista de Niterói”, além de um
outro dado relevante: os padrinhos de Jorge seriam escravos, como se pode ver a seguir:
28 ALPE 009 JMA
“Certifico que revendo os livros em que se lanção
os assuntos de baptismo de pessoas escravas desta
Freguesia, em um delles encontra (...): Aos 19 dias
do mês de fevereiro de 1865, nesta Matriz de S.
João Batista de Nitheroy, baptisei solenemente a
Jorge, pardo, nascido a 4 de outubro do ano
passado, filho natural de Felismina, escrava de
Constantino Gomes de Faria, farão padrinhos Tinge
e Bibiana, escravos.
Freguesia de S. João Batista de Niterohy
Vigário Cônego Antônio Conceição.
Mediante o falecimento de Felismina, Maria Guilhermina Vieira e , escreve uma carta ao
Diretor do Asilo:
“Ao Senhor Diretor do Asilo dos Meninos
Desvalidos:
Maria Guilhermina Vieira, tendo em sua companhia
o liberto Jorge Marco Aurélio, já órfão e menor de
doze anos, como prova pelos documentos juntos e
como isso seja em extremo oneroso, requer a Vossa
Imperial Majestade se digne a mandar que o referido
menor seja admitido com interno no asilo da
Infância desvalida, pia instituição que se acha sob as
vistas e imediata proteção do governo de V. I. M e a
cargo do Ministro do Império, e confiado a
bondade a todos os actos do governo de V.MI
Rio de Janeiro, 3 de fevereiro de 1876.
Maria Guilhermina Vieira de Farias
No dossiê de Jorge, encontra-se também sua carta de alforria, feita por seus senhores. É
interessante notar que o órfão, que poderia ser utilizado como “mão de obra”, passou a ser
encarado como algo oneroso, levando seus donos a torná-lo livre, como se de “livre
ventre tivesse nascido”:
“Os abaixo assignados Constantino Gomes Faria e a
mulher D. Maria Guilhermina Vieira de Faria,
senhores e legítimos possuidores do escravo de
nome Jorge, filho da sua escrava já falecida de nome
Felismina, a qual nasceo em outubro de 1864 e foi
baptisado em 1865, na Igreja de S. João Baptista de
Niterohy, e o possuem livre e desembaraçando-se
de todo e qualquer acto judicial (...) conferem de
hoje para todo o sempre a liberdade ao dito Jorge, a
fim de que ele goze tão inteiramente como se de
ventre livre tivesse nascido”.
Merece menção a história do menor Carlos29, nascido em 4 de novembro de 1870
órfão de pai (incógnito) e mãe, de nome Belmira, escrava de D. Josefa Adelaide
Damasceno. A senhora de sua mãe solicita sua admissão no Asilo em 1880.
Na certidão de batismo de Carlos, expedida pelo Vigário José Antônio Pereira, há a
denominação “creolo”. D. Josefa, no atestado de pobreza, alega não ter meios de
cuidar do menor, agora chamado “desvalido”, pela situação de pobreza e avançada
idade em que se encontrava:
Dis D. Josefa que sendo sexagenária e tendo em sua
companhia um menor desvalido a quem não pode
educar, nem lhe pode ser útil por muito tempo visto
sua idade avançada e mau estado de saúde, deseja
que seja admitido no A.M.D.
Pede respectivamente a V.M. I que se digne a
admitir o mesmo menor. Pede que V.M. I se digne
deferir.
D. Josefa Adelaide
Apesar da aparentemente preencher todos os quesitos necessários a admissão, o menor foi
barrado, tendo D. Josefa recebido a seguinte resposta do Diretor:
“Pelo Artigo 24 inciso 6 do regulamento que
baixou com o decreto numero 8910 de 17 de março
29 AAJO 002C
de 1880 foi que começou a competir ao diretor a
admissão dos asilados. O Artigo primeiro do mesmo
regulamento hoje em vigor, marca a idade de 8 a 11
anos para a admissão do menor”
Nota-se, portanto, que sua idade ainda permitia a admissão, mas esta não ocorreu, de
forma que o ano de 1880 marca o início de uma fase na história do Asilo dos Meninos
Desvalidos: agora, como afirma o documento, competiria, em grande parte, ao Diretor, a
admissão dos Asilados, fato que possibilita compreender a existência de relações
clientelistas que levariam a admissão de menores não tão desvalidos e impedimento a
desvalidos como Carlos, que teve negada sua vaga no mundo do trabalho, da escola e da
oficina.
BIBLIOGRAFIA
4 MARTINEZ, Alessandra Frota. Crianças e escolas na passagem do Império para a República. In: Revista Brasileira de História. Vol.19 n.37 São Paulo. Setembro. 1999.p.7.
5 MARCÍLIO, Maria Luiza. Relatório final do projeto “História Demográfica da Infância Brasileira: quatro séculos de marginalização”. Julho de 1992.p.193.
6 MARTINEZ, Alessandra Frota. Crianças e escolas na passagem do Império para a República. In: Revista Brasileira de História. Vol.19 n.37 São Paulo. Setembro. 1999.p.4.
1 CERTEAU, Michel de. (1982). A Escrita da História Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio deJaneiro: Forense-Universitária.2 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte.
São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
3 ABREU, Martha & MARTINEZ, Alessandra Frota. Olhares sobre a criança no Brasil: Perspectivas
históricas. In: RIZZINI, Irene (org.) Olhares sobre a criança no Brasil – Séculos XIX e XX. Rio de
Janeiro: Amais 1997, p.25.