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1 ENTRE A MEMÓRIA E O ARQUIVO: MODOS DE ALFABETIZAR NO GRUPO ESCOLAR CÉSAR BASTOS (1947-1961) Márcia Campos Moraes Guimarães 1 Maria Aparecida Alves Silva 2 RESUMO: O presente trabalho, situado no âmbito da História e Historiografia da Educação, tem como objetivo identificar os modos de alfabetizar utilizados pelas professoras que atuaram no Grupo Escolar César Bastos, no período de 1947 a 1961. Para tanto, parte-se da seguinte problemática: Qual a proposta didática para o ensino da leitura e da escrita? Quais materiais pedagógicos eram utilizados? Como eram realizadas as avaliações dos alunos? Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho documental, pautada na análise das seguintes fontes: livro de registro das avaliações finais, memorandos, ofícios, dentre outros. Em paralelo, utilizou-se, também, as entrevistas concedidas por uma diretora e três professoras alfabetizadoras que trabalharam no Grupo Escolar, no período em estudo. Em linhas gerais pode-se afirmar que as professoras alfabetizadoras não possuíam diretrizes que orientassem suas práticas de ensino, os materiais didáticos utilizados resumiam-se a cartazes, adotavam o método sintético de ensino da língua e as avaliações tinham caráter classificatório e excludente. PALAVRAS-CHAVE: História da Educação. Alfabetização. Grupo Escolar. Fazer Pedagógico. Métodos de Ensino. INTRODUÇÃO Esta pesquisa, situada no âmbito da História e Historiografia da Educação Brasileira, tem como vertente a História das Instituições Escolares e focaliza, como objeto de estudo, o Grupo Escolar César Bastos 3 , instalado, em 1947, na cidade de Rio Verde Goiás. Para tanto, busca-se estabelecer as características relevantes de sua prática educativa, por meio da discussão sobre o processo de ensino da leitura e da escrita. As questões sobre as práticas desenvolvidas pelo Grupo Escolar César Bastos são analisadas sob a perspectiva de Certeau (1994), pois se busca encontrar sentido nas artes de fazer das diretoras e professoras, considerando a legitimidade dos saberes e valores que permeiam tais técnicas, camufladas do coletivo escolar. Assim, com o objetivo de identificar os modos de alfabetizar utilizados pelas professoras que atuaram no Grupo Escolar César Bastos, recorre-se ao depoimento dos sujeitos que participaram do processo, no período de 1947 a 1961. Tal procedimento 1 Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Contato: [email protected] 2 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Contato: [email protected] 3 Segundo grupo escolar instalado no município.

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ENTRE A MEMÓRIA E O ARQUIVO: MODOS DE ALFABETIZAR NO GRUPO

ESCOLAR CÉSAR BASTOS (1947-1961)

Márcia Campos Moraes Guimarães1

Maria Aparecida Alves Silva2

RESUMO: O presente trabalho, situado no âmbito da História e Historiografia da Educação,

tem como objetivo identificar os modos de alfabetizar utilizados pelas professoras que

atuaram no Grupo Escolar César Bastos, no período de 1947 a 1961. Para tanto, parte-se da

seguinte problemática: Qual a proposta didática para o ensino da leitura e da escrita? Quais

materiais pedagógicos eram utilizados? Como eram realizadas as avaliações dos alunos?

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho documental, pautada na análise das seguintes

fontes: livro de registro das avaliações finais, memorandos, ofícios, dentre outros. Em

paralelo, utilizou-se, também, as entrevistas concedidas por uma diretora e três professoras

alfabetizadoras que trabalharam no Grupo Escolar, no período em estudo. Em linhas gerais

pode-se afirmar que as professoras alfabetizadoras não possuíam diretrizes que orientassem

suas práticas de ensino, os materiais didáticos utilizados resumiam-se a cartazes, adotavam o

método sintético de ensino da língua e as avaliações tinham caráter classificatório e

excludente.

PALAVRAS-CHAVE: História da Educação. Alfabetização. Grupo Escolar. Fazer

Pedagógico. Métodos de Ensino.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa, situada no âmbito da História e Historiografia da Educação Brasileira,

tem como vertente a História das Instituições Escolares e focaliza, como objeto de estudo, o

Grupo Escolar César Bastos3, instalado, em 1947, na cidade de Rio Verde – Goiás. Para

tanto, busca-se estabelecer as características relevantes de sua prática educativa, por meio da

discussão sobre o processo de ensino da leitura e da escrita.

As questões sobre as práticas desenvolvidas pelo Grupo Escolar César Bastos são

analisadas sob a perspectiva de Certeau (1994), pois se busca encontrar sentido nas artes de

fazer das diretoras e professoras, considerando a legitimidade dos saberes e valores que

permeiam tais técnicas, camufladas do coletivo escolar.

Assim, com o objetivo de identificar os modos de alfabetizar utilizados pelas

professoras que atuaram no Grupo Escolar César Bastos, recorre-se ao depoimento dos

sujeitos que participaram do processo, no período de 1947 a 1961. Tal procedimento

1 Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Contato:

[email protected] 2 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Contato:

[email protected] 3 Segundo grupo escolar instalado no município.

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metodológico possibilitou o pensar a respeito das invenções produzidas pelos depoentes no

cotidiano escolar, procurando identificar microdiferenças, onde aparentemente, só existe

uniformização.

Além dos depoimentos, utilizou-se, também, para a escrita deste texto, as seguintes

fontes escritas: Regulamento do Ensino Primário do Estado de Goiás (1949), Ata relativa aos

exames finais e ofícios escolares.

Com a intenção de refletir sobre a problemática apresentada, o texto encontra-se

dividido em duas partes. Na primeira, abordamos a questão dos métodos de ensino da leitura e

escrita em seu processo histórico. Na segunda parte, apresentamos o processo de

alfabetização desenvolvido pelas professoras do Grupo Escolar César Bastos.

1 Percurso histórico dos métodos de alfabetização

Basicamente, temos dois métodos oficialmente reconhecidos para conduzir o trabalho

de alfabetização: método sintético4 e método analítico5. O método sintético é o mais antigo de

todos, tendo mais de 2000 anos. O aprendiz devia primeiro dominar o alfabeto (soletrando),

em seguida apresentando a grafia, posteriormente as sílabas de forma sistemática. Só depois

vêm as palavras simples e depois as mais difíceis. Este método perdurou por longos anos, da

Antiguidade até meados do século XVIII.

No método sintético, primeiro o aprendiz dominava o alfabeto, repetindo as letras, em

coro. Depois lhe era apresentada a grafia das letras do alfabeto, seguidas das sílabas

devidamente ordenadas. Na sequência as palavras simples e depois as mais complexas. A

regra geral era de que o aprendiz não poderia avançar no processo sem que todas as

dificuldades da fase anterior estivessem dominadas.

A aprendizagem da leitura e da escrita estava ligada à aprendizagem da oratória. A

leitura consistia em exercício de articulação com o propósito de eliminar os defeitos da língua

oral, já a escrita,

4 Método sintético consiste em mostrar primeiro as letras e ensinar suas correspondências com sons e depois

ensinar a compor com elas as sílabas e as palavras. A instrução procede do simples para o complexo,

racionalmente estabelecidos: num processo cumulativo, a criança aprende as letras, depois as sílabas, as

palavras, frases e, finalmente, o texto completo. Estabelece-se como regra geral que a instrução não deve avançar

no processo sem que todas as dificuldades da fase precedente estejam dominadas (LEMLE, 1991, p. 42). 5 Método analítico consiste em mostrar primeiros palavras – ou frases – e ensinar a identificar nelas as unidades

componentes – as letras – e os sons que lhes correspondem. Parte das sequências completas, sendo a tarefa

analisá-las e identificar os átomos. Tomam-se por empréstimos alguns elementos do global, sem, no entanto, abandonar a característica básica do sintético: a operação b + a = ba continua a ser a operação de base (LEMLE,

1991, p. 42).

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[...] os textos não tinham pontuação, as palavras não eram separadas por espaços em

branco, a forma da letra era rebuscada e ornamental, a ortografia não estava

normalizada. Todas essas dificuldades visuais do texto levavam o leitor à oralização

como estratégia de leitura. Era um método que progredia lentamente; em geral, o

aprendiz demorava quatro anos para começar a ler um texto completo. Só após esse

período, ele iniciava a aprendizagem da escrita (BARBOSA, 1994, p. 47).

O método analítico surge a partir do século XVIII, em oposição teórica ao método

sintético, cuja concepção era de que a criança deveria primeiro aprender as palavras ou as

frases, depois as letras isoladas. Mas é no final do século XIX e início do século XX que se

estabelece em definitivo os postulados do método analítico, com forte influência da Psicologia

Genética e de seus defensores.

O método sintético sofreu duras críticas por seu caráter mecânico, artificial e não-

funcional. Assim, fundamentos do método global provocam alterações no método sintético

resultando um novo modelo: analítico-sintético que preserva a característica básica do

sintético: b + a = ba. Se comparados enquanto essência observa-se que não existe grande

diferença, a matriz centra-se no “tradicionalismo".

Um bom leitor compreende perfeitamente um texto sem se preocupar com cada

palavra. Nós “[...] reconhecemos o rosto de alguém com uma visão global de muitas

particularidades que, descritas ou mesmo vistas uma a uma, não permitiriam a identificação

da pessoa. A visão da árvore encobre a visão da floresta” (BARBOSA, 1994, p. 124). Por que

então acreditar na eficiência de um método que fragmenta a leitura e a escrita e não tem

mostrado resultados satisfatórios?

O surgimento do método analítico não sobrepôs o método sintético, apenas gerou uma

batalha entre seus adeptos que “[...] repercutiram até nas páginas dos jornais, a Diretoria de

Instrução do Estado de São Paulo determinou a obrigatoriedade da adoção do método

analítico nas escolas públicas” (BARBOSA, 1994, p. 51).

Em função dos questionamentos por parte dos professores, a lei foi revogada em 1920

e até os dias atuais os professores são “livres” para escolha do método a usar. A questão assim

vista parece simples, mas há que verificar a prática e a hierarquização do sistema de Ensino.

Bamberger acredita que o método utilizado pelo professor depende muitíssimo dele

mesmo e do material de leitura disponível levando em consideração a superação do

[...] dogmatismo metodológico quando se alfabetiza. Já que pesquisas demonstram

que a criança é capaz de perceber tanto global quanto sinteticamente, o dogmatismo

na metodologia [...] deve ser evitado. A abordagem deve ser multilateral para todos

os alunos, e os métodos usados, ecléticos (BAMBERGER, 2000, p. 24).

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Silva não acredita “[...] que exista um único método, suficientemente abrangente e

‘milagroso’, para atender à multiplicidade de propósitos, situações e práticas de ensino da

leitura” (SILVA, 1998, p. 106).

Foucambert e Magne analisam os métodos e declaram que:

Os mais difundidos ainda hoje literalmente fazem os alunos avançarem às cegas, não

lhes permitindo que situem o que lhes é ensinado em relação ao que devem

aprender. O processo é sempre sintético, partindo do supostamente simples rumo a

algo complexo, no qual não se tem experiência (FOUCAMBERT; MAGNE, 1994,

p. 35).

A partir dos métodos sintético e analítico surgiram vários, embora com denominações

diferentes, apresentavam os mesmos princípios, ou partem da unidade menor para a maior

(letra – sílaba – palavra – sentença – texto), ou percorrem o caminho contrário. Vejamos o

Quadro 1:

Quadro 1 – Sinopse das fases dos métodos Fases Métodos

Métodos Soletração Fônico Silábico Palavração Sentenciação Contos e da

experiência

infantil

1ª fase Alfabeto:

letra, nome

e forma

Letras:

som e

forma

Letras:

consoantes

e vogais

Palavras Sentenças Conto ou

texto

2ª fase Sílabas Sílabas Sílabas Sílabas Palavras Sentenças

3ª fase Palavras Palavras Palavras Letras Sílabas Palavras

4ª fase Sentenças Sentenças Sentenças Sentenças Letras Sílabas

5ª fase Contos ou

textos

Contos ou

textos

Contos ou

textos

Contos ou

textos

Contos ou

textos

Letras

Fonte: MENDONÇA, O. S.; MENDONÇA, O. C., 2008, p. 25.

Os métodos da soletração, o fônico e o silábico são de origem sintética; os métodos da

palavração, sentenciação ou os textuais são de origem analítica.

O antigo, mas até hoje utilizado bê-a-bá, se encaixa no método sintético que nada

contribui para o letramento. O aluno só conseguirá ler o que lhe foi ensinado até o momento e

“[...] é preciso dizer mais uma vez que alguns livros não vão além de frases para a leitura, que

são cheias de repetições, como ‘A vovó deu a uva a Olavo’, ‘O bebê bebe e baba’ etc.;

obviamente, isto é o que há de pior para se dar para uma criança ler” (CAGLIARI, 1992, p.

179). Geralmente estes livros são as chamadas cartilhas que ainda são comuns na

alfabetização das crianças. Colocaram uma nova roupagem nas cartilhas, mas a essência

permanece intacta.

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Com relação às cartilhas, Barbosa (1944, p. 54) define-as como “livros didáticos

infantis destinados ao período da alfabetização”. Acrescenta que as mesmas são de caráter

transitório, e que todas partem do pressuposto de que, “para aprender a ler, o aprendiz deve

transformar o signo oral, para depois chegar à compreensão. O oral é utilizado como

mediador da compreensão” (p. 54).

As cartilhas são estruturadas conforme a escolha metodológica de seus autores e

podem ser, conforme Barbosa:

Sintéticas, “de soletração ou silabação” – apresentam as vogais, suas combinações,

ditongos e tritongos; em seguida as combinações entre consoantes e vogais, as

chamadas famílias silábicas, cuja combinação daquelas já conhecidas surgem as

palavras. Após há a fixação por meio de exercícios repetitivos. Com a combinação das

palavras surgem os textos. São consideradas as mais tradicionais.

Analíticas, “de palavração ou sentenciação” – Partem de palavras ou frases e por meio

de decomposição retornam as unidades menores: as sílabas. Empregam procedimento

inverso ao das cartilhas sintéticas.

Mistas ou anlítico-sintéticas – combinam as duas orientações: sintética e analítica.

Partem da palavra-chave destacadas de uma frase, e em seguida é decomposta em

sílabas, que darão origem a novas palavras. Institui hierarquia das dificuldades,

distinguem-se as sílabas simples, as complexas, os encontros consonantais e sílabas

inversas. Para apresentar as sílabas há preocupação com a relação biunívoca com o

oral, além de todo um cuidado em não introduzir sílabas com som ou grafia

semelhantes em proximidade (BARBOSA, 1994).

Muitos autores criticam a escolha da palavra-chave. Embora os autores das cartilhas

defendam utilizar a realidade linguística da criança na escolha das mesmas, percebe-se que o

critério utilizado é apenas o respeito à hierarquização tradicionalmente estabelecida: do

simples para o complexo. Os textos das cartilhas também sofrem duras críticas por

frequentemente terem falta de nexo entre as sentenças, abordando temas distantes da realidade

da criança, alguns próximos do absurdo.

Outro ponto a ser destacado com relação às cartilhas se refere ao fato de sua

perenidade. Um clássico exemplo é a Cartilha da Infância, de Thomaz Galhardo. Elaborada

por volta de 1880, esteve no catálogo da editora até 1970 (BARBOSA, 1994), sendo, portanto

114 anos de publicação.

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As cartilhas surgiram sob a influência do Renascimento (séculos XV e XVI) e da

imprensa na Europa, que culminaram na preocupação com os leitores, uma vez que a leitura

deixa de ser coletiva e passa a ser individual, resultando na necessidade de alfabetizar a

sociedade (CAGLIARI, 2009).

Muitas cartilhas surgiram, em se tratando da língua portuguesa, a mais antiga foi

publicada em 1540 por João de Barros, que, paralelamente publicou a “Cartinha”, que trazia o

alfabeto em letras góticas, seguido das tabelas com todas as combinações de letras possíveis.

Depois havia uma lista de palavras ilustrada, e por último os mandamentos de Deus e da

Igreja e algumas orações. Como nesta época não se alfabetizava, a Cartinha de João de Barro

não era utilizada na escola (CAGLIARI, 2009).

Depois surgiu a Cartilha do ABC que seguia o mesmo esquema da Cartinha de João de

Barros. Outras famosas foram a de Antonio Feliciano de Castillho, denominada “Metodo

portuguez para o ensino do ler e do escrever”, de 1850; a de João de Deus, intitulada “Cartilha

Maternal ou arte de leitura”, de 1876 (CAGLIARI, 2009).

Cagliari (2009) explicita que com a Cartilha Maternal, começa o método analítico,

assumindo relevância na década de 1930, quando a psicologia passa a fazer testes de

maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados obtidos nesses estudos. Temos

como exemplo a Cartilha do povo, publicada em 1928; e o Teste ABC publicado em 1934,

ambos de Lourenço Filho.

Muitas cartilhas foram publicadas seguindo o método misto (analítico-sintético), como

Caminho suave, de Branca Alves de Lima, em 1948, que continha o período preparatório.

Após 1990 várias obras surgiram denominando-se construtivistas, cujas propostas pretendiam

aplicar os ensinamentos da psicogênese da língua escrita.

2 Modos de alfabetizar no Grupo Escolar César Bastos

Os grupos escolares surgiram, no Brasil, a partir de 1890 e estabeleceram profundas

transformações no ensino primário, isto porque:

A escola primária graduada pressupunha o agrupamento dos alunos mediante a

classificação pelo nível de conhecimento, o edifício escolar dividido em várias salas

de aula, a divisão do trabalho docente, a ordenação do conhecimento em programas

distribuídos em séries, o emprego do ensino simultâneo, o estabelecimento da

jornada escolar e a correspondência entre classe, sala de aula e série (SOUZA;

FARIA FILHO, 2006, p. 26-27).

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Assim, a escola graduada de ensino primário constituiu, em si, um modelo cultural em

circulação. Instaurava-se, desse modo, uma nova cultura escolar6, onde o ensino da leitura e

da escrita recebeu lugar de destaque, pois era necessário ensinar as primeiras letras aos

brasileiros, para que o país pudesse sair do atraso e entrar no caminho das luzes.

O Grupo Escolar César Bastos foi instalado, no município de Rio Verde, no ano de

1947 e teve seu processo de gênese marcado por embates e parcerias entre o público

(representado pelo Estado) e o privado (constituído pela sociedade civil), o que, de um modo

ou de outro, acabou por interferir nas práticas pedagógicas ali desenvolvidas.

No que tange à alfabetização, as fontes nos revelam que, os primeiros anos de

funcionamento da instituição escolar, evidenciavam, por parte da direção, uma preocupação

com a leitura. No ano de 1949, a então diretora, Srª Ena Maria Ferreira, enviou ofícios a

várias editoras, solicitando o envio de livros infantis.

Dentre as obras requeridas sobressaiam as de Monteiro Lobato. Por meio de seus

escritos, o autor enfatizava o nacionalismo, que era evidenciado na linguagem, ação,

comportamentos e relação das personagens com a natureza. Desse modo, enquanto elemento

discursivo, seus livros foram utilizados como recursos para proteger e perpetuar certas

identidades do país, ao mesmo tempo em que assegurava a grandiosa identidade da pátria.

No entanto, a atitude da diretora revelava uma preocupação com o ensino da leitura e

da escrita pautada nos moldes da Escola Nova, presente no Regulamento do Ensino Primário

de 19497.

Com relação ao método de ensino da leitura e escrita, inicialmente, a diretora optou

pelo uso do Livro de Lili. Tal obra era uma cartilha analítica e seguia o método global, pelo

processo de contos e historietas. As lições ou historietas possuíam sentido completo e as

temáticas eram enriquecidas com ilustrações, como pode ser evidenciado a seguir:

6 O termo “cultura escolar” será utilizado, neste trabalho, de acordo com a definição proposta por Frago (1995, p.

68-69), ou seja, como práticas e condutas, modos de vida, hábitos e ritos, a história cotidiana do fazer escolar –

objetos materiais -, função, uso, distribuição no espaço, materialidade física, simbologia, introdução,

transformação, desaparecimento... – e modos de pensar, bem como significados e ideias partilhadas. 7 Decreto n. 805, de 28 de janeiro de 1949.

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Fonte: http://www.anosdourados.blog.br/2012/08/imagens-escola-livro-de-lili.html

Além do livro do aluno, fazia parte do material didático o manual do professor,

cartazes e cadernos com fichas:

Fonte: http://pt.slideshare.net/CidaLondrina/17623312- acartilhadelili101001191655phpapp01-1

Todavia, com o passar do tempo, o que se observou foi que as professoras do Grupo

Escolar deixaram de seguir o método analítico proposto pelo Livro de Lili e começaram a

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aplicar o método sintético, baseado na silabação. Tal atitude das docentes evidencia um

ecletismo processual e conceitual em alfabetização, comum nesse período, como relata

Mortatti (2000).

Quando questionada sobre como ensinava a ler e a escrever, uma professora respondeu

o seguinte: “eu usava o método silábico mesmo! Começava pelo ABC, depois as sílabas,

palavras e por último os textos” (SIQUEIRA, 2012).

Com relação ao uso de materiais didáticos, estes quase não existiam. Uma professora

mencionou que vez ou outra fazia um cartaz no papel de embrulhar pão. No entanto, a outra

disse não utilizar:

Não tinha material, era utilizando apenas o cuspe da professora, o quadro negro e o

giz. E aquele giz então. Aquele giz que saía poeira pra todo lado. A gente ficara

rouquinha, com alergia. Hoje tem uns colorido! Nós tínhamos só giz branco.

(ELIAS, 2012).

Além do mais, desde o ingresso no primeiro ano do curso primário, o aluno era

colocado diante de exaustivos exercícios de gramática normativa, como forma de “criação de

um conformismo linguístico” (FARIA FILHO, 2000, p. 198), capaz de superar o atraso

cultural dos estudantes, que, em sua maioria, era oriunda de camadas populares.

Para o ensino da leitura e escrita, o primeiro ano era dividido em três classes: A, B, C.

Formava a turma de alunos do 1º ano C, aqueles que iniciavam no aprendizado das primeiras

letras e se esperava, que ao final do ano letivo os mesmos fossem capazes de escrever o

alfabeto e realizar cópias corretas de sentenças, como habilidades necessárias à promoção ao

1º ano B. Ao término do 1º ano B, os alunos deveriam ser capazes de reconhecer o número de

sílabas das palavras, escrever palavras e sentenças e, ao concluírem o 1º ano A, a fim de

serem promovidos para o 2º ano, deveriam escrever textos ditados pela professora, assim

como dominar as questões da língua no que tange à gramática, conforme evidencia o quadro

abaixo:

QUADRO 2 - Exame final de Português - 1º ano C, B, A – 1954

1º ANO C

1ª questão – Fazer cópia do quadro negro, passado pela professora:

A bola é do Didi.

O dado é do Donato.

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Maria é boa môça.

O bolo é bom.

A menina canta bem.

2ª questão – Escrever dez vezes a seguinte frase:

Maria sabe cantar.

3ª questão – Confeccionar o alfabeto.

1º ANO B

1ª questão – Cópia do livro de leitura adotado em classe8.

2ª questão – Quantas sílabas tem estas palavras:

livro ( ) caderno ( ) verde ( ) casa ( ) menino ( ) cavalo ( )

3ª questão – Escreva os dias da semana

4ª questão – Quantas estações tem o ano?

5ª questão – Escreva seu nome.

6ª questão – Escreva 4 sentenças com as seguintes palavras: menino, rio, livro e régua.

1º ANO A

1ª questão – Ditado – Minha professora – do livro adotado em classe.

2ª questão – Quando é que usamos letra maiúscula?

3ª questão – Que é grupo vocálico?

4ª questão – Dar o sinônimo das seguintes palavras: cachorro, moço, comprido, feio, limpo.

5ª questão – O que é artigo?

6ª questão – Separar as sílabas das palavras: abóbora, professora, carreiro, córrego, pássaro,

velho.

7ª questão – Que é substantivo?

8 As fontes consultadas e as entrevistas não revelaram o nome do livro utilizado pelos alunos do Grupo Escolar

nesse período.

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8ª questão - Formar sentenças com as palavras: cachorro, flor, carneirinho, copo.

9ª questão – Passar para o feminino estes nomes: homem, tio, leitão, avô, irmão.

10ª questão – Analisar as seguintes palavras: Brasil, laranjas, mesinha, uma, Paulo, os, as.

Fonte: GECB9 (1954-1958).

A análise das avaliações evidencia que, no Grupo Escolar, o ensino da leitura e escrita

consistia em cópias de palavras e sentenças, com priorização dos aspectos gramaticais e

ortográficos das palavras. Por meio da cópia se avaliava, a arte do bem escrever, importante

“exigência do mundo do trabalho urbano, no qual se faziam necessárias a escrita e a leitura de

textos manuscritos” (SOUZA, 1998, p. 177).

De um ano para o outro houve acréscimo no número de conteúdos, o que implicou,

diretamente, a extensão da prova. Assim, a prova do 1º ano C era composta de três questões, a

do 1º ano B possuía seis e a do 1º ano A, dez questões. Segundo Souza, a adoção de um

programa extenso, abrangente e enciclopédico, do ponto de visto político, dotaria os filhos do

povo de noções diversas sobre o mundo, o homem e a sociedade, ou seja, “a ciência preparava

para a vida racional e para o trabalho na agricultura e na indústria” (SOUZA, 1998, p. 174).

O currículo extenso e enciclopédico ocasionava, todos os anos, um alto índice de

reprovação, como pode ser evidenciado na tabela abaixo:

TABELA 1 - Reprovação ao final do 1º ano, no período de 1954 a 1958.

Período

Reprovação

1º ano C 1º ano B 1º ano A Total Geral

Alunos

frequentes

Repro

vados

%

Alunos

frequentes

Repro

vados

%

Alunos

frequentes

Repro

vados

%

Alunos

frequentes

Repro

vados

%

1954 34 16 47 26 08 31 19 01 05 79 25 32

1955 69 27 39 25 04 16 24 05 21 118 36 31

1956 57 23 40 58 17 29 29 01 03 144 41 28

1957 90 32 35 52 07 13 30 02 07 172 41 24

1958 120 31 26 48 13 27 49 11 22 217 55 25

TOTAL 370 129 35 209 49 23 151 20 13 730 198 27

Fonte: GECB (1954-1958)

Os dados apresentados na tabela revelam que, de modo geral, o maior índice de

reprovação pautava-se no primeiro ano “C”, momento em que a criança aprenderia as noções

gerais da leitura e da escrita. Dos 370 alunos frequentes nessa série, no período de 1954 a

1958, foram reprovados 129, ou seja, 35%.

9 Grupo Escolar César Bastos

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Por conseguinte, o ano de 1954 representou o período em que a reprovação atingiu seu

maior índice: 32%. Nos três anos subsequentes houve um declínio no percentual de

reprovações, “o que parece significar que um maior número de crianças estava conseguindo

‘atender às expectativas escolares’, ou, em outra direção, que as ‘expectativas escolares’

estavam mudando em face da mudança na composição do alunado” (FARIA FILHO, 2000, p.

173). Todavia, no ano de 1958 há crescimento de um ponto percentual no índice de

reprovações, se comparado ao ano anterior.

As informações apresentadas evidenciam um problema que assolava não só Grupo

Escolar César Bastos, mas o Brasil inteiro: a reprovação. Segundo Souza (2004), nos anos de

1950, além das questões relacionadas ao acesso à escola primária, a qualidade do ensino

primário permanecia como problema central da educação brasileira. A escola não ensinava a

ler e a escrever e os índices de analfabetismo continuavam altos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como proposta a apresentação de alguns breves aspectos sobre o

amplo campo de possibilidades aberto à investigação acadêmica utilizando a cultura escolar

nas análises. Entende-se que esse mergulho no funcionamento interno da escola tem

alicerçado e conferido validade, ainda a interpretações que acolhem o escolar em dimensões

cada vez mais reduzidas. Nesse sentido, pode-se compreender que, a cultura escolar, tomada

como pressuposto da investigação, desponta como resposta imediata aos impasses sofridos

pela escola.

Diante do exposto, o que se pode considerar é que as professoras alfabetizadoras do

Grupo Escolar César Bastos não possuíam diretrizes que orientassem suas práticas de ensino;

os materiais didáticos, quando utilizados, resumiam-se a cartazes; adotavam o método

sintético de ensino da língua e as avaliações aplicadas tinham caráter classificatório e

excludente.

Além do mais, o presente estudo contribuirá para traçar um perfil a respeito da

situação da alfabetização instituída nos grupos escolares, no período de 1947 a 1961,

ampliando o corpus de conhecimento sobre a história da educação goiana, até então parca de

investigação, principalmente, no que tange a este período histórico.

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