Entre inconformismo e reformismo* · No ano seguinte (1950) tivemos uma série de discussões em...

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REVISTA DAS REVISTAS Entre inconformismo e reformismo* CELSO FURTADO Interrogar a história como economista C omo explicar que países surgidos da expansão econômica da Europa, cujas estruturas foram criadas para facilitar essa expansão, hajam acumulado tanto atraso?Esta pergunta está no cerne de minha reflexão sobre o desenvolvimento. A teoria do crescimento, que vinha sendo elaborada no imediato pós-guerra, consistía num esforço de dinamização a-histórica de modelo macroeconômico, na linha keynesiana ou na neoclássica, conforme a natureza da função de produção implícita. Ora, a indagação sobre as causas do atraso somente adquiria sentido se colocada no plano da História, o que exigia uma outra abordagem teórica. Que caminhos nos trouxeram ao subdesenvolvimento? É este um estágio evolutivo ou uma conformação estrutural que tende a reproduzir-se? A necessidade de pensar em termos de História levou-me a colocar uma questão metodológica: que contribuição podem dar as Ciências Sociais: em particular a Economia, ao estudo da História? Pergunta similar vinha sendo feita pelos historiadores europeus da École des Annales. Eles buscavam ajuda nas Ciências Sociais: eu, partindo destas, a buscava na História. Minha problemática derivava da idéia de que o subdesenvolvimento, por sua especificidade, escapava do alcance explicativo das teorias de crescimento. Por que em determinadas economias engendradas pela expansão do capitalismo comercial manteve-se lento o processo acumulativo ou tendeu este a realizar-se, de preferência, fora das atividades produtivas? Por que a assimilação de novas técnicas se fez muito mais rapidamente ao nível do consumo do que dos processos produtivos? Essas perguntas eram fruto da aplicação dos instrumentos do economista a uma análise diacrônica que desdobrava do campo de percepção deste. Assim, a reflexão sobre o subdesenvolvimento começa como uma nova leitura da História, apoiada no uso de conceitos e instrumentos da Ciência Econômica, e se prolonga num esforço de ampliação do quadro conceituai desta. (*) Transcrição feita da Revista de Economia Política, 9(4): 6-28, outubro-dezembro/1989.

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REVISTA DAS REVISTAS

Entre inconformismo ereformismo*CELSO FURTADO

Interrogar a história como economista

C omo explicar que países surgidos da expansãoeconômica da Europa, cujas estruturas foram criadaspara facilitar essa expansão, hajam acumulado tanto

atraso?Esta pergunta está no cerne de minha reflexão sobre odesenvolvimento. A teoria do crescimento, que vinha sendo elaboradano imediato pós-guerra, consistía num esforço de dinamizaçãoa-histórica de modelo macroeconômico, na linha keynesiana ou naneoclássica, conforme a natureza da função de produção implícita.Ora, a indagação sobre as causas do atraso somente adquiria sentido secolocada no plano da História, o que exigia uma outra abordagemteórica.

Que caminhos nos trouxeram ao subdesenvolvimento? É este umestágio evolutivo ou uma conformação estrutural que tende areproduzir-se? A necessidade de pensar em termos de Histórialevou-me a colocar uma questão metodológica: que contribuiçãopodem dar as Ciências Sociais: em particular a Economia, ao estudoda História? Pergunta similar vinha sendo feita pelos historiadoreseuropeus da École des Annales. Eles buscavam ajuda nas CiênciasSociais: eu, partindo destas, a buscava na História. Minhaproblemática derivava da idéia de que o subdesenvolvimento, por suaespecificidade, escapava do alcance explicativo das teorias decrescimento. Por que em determinadas economias engendradas pelaexpansão do capitalismo comercial manteve-se lento o processoacumulativo ou tendeu este a realizar-se, de preferência, fora dasatividades produtivas? Por que a assimilação de novas técnicas se fezmuito mais rapidamente ao nível do consumo do que dos processosprodutivos? Essas perguntas eram fruto da aplicação dos instrumentosdo economista a uma análise diacrônica que desdobrava do campo depercepção deste. Assim, a reflexão sobre o subdesenvolvimentocomeça como uma nova leitura da História, apoiada no uso deconceitos e instrumentos da Ciência Econômica, e se prolonga numesforço de ampliação do quadro conceituai desta.

(*) Transcrição feita da Revista de Economia Política, 9(4): 6-28, outubro-dezembro/1989.

No esforço de interrogar a História como economista, cedo meconvenci de que os conceitos de que me estava servindo eram fruto daobservação das estruturas sociais que se haviam formado com ocapitalismo industrial. A consideração das estruturas sociaisengendradas pela expansão internacional desse capitalismo impunhauma apreciação crítica desse quadro conceitual. A denúncia feita porPrebisch em 1949 do "falso universalismo" da Ciência Econômicaapontava nessa direção1.

O comportamento diacrônico das comunidades humanas, — quechamamos de História, comporta um elemento de intencionalidadeque se traduz pelo exercício de opções. Ora, um horizonte depossibilidades, uma margem de escolha pressupõem a disponibilidadede meios acima do essencial. Os meios excedentários de que dispõeuma comunidade podem assumir a forma de um stock, utilizado umasó vez, mas também podem apresentar-se como um fluxo, a exemplodo que ocorre com a abertura de linhas de comércio com outrascomunidades. Esses meios excedentários, que abrem graus deliberdade, são em realidade a base do processo acumulativo. Assim, oretorno ao conceito de excedente social, introduzido pelos fisiocratas nametade do século dezoito, constituiu o meu ponto de partida paraobservar o desenvolvimento econômico em seu contexto histórico.

As "anomalias" da economia brasileira

A produção cafeeira, ao apresentar óbvias vantagens comparativas parao Brasil, pôde crescer com rapidez quando surgiram condiçõesfavoráveis do lado da demanda e dos meios de transporte. Contudo,essa atividade era seriamente afetada pelas condições climáticas, o quegerava acentuada instabilidade de preços, os quais tendiam a sermanipulados por especuladores localizados fora do país. Daí que osprodutores houvessem forçado o governo brasileiro a intervir nosmercados mediante a formação de stocks reguladores, prevenindo asuperprodução. Isso permitiu, desde começos do século, que o preçodo café nos mercados internacionais gozasse de certa estabilidade anível relativamente elevado. Como contrapartida, surgiu umadependência vis-à-vis dos financiadores internacionais desses stocks, aqual se traduziu em políticas monetária e fiscal restritivas, que frearamo desenvolvimento do mercado interno. Inferia-se da observação dessequadro que a intervenção do Estado era fator decisivo na determinaçãodo nível interno da renda e da relação de trocas. A regulação daeconomia pelas simples forças dos mercados conduzia inexoravelmenteà instabilidade e à degradação da relação de trocas. Se bem queconsiderada pelos economistas da época como uma "anomalia", aintervenção estatal introduzia racionalidade. Era evidente que arealidade desbordava do campo de percepção dos economistas.

Nada me ajudou tanto a superar a visão convencional do atraso daeconomia brasileira quanto a observação do comportamento"anômalo" dessa economia durante a grande depressão de1929-1933. Ao tentar elaborar indicadores do desempenho das

(1) Raul Prebisch. " The Economic Development of Latin America and its principal problems", Economic Bulletinfor Latin America(marco 1961). Este estudo foi originalmente apresentado na conferência da CEPAL realizada emmaio de 1949, em Havana.

atividades agrícolas e manufatureiras no longo prazo, pude comprovarque a produção agrícola de exportação crescera fortemente no período1929-1931, quando os preços internacionais estavam em derrocada.Por outro lado, a produção manufatureira aumentava sensivelmente apartir de 1931, fase em que a economia era asfixiada pelo corte brutaldas importações. Ocorrera que, em face das grandes safras de café em1930 e 1931, o governo havia sido forçado a acumular volumososstocks (os quais seriam em grande parte queimados), que, à falta decrédito externo, financiava com expansão de meios de pagamento.Dessa forma, a contração da renda monetária causada pela queda dospreços de exportação fora compensada pela acumulação de stocks emmãos do governo, ao mesmo tempo em que se comprimiambrutalmente as importações. A forte elevação dos preços dasmanufaturas importadas, causada pela depreciação da moeda, operoucomo barreira protecionista, o que explica a ativação da produçãomanufatureira desde 1931. A "anomalia" estava na recuperaçãoprecoce de uma economia primario-exportadora, em período em que adepressão mundial continuava a aprofundar-se. Reuni os resultadosdessas observações em artigo escrito em julho de 1949 2.

A importância da função reguladora, exercida ou não pelo Estado,evidenciava-se neste caso em sua plenitude. Se era verdade que aeconomia lograra superar a forte pressão depressiva vinda de foradurante a grande crise, também o era que na fase anterior a capacidadeprodutiva e acumulativa do setor manufatureiro fora subutilizada. Emum e outro casos fora decisiva a ação reguladora do Estado. Cabia,portanto, formular a hipótese de que o "atraso" acumulado pelo paísencontrava explicação na História, pois as políticas econômicas, queem grande parte respondiam por ele, não eram fruto da fatalidade esim a expressão de torças sociais identificáveis.

Na medida em que a economia se fez mais complexa, a regulaçãomacroeconômica se tornou mais incerta. No passado, a defesa dosinteresses ligados ao café e outros produtos de exportação haviaservido de bússola orientadora. Com o avanço da industrialização,forças conflitantes passaram a disputar o comando dos centros dedecisão. Nesse contexto, as conseqüências de uma decisãomacroeconômica nem sempre podiam ser avaliadas e menos aindaprevistas. Daí que a inflação haja passado a desempenhar o papel demecanismo de ajustamento a posteriori.

No imediato pós-guerra, preocupado em defender os preços do caféno mercado internacional, o governo brasileiro fixou a paridade docruzeiro com evidente sobrevalorização deste, o que foi interpretadocomo ameaça ao setor industrial. Preços baixos das importaçõestambém significavam receitas insuficientes para o Estado — dada aimportância relativa do imposto de importação — , gerando-se umfoco de pressão inflacionaria. Esse quadro anômalo conduziu aorápido esgotamento das reservas de cambio e à introdução decontroles quantitativos das importações, o que favorecianecessariamente o setor industrial. Desta forma, uma política inspirada

(2) Celso Furtado. The Economic Growth of Brasil, University of California Press, 1963, pp. 193-213. A ediçãooriginal brasileira, Formação Econômica do Brasil, é de 1959. As idéias elaboradas nesse livro foram originalmenteapresentadas no artigo " Características da Economia Brasileira", Revista Brasileira de Economia, março de 1950.

na defesa dos interesses do café, pelo fato de que gerava pressãoinflacionaria, transformou-se em política de fomento às atividadesindustriais. A inflação vinha suprir a inexistência de uma política deindustrialização, num momento em que esta se definira comoaspiração nacional. Maior "anomalia" não podia haver do que umainflação geradora de efeitos positivos 3.A opção pela industrialização, com efeito, era tema que se discutiaamplamente no Brasil e no período da guerra. A carência de produtosmanufaturados, provocada pela interrupção do suprimento externo,trouxe argumentos decisivos aos críticos da velha doutrina do país devocação " essencialmente agrícola ".

Quando iniciei meu trabalho na CEPAL, o primeiro estudo querealizei4 teve como tema central o comportamento do setor industriallatino-americano. Introduzi nesse estudo um exercício que consistiuem medir o impacto sobre o comércio internacional de um hipotéticoaumento da oferta de produtos manufaturados em quatro países daAmérica Latina (Argentina, Brasil, México e Chile), caso essa ofertaalcançasse, por habitante, nível correspondente a 50 por cento doalcançado pelo Canadá em 1939 e devesse ser obtida medianteimportações. O valor destas teria que exceder o valor total dasexportações mundiais de manufaturas na época. Desta forma, poruma redutio ad absurdum, procurei demonstrar que não haviaalternativa à industrialização, se se pretendia alcançar na AméricaLatina padrões de consumo comparáveis aos dos países desenvolvidos.

No ano seguinte (1950) tivemos uma série de discussões em torno dedados empíricos recolhidos por um grupo de trabalho, constituído deengenheiros da CEPAL e do Banco Mundial, que apreciavam asituação da indústria têxtil de sete países latino-americanos. Osparâmetros usados pelos engenheiros para medir a produtividadelevavam à conclusão de que a maior parte das fábricas eram obsoletas,cabendo reconstruí-las, o que implicava descartar grande parte doequipamento e reduzir consideravelmente o emprego no setor. Asdiscussões que tivemos então levaram-nos a introduzir o conceito deprodutividade social, global e setorial, média e marginal. Abria-se,assim, o debate sobre "alternativas tecnológicas" e estabeleciam-se asbases metodológicas para a formulação de políticas integradas dedesenvolvimento5.

A observação da produtividade como um fenômeno social globallevou-me a recuperar o conceito de sistema de forças produtivas, quehavia sido introduzido um século antes por Friedrich List6. As

(3) Id., cap. 35, " Os Dois Lados do Processo Inflacionário". Essas idéias foram inicialmente apresentadas em AEconomia Brasileira, Editora A Noite, Rio de Janeiro, 1954, pp. 177-187.

(4) Trata-se de minha contribuição pessoal ao primeiro Estudio Económico de América Latina, referente ao ano de 1948e apresentado à conferência da CEPAL realizada em Havana, em maio de 1949. ECLA: Economic Survey of LatínAmerica, Lake Success, Nova York, 1949, pp. 51-54.

(5) As idéias sobre escolha de tecnologias foram elaboradas no estudo Problemas Teóricos y Prácticos del CrecimientoEconómico, apresentado na conferencia da CEPAL, realizada no México, em maio de 1951. A redação desse tra-balho foi de Prebisch. As idéias sobre um enfoque integrado da política de desenvolvimento foram reunidas noestudo Introducción a la Técnica de Programación, apresentado à conferência da CEPAL, realizada em Quitandinha,Brasil, em 1953. A redação desse segundo trabalho coube a uma equipe sob minha direção.

(6) Friedrich List. Das Nationale System der Politichen Oekonomie,Jena, Gustav Fischer, 1920, pp. 239-253. A pri-meira edição é de 1841.

atividades produtivas passavam a ser vistas como um todo articulado,cuja compreensão deveria anteceder a de seus elementos constitutivos.Isso projetava nova luz sobre a natureza das relações externas, às quaiscabia o papel de "centro dinâmico" ou de "motor" dastransformações que estavam na base do desenvolvimento dessaseconomias na fase primario-exportadora.

Estruturalismo e dependência

A visão global derivada da História, ao apoiar-se no conceito desistema de forças produtivas, conduziu ao enfoque que viria a serchamado de "estruturalista". Este não tem relação direta com aescola estruturalista francesa, cuja orientação básica consistiu emprivilegiar o eixo das sincronias na análise social, o que a levou aconstruir uma sintaxe das disparidades nas organizações sociais. Onosso estruturalismo, surgido nos anos 507,empenhou-se em destacar aimportância dos parâmetros não econômicos introduzidos nosmodelos macroeconômicos. Como o comportamento das variáveiseconômicas depende em grande medida desses parâmetros, que sedefinem e evoluem num contexto histórico, não é possível isolar oestudo dos fenômenos econômicos de seu quadro histórico. Essaobservação é particularmente pertinente com respeito a sistemaseconômicos heterogêneos, social e tecnologicamente, como é o casodas economias subdesenvolvidas.

Sem um estudo aprofundado da estrutura agrária, não é possívelexplicar a tendência à concentração da renda, nem tampouco a rigidezda oferta de alimentos geradora de pressões inflacionarias. Sem umapercepção da natureza da industrialização retardada (orientada para asubstituição de importações) não será possível entender a"inadequação tecnológica", que agrava o subemprego.

Como fatores "não econômicos" — regime de propriedade da terra,controle das empresas por grupos com uma visão transnacional dosinvestimentos, permanência de grande parte da mão-de-obra fora dosmercados organizados etc. — integram a matriz estrutural do modelocom que trabalha o economista, ao dar ênfase ao estudo de taisparâmetros fomos chamados de estruturalistas. Em certo sentido, osestruturalistas latino-americanos retomaram a tradição do pensamentomarxista, na medida em que este colocou em primeiro plano a análisedas estruturas sociais como meio de compreender o comportamentodos agentes econômicos.

Esse esforço visando ampliar o quadro conceituai, para abranger oscondicionantes internos e externos do sistema de decisões, conduziu

(7) A teorização a partir do enfoque estruturalista surgiu inicialmente na abordagem do problema da inflação. Entreos primeiros trabalhos cabe citar Joan Noyola Vázquez, " El Desarrollo Económico y la Inflación en México yotros Países Latinoamericanos", Investigación Económica, XVI, n. 4, México, 1956; Celso Furtado, "The Ex-ternal Desequilibrium in the Underdeveloped Economies", The Indian Journal of Economics, abril, 1958; OswaldoSunkel, " La Inflácion Chilena: un Enfoque Heterodoxo" ,El Trimestre Económico,México, outubro-dezembro,1958; Aníbal Pinto, " Estabilidad y Desarrollo", El Trimestre Económico,México, janeiro-marco, 1960. Minhasidéias foram elaboradas em dois ensaios preparados entre 1959 e 1960 e publicados em Desenvolvimento e Subdesen-volvimento,Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961, pp. 195-264.O primeiro desses ensaios está em Developmentand Underdevelopment, University of California Press, 1964, sob o título " External Desequilibrium in Under-developed Structures", e o segundo apareceu no número 12 de International Economic Papers, sob o título " In-dustrialization and Inflation", Londres, 1967.

finalmente à teoria da dependência8. Esta se funda numa visão globaldo capitalismo — enfocado como um sistema econômico em expansãovertical e horizontal e como uma constelação de formas sociaisheterogêneas — que permite captar a diversidade, no tempo e noespaço, do processo de acumulação e as projeções dessa diversidadenos países de industrialização tardia. Graças a esse enfoque abrangente,foi possível aprofundar a percepção das vinculações entre as relaçõesexternas e as formas internas de dominação social, bem como projetarluz sobre outros temas de não pequena significação, como a naturezado Estado e o papel das firmas transnacionais.

Fora do quadro da dominação colonial, o fenômeno da dependência semanifestou inicialmente no plano cultural, mediante a transplantaçãode padrões de consumo que puderam ser adotados graças ao excedentegerado no quadro das vantagens comparativas estáticas obtidas nocomércio exterior. E o forte dinamismo do segmento modernizado doconsumo que projeta a dependência no plano tecnológico e a inscrevena estrutura produtiva. Com efeito, é quando se pretende, medianteindustrialização, substituir os bens importados, que o aparelhoprodutivo se fratura em dois segmentos: um ligado a atividadestradicionais, destinadas às exportações ou ao mercado interno, e outroconstituído por indústrias produzindo para o setor modernizado doconsumo. Se observarmos as economias subdesenvolvidas comosistemas fechados, podemos ser levados a afirmar que essadescontinuidade do aparelho produtivo é a manifestação de um"desequilíbrio ao nível dos fatores", daí deduzindo que a tecnologia é"inadequada". Estaremos ignorando o fato de que os bens que estãosendo demandados pela minoria modernizada não podem serproduzidos senão com essa tecnologia e que para essa minoria não seapresenta o problema de ter que optar entre essa constelação de bens eoutra. Na medida em que os padrões de consumo da minoria, que seapropria do excedente, devem acompanhar o estilo de vida dos paísesque lideram o progresso tecnológico (e se instalaram em elevado nívelde capitalização), qualquer tentativa visando " adaptar" a tecnologiaserá repudiada. Se se tem em conta que a situação de dependência estásendo permanentemente reforçada, mediante a introdução de novosprodutos (cuja produção requer o uso de técnicas cada vez maissofisticadas e dotações crescentes de capital), torna-se evidente que oavanço da industrialização faz-se simultaneamente com a concentraçãoda renda. Daí que o crescimento econômico tende a depender mais emais da capacidade das classes que se apropriam do excedente, paraforçar a maioria da população a aceitar crescentes desigualdadessociais. Somente a vontade política poderá modificar esse quadro.

Se tivesse que singularizar uma idéia sintetizadora de minhas reflexõesde economista sobre a História, diria que ela se traduz na dicotomia

(8) Celso Furtado. " Underdevelopment and Dependence: the Fundamental Connections", Center for Latin Ame-rican Studies, University of Cambridge, Working Papers, n. 17,1973. Foram meus estudos sobre a dinâmica da

demanda e a modernização na reprodução do subdesenvolvimento que me orientaram para a idéia de "de-pendência", primeiro cultural e em segundo lugar tecnológica. Cf. " Dependencia Externa y Teoría Eco-nómica" , El Trimestre Economico, México, abril-julho, 1971, e " Los Perfiles de la Demanda y la Inversión", ElTrimestre Económico, México, junho-setembro, 1970, Criatividade e Defendência, Editora. Paz e Terra, Rio, 1978,traduzida para o inglês sob o título Accumulation and Development, Oxford, Martin Robertson, 1983.

(9) Development and Underdevetopment, op. cit. No primeiro desses ensaios, chamei a atenção para a necessidade deestudar, ao lado do processo de acumulação, a dinâmica da demanda. Cf. Celso Furtado, " DesenvolvimentoEconômico e Formação de Capital", Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, janeiro, 1952. Esse ensaio foiescrito em comentário às conferências de R. Nurkse, pronunciadas no Rio de Janeiro, em 1950, sob o mesmotítulo. Veja-se também a resposta do autor aos meus comentários, publicada na mesma revista, número de março,1953. Versão algo modificada desse artigo foi publicada no International Economic Papers, n.4, Londres, 1954.

(10) Essas idéias aparecem em sua forma mais elaborada em Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico,São Paulo,Cia. Editora Nacional, 1967; Prefácio à Nova Economia Política, Rio, Editora Paz e Terra, 1977; e Pequena Intro-dução ao Desenvolvimento, um Enfoque Interdisciplinar,São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1979.

desenvolvimento-subdesenvolvimento, que utilizei como título do livro emque reuni meus primeiros ensaios de teoria econômica9. As idéias aíesboçadas e posteriormente reelaboradas estão resumidas nas seções 4e 5 seguintes10.

Uma teoria do excedente social

Para agir com maior eficácia, o homem dota-se de técnicas que, via deregra, ampliam sua capacidade operativa mediante o uso deinstrumentos. Seja incorporando-se diretamente ao homem, seja sob aforma de instrumentos, as técnicas somente se transmitem medianteum processo de acumulação. Portanto, o desenvolvimento dacapacidade do homem para agir (e para produzir) funda-se num mistode inventividade e acumulação. O esforço acumulativo que realiza asociedade tanto assume a forma de aperfeiçoamento ao homem (nestecaso considerado como um meio, ou recurso produtivo), quanto deaparelhamento desse mesmo homem: fabricação de instrumentos detrabalho, de estruturas para acolher esses instrumentos, instalação deplantações agrícolas, de meios de acesso a essas plantações etc.

Se se limita à difusão de técnicas já conhecidas e comprovadas, odesenvolvimento se confunde com a acumulação. Mas circunscrever oestudo do desenvolvimento à acumulação é perder de vista que astécnicas não são outra coisa que formas de comportamento, cujaracionalidade não é independente de fins preestabelecidos. Asubstituição do cavalo pelo automóvel não é apenas uma evolução dosistema de transporte: é a transformação de um estilo de vida. Falar dedifusão ou transmissão de tecnologia é, portanto, um eufemismo, poiso que se está difundindo nesse caso é uma forma de viver, o queimplica a desarticulação do sistema de valores preexistentes nasociedade receptora das novas técnicas.

A reflexão sobre o "desenvolvimento econômico" tem-se concentradono estudo do processo acumulativo ao nível das forças produtivas.Ora, por trás dos indicadores quantitativos, que preocupam oeconomista, desdobra-se o vasto processo histórico de difusão dacivilização industrial: a adoção por todos os povos da terra do que seconvencionou chamar de " padrões de modernidade", ou seja, aforma de viver engendrada pela industrialização nos países que alideram. Daí que o papel da criatividade no desenvolvimento hajaperdido nitidez, bem como toda relação entre a acumulação e osvalores que presidem a vida social. Essa simplificação oculta aexistência de modos de desenvolvimento hegemônicos, quemonopolizam a inventividade ao nível dos fins em benefício de certospaíses.

Que condições serão necessárias para que a acumulação ocorra emdada sociedade? A partir de que momento cabe falar em horizonte de

opções? Qual o limite último ao esforço de acumulação? Responder aestas questões é fomular uma teoria do "excedente social". Poucadúvida pode haver de que os recursos "acumulados", ou seja, cujautilização final é transferida para o futuro, são os não essenciais àimediata sobrevivência da coletividade. Também é evidente que osrecursos não essenciais têm múltiplas utilizações, sendo a acumulaçãoao nível das forças produtivas apenas uma delas. A teoria do excedenteliga-se à teoria da estratificação social e, por intermédio desta, aoestudo das formas de dominação que engendram as desigualdades narepartição do produto social, ou definem as opções a tomar nautilização do excedente.Pode-se fundar a noção de excedente no fato de observação simples euniversal de que a divisão social do trabalho aumenta a produtividadedeste. Mesmo a níveis de diferenciação rudimentares, o todo socialrepresenta uma força produtiva maior do que a da soma de seuselementos concebidos isoladamente. Alcançada certa dimensão, ascoletividades humanas produzem mais do que o estritamentenecessário para reproduzir-se. O intercâmbio entre comunidades,intensificando a especialização, criou possibilidades adicionais à divisãosocial do trabalho.

Contudo, a elevação da produtividade social do trabalho não seriacondição suficiente para produzir o que chamamos de excedente. Comefeito: se os recursos adicionais são imediatamente utilizados para asatisfação de necessidades que os membros da coletividade consideramcomo essenciais, não teria sentido falar de horizonte de opções. Estassurgem porque os sistemas de dominação social limitam a satisfação denecessidades básicas que a população considera como ainda nãocompletamente satisfeitas. É a estratificação social que permite aemergência do excedente, ou seja, de recursos com usos alternativos,abrindo o caminho à acumulação. Portanto, os recursos que permitemo desenvolvimento das forças produtivas são os mesmos que tornampossível mobilizar a população para a guerra e que engendram asdesigualdades sociais.

Destarte, a acumulação assume as formas mais variadas nas distintasculturas. Ela é o cimento da estratificação social e da legitimação dosistema de poder, por um lado, e, por outro, é o vetor do progressodas técnicas. Que ela se oriente de preferência nesta ou naqueladireção, é problema que transcende a temática das teorias dodesenvolvimento e invade o estudo comparativo das culturas,particularmente nos seus aspectos morfogenéticos. Por que emdeterminada cultura o esforço acumulativo é principalmente absorvidopela construção de pirâmides e outras formas de vinculação do sistemade poder ao sobrenatural? Por que a criatividade no plano estéticotendeu a absorver grande parte do esforço acumulativo na Gréciaclássica? Pouca dúvida pode haver de que tanto as esfinges egípciascomo as colunas dóricas do Partenon ligavam-se ao propósito deprestigiar (e por essa forma legitimar) um sistema de poder. E certoque os valores que prevalecem numa sociedade (e orientam o processo

de criatividade) não são independentes das estruturas sociais. Mas ummesmo problema pode receber soluções muito diversas de umasociedade para outra. E é nessa diversidade que se manifesta aoriginalidade de uma cultura.

O estudo comparativo das culturas põe em evidencia a enormecapacidade inventiva do homem, a qual pareceria ser, via de regra,subutilizada. O que geralmente se estuda, na historia das culturas, sãoos momentos excepcionais em que essa capacidade se libera e alimentaaos borbotões a corrente da herança cultural da humanidade.

As energias criadoras de uma cultura tendem a estruturar-se em tornode eixos que parecem haver sido os mesmos em todas as épocas: aexperiência religiosa, a experiência estética, a experiência do saber puroe aplicado. Assim canalizadas, essas energias assumem a forma derecursos que são postos a serviço da coletividade, freqüentementevisando a reforçar as estruturas de dominação social, masocasionalmente pretendendo contestá-las. Em certas culturas, alinguagem de legitimação ou contestação do poder foi essencialmentereligiosa, em outras, estética, e, ainda em outras, puramente racional.

A civilização em que vivemos caracteriza-se pela importância que nelaassumiram as estruturas produtivas, cujo grau de complexidade cresceudesmedidamente. O controle dessas estruturas e a capacidade parafazê-las operar eficientemente constituem as bases do sistema depoder. A criatividade está principalmente orientada para a produção detécnicas que assegurem a estabilidade desse poder em face das pressõesinternas e externas.

Sempre que as sociedades alcançaram um certo grau de complexidade,a apropriação do excedente apresentou-se sob duas formas básicas: aautoritária e a mercantil.

A todo sistema de dominação social — o enquadramento da populaçãopara a guerra ou para a produção inclui-se entre as formas maissimples — corresponde necessariamente a geração de um excedente. Ocaso extremo ido excedente gerado autoritariamente é dado pelaescravidão. Os sistemas impositivos têm origem idêntica, o que nãoimpede que eles hajam evoluído no sentido da legitimação peloconsenso dos indivíduos tributados. Mais sutis como formas deextração autoritária do excedente são as normas que fazem asprofissões hereditárias, que freiam a mobilidade geográfica daspessoas, que impedem a circulação de bens, que restringem o acesso àterra arável e à água. Formas ainda mais sofisticadas são os sistemas depatentes, o controle da informação, o controle do acesso às escolas deprestígio e coisas similares.

A segunda forma primária de apropriação do excedente — a mercantil— funda-se nas operações de intercâmbio. Ela também gera aestratificação social, mas o seu ponto de partida não é a dominação esim o aumento de produtividade criado pela especialização,possibilitada pelo intercâmbio. Com efeito, o intercâmbio pode existirno quadro de relações simétricas, ou seja, entre parceiros totalmenteindependentes um do outro. É verdade que todo intercâmbiopressupõe um fluxo de informações, cujo controle por um ou outrodos que o praticam rompe a simetria da relação. Mas neste caso aapropriação do excedente envolve um elemento de autoridade.

Em todas as sociedades complexas as duas formas primárias referidasapresentam-se combinadas das maneiras mais diversas. Na maior partedas vezes, a forma autoritária alimenta os canais da comercialização.

Assim, a produção agrícola baseada no trabalho servil foi por muitotempo a fonte de excedentes comercializados internacionalmente. Nemsempre é fácil saber onde termina uma forma e onde começa a outra: éo caso, por exemplo, da renda de um agente que ocupa uma posiçãoestratégica, ou está na vanguarda tecnológica. Como não reconhecerque uma empresa como a IBM, por exemplo, está em condições deadministrar certos preços e por esse meio captar um excedente que nãoé exatamente de ordem mercantil? Como separar o critério mercantildo autoritário no caso da exploração monopolista de um serviçopúblico? Que dizer do especulador que, mediante a manipulação dainformação; obtém um ganho de capital com a valorização de ativos?.

Se é verdade que as duas formas primárias de apropriação doexcedente coexistiram por toda parte, foi a predominância de uma oude outra que definiu o perfil das estruturas sociais. Historicamente, àforma mercantil coube sempre um papel complementar, prevalecendoa forma autoritária como fator principal na configuração das estruturassociais. Mesmo na Inglaterra de capitalismo avançado do séculodezenove, a classe dominante — a julgar pela composição doParlamento, inclusive da Câmara dos Comuns — estavaprincipalmente constituída de membros da classe de grandesproprietários de terras. As civilizações essencialmente mercantis, quenos depara a História, sempre viveram em simbiose com outras emque o excedente era basicamente extraído por via autoritária.

Contudo, não é difícil perceber que a via de apropriação autoritáriaesgota rapidamente as suas possibilidades: o aumento da carga fiscaltem limites, a renda do monopolista restringe o mercado etc. Aocontrário, a via mercantil, pelo fato de que promove a especialização ea divisão do trabalho, põe em marcha um processo de geração denovos recursos. Em síntese: a via mercantil gera ela mesma recursosque alimentam o excedente, ao passo que a via autoritária reduz-se atransferir recursos. (A realidade é certamente mais complexa, pois adisciplina de trabalho e a segurança nos meios de transporte ecomunicação que acompanham a via autoritária podem repercutirpositivamente na produtividade.) A diferença assinalada éparticularmente importante do ponto de vista do desenvolvimento dasforças produtivas que, de alguma forma, se confunde com o avanço daforma mercantil de apropriação do excedente.

O intercâmbio não se funda apenas na especialização: requer aestocagem de produtos, o transporte destes a distâncias mais ou menosgrandes, meio de proteção etc. Toda uma infra-estrutura de meios detransporte, de armazenagem e de segurança está por trás das operaçõesde comércio. Essa infra-estrutura e os bens cuja utilização é transferidano tempo, em função das exigências do comércio, constituem umaimobilização de excedente. Esse excedente utilizado como meio deextrair um outro excedente, seja como instrumento do intercâmbio,seja como vetor das técnicas de produção, denomina-se bens decapital.

A revolução burguesa não é outra coisa senão a ascensão da classemercantil européia a posições de força que lhe permitirão desmantelaro sistema tradicional de apropriação autoritária do excedente, ou pelomenos colocá-lo em posição de dependência.

Tanto nas atividades manufatureiras quanto nas agrícolas viria apredominar o regime salarial. A terra e o trabalho humano são poressa forma transfigurados em "instrumentos da produção",correspondendo-lhes um valor de troca que os coloca no mesmo planoque os bens finais, tradicionalmente objeto de intercâmbio. A atividademercantil, antes limitada à circulação dos bens, tende a verticalizar-se,abarcando a totalidade do processo produtivo. A atividade produtivadeixa de ser um conjunto de relações estáveis entre pessoas — noâmbito de uma corporação de ofício ou de uma propriedade senhorial— para transformar-se numa "combinação de fatores" em grandeparte intercambiáveis e sujeitos a cotações de mercado. Porque tudo éobjeto de intercâmbio, a apropriação mercantil do excedentegeneraliza-se, o que permitirá considerar um número crescente deatividades humanas como sendo de natureza econômica.

À apropriação autoritária do excedente correspondia uma organizaçãosocial hierárquica, de reduzida mobilidade, na qual cada atordesempenhava um papel já programado, quando ele se incorporava àsociedade. A técnica nesse quadro integrava-se à herança cultural,transmitida de geração a geração no âmbito de atividades queprolongavam a vida familiar. Nesse contexto, dificilmente penetra aidéia de produtividade, quando não seja em função do impacto defatores exógenos, como as condições meteorológicas, as guerras etc.

A atividade mercantil baseia-se no cálculo: preços de compra e venda,custo de transporte, de armazenamento etc. Tudo isso referido a umdenominador comum, bem de aceitação geral, que vem a ser a moeda.A idéia de produtividade não é outra coisa senão a expressão dessecálculo. Ora, se a produtividade pode ser aumentada, medianteengenho e arte, é que a atividade mercantil produz riqueza. Nassociedades em que a atividade produtiva está regida por critériosmercantis, o nível de emprego da população depende das condiçõesdos mercados. A sobrevivência dos trabalhadores já não é asseguradapela organização social, como ocorria na época em que se herdava oofício ou o direito de acesso à terra arável. A segurança individualsomente poderá ser recuperada mediante um grande esforço deorganização das massas trabalhadores e do acesso destas às estruturasde poder que tutelam o sistema econômico.

A evolução da sociedade capitalista compreende, portanto, duas fasesperfeitamente definidas. A primeira está assinalada pela desarticulaçãodas formas de dominação social, apoiadas na apropriação autoritáriado excedente, e pela ascensão da classe mercantil à posiçãohegemônica. A segunda é definida pela emergência da organização dasmassas assalariadas, como elemento de crescente importância nasestruturas de poder.

O sistema centro-periferia

A consolidação, na segunda metade do século dezoito, de um primeironúcleo industrial — germe de um sistema econômico que alcançariadimensões planetárias — é um episódio da história social européia.Pouca dúvida pode haver de que o controle do sistema de produçãopela burguesia tendeu a acelerar a acumulação canalizada para as forças

produtivas. As circunstâncias, porém, que abriram caminho a essecontrole e concentraram geométricamente os seus efeitos são fatos quepodemos compreender, mas não explicar, a partir de relações causais.Concomitantemente à consolidação, manifesta-se a força gravitacionaldesse núcleo cujo impacto se fará sentir em áreas de importânciacrescente. Com efeito, a força expansiva do primeiro núcleo industrialfoi considerável; ela é o ponto de partida de um conjunto de processosque tenderão a unificar a civilização material em todo o mundo. Tudose passou como se o espaço em torno ao núcleo industrial tendesse ase modificar por indução externa ou de forma reativa. Essasmodificações, entretanto, estiveram longe de ser uniformes. Cabe, emrealidade, distinguir três processos de transformação social causadospela força expansionista do primeiro núcleo industrial.

1. Ampliação e complexificação do núcleo inicial. As atividades artesanaise o sistema feudal de controle social tenderam a desmantelar-se numraio de ação crescente em torno do referido núcleo. E nas ilhasbritânicas que esse processo apresenta maior vivacidade, estimuladopela precoce penetração da forma capitalista de produção naagricultura. Mas o mesmo fenômeno se manifesta na Europaocidental, em particular na Bélgica, nos Países-Baixos e no Norte daFrança. As transformações econômicas e sociais são seguidas derealizações no plano político, no sentido de recortar o território emmercados protegidos, reivindicando as burguesias regionais o direitode acesso exclusivo aos respectivos mercados nacionais. Cada naçãoprocurará dotar-se de um Estado soberano, que assumiráresponsabilidades crescentes como instrumento regulador dossubsistemas econômicos nacionais. A vaga de nacionalismo, quecaracteriza a Europa do século dezenove, liga-se à ascensão dasburguesias ao controle das atividades produtivas e ao esforço dedivisão dos mercados entre grupos hegemônicos. O que hojechamamos de centros do sistema capitalista situa-se primeiramente naEuropa, como projeção imediata do núcleo industrial inicial, e é aresultante da interação de fatores econômicos e políticos ligados àhistória européia. No plano político, observa-se a construção dossistemas nacionais de poder, que tutelam e delimitam no espaço ossubsistemas econômicos, estimulando as economias decomplementaridade e externas. A concorrência entre esses subsistemasnacionais aumentaria consideravelmente a capacidade expansiva docentro em direção a outras áreas produzindo a vaga imperialista quecaracterizou a segunda metade do século dezenove e conduziu aos doisconflitos mundiais da primeira metade do atual.

2. Ocupação dos territórios de clima temperado, de baixa densidadedemográfica. A deslocação de dezenas de milhões de europeus paraterritórios de clima temperado na América do Norte, na Oceania e naÁfrica do Sul, constitui a segunda forma de expansão do núcleoindustrial inicial. Tratou-se, neste caso, de ampliar a base de recursosnaturais. Essa adição de recursos permitiu que prosseguisse a expansãodas atividades agrícolas com rendimentos constantes ou mesmocrescentes. Assim, a extraordinária expansão da indústria têxtil inglesanão teria sido possível sem os baixos custos da produção de algodãonos Estados Unidos. Tudo se passou como se a base física sobre a qualse efetuava a expansão direta do centro tivesse sido consideravelmente

ampliada: cresceu a produtividade tanto da mão-de-obra quanto docapital, ao mesmo tempo em que se criavam condições mais favoráveisno plano institucional. A história do capitalismo industrial estámarcada por essa formidável expansão geográfica ocorrida em sua faseinicial no próprio centro. A ela se deve que precocemente amão-de-obra se haja tornado escassa, que cedo os salários reais hajamcrescido e os mercados consideravelmente ampliados. Foi nesses novosterritórios que se produziram as condições de mobilidade social maispropícias ao estímulo da iniciativa individual e à inovação institucional.Em síntese, se o capitalismo conduziu a sociedades crescentementehomogêneas, não obstante a rigidez hierárquica de suas estruturaseconômicas, deveu-o certamente a essa ampliação da base geográficade seu centro.

3. Ampliação dos circuitos comerciais conduzindo à formação de um sistemade divisão internacional do trabalho. Esse terceiro eixo de expansão donúcleo industrial limitou-se às atividades comerciais. Povos comsistemas econômicos os mais diversos serão induzidos, de uma ououtra forma, a especializar-se, como meio de ter acesso aos mercadosdos centros. Numa fase inicial, ao nível das atividades produtivascontinuava a prevalecer a forma autoritária de apropriação doexcedente. Por toda essa periferia, o desmantelamento das formastradicionais de dominação social far-se-á de forma parcial, em funçãoda maneira como será apropriado e utilizado o novo excedente surgidoda inserção no sistema de divisão internacional do trabalho. A essadiferença na evolução das estruturas sociais deve-se a heterogeneidade,que marcará definitivamente o sistema capitalista, e a situação dedependência em que permanecerão amplas áreas.

Que o sistema capitalista se haja estruturado na polaridadecentro-periferia, desenvolvimento-subdesenvolvimento,dominação-dependência é essencialmente um fato histórico, que aninguém ocorreria considerar como uma " necessidade", conseqüênciainelutável da expansão do modo capitalista de produção. E esse fatohistórico iria condicionar a evolução subseqüente das estruturas dosistema. Graças a ele, a acumulação no centro seria ainda mais rápida,aprofundando-se o hiato que o distingue da periferia. Daí que asestruturas sociais hajam sido cada vez mais diversificadas. Dada aforma histórica que assumiu a expansão do capitalismo industrial, jánão seria possível defini-lo com base exclusivamente na idéia de /generalização da forma mercantil de apropriação do excedente. Etambém inerente à sua morfologia atual um sistema de divisãointernacional do trabalho, que reflete e reforça relações dedominação-dependência.

Pouca dúvida pode haver de que o sistema de divisão internacional dotrabalho — a especialização geográfica erigida em princípio básicoordenador das atividades econômicas — é fruto da iniciativa do núcleoindustrial em seu empenho de ampliar os circuitos comerciaisexistentes ou de criar novos. A iniciativa esteve com a economia que seindustrializava e gerava o progresso técnico: a acumulação rápida quenela tinha lugar constituía o motor das transformações que se iamproduzindo por toda parte. As regiões que, nesse quadro detransformações, tinham suas estruturas econômicas e sociais moldadas

do exterior, mediante a especialização do sistema produtivo e aintrodução de novos padrões de consumo, viriam a constituir aperiferia do sistema.

Graças à diversidade de climas e de tradições culturais, o comérciocom a periferia possibilitava imediata diversificação da cesta de bensdisponível no centro, ou seja; produzia o mesmo efeito que aacumulação ao nível das forças produtivas. Por outro lado, o acesso àsfontes de recursos naturais da periferia constituía uma saída ainda maisfavorável ao processo de acumulação no centro do que a expansãogeográfica deste, anteriormente referida. Com efeito, a nãomodificação das estruturas sociais na periferia transformava em reservade mão-de-obra barata as populações locais, fazendo da exploração dasfontes de recursos naturais um instrumento de exploração damão-de-obra local.

A natureza dos vínculos de cada região com o centro variavaconsideravelmente. Por vezes, o interesse dos comerciantes do centrose limitava à compra de produtos tradicionais originários da região.Colocava-se de imediato o problema da forma de pagamento dessasmercadorias, ou seja, de como evitar o dispêndio de metais preciosos.O mais corrente era que se procurasse utilizar o retorno dos meios detransporte para criar vínculos comerciais bilaterais, na base da vendade produtos manufaturados originários do centro, os quais vinham ounão concorrer com o artesanato local, mas sempre operavam comoinstrumento de difusão de novos valores culturais.

Mais freqüentemente, a penetração no que viria a ser a periferiaassumia a forma de introdução de novas linhas de produção,particularmente no setor agrícola. O conseqüente abandono deculturas de subsistência e o ocasional traslado de populaçõesacarretavam às estruturas sociais modificações de várias ordens.Contudo, muito raramente essas modificações conduziam aoabandono das formas tradicionais de dominação social, sendo mesmofreqüente que as reforçassem, mediante a concentração da propriedadeda terra e a agravação da instabilidade dos rendimentos monetáriosdos pequenos agricultores, que se integravam nos circuitos comerciais.

Dava-se também o caso de que a penetração dos interesses do centroassumisse a forma de controle direto de parte do sistema de produção.No caso da exploração de recursos minerais, novas estruturasprodutivas eram implantadas no quadro de uma complexa rede derelações com a economia dominante: esta absorvia o essencial da novaprodução e provia grande parte dos insumos requeridos pelas novasatividades produtivas. As economias agrícolas de plantação, a exemplodos complexos bananeiros da América Central, constituíam situaçãointermédia entre o chamado enclave mineiro e os casos referidos noparágrafo anterior.

Comum a todas as situações referidas era o controle, pelos interessesdo centro, da comercialização no plano internacional e da baselogística desta. Via de regra, a infra-estrutura de transporte, quepermitia integrar as áreas produtivas periféricas ao comérciointernacional, também era controlada pelos interesses do centro.Assim, parte substancial do que se veio a conhecer como comércio

" internacional" teve sua origem nas atividades extramuros do núcleoindustrial inicial, do qual irradiou a força transformadora queengendrou a estrutura centro-periferia.

Na medida em que permitia anular certos obstáculos ao processo deacumulação no centro, o sistema de divisão internacional do trabalhodava origem a um excedente. Em outras palavras: ao estender sua áreade influência e incorporar indiretamente recursos naturais e demão-de-obra ao próprio sistema produtivo, o centro estava obtendoganhos de produtividade. Não deixa de ser significativo que a primeirateoria consistente da moderna ciência econômica — a teoria dos preçoscomparativos, concebida por Ricardo nos albores do século dezenove— haja surgido para explicar esse aumento de produtividade.

Mas, se a ninguém era dado duvidar da existência de um excedentecriado pela divisão internacional do trabalho, estava longe de serevidente a forma como ele era apropriado. A parte que revertia a esteou aquele país variava em função de circunstâncias. Em realidade, oque se passou a chamar de política comercial era um esforço paraaumentar em benefício próprio essa parte. Por ocasião da dominaçãocolonial, a apropriação do excedente pelos interesses da metrópolepôde aproximar-se de cem por cento, o que torna transparente aimportância do elemento político no problema. Contudo, mesmo noquadro do sistema colonial, havia limite à apropriação externa doexcedente, pois a eficiência do sistema produtivo freqüentementedependia da retenção local de parte dele. Surgiam assim novosvínculos com a economia dominante. Com efeito: o excedente retidona periferia desempenharia papel fundamental no processo deaculturação desta, operando como vetor dos valores culturais donúcleo industrial em expansão.

Identificam-se quatro situações perfeitamente caracterizadas:

a) Apropriação do excedente exclusivamente em benefício docentro. A reinjeção total ou parcial desse excedente na área emque ele se origina ou alhures decorre de decisões tomadas emfunção dos interesses da economia metropolitana. A tal casoextremo corresponde o máximo de imobilismo social. Se semanifesta pressão interna no sentido de elevação dos saláriose/ou dos impostos, a criação de novos empregos poderá serreduzida a zero ou será criado um fluxo imigratório demão-de-obra proveniente de regiões com salários ainda maisbaixos. Esse caso extremo somente se produziu quando o setorprodutivo gerador do excedente estava sob estrito controleexterno e a atividade política local era eliminada ou controladado exterior.

b) Apropriação de uma parte do excedente por um segmento daclasse dominante local. E o caso dos proprietários de terras, alionde as exportações são de produtos agrícolas, mas também deoutros grupos que participam das atividades geradoras do novoexcedente ou ligadas ao uso local desse excedente. O quecaracteriza este caso é que os beneficiários locáis do excedenteoperam dentro de um espaço residual. A iniciativa se mantémcom os interesses externos, cuja atuação ganha flexibilidade e

eficácia, na medida em que se apoia em agentes locais. Esse tipode burguesia, surgida da inserção no sistema de divisãointernacional do trabalho, tende a identificar-se cultural eideologicamente com o centro, operando a parte do excedenteque lhe corresponde como instrumento dessa aculturação. Nessascircunstâncias, o processo de modernização — sofisticaçãoimitativa dos padrões de consumo, sem avanço concomitante nodesenvolvimento das forças produtivas — alcança a máximaintensidade.

c) Apropriação de parte do excedente por grupos locais que outilizam para ampliar a própria esfera de ação. A atuação dessaburguesia pode desdobrar-se em várias direções: destruição deatividades artesanais preexistentes, desiocação de formastradicionais de dominação social fundadas no controle da terra e,mesmo, disputa do espaço ocupado pelos interesses estrangeirosnos setores de exportação, importação e financeiro. A ação dessaburguesia, mesmo que circunscrita por fatores externos degrande peso, reproduz tardiamente a ascensão da burguesiaeuropéia. A diferença maior está em que a luta de tais gruposperiféricos pelo poder não tem, no plano social, as mesmasconseqüências. Com efeito: as burguesias, que lutam pelocontrole do sistema de dominação social na periferia, não setransformam em instrumento de reconstrução das estruturassociais, à diferença do que se produziu nas regiões cêntricas emque teve lugar a revolução burguesa. Explica-se, assim, que asmaiores diferenças entre o centro e a periferia tendem a ser denatureza social.

d) Apropriação de parte do excedente pelo Estado. Esta situaçãoapresentou-se por toda parte em graus diversos, em função dasforças sociais que dominam o Estado e do papel que cabe a esteno desenvolvimento das atividades requeridas pelainternacionalização da economia. Ali onde as atividadesexportadoras se baseiam na exploração de recursos nãorenováveis surgem condições particulares favoráveis para que oexcedente retido localmente se concentre e seja apropriado porintermédio do Estado, o qual, como estrutura burocrática, tendea desempenhar papel de crescente importância na evolução social.

A história da periferia apresenta toda uma gama de situações,combinações das quatro formas típicas de apropriação do excedente,que vimos de referir. A primeira forma a conhecerá complexaevolução, pois, se o estatuto colonial é rejeitado por toda parte, novasformas de controle das atividades produtivas por interessesestrangeiros, em aliança com grupos locais, tenderão a impor-se. Aperpetuação das formas tradicionais de dominação social, que seobserva em grande parte da periferia, encontra aí uma de suas causasbásicas. A última forma d adquirirá importância crescente, vindo oEstado a desempenhar em todo o mundo periférico funções de grandepeso. Contudo, foram as formas b c c que marcaram a fundo ahistória da periferia. A forma b porque subordinou todo o processode acumulação, em particular o desenvolvimento das forçasprodutivas, à modernização. A forma c porque abriu o caminho à

tomada de consciência da situação de dependência criadahistoricamente pelo sistema de divisão internacional do trabalho.Graças a este último processo, a forma d conhecerá ela mesmaevolução significativa.

Durante o período de inserção no sistema de divisão internacional dotrabalho, vale dizer, na fase formativa deste, o impulso primáriodinamizador das economias da periferia não tinha origem nodesenvolvimento de suas forças produtivas. Esse impulso nascia daforça gravitacional exercida pelo centro, graças à qual ocorria arealocação de recursos, a ativação no uso destes, a modernização. Tudose passa como se a expansão do núcleo industrial provocassemodificações na conformação estrutural de certas regiões que com eleiam entrando em contato. A rigor, eram os investimentos no centro (eos avanços técnicos a estes incorporados) que dinamizavam o conjuntodo sistema em formação. Os efeitos desses investimentos erampercebidos na periferia sob a forma de uma demanda em expansão, aqual podia ser satisfeita mediante simples ativação no uso dos recursosdisponíveis. As transformações que ocorriam no centro e na periferiaeram de natureza diversa. No primeiro caso, as elevações deprodutividade assentavam no desenvolvimento das forças produtivas,portanto no avanço da técnica. No segundo, os aumentos deprodutividade eram um reflexo da especialização no quadro de ummercado mais amplo.

Nas economias do centro as transformações têm lugarsimultaneamente nas estruturas econômicas e na organização social: apressão social faz com que a remuneração do trabalho acompanhe aelevação da produtividade física desse trabalho, na medida em que estase traduz em aumento da renda real média da coletividade. O aumentoda remuneração do trabalho modifica o perfil da demanda — e poresse meio a alocação dos recursos produtivos — e condiciona adestinação do excedente — e por essa forma a orientação do progressotécnico.

Na economia periférica as modificações do sistema produtivo sãoinduzidas do exterior. Pelo fato mesmo de que essas modificações selimitam — na fase formativa — a uma reordenação no uso de recursosjá disponíveis, seu impacto na estrutura social é reduzido ou nulo. Averdadeira transformação situa-se no plano da formação do excedente,cujo modo de apropriação define o perfil da demanda interna. Ora, aresposta às modificações que ocorrem nesta é mediatizada pelasimportações. Não foram poucos os casos em que a expansão doexcedente foi acompanhada de simplificação do sistema produtivo —liquidação de atividades produtivas ligadas ao mercado interno embenefício da monoexportação — ao mesmo tempo que a demandainterna, alimentada pelas importações, se diversificavaconsideravelmente.

Em síntese, o que caracterizou a formação da periferia foi adinamização da demanda — modernização — em condições de umrelativo imobilismo social causado pelo lento desenvolvimento dasforças produtivas. O que veio a chamar-se de subdesenvolvimento nãoé outra coisa senão a manifestação dessa disparidade entre odinamismo da demanda e o atraso na acumulação reprodutiva. Este

último tem origem na forma de inserção na divisão internacional dotrabalho e aquele na penetração dos padrões de consumo do centro.

A industrialização retardada que teria lugar nos países que se haviaminserido no sistema econômico mundial pela via da modernizaçãofar-se-ia em concorrência com as importações e não com a atividadeartesanal preexistente. Longe de ser um reflexo do nível deacumulação alcançado, a evolução do sistema produtivo assume aforma de um processo adaptativo, no qual o papel diretor cabe àsforças externas e internas que definem o perfil da demanda final. Daíque as estruturas sociais desses países sejam tão distintas das que seconstituíram ali onde avançaram paralelamente acumulação ediversificação da demanda.

A mecanização das infra-estruturas e as transformações impostas àagricultura pelo esforço de exportação e pela evolução da demandainterna, bem como o impacto da industrialização na construção civil,na confecção e outros setores em que era importante a atividadeartesanal, põem em marcha um amplo processo de destruição deformas de emprego que o ritmo de acumulação está longe de poderneutralizar. A intensa e caótica urbanização, presente na totalidade dospaíses subdesenvolvidos, é a manifestação mais visível desse processode desestruturação social. O conceito de desemprego disfarçadoconstituiu a primeira indicação de tomada de consciência do problema,mas foram os estudos sobre marginalidade urbana, realizados pelossociólogos latino-americanos no decênio de 1960, que permitirammelhor equacioná-lo e trazer à evidência a especificidade das estruturassociais surgidas nesses países de industrialização retardada.

As massas demográficas, que a modificação das formas de produçãopriva de suas ocupações tradicionais, buscam abrigo em sistemassubculturais urbanos que só esporadicamente se articulam com osmercados, mas sobre eles exercem uma forte influência comoreservatórios de mão-de-obra. Realizando em grande parte suareprodução no quadro de um sistema informal de produção, aspopulações ditas marginais são a expressão de uma estratificação socialque tem suas raízes na modernização. A inadequação da tecnologia, aque se referiram os economistas latino-americanos, traduziu-se, de umangulo de vista sociológico, na polaridade modernização-marginalidade.

Ali onde a modernização se apoiou na exploração de recursos nãorenováveis (o caso dos países exportadores de petróleo, por serextremo, presta-se mais facilmente à análise), o excedente retido nopaís de origem tendeu a ser captado por um sistema de poder local.Em razão disso, a vinculação externa condicionou sobremodo aevolução da estrutura de poder, favorecendo seu fortalecimento ecentralização. Esse processo de condensação de poder em instituiçõescentralizadoras, coincidindo com a desestruturação social a quefizemos referência, empresta ao Estado características que apenascomeçam a ser percebidas em sua originalidade. Sendo o Estado, noessencial, um instrumento captador de excedente, a evolução dasestruturas sociais tende a ser fortemente influenciada pela orientaçãodada por ele à aplicação dos recursos que controla.

Frustrações de um reformista

As inferências, no plano da política econômica, de minhas reflexõesdos anos 50 sobre o subdesenvolvimento apontavam em três direções:

1. Abandono do critério de vantagem comparativa estática comofundamento da inserção na divisão internacional do trabalho.

2. Introdução do planejamento como instrumento ordenador da açãodo Estado, cujas funções no campo econômico tenderiam a crescer namedida em que se ampliasse o esforço para superar osubdesenvolvimento.

3. Fortalecimento das instituições da sociedade civil (principalmentedos sindicatos de trabalhadores rurais e urbanos), de cuja ação sepoderia esperar a renovação das bases sociais de sustentação do Estadoe a contestação dos padrões prevalecentes de distribuição da renda.

O primeiro ponto fundava-se na crítica do sistema tradicional dedivisão internacional do trabalho e das políticas de laissez-faire queasseguravam sua perpetuação. Esse ponto de vista foi amplamenteadotado na América Latina, não tanto por convicção doutrinária, masem razão dos efeitos nas estruturas produtivas da prolongadadepressão dos anos 30 e da economia de guerra. Com efeito, quandose ensaiou a volta ao liberalismo cambial no imediato pós-guerra, oreajustamento requerido impunha o abandono de boa parte dasatividades industriais que haviam surgido à sombra da proteção criadapela própria desorganização do comércio internacional no períodoanterior. Mas, se era necessário sair da armadilha das vantagenscomparativas estáticas, não o era menos encontrar uma nova forma einserção no comércio internacional, que estimulasse o avançotecnológico. Isso teria exigido uma ação do Estado na linha adotadapelo Japão com a Restauração Meiji, linha subseqüentemente seguidapor alguns países do sudeste asiático. Trata-se, em realidade, de criardeliberadamente vantagens comparativas em setores favorecidos poruma demanda externa elástica11.

A causa das dificuldades subseqüentes não esteve propriamente noprotecionismo, o qual sempre seria necessário numa primeira fase daindustrialização, e sim na falta de uma política ativa de exportações, oque requeria o abandono da atitude passiva nesse setor, característicadas economias primario-exportadoras. Foi necessário que adviesse acrise do petróleo para que o Brasil adotasse, na metade dos anos 70,uma política industrial orientada para a criação de vantagenscomparativas dinâmicas, cujos efeitos positivos estão minorando oimpacto da crise de endividamento externo.

O segundo ponto referido relacionava-se com a necessidade deintroduzir alguma forma de planejamento no amplo esforço requeridopara sair do subdesenvolvimento. Posto que nos havíamos dado contade que este é uma conformação estrutural adversa, dentro da qual ocrescimento econômico apresenta elevado custo social, impunham-sereformas visando a romper as rigidezes estruturais que bloqueiam oacesso a um autêntico desenvolvimento. Esse trabalho de reconstrução

[11) Esse ponto foi elaborado em Celso Furtado, Um Projeto para o Brasil, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1968, pp.66-70, texto incluído em Obstacles to Development in Latin America, Anchor Books, Nova York, 1970, pp. 180-4.

de estruturas requer uma ação orientadora que somente pode vir doEstado. A complexidade da tarefa que cabe a este realizar exige umavisão global, sincrônica e diacrônica, que só se obtém com oplanejamento12.

A industrialização deveria contribuir para diversificar as exportaçõese ao mesmo tempo operar como alavanca da expansão domercado interno. Condição necessária para que se reduzisse a

desigualdade social era que aindustrialização criasse empregosnovos, assegurasse uma crescenteoferta interna de bens-salários, apreços relativos declinantes eabrisse novas avenidas àexportação. Um país de baixonível de renda e grandepopulação, como é o Brasil, nãopode dotar-se de um sistemaindustrial internacionalmentecompetitivo em todos os setores.Tampouco pode privar-se de terum sistema industrialrelativamente integrado. Portanto,a inserção internacional tem queser seletiva, o que requerplanejamento.

Em síntese, o trabalho dereconstrução estrutural requeridopara superar osubdesenvolvimento baseia-senuma racionalidade maisabrangente do que a dosmercados, e a ela só se tem acessopelo planejamento. Dentro doquadro estrutural criado pelaeconomia primário-exportadora, ocrescimento econômico tende areproduzir, agravadas, asdesigualdades sociaiscaracterísticas dosubdesenvolvimento. Não se tratade ampliar o papel empresarial do

Estado, o que veio a ser feito no Brasil por outras razoes, entre estas afalta de planejamento. Trata-se de prevenir as resistências estruturais àredução das desigualdades sociais, de orientar o esforço de acumulaçãoprioritariamente para a satisfação das necessidades básicas dapopulação.

(12) Esse ponto foi apresentado em inúmeros trabalhos, desde a Introdução à Técnica de Programação, citada, atéo Plano Trienal de Desenvovimento,que elaborei em 1962, como Ministro do Planejamento do governo brasileiro.Nesse plano são esboçadas em apêndice as principais reformas estruturais requeridas para obter um autênticodesenvolvimento no Brasil.

No que respeita a este segundo ponto, a experiência brasileira foidecepcionante. Na segunda metade dos anos 50, adotou-se umplanejamento setorial que permitiu concentrar investimentos ematividades básicas e criaram-se instituições destinadas a canalizar apoupança para esses setores. Mas daí não se partiu para maisabrangente e coerente forma de planejamento, se bem que a açãoempresarial do Estado continuava a expandir-se. Na ausência deplanejamento, as empresas do Estado assumiram autonomia crescente,o que se traduziu em tendência ao sobreinvestimento ali onde ospreços são administrados e a demanda é inelástica. Os desequilíbriosinflacionários, que afetam gravemente a economia brasileirapresentemente, têm suas raízes na incoerência que a falta deplanejamento instila nos investimentos públicos.

O terceiro ponto refere-se ao papel das instituições da sociedade civilno processo de desenvolvimento, concebido este como elevação donível de vida material, com redução das desigualdades sociais eampliação do horizonte de aspirações dos membros da coletividade.Foram as revoluções liberais da Inglaterra e da França que deramorigem ao padrão de organização política progressivamente pluralista,base do modelo de desenvolvimento que veio a prevalecer no mundoocidental industrializado. Ora, a revolução liberal é fenômeno dosséculos dezessete e dezoito. Aquelas tentadas no século quatorzefrustraram-se. Foi necessário encontrar um substitutivo em reformasinstitucionais obtidas mediante consenso das próprias classes dirigentese orientadas para a ampliação das bases sociais de sustentação doEstado. Esse caminho indireto foi percorrido com percalços por paísescomo a Alemanha, a Itália e a Espanha e somente na segunda metadedo século atual produziu os resultados almejados.

Ora, as distorções estruturais do subdesenvolvimento aumentam asdificuldades da caminhada para o padrão de organização socialpropícia ao autêntico desenvolvimento. Nestas circunstâncias, é naturalque o problema do controle do Estado adquira importância decisiva.De um lado, apresenta-se o risco de populismo, manipulação de forçassociais por indivíduos que empolgam o poder e buscam legitimidadena satisfação de reivindicações populares imediatistas, com reflexosnegativos na produtividade e na acumulação. De outro, apresenta-se aameaça de autoritarismo apoiado nas classes privilegiadas, simplesreflexo defensivo ou projeto modernizador. Em qualquer dos casos,interrompe-se a evolução social no sentido de fortalecimento dasinstituições da sociedade civil. A maior passividade das forças sociaisabre aos dirigentes maior margem de arbítrio. Foi nesse contexto quesurgiu no Brasil a fantasia da "potência emergente" e que floresceu aparanóia dos chamados "projetos faraônicos". Desta forma, a própriaintensificação do crescimento econômico agravou os aspectosanti-sociais do subdesenvolvimento.

Refletindo sobre essa problemática nos começos dos anos 6013, fuilevado a afirmar que era condição essencial para o desenvolvimento doBrasil a preservação de uma sociedade aberta, propícia à ampliação dasbases de sustentação do Estado. Eu dizia, então, que a sociedade

(13) Celso Furtado. A Pré-Revolução Braleira. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1961 e " Brazil: What Kind ofRevolution?", Foreign Affairs, abril, 1963.

brasileira era aberta em seu segmento urbano e fechada no rural, o queconfigurava um quadro instável. Tanto podiam predominar, naconfrontação em curso, as forças conducentes à mais ampla abertura,quanto aquelas que atuavam em sentido inverso. A História fez queprevalecesse a segunda hipótese, interrompendo-se a evolução políticapor dois decênios, o que conduziu a considerável acúmulo deproblemas no plano social.

Há exemplos, na história de outros povos, de avanços rápidos noplano político, após o despertar de uma longa noite de imobilismo,como se a sociedade fosse dotada de um subconsciente, onde laboramforças criativas que ampliam o horizonte de possibilidades futuras. Emtodo caso, a rica fermentação de idéias e iniciativas políticas, que seobserva no Brasil neste fim de 1984, parece traduzir uma ânsia derecuperação do tempo perdido. Mas não posso deixar de reconhecerque foi com respeito a este terceiro ponto que mais se distanciou arealidade daquilo que minha reflexão indicava como desejável para ofuturo de meu país.

ABSTRACT

This is a paper-synthesis where the author summarizes his theory of development andunderdevelopment. Some basic ideas are here presented: the economic theory ofdevelopment must start wiht the study of history; underdevelopment is a specifichistorical and economical phenomenon, that cannot be thought in terms of linear stagesof history; this historical phenomenon must be studied in structural terms, relating thehistoric and the economic aspects; the basic characteristic of underdevelopment is thedependency relation, expressed in the center-periphery system; in the study ofdevelopment the basic concept to start with is the concept of social surplus, its forms ofappropriation and utilization. The paper ends with an analysis of the frustrations of areformist. Protectionism, that was justifiable in a first phase of industrialization, wasmaintained too long in Latin America; in a second phase, an active economic policy forexports was necessary. On the other hand the populist risk was always present, while thereal social problems related to a high level of income concentration were not solved.

Celso Furtado, economista e professor da Universidade de Paris.