Entre o sonho e o som: juventude e música na trajetória de Antônio Carlos Belchior (1964 - 1974)
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR
CURSO DE HISTRIA
BRUNO RODRIGUES COSTA
ENTRE O SONHO E O SOM: JUVENTUDE E MSICA NA
TRAJETRIA DE ANTNIO CARLOS BELCHIOR (1964 - 1974).
FORTALEZA
2013
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR
BRUNO RODRIGUES COSTA
ENTRE O SONHO E O SOM: JUVENTUDE E MSICA NA
TRAJETRIA DE ANTNIO CARLOS BELCHIOR (1964 1974).
Monografia apresentada ao Curso de
Histria do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Cear, como
requisito parcial para a obteno do
Ttulo de Licenciado em Histria.
Orientador: Prof. Dr. Gisafran Nazareno
Mota Juc.
FORTALEZA
2013
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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao
Universidade Estadual do Cear
Biblioteca Central Prof. Antnio Martins Filho
Bibliotecrio Responsvel Francisco Welton Silva Rios CRB-3 / 919
C837e Costa, Bruno Rodrigues
Entre o sonho e o som: juventude e msica na trajetria de Antnio Carlos Belchior (1964-1974) / Bruno Rodrigues Costa . -- 2013.
CD-ROM. 83 f. : il. (algumas color.) ; 4 pol. CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho
acadmico, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm).
Trabalho de Concluso de Curso (graduao) Universidade Estadual do Cear, Centro de Humanidades, Curso de Histria, Fortaleza, 2013.
Orientao: Prof. Dr. Gisafran Nazareno Mota Juc. 1. Juventude. 2. Produo musical Antnio Carlos Belchior
1964-1974. 3. Trajetria individual Antnio Carlos Belchior 1964-1974. I. Ttulo.
CDD: 981.31
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DEDICATRIA
Tudo o que fao sempre, em primeiro lugar, para meus pais. Dedico este
trabalho a eles por terem viabilizado quase tudo do que eu precisei durante minha vida
em todos os sentidos, e que, apesar da minha opo por no seguir o rumo que eles
esperavam de mim na minha trajetria, sei que era justamente isso que eu precisava
fazer para conquistar o seu respeito. Meu pai, Paulo, a quem tenho toda a admirao
pelo seu silencioso carinho e sua eterna solicitude para com as necessidades alheias, e
minha me, Ozlia, cuja presena constante foi o alicerce de toda e qualquer conquista
na minha vida, so as pessoas que me legaram, entre tantas coisas, o gosto musical, que
fez por onde eu me interessar e, consequentemente, querer investigar a msica cearense.
Aos meus irmos, Marcelo e Larissa, exemplos de dedicao e superao, que
sempre me ajudaram quando eu precisei, mesmo quando a recproca no era verdadeira.
Suas trajetrias de vida, observadas por mim enquanto filho mais novo, me ensinaram
mais do que eles imaginam. At hoje os tenho como exemplos a serem seguidos em
minha prpria trajetria. No posso deixar de dedicar, tambm, ao membro mais
adorado da famlia, meu outro irmo Chester, que alegrou o cotidiano de nossa casa nos
momentos mais necessrios.
Karol Quezado, pela presena (mesmo estando distante) e o apoio nas horas
de dificuldades, passando experincia, tranquilidade e felicidade quando mais preciso.
Aos meus amigos Joo Henrique, Juliano Medeiros, Daniel Salgueiro e Gustavo
Fernandes, com quem constru os melhores momentos de minha vida, alm dos mais
esdrxulos. Devo minha identidade, quem eu sou hoje, constante companhia deles.
Ao amigo Thiago Nobre, que me fez lembrar a data de matrcula da UECE e no
perder a minha vaga no Curso de Histria por pura displicncia. E tambm por ter
compartilhado comigo boa parte das alegrias e dificuldades da vida acadmica.
Ao meu amigo Emanuel Mores, cuja amizade foi sendo transformada em
irmandade ao longo dos anos, e que at hoje, mesmo sem tanto contato, como se
nunca tivssemos nos distanciado.
turma de 2008.1 do Curso de Histria da UECE, que trouxe consigo uma
gerao de pessoas fantsticas universidade, das quais tenho muito orgulho de ter
compartilhado experincias nicas ao longo da graduao. Ao Felipe Barreira, em
especial, pelos momentos de discusso que muito me fizeram crescer como estudante e,
principalmente, como pessoa. E agradeo tambm ao Marcelo Ramos, que se tornou um
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exemplo de militncia e dedicao transformao da sociedade, como bom historiador
que .
Aos pinos redondos nos buracos quadrados que tenho o prazer de considerar
irmos: Germano Mago, cuja insuportvel presena faz dele, paradoxalmente, uma
pessoa da qual voc no consegue se separar; Kelvia Costa, que, com seu carinho
naturalmente bruto, se tornou uma mulher imprescindvel em nosso grupo; e,
principalmente, Ronald Rodrigues, a alma livre que traduzia nossos dilogos mais
despretensiosos em pura poesia; sua contribuio minha pesquisa s no foi mais
importante do que o papel que este cumpriu enquanto amigo em minha vida.
Ao Centro Acadmico de Histria Caldeiro, que, durante as trs gestes que
compus ao longo de minha graduao, me proporcionou mais experincias acadmicas,
polticas e culturais do que qualquer outro espao da universidade. Posso dizer que devo
muito mais da formao a esta entidade do que a qualquer auditrio ou sala de aula.
Aos amigos Rafael Le Goff, Rodrigo Cavalcante, Jormana Arajo e Wendell
Guedes, pela contribuio imensurvel minha formao acadmica e pessoal. Por
terem potencializado ao mximo meu conhecimento terico-metodolgico sobre histria
em nossas discusses e, alm disso, me mostrado que o papel do historiador est para
alm dos debates da academia, e se d, tambm, no esforo cotidiano de construo da
realidade que queremos.
Aos Amigxs do Neymar, nas figuras de Lu Rodrigues e Pdua Jnior, pelas
experincias com a dimenso ldica e bria da realidade humana. No de hoje que
todos precisam de uma vlvula de escape na vida, e foi com este conjunto de amigos
que eu encontrei a minha. Com eles aprendi a explorar todas as possibilidades de
qualquer situao, e a sempre me perguntar: porque no por aqui?
Beatriz Pimenta, minha companheira que, com todo o seu sentimento, fez por
onde brotar em mim a fora para superar os desafios da vida e me tornar uma pessoa
muito melhor. Agradeo profundamente seu apoio constante, sua presena fortalecedora
e, principalmente, por ter me proporcionado a maior felicidade de minha vida ao fazer
transbordar o nosso amor em sua maior expresso, nossa filha Ceclia.
Ao Professor Gisafran Juc, pela pacincia ao lidar com um orientando to
displicente e indisciplinado como eu. Minha admirao pela sua pessoa e meu respeito
ao que ele representa para a historiografia cearense s cresceram com esta experincia
de pesquisa.
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Ms. Jordianne Guedes, por ter aceitado compor a banca de defesa e pela sua
contribuio para esta pesquisa atravs de sua fantstica dissertao de mestrado.
Professora Valria Alves, pela grata surpresa que foi conhec-la e pela sua
solicitude em tambm aceitar participar da banca de defesa desta monografia.
Por fim, a Antnio Carlos Belchior, por ter me ensinado sobre o delrio das
experincias com coisas reais.
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Ao meu irmo Marcelo Rodrigues, pelo
exemplo de superao e pela presena
constante em meu corao.
Ceclia, Heitor e Anabela, a nova
gerao que, com muita sabedoria,
construir uma histria melhor.
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LISTAGEM DE ABREVIAES
ABPD Associao Brasileira de Produtores de Discos.
AI-5 Ato Institucional n 5.
CPC Centro Popular de Cultura.
DA Diretrio Acadmico.
DCE Diretrio Central de Estudantes.
EUA Estados Unidos da Amrica.
GRUTA Grupo Universitrio de Teatro e Arte.
LP Long Play.
MPB Msica Popular Brasileira.
PCB Partido Comunista Brasileiro.
RCA Radio Corporation of America.
RGE Rdio Gravaes Eltricas Ltda.
TV Televiso.
UFC Universidade Federal do Cear.
UNB Universidade de Braslia.
UNE Unio Nacional dos Estudantes.
WEA Warner, Elektra, Atlantic.
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar a trajetria do cantor e compositor cearense
Antnio Carlos Belchior, no perodo entre 1964 e 1974, para analisar as suas relaes
com a dinmica cultural da juventude e com a produo musical da poca, alm de
buscar compreender o processo de profissionalizao dos artistas cearenses no mercado
fonogrfico e sua insero no cenrio nacional da MPB. Consideramos pertinente
analisar o contexto de implantao do regime militar no Brasil, as transformaes que
isso trouxe, nacionalmente e localmente, para as juventudes das classes mdias e seus
reflexos na produo artstica do pas, principalmente, na msica brasileira. Nesse
sentido, buscamos mostrar como a trajetria de Belchior tem relao com as
experincias de uma juventude universitria, militante, bomia e engajada
artisticamente, e, a partir da, trazer uma reflexo mais profunda sobre o processo de
envolvimento dos jovens artistas cearenses com o mercado da msica daquele perodo.
Palavras-chave: juventude; produo musical; trajetria individual; Antnio Carlos
Belchior.
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SUMRIO
INTRODUO............................................................................................................ 12
CAPTULO 1 NA PAREDE DA MEMRIA: LEMBRANAS DE UMA
VIDA NA CONSTRUO DE UMA NARRATIVA............................................... 16
1.1 Era uma vez um homem e o seu tempo: para a introduo a uma trajetria....... 20
1.2 O tempo andou mexendo com a gente: vivncias em comum de uma juventude
universitria.................................................................................................................... 25
CAPTULO 2 CABELO AO VENTO, GENTE JOVEM REUNIDA:
CULTURAS JOVENS E OS FESTIVAIS MUSICAIS............................................ 35
2.1. Viver melhor que sonhar: a memria social de uma juventude na era dos
festivais........................................................................................................................... 39
2.2. Cantar como quem usa a mo para fazer um po: o trabalho com a msica e a
conquista do IV Festival Universitrio de Msica Popular............................................ 47
CAPTULO 3 JOVEM QUE DESCE DO NORTE PRA CIDADE GRANDE:
O ARTISTA CEARENSE, A PRODUO MUSICAL E O MERCADO
FONOGRFICO.......................................................................................................... 57
3.1. Conta aos amigos doutores que abandonei a escola pra cantar em cabar: o
cearense na busca pela projeo musical no sudeste do pas......................................... 60
3.2. Sons, palavras, so navalhas: as disputas da produo musical e a
profissionalizao no mercado fonogrfico.................................................................... 67
CONSIDERAES FINAIS....................................................................................... 72
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 74
LISTAGEM DE FONTES........................................................................................... 77
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INTRODUO
que o espetculo das atividades humanas, que forma seu objeto especfico, , mais que qualquer outro, feito para seduzir a imaginao dos homens.
Marc Bloch
Esta pesquisa se insere nos domnios da cincia histrica que d nfase na
anlise das manifestaes humanas entendendo-as como expresses da cultura, sem
desconsiderar as implicaes das outras dimenses da realidade na vida dos sujeitos
sociais. Buscamos investigar a trajetria de Antnio Carlos Belchior, cantor e
compositor cearense, nas dcadas de 1960 e 1970, para compreender suas relaes com
a dinmica da juventude e da produo musical daquele perodo.
Antes de tudo esta pesquisa existe por uma relao de afinidade com o objeto,
mas que extrapola isso em um trabalho de investigao e construo histrica que tem
como meta a compreenso do presente. Entendemos que o estudo das relaes entre o
artista e a sua produo musical possibilita uma compreenso interessante da dinmica
cultural de determinado contexto histrico. E ao colocar esta anlise em perspectiva
histrica, podemos entender melhor a construo da cultura contempornea, j que esta
perpassa a ao de vrios sujeitos atravs do tempo.
A produo cultural, erroneamente secundarizada por parte da teoria social de
meados do sculo XX, pode ser considerada enquanto a traduo em aes e signos de
elementos sociais, econmicos, polticos e ideolgicos de determinada sociedade, a
partir de rgos comuns a homens e mulheres, logo, uma faceta imprescindvel para a
compreenso de processos histricos. A apropriao da realidade humana, o modo
como esses rgos se comportam perante o objeto, constitui a manifestao da realidade
humana.1 E essa manifestao a expresso cultural dos sujeitos histricos.
Nossa pesquisa busca inserir-se em um recente campo de pesquisas sobre a
produo musical cearense das dcadas de 60 e 70 que se tornou importante por
sustentar um entendimento sobre a construo cultural, tanto local quanto nacional,
daquele perodo. So obras mpares que realizam estudos bastante completos e que
serviram como base para a produo de muitas pesquisas na mesma temtica
atualmente. Tendo isso em vista, podemos dizer que nosso trabalho surge mais no
1 MARX, Karl. Manuscritos Econmicos e Filosficos de 1844. Coleo Os Pensadores. So Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 47.
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sentido de contribuir e tentar oferecer uma nova perspectiva, tanto no mbito terico-
metodolgico quanto na forma de elaborao histrica, para esse campo.
A obra Terral dos Sonhos, da sociloga Mary Pimentel Aires (1992), foi
pioneira nesses estudos sobre a moderna msica cearense. Esta foi imprescindvel para
nossa pesquisa primeiro pelo seu trabalho de argumentao terica e legitimao desse
campo de trabalho (atravs de discusses no mbito da sociologia da arte), e segundo
pela importante anlise do processo de envolvimento dos artistas cearenses daquele
perodo com a indstria da msica. Discusso que ser o eixo trabalhado no terceiro
captulo desta pesquisa.
As outras duas obras que fazem parte da trade que fundamentam este trabalho
foram lanadas pela editora da Universidade Federal do Cear em um evento que
celebrava 40 anos do marco histrico que foi o ano de 1968 para o Brasil e para o
mundo. Publicados a partir das dissertaes de mestrado de Wagner Castro e Pedro
Rogrio, No Tom da Cano Cearense e Pessoal do Cear, respectivamente, expressam
novas maneiras de analisar os artistas e suas produes musicais em seus perodos, e
representam a consolidao da temtica da msica cearense enquanto campo de estudos
dentro da produo acadmica.
Nosso trabalho deve muito a esses autores e s suas obras, e esperamos estar
altura de suas contribuies, pois o trabalho de investigao do processo histrico de
insero da msica cearense no cenrio nacional da MPB traz consigo muitas
dificuldades e obstculos. Nos nossos estudos, a principal problemtica foi trabalhar
como objeto de pesquisa a trajetria de um sujeito inacessvel para o contato, como o
caso de Belchior. A maneira encontrada de driblar esse percalo foi atravs de um
aprofundado embasamento terico-metodolgico, utilizando-se do conceito de Memria
Social (1992) e do trabalho com a Histria Oral. A partir dessa fundamentao,
pudemos analisar as experincias comuns entre os sujeitos que vivenciaram aquele
perodo juntamente com Belchior e identificar os elementos que foram atribudos a ele
naquele contexto. Somado a isso, um rigoroso trabalho de dilogo historiogrfico se fez
necessrio para problematizar os depoimentos colhidos e para embasar a construo da
narrativa.
Vrios artistas e familiares que conviveram com Belchior durante o perodo
estudado, e que gentilmente se dispuseram em contribuir para esta pesquisa, nos deram
seus relatos para gerar as fontes orais que possibilitaram a investigao e anlise
histrica realizada. Porm, a dificuldade em localizar e estabelecer contato com esses
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sujeitos foi, tambm, um grande impecilho, que levou a um longo processo de busca,
sondagem e aproximao.
Aps a realizao de todo esse trabalho emprico e terico, nossa investigao e
anlise gerou o presente estudo, que se desenvolve da seguinte maneira: no primeiro
captulo, apresentaremos elementos iniciais da trajetria de Belchior no sentido de
introduzir nossa construo narrativa a partir da sua origem social, suas razes familiares
e das suas primeiras experincias com a msica, dialogando com as contribuies
tericas de Giovanni Levi (2006) sobre o trabalho com trajetrias individuais e com os
usos da oralidade. Buscamos construir um entendimento sobre a sua migrao a
Fortaleza, seus primeiros contatos com a realidade urbana e com as transformaes no
cenrio da juventude, no contexto do regime militar, alm da sua insero no ambiente
universitrio, enquanto marcos iniciais do seu processo de aproximao com a msica e
consequente insero no mercado fonogrfico.
Em seguida, trabalharemos uma ampliao da escala de anlise para abordar
com mais riqueza as relaes entre a trajetria de Belchior e o conjunto de jovens
universitrios, artistas e bomios, nos espaos da universidade e nos bares. Tentamos
mostrar como a cultura jovem que era respirada por esses sujeitos foi o fio condutor do
processo de insero dos mesmos nos espaos criados pela indstria da msica, como os
festivais e programas televisivos. Nesse contexto, a articulao entre esse grupo e as
suas iniciativas voltadas para a produo musical desembocaram na vitria de Belchior
no IV Festival Universitrio de Msica Popular, que foi um catalisador no seu processo
de conquista da profissionalizao no mercado fonogrfico.
Por ltimo, realizamos um estudo sobre a trajetria do artista cearense desde a
sua migrao ao eixo sudeste do pas, quando se definiu sua opo pela carreira musical,
at a gravao de seu primeiro lbum. No terceiro captulo, abordaremos as suas
experincias de construo de oportunidades com as gravadoras, suas interaes com os
outros artistas cearenses no Rio de Janeiro e em So Paulo, e, principalmente, uma
discusso sobre o lugar da identidade musical de Belchior no cenrio nacional da MPB.
Esta pesquisa tem o objetivo de construir um entendimento, a partir do estudo da
trajetria de Belchior dentro da msica cearense, do processo de articulao dos jovens
artistas no cenrio musical local e das formas em que foram construdas a projeo e a
profissionalizao desse conjunto de artistas. Em suma, compreendemos que, apesar da
individualidade das aes dos mesmos, o sentido construdo em torno de suas atitudes
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mostrava a ao de um sujeito coletivo que conquistou o mercado fonogrfico dentro do
contexto em que o mesmo almejava produtos considerados regionalistas.
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CAPTULO 1
NA PAREDE DA MEMRIA: LEMBRANAS DE UMA VIDA NA
CONSTRUO DE UMA NARRATIVA.
Eu estou muito cansado do peso da minha cabea
Desses dez anos passados, presentes, vividos entre o sonho e o som (Todo Sujo de Batom Belchior)
Esta pesquisa nasceu, antes de tudo, a partir da nossa afinidade com as canes
do cantor e compositor cearense Antnio Carlos Belchior, e, academicamente, pelo
interesse em entender esses ditos dez anos vividos entre o sonho e o som, expressos em
sua msica Todo Sujo de Batom, lanada em 1974 no lbum Mote e Glosa2. Esse
perodo de dez anos, citado na cano, se mostra fundamental para a trajetria de
Belchior, pois desemboca na gravao do seu primeiro disco e na sua consequente
insero no cenrio nacional da Msica Popular Brasileira, a partir da sua
profissionalizao no mercado fonogrfico. Alm disso, esse momento se trata, ao
mesmo tempo, de um contexto mpar em efervescncia cultural, com uma srie de
inovaes na produo artstica e de transformaes nos veculo de comunicao, e de
recrudescimento da represso, por conta do estabelecimento do regime militar no pas e
da instalao de mecanismos de censura, o que enriquece ainda mais as possibilidades
de investigao desta pesquisa.
Um estudo de trajetrias individuais em uma pesquisa de histria s se faz
possvel, e legtimo dentro da academia atualmente, por conta das vrias transformaes
nas formas de trabalhar com esta disciplina ao longo do sculo XX. Estas mudanas na
historiografia acompanharam um processo de busca pela superao da crise de
paradigmas de compreenso da realidade que se deu nas cincias humanas neste sculo.
O advento da Nova Histria Cultural3 trouxe consigo uma srie de inovaes para a
Histria, e, todas elas, assim como quase todo o embasamento terico-metodolgico
desta pesquisa, j nasceram em dbito com os historiadores da chamada Escola dos
Annales, pela sua produo intelectual de combate concepo rankeana de histria do
sculo anterior.
2 BELCHIOR. Mote e Glosa. So Paulo: Chantecler, 1974. 3 Cf. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. Belo Horizonte: Autntica, 2005.
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A noo de histria enquanto a cincia que problematiza a ao dos homens e
mulheres nos processos histricos se consolidou com a contribuio de Marc Bloch e
Lucien Febvre historiografia, buscando superar a tradio da histria dos fatos
orquestrados por grandes nomes da poltica institucional. Esse novo paradigma de
produo histrica veio acompanhado de um combate ao trabalho com biografias no
campo da histria poltica tradicional, que at hoje possui resqucios na historiografia. A
centralidade no estudo das estruturas sociais como forma de analisar os processos
histricos relegaram a segundo plano o estudo dos sujeitos no mbito das suas
particularidades: as sensibilidades, o cotidiano, entre outros temas que atualmente tem
ocupado um considervel espao na produo historiogrfica.
A grande virada cultural, que, na segunda metade do sculo XX, abriu um leque
de possibilidades nos estudos histricos, trouxe consigo, tambm, uma retomada das
narrativas sobre trajetrias individuais. Dentre os novos problemas, novos objetos e
novas abordagens que foram introduzidas na histria com o advento da terceira gerao
dos Annales, houve espao para a formulao do campo da micro-histria, com
protagonismo dos historiadores italianos, e, com isso, a consolidao de pesquisas em
escala reduzida dos processos histricos. A riqueza de contedo possibilitada pela
abordagem micro-analtica alavancou os estudos sobre trajetrias individuais e,
atualmente, esta forma de fazer histria se mostra bastante legitimada pela academia.
Uma das principais contribuies que a micro-histria trouxe para a
historiografia foi a valorizao da narrativa na produo histrica. Narrar um processo
histrico, principalmente em escala reduzida, nos d a possibilidade de explorar melhor
a riqueza das relaes entre as experincias do individuo e as suas interaes com a
coletividade. Na vida de Belchior, suas relaes com o grupo de jovens msicos
universitrios e a sua insero no cenrio cultural de Fortaleza se mostraram fio
condutor do seu processo de projeo no universo artstico e aproximao com o
mercado fonogrfico. A sua conquista da profissionalizao na indstria da msica no
se deu meramente por uma genialidade, ou por um talento individual que possibilitaria
seu sucesso em qualquer situao, muito menos unicamente por uma conjuntura de
reconfigurao do cenrio musical da sociedade que acabou o engolindo. Tanto suas
escolhas individuais quanto as mudanas que estavam acontecendo na sociedade so
objetos de anlise para a compreenso da sua trajetria e construo da narrativa
histrica.
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Por mais que tenhamos avanos nas discusses sobre a relao entre indivduo e
sociedade, tanto na Histria quanto nas outras Cincias Sociais, para Levi4 ainda
existem grandes preocupaes quanto s ambigidades do trabalho com as trajetrias
individuais atualmente. Geralmente, ou se aborda o indivduo enquanto o irredutvel
reflexo de um contexto e das estruturas sociais, analisando como se reverberam as
normas da sociedade em seus comportamentos, ou trabalhada a anlise unilateral da
singularidade do indivduo a partir da interpretao de suas escolhas na tentativa de se
construir um perfil psicolgico, sem relacion-lo com o seu meio. Entendendo esses
caminhos e possibilidades, alinhamo-nos com as prticas de narrativa da trajetria
individual valorizada pela riqueza da anlise do contexto. Entendemos que a
compreenso da atmosfera onde o sujeito tem suas experincias central para oxigenar
o estudo da singularidade da trajetria.
Edward Carr5 nos mostra que a relao entre sociedade e indivduo deve ser
entendida no enquanto oposio, e sim como complemento. Para o estudo de processos
histricos, o sujeito e o meio em que ele vive so inseparveis. O indivduo por si s
no estabelece relaes: ele nasce em condies especficas, carregado por tradies e
heranas de significados que o faz ter uma lngua, uma conduta, cdigos morais,
costumes, tudo o que se estabelece enquanto cultura e forja o sentimento de
comunidade. Logo que nascemos, o mundo comea a agir sobre ns e a transformar-
nos de unidades meramente biolgicas em unidades sociais.6 Um nico sujeito,
descolado da coletividade, no existiria: at sua experincia mais solitria seria balizada
por elementos trazidos de suas razes culturais. O sujeito existe a partir das suas relaes
sociais, somos todos produtos de nosso meio e intervimos no mesmo com a mesma
eficcia. Colocar os indivduos e os sujeitos coletivos no mesmo patamar de anlise
fundamental para se trabalhar com investigao de processos histricos.
A riqueza da anlise da vida de Belchior, e das suas empreitadas no mbito da
produo artstica, se torna ainda mais pertinente por nos possibilitar uma melhor e mais
qualificada compreenso da forma como se constitui o cenrio da MPB. O que se
entende como Msica Popular Brasileira nas dcadas de 1960 e 1970 um mosaico de
diversas formas de produo musical que iriam expressar a disputa pelos rumos da
prpria msica, e, de maneira mais abrangente, da prpria cultura brasileira. Este 4 LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. IN: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janana. (Org.). Usos & Abusos da Histria Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. 5 CARR, Edward Hallet. Que Histria? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 6 Idem. p. 56
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mosaico construdo com o protagonismo da juventude que se articulava e se projetava
visando conquistar a profissionalizao na vida artstica. Suas consequncias para a
cultura brasileira reverberam at hoje.
Nesse perodo histrico, uma intensa produo artstica se dava na sociedade
brasileira e, ao mesmo tempo em que o campo da msica, do teatro, do cinema, entre
outros, se abria e se reconfigurava, o cenrio poltico se fechava e se enrijecia. A
necessria ampliao do entendimento sobre o cenrio cultural desse contexto
importante para o entendimento do sentido histrico da dinmica de nossa cultura em
relao atualidade. Mary Pimentel Aires nos mostra que:
De uma concepo conservadora gilbertiana, passando pelo nacionalismo de Mrio de Andrade, pela antropofagia cultural oswaldiana, pelo nacionalismo isebiano at as concepes vanguardistas chamadas revolucionrias dos movimentos artsticos-culturais dos anos sessenta e setenta, a cultura sempre posta em questo. Resguardadas suas diferentes conotaes poltico-ideolgicas, e o fato de que foram produzidas em contextos histricos diferenciados, essas concepes sobre a cultura brasileira surgidas no sculo XX esto, contudo, permanentemente mediadas por um trao comum: a busca de um entendimento sobre os caminhos que a sociedade brasileira tem percorrido e pode percorrer em sua histria e uma postura crtica ante os processos de transformao social e da dinmica cultural.7
As inovaes estticas, as apropriaes polticas das canes, o enfrentamento
do regime militar nas formas de resistncia atravs da arte e at as mudanas
comportamentais da juventude moldaram a sociedade em que vivemos. Estudar os
artistas e a sua produo nesse perodo se trata de uma tentativa de compreender a
construo da Msica Popular Brasileira e as suas reverberaes na cultura brasileira
como um todo.
A trajetria de Belchior, trabalhada em uma narrativa histrica neste captulo,
fruto, principalmente, da anlise da memria da irm do sujeito em questo, que
vivenciou ao seu lado o perodo estudado e se disps a contribuir para esta pesquisa8. A
elaborao dessa construo histrica teve como base os usos metodolgicos da Histria
Oral, alm do dilogo historiogrfico com obras que tambm estudam a experincia dos
artistas cearenses nesse perodo. A memria enquanto uma ferramenta terica tem
utilidade nesta pesquisa por possibilitar a compreenso dos elementos trazidos pelas
fontes orais investigadas. Tais fontes foram formuladas a partir do trabalho tcnico de
7 AIRES, Mary Pimentel. Terral dos Sonhos. Banco do Nordeste do Brasil/Grfica e Editora Arte Brasil, 2006. p. 57. 8 Llia Belchior, entrevistada pelo autor deste trabalho em 22 de outubro de 2013.
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transcrio de entrevistas e do trabalho terico de problematizao das informaes
contidas nas lembranas dos entrevistados. O uso da oralidade foi crucial para o
trabalho de investigao de uma trajetria individual, pois, segundo Thompson, a
evidncia oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a histria
[...] transformando os objetos de estudo em sujeitos.9 Optamos por este suporte
terico-metodolgico por entender a riqueza que o trabalho com a subjetividade, que
inerente s fontes orais, possui para a qualificao da investigao histrica e para o
processo de construo da narrativa.
1.1. ERA UMA VEZ UM HOMEM E O SEU TEMPO: PARA A
INTRODUO A UMA TRAJETRIA.
Antnio Carlos Belchior um cearense que nasceu em 26 de outubro de 1946,
em Corea, um pequeno municpio da regio norte do estado. Filho de um comerciante
em seu segundo casamento, cresceu em Sobral, uma cidade maior na mesma regio,
como o segundo filho mais velho de uma famlia de dez irmos, e tradicionalmente
catlica, no interior do Cear.10 Teve sua infncia marcada pelas vivncias nas praas
ao som dos rdios, que embalavam as tardes com canes de Luis Gonzaga e Humberto
Teixeira, traziam informaes sobre o pas e o resto do mundo e contribuam para os
momentos de socializao das famlias.
Seu av tocava rabeca, um instrumento semelhante ao violino bastante popular
no serto cearense, e sua av compunha as fileiras do coral da igreja. Ambos tiveram
sua influncia nos momentos de celebrao e festas de famlia, cantando e entoando
msicas populares da poca. As vivncias nos municpios do interior do Cear nesse
perodo eram bastante centradas nas atividades da Igreja, e estas geralmente tinham
fortes ligaes com a msica: as missas, as oraes e os cnticos sempre foram o fio
condutor das prticas do catolicismo.
Enquanto seu pai, Otvio Belchior Fernandes, trabalhava e sua me, Dona
Dolores, cuidava da casa, alm de tambm cantar no coral da igreja, Belchior e seus
irmos estudavam no Colgio Sobralense, uma importante escola catlica da cidade, e
tambm chegou a ter uma curta e interessante experincia como programador de rdio 9 THOMPSON, Paul. A Voz do Passado. So Paulo: Paz & Terra, 1992. p. 137. 10 Informaes analisadas a partir do depoimento de Llia Belchior, em entrevista ao autor deste trabalho em 22 de outubro de 2013.
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em uma estao local. Desde cedo podemos perceber o quanto a sua trajetria
marcada pela religio e pela msica. Segundo Castro:
A toda essa musicalidade, junta-se uma famlia de msicos negros morando ao lado: negros protestantes, descendentes de uma famlia que viera dos Estados Unidos na poca da Segunda Guerra Mundial; negros que se reuniam cantavam e tocavam. Como se percebe toda essa musicalidade, na cidade de Sobral, foi importantssima para a formao musical de Belchior, especialmente a casa dos msicos negros. [] Belchior contou que, alm de se influenciar, aprendeu muitas coisas sobre a histria musical e cultural daquela cidade. Com doze anos, Belchior j estava cantando nas feiras, dizendo repentes, improvisando, repetindo, com voz indefinida, os baies, os forrs do mestre Luiz Gonzaga.11
Em determinado dia, seu irmo mais velho pede ao pai para ter a oportunidade
de prestar vestibular na capital e estudar na universidade. Animado com a possibilidade
de ter um filho na academia, seu pai decide levar toda a famlia para Fortaleza na
esperana de realizar seu sonho e o de seu filho. Essa grande mudana na vida de
Belchior e de sua famlia acabou sendo um dos marcos que possibilitou sua maior
aproximao com a msica e foi fundamental para iniciar o seu processo de construo
de uma vida artstica que lhe levasse profissionalizao no mercado fonogrfico. Ao
se inserir em um cenrio mais urbano, Belchior se encontrou em um novo universo de
possibilidades, tendo acesso a uma amplitude maior de veculos de comunicao, com
as novas estaes de rdio que lhe transmitiam novas musicalidades e, principalmente,
com a televiso.
A cidade de Fortaleza nesse contexto de transio da dcada de 1950 para os
anos 60 acompanhava o processo crescente de urbanizao que se havia iniciado no pas
no governo Juscelino Kubistchek. A poltica implementada no Brasil de ento era a da
busca pela insero na modernidade industrial que se estabelecia em mbito
internacional no perodo ps-Segunda Guerra, mesmo que a custo da intensa elevao
da dvida externa. Essa modernizao trouxe consigo uma maior abertura s
importaes de produtos americanos, assim como elementos culturais importantes,
dentre eles: a cultura televisiva. Em contrapartida, o Brasil tambm passou a se
estabelecer tambm como um exportador com o advento da Bossa Nova, uma corrente
musical que estourou no final da dcada de 1950, com protagonismo de Joo Gilberto,
Tom Jobim e Vincius de Moraes, e que se tornou smbolo da sofisticao e da
musicalidade nacional. Essa novidade acabou por conquistar a programao dos rdios
11 CASTRO, Wagner. No Tom da Cano Cearense. Fortaleza: Edies UFC, 2008. p. 124.
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pas afora, tambm se tornando um produto brasileiro intensamente consumido
internacionalmente.12
Como forma de seguir a formulao da esquerda para a cultura nacional, a
juventude ligada ao movimento estudantil nesse perodo tomou a Bossa Nova como
base para tentar produzir uma Msica Popular Brasileira que se alinhasse com seu
projeto nacionalista, popular e emancipador. Projeto este que, no mbito cultural, se
expressou no Manifesto do Centro Popular de Cultura (CPC), da Unio Nacional dos
Estudantes (UNE). Para isso, os jovens que construram o CPC criaram experincias de
teatro militante, buscando levar a dramaturgia crtica para as massas, e produzir as suas
canes de protesto.13
Segundo Llia Belchior, irm do protagonista desta pesquisa, dentro desse
cenrio de fortes transformaes no pas, a sua famlia veio morar em Fortaleza no
bairro So Joo do Tauape14 no incio da dcada de 1960. Suas irms foram estudar no
patronato da igreja em um curso de formao de freiras, e os garotos da famlia foram
cursar o segundo grau no Liceu do Cear. Foi nessa escola onde Belchior teve os
primeiros contatos com esse cenrio da juventude engajada politicamente, e que teve
repercusso importante na sua trajetria. As mudanas sociais no pas traziam consigo
tambm fortes respostas de uma nova juventude que assumia seu protagonismo nos
movimentos de contestao, e tambm nas formas de expresso cultural. So essas
transformaes nas atitudes dos jovens desse perodo que foram o fio condutor das
mudanas na vida de Belchior dentro do seu processo de aproximao com a msica e
na sua busca pela insero no cenrio artstico. Em um relato a Rogrio, ele diz:
[...] quando eu entrei pro Liceu foi um choque, histrico, absurdo, porque eu estava vindo de um colgio absolutamente disciplinar, como era um colgio de padres e o Liceu era um ambiente extremamente juvenil, do ponto de vista das propostas polticas e tava todo mundo fazendo greve, quebrando nibus, incendiando nibus e eu no tinha muita compreenso, ainda, devido escola de onde eu vinha, eu no tinha compreenso de como que tava se dando aquelas coisas [...]15
Para Belchior, o colegial lhe legou mais do que um simples certificado, mas o
entendimento de que ele agora fazia parte de um novo cenrio urbano onde a juventude
tinha outra conotao. E isso viria a se intensificar ainda mais no momento em que ele
12 Cf. NAPOLITANO, Marcos. Cultura Brasileira. So Paulo: Editora Contexto, 2008. 13 Cf. SOUZA, Miliandre Garcia de. Do Teatro Militante Msica Engajada. So Paulo: Editora Fundao Perseu Abramo, 2007. 14 Entrevista cedida ao autor deste trabalho em 22 de outubro de 2013. 15 ROGRIO, Pedro. Pessoal do Cear. Fortaleza: Edies UFC, 2008. p 40.
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ingressou no ambiente universitrio, que, no contexto do regime militar, se tornou um
cenrio de extrema ebulio poltica e cultural.
Aps concluir o segundo grau no Liceu, Belchior inesperadamente anuncia para
sua famlia que decidira seguir a vida religiosa e cursar seminrio para se tornar padre,
causando forte comoo, principalmente, para seu pai. Apenas nos cabe formular
hipteses em cima dessa escolha a partir da interpretao dos elementos nesse processo
que investigamos: talvez pelo forte choque de realidades com essa cena jovem
encontrada, ou por alguma frustrao com as prticas e discursos polticos dos
estudantes no movimento secundarista, Belchior tenha optado pela carreira no
sacerdcio. Ou, talvez, apenas por real interesse nos caminhos eclesisticos adquirido
pelas razes familiares fortemente catlicas.
Ao mesmo tempo em que se instaurava no pas um regime militar originado por
um golpe de estado contra a poltica de reformas de base do ento presidente Joo
Goulart, e na tentativa de barrar a crescente expressividade que a esquerda vinha
ganhando no pas, a trajetria de Belchior tambm tomava um rumo inesperado. A sua
deciso de ser seminarista o fez abandonar o cenrio urbano e o contato com uma
juventude engajada para ir morar no convento dos frades capuchinhos do municpio de
Baturit, em uma regio serrana do Cear. Durante trs anos vivendo nessa congregao
franciscana, teve pouco contato com a famlia e se dedicou prtica da carpintaria e aos
estudos da teologia e filosofia. Essa formao de seminarista teve grande relevncia na
sua trajetria por ter contribudo bastante para sua formao intelectual, alm de ter tido
importante influncia na ampliao de suas noes musicais devido s prticas de canto
gregoriano, constantemente ensaiadas na igreja. A erudio filosfica adquirida nessa
sua experincia veio a ser bastante expressiva na sua produo musical.
O processo de desistncia do sacerdcio foi se dando aos poucos. O primeiro
passo foi o pedido de transferncia do convento dos frades capuchinhos para outra
congregao franciscana, o seminrio da Igreja Corao de Jesus, no centro de
Fortaleza. No seu retorno capital, Belchior j foi, aos poucos, buscando se desligar da
carreira religiosa, o que se tornou uma grande decepo para seu pai. Tal deciso,
quando anunciada para a famlia, gerou um grande choque, que s foi superado no
momento em que Belchior revelou seu novo interesse: prestar vestibular e tentar seguir
carreira na medicina.
Suas atitudes quando do seu retorno a Fortaleza aps a experincia no seminrio
expressavam uma mudana considervel de mentalidade. Conseguiu um emprego como
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professor de cursinho pr-vestibular e se esforou para conquistar uma vaga no curso de
medicina da Universidade Federal do Cear, que era bastante concorrida. Nesse perodo,
Llia Belchior nos conta que havia descoberto que seu irmo j compunha e tocava
violo escondido da famlia, j que essas prticas eram geralmente malvistas por
estarem associadas vida bomia. E que, inclusive, havia utilizado o seu salrio como
professor de cursinho para comprar um violo e ter aulas particulares com um professor
de msica. O seu depoimento a Rogrio confirmou essa escolha: [...] eu era estudante
dos frades capuchinhos onde eu estudei msica, coral, onde eu vi diversas msicas
religiosas, hinos, essas coisas assim e quando eu sa pra fazer o vestibular de medicina
eu j comecei a fazer msica [...].16
Seu ingresso na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cear foi
uma grande satisfao para a sua famlia e, principalmente, para seu pai. Seu primeiro
contato com o ambiente acadmico se confundiu com o momento de pice da
expressividade poltica da juventude universitria no contexto repressivo do regime
militar, que estudaremos com mais profundidade no prximo captulo. Ao mesmo
tempo em que Belchior apresentava pra sua famlia a imagem de futuro doutor,
construa secretamente uma vida artstica cursando tambm o Conservatrio Alberto
Nepomuceno, principal curso de msica da cidade no perodo, e tendo seus primeiros
contatos com o Movimento Estudantil e com a oposio ditadura.
Mesmo com o advento do golpe militar em 1964 e o cenrio de represso,
implantado no pas, havia uma forte efervescncia cultural, com transformaes no
teatro, no cinema e na msica, e com forte adeso das classes mdias e dos intelectuais
na oposio ao regime: At 1964, o florescimento cultural estava acoplado a uma srie de movimentos sociais amplos de trabalhadores urbanos e rurais, militares de baixa patente, estudantes e intelectuais que foram quase totalmente desarticulados aps o golpe. Da at o AI-5, o florescimento cultural prosseguiu, mas embasado sobretudo nos setores das classes mdias que lograram mobilizar-se, ocupando quase sozinhos o campo poltico da oposio ditadura, na medida em que as outras classes estavam impedidas de se organizar e fazer representar. Logo depois do golpe de 1964, intelectuais e artistas j se colocaram na oposio.17
Foram essas classes mdias, cuja juventude tinha acesso s universidades, que se
tornaram o principal consumidor da Msica Popular Brasileira. E foi essa juventude que
16 ROGRIO, Pedro. Op. Cit. p. 40. 17 RIDENTI, Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 121.
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se engajou nesse cenrio da produo musical e se apropriou dos espaos que o mercado
criava para a sua propagao, como os festivais de msica e os programas de televiso.
1.2. O TEMPO ANDOU MEXENDO COM A GENTE: VIVNCIAS EM
COMUM DE UMA JUVENTUDE UNIVERSITRIA.
Ao analisar a bibliografia referente ao estudo da msica cearense nas dcadas de
1960 e 1970, percebemos uma srie de elementos das trajetrias dos artistas locais que
foram comuns tambm entre os que compunham o cenrio nacional da Msica Popular
Brasileira. O contexto poltico de recrudescimento da represso, com o advento do
regime militar, e a disputa pelos rumos da produo cultural no pas tiveram forte
relevncia nas trajetrias das juventudes no Brasil. Nesse perodo, no Cear, e assim
como no resto do pas, uma srie de jovens msicos se lanaram no mercado
fonogrfico e tiveram grande influncia nos rumos da msica e da cultura brasileira.
O ingresso de Belchior no curso de medicina da Universidade Federal do Cear
aconteceu no auge desse cenrio de expressividade e efervescncia poltica
protagonizada pela juventude no mundo todo. No Cear, o Movimento Estudantil e a
oposio ao regime militar tambm tiveram as suas reverberaes. Jorge Melo, parceiro
de composies e amigo de Belchior na universidade, nos relatou sua aproximao com
o protagonista desta pesquisa em meio s intensas experincias polticas no ambiente
universitrio.
Lembro muito das passeatas que sempre terminavam com tiros da fora militar chumbando o prdio de nossas instituies de ensino e quase sempre esses militares eram recebidos com bombas molotov feitas pelos estudantes. O ambiente fervia poltica. Havia uma efervescncia na produo de textos e distribuio dos mesmos no ambiente universitrio. Eram dias de muita leitura e muita cultura. Nessa poca li A Doena infantil do Esquerdismo de Lnin. O Capital de Marx. E outras obras revolucionrias. Foi nesse momento que conheci a rapaziada da msica de Fortaleza [...] e conheci o Belchior ainda nos dois primeiros meses de universidade [...]. Ficamos amigos na hora e tambm ali nesse ambiente universitrio iniciamos o trabalho de compor msicas em parceria. 18
Com o golpe de 1964, no perodo em que Belchior estava saindo do Liceu do
Cear e entrando na congregao dos frades capuchinhos, uma transformao profunda
se iniciaria na vida dos estudantes fortalezenses, e por isso se estabelece como marco
para o recorte temporal desta pesquisa. Um fato simblico que exemplifica um pouco
18 Entrevista cedida ao autor deste trabalho em 11 de setembro de 2013.
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disso foi a no realizao da passeata dos calouros, tradicional desfile de recepo dos
novatos da Universidade Federal do Cear, em 1964. Segundo Maia Jnior, os desfiles
contavam com cartazes, muitos, dezenas, centenas de cartazes [] contra a figura do
Tio Sam, em defesa da Amaznia, crticas s 'eleies' da ditadura, reivindicaes de
cursos, protestos contra a guerra do Vietn, cartazes satricos, politizados.19 Eram
passeatas de carter fraterno, com o objetivo de recepcionar os calouros na vida
universitria, mas que apresentavam um forte vis poltico de esquerda. As marcas da
represso, perseguio poltica, cerceamento de direitos, censura e da resistncia seriam
fortes na experincia universitria dos estudantes pas afora.
A vida acadmica de Belchior se iniciou com uma aproximao do Movimento
Estudantil. Jorge Melo, em depoimento, nos relatou que:
No ambiente universitrio fervia poltica em 1968, ano em que entrei na Universidade. Os lderes dos Diretrios Acadmicos como o da Faculdade de Direito que eu freqentava, eram comprometidos com o movimento estudantil e com a esquerda. O mesmo acontecia com a Faculdade de Medicina, onde estudava o Belchior. Posso ilustrar contando que o nosso colega de faculdade Genuno Neto, hoje Deputado Federal pelo PT, era o presidente do Diretrio Acadmico da Faculdade de Direito e depois foi eleito o Presidente do DCE [...]. E como todo o Brasil sabe, estava envolvido na poltica a tal ponto que virou guerrilheiro no Araguaia. E era com lderes como ele que a gente saa nas passeatas para dar nosso grito nas ruas e nesses eventos a gente cantava pra rapaziada nossas composies. Na Faculdade de Medicina o lder tambm fora presidente do Diretrio da Medicina e tambm Presidente do DCE e l estava o Belchior ao seu lado nos eventos mostrando sua msica como eu fazia. 20
O seu engajamento nas manifestaes e a sua aproximao de lideranas
polticas estudantis tinham como fio condutor a msica. Foram nos eventos culturais,
nas palavras de ordem entoadas nas passeatas e nas atividades ldicas dos Diretrios
Acadmicos onde Belchior encontrou as primeiras oportunidades para expor suas
canes e ter contato com outros jovens artistas do meio universitrio. Foram a partir
dessas experincias polticas e musicais que se iniciou a sua forte amizade com Jorge
Melo, e com outros msicos que viriam a dar contribuies fundamentais para a
construo da sua carreira artstica. Sobre isso, Castro nos diz que:
Os estudantes, diante da ditadura, organizavam passeatas, fazendo pardias, usando a resistncia com humor. [] Vale notar que muitas dessas pardias, versos e canes embaladas em passeatas eram criadas por Belchior e Jorge
19 MAIA JNIOR, Edmilson Alves. Memrias de Luta. Fortaleza: Edies UFC, 2008. p. 24. 20 Entrevista cedida ao autor deste trabalho em 11 de setembro de 2013.
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Melo. Todavia, no h nenhum registro dessas canes, apenas o registro de suas memrias []21
Na sua turma da Faculdade de Medicina da UFC, Belchior conheceu Emanuel de
Carvalho, um jovem estudante que veio do Piau junto com seu irmo para estudar em
Fortaleza e que apresentava um grande interesse por msica. Os dois se aproximaram no
dilogo sobre gostos musicais, canes e artistas preferidos. Um dia, Emanuel levou
Belchior para visitar a repblica onde morava e l o apresentou a seu irmo Jorge Melo,
estudante de Direito que estava tentando construir uma carreira como msico em
Fortaleza, e que j possua alguma experincia de insero nos espaos projeo
artstica da cidade, como programas de rdio, festivais de msica e programas de
televiso.
Quando cheguei em Fortaleza, juntamente com meu irmo Emanuel Carvalho, hoje mdico em Fortaleza, em 1967 comecei a cantar na TV Cear no programa Show da Juventude, de Paulo Limaverde. Tambm cantava nos programas de auditrio da Rdio Assuno. Eu passei no vestibular de Direito da UFC e meu irmo em medicina. Na turma de meu irmo no curso de Medicina estava o Belchior e na Faculdade de Direito eu comecei a participar dos eventos que aqueciam as passeatas estudantis cantando pra rapaziada. O Belchior fazia o mesmo l na Faculdade dele. Um dia o Emanuel trouxe o Belchior na repblica onde eu morava para que a gente se conhecesse. Foram muitos papos dentro da noite da pr frente e nunca mais nos separamos.22
Durante sua vida universitria, Belchior foi deixando de lado as experincias
mais acadmicas, apesar de sempre ter mantido um alto rendimento enquanto aluno ao
longo do curso de medicina, e abraou de vez o cenrio artstico da juventude bomia de
Fortaleza. Longe dos olhares de seu pai, Belchior, juntamente com Jorge Melo,
apresentava suas canes nos espaos da universidade e frequentava os bares da cidade
tocando seu violo. As vivncias no Bar do Ansio e Estoril, principais pontos de
referncia da boemia no litoral de Fortaleza naquele perodo, contriburam para a sua
interao com outros msicos da cidade e para alavancar as canes e composies
produzidas e apresentadas. Os dilogos entre os msicos e compositores nesses espaos
tinham grande importncia para o processo de qualificao das canes, trocas de
experincias, e at mesmo para dar confiana aos novos artistas que estavam iniciando
suas carreiras.
Nas suas vivncias pelos espaos da Universidade Federal do Cear pudemos
perceber, mesmo que sem tanta concretude, um envolvimento por parte de Belchior com 21 CASTRO, Wagner. Op. Cit. p. 141. 22 Entrevista cedida ao autor deste trabalho em 13 de agosto de 2013.
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a vida poltica do Movimento Estudantil. Por mais que no possamos mensurar com
exatido as prticas que expressavam uma militncia, devido a lacunas documentais,
temos indcios suficientes que possibilitam a anlise de sua trajetria, no incio de sua
vida acadmica, tendo como marca o engajamento poltico atravs da msica, seja
compondo canes que eram entoadas nas manifestaes ou se apresentando nas
atividades ldicas dos Diretrios Acadmicos. Mas foi, principalmente, nos bares da
noite fortalezense onde Belchior encontrou a faceta da vida universitria que mais o
influenciou. As experincias da boemia ao lado de vrios jovens artistas impulsionaram
as suas primeiras iniciativas mais formais de engajamento na produo musical.
As primeiras empreitadas de Belchior e Jorge Melo, assim como de muitos
outros jovens artistas desse perodo, no mercado da msica foram a partir das
apresentaes em programas de auditrio das emissoras locais de televiso, e, tambm
atravs da participao em festivais de msica. Estas plataformas, que veiculavam
artistas e canes para o pas em meados da dcada de 1960, faziam um enorme sucesso
entre as classes mdias fortalezenses, consumidoras da MPB.
Os festivais musicais no Brasil foram importados a partir das experincias
internacionais, principalmente as da Itlia, e aqui tinham um formato de competio.
Segundo Zuza de Mello, os primeiros festivais do pas que tiveram carter
exclusivamente musical foram produzidos pela TV Excelsior. E a edio de 1965 pode
ser considerada como marco de incio de uma era dos festivais no Brasil.23 Nessas
competies eram apresentados novos artistas, novas canes e uma disputa
televisionada da produo musical brasileira entre o tradicional e o moderno.
Na segunda metade da dcada de 1960, houve uma mudana de conotao nos
festivais apresentados pelo pas. Pode-se dizer que eles deixaram de ser uma mera
amostragem de canes e se tornaram palcos de um debate poltico, esttico e
comportamental atravs das msicas e dos artistas que veiculavam. O sucesso das
competies musicais tem relao direta com o contexto de massificao da televiso e
de declnio do rdio, com a imensa popularizao dos programas musicais de auditrio e
das novelas.24 O perodo que se seguia, mesmo com o AI-5, o aprofundamento da
censura e o cerceamento das liberdades polticas da populao, foi, paradoxalmente, de
intensificao do consumo da Msica Popular Brasileira.
23 MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais. So Paulo: Editora 34, 2003. 24 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit.
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Os festivais de msica aconteciam em Fortaleza j em formato competitivo e
exclusivamente musicais desde antes do I Festival da TV Excelsior, mas, eles s
ganharam maior relevncia localmente aps o sucesso dessas competies musicais a
nvel nacional.25 Os artistas locais encaravam as apresentaes nos festivais como
oportunidades de mostrar seu trabalho para um grande pblico e conquistar alguma
projeo no cenrio musical da cidade. Geralmente, tambm aproveitavam outros
espaos, como os programas de rdio, para promover suas canes. Com o advento da
televiso e a sua consequente consolidao como principal veculo de comunicao no
pas, os programas de auditrio das emissoras locais se mostravam como o melhor
espao para os jovens artistas alavancarem suas carreiras.
A trajetria de Jorge Melo de insero no cenrio musical de Fortaleza se
confunde com a de Belchior nesse perodo. Ambos tiveram a vida acadmica marcada
pelo cenrio efervescente da juventude universitria, que buscava novas formas de
expresso cultural e de resistncia. Essa cultura jovem, expresso das prticas e signos
que caracterizavam sujeitos coletivos dentro desse contexto to plural que o que nos
propomos a estudar, ser mais aprofundada no segundo captulo deste trabalho. Sobre
sua trajetria e a construo da sua carreira artstica ao lado de Belchior, Jorge Melo nos
contou que foi responsvel pela primeira experincia profissional desse artista no meio
televisivo.
[...] quando sa de Piripiri primeiro fui para Teresina, onde me meti no rdio. Fui artista da Rdio Pioneira e da Rdio Difusora de Teresina. Tocava no rdio duas a trs vezes por semana em tudo que era programa. Mas ouvia falar da TV e desejava tocar na TV, mas esse veculo s havia em Fortaleza, a TV Cear. Ento em 1967 fui para a capital cearense, e l chegando procurei me entrosar na TV, quando me apresentei em todos os programas que existiam, fui presena constante no Show da Tarde, de Paulo Limaverde. E em 1969 fui convidado por Gonzaga Vasconcelos para ser o diretor musical do programa Porque Hoje Sbado. Nesse perodo j era universitrio e amigo de toda a moada que fazia msica na capital cearense, inclusive o Belchior e tambm iniciei o trabalho de fazer composies em parceria com os poetas e compositores cearenses. E junto com o Belchior dirigimos a parte musical desse programa que abria as portas para os musicais locais.26
Em depoimento, Llia Belchior nos contou que seu irmo veio a trabalhar no
programa Porque Hoje Sbado graas ao convite do prprio apresentador, Gonzaga
Vasconcelos, que havia, segundo ela, gostado bastante de uma apresentao do cantor
25 Cf. CASTRO, Wagner. Op. Cit. 26 Jorge Melo em entrevista concedida ao autor deste trabalho no dia 13 de setembro de 2013.
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em seu programa.27 Esse confronto de informaes com o que foi trazido por Jorge
Melo exemplo da dinmica da Histria Oral e das oportunidades interpretativas que a
mesma possibilita quando devidamente problematizada. Talvez exista algum interesse
em querer mostrar-se responsvel pelo pontap na carreira profissional de Belchior na
msica, por parte de Jorge Melo. Ou, talvez, possa existir alguma necessidade, por parte
de Llia Belchior, de querer construir uma imagem de seu irmo enquanto artista que
conquistou seu sucesso unicamente por conta de seu talento. Independentemente dessas
hipteses, o central para a elaborao histrica que buscamos da trajetria de Belchior
o entendimento da sua primeira experincia profissional no ramo da produo musical
enquanto elemento decisivo para a construo da sua carreira artstica.
Para alm do mbito musical, as transformaes que aconteciam na produo
cultural brasileira se expressavam tambm no cinema e, principalmente, no teatro. As
experincias do Centro Popular de Cultura da Unio Nacional dos Estudantes trouxeram
importantes mudanas para a dramaturgia do pas a partir de um vis de esquerda. No
Cear, a produo artstica local estava imersa nesse contexto, mas possuindo suas
especificidades. No incio da dcada de 1960, o CPC da UNE havia criado a UNE-
Volante, uma comisso da entidade que visitava as capitais do pas para animar as
relaes com os movimentos nos locais. Com a experincia da vinda dessa comisso ao
estado, instalou-se em Fortaleza o CACTUS e o GRUTA, dois grupos de teatro
engajado, ligados Universidade Federal do Cear, que promoviam, para alm de peas
com teor crtico, outras aes culturais na capital e tambm no interior do estado. Parte
dos jovens universitrios que viriam a conhecer Belchior e conviver com ele o processo
de busca pela profissionalizao no mercado fonogrfico compunham as fileiras
militantes do GRUTA e do CACTUS.28
Belchior e Jorge Melo durante suas trajetrias acadmicas tambm tiveram
algum envolvimento com produes de teatro universitrio. Este, principalmente, havia
assinado a direo musical da pea adaptada Morte e Vida Severina, baseada na obra de
Joo Cabral de Melo Neto. A convite de seu colega de Faculdade de Direito, Haroldo
Serra, Jorge Melo se tornou diretor da parte musical da pea O Morro do Ouro, onde
tinha a atribuio de adaptar o texto da obra de Eduardo Campos para o formato de um
musical. Para esta empreitada, convidou Belchior para compartilhar seu cargo e para
compor as msicas da pea. Essa, talvez, tenha sido a primeira experincia de produo
27 Llia Belchior em entrevista concedida ao autor deste trabalho no dia 22 de outubro de 2013. 28 ROGRIO, Pedro. Op. Cit.
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musical do protagonista desta pesquisa que teve um sucesso mais abrangente, j que a
pea acabou tendo a possibilidade de ser apresentada no sudeste do pas, inclusive sendo
premiada.29
Desde os seus primeiros anos na faculdade de medicina, no estava ficando
possvel esconder da famlia a sua vida como msico na cidade de Fortaleza. Suas
participaes nos festivais, suas apresentaes nos programas televisivos, seu sucesso
com a direo musical da pea citada e o seu emprego como diretor musical na TV
Cear o tornou conhecido, e isso mostrava para sua famlia como a sua real vontade no
era ser doutor e sim artista, fazendo brotar um grande confronto entre ele e seu pai. O
pice dessa discrdia se deu quando surgiu a primeira oportunidade de viajar ao sudeste
com a sua pea teatral, onde ele acabou permanecendo mais do que esperado por conta
da deciso repentina de participar do IV Festival Universitrio de Msica Popular,
realizado pela TV Tupi em um teatro no Rio de Janeiro.
A sua experincia com festivais estava limitada s participaes nos eventos
locais da cidade de Fortaleza onde ele se colocava mais como compositor, e quase
nunca como intrprete. Um dos momentos importantes que contriburam para a sua
projeo no meio musical foi quando, a partir da sua posio de produtor do programa
Porque Hoje Sbado, teve a oportunidade de se envolver com o III Festival
Universitrio de Msica Popular, realizado pela TV Tupi, cujas eliminatrias locais
seriam apresentadas nesse programa. Com essa oportunidade, Belchior, em parceria
com um dos jovens artistas que conheceu na boemia, Pretestato Melo, encaminhou a sua
participao no festival universitrio convidando um conjunto musical de mulheres para
interpretar sua cano e este acabou conseguindo vencer as eliminatrias.
Mary Pimentel Aires, cujo irmo era colega de Belchior na faculdade de
medicina, cantava, ao lado de suas quatro irms, em um quinteto que se apresentava
toda semana no programa de Gonzaga Vasconcelos, inclusive sendo as vozes que
cantavam o jingle de apresentao do programa.30 Atravs dessa interao, Belchior se
aproximou do conjunto para trabalhar a sua participao no festival da TV Tupi, em
1970, com a sua cano Caravele, que nunca foi gravada por ele, e Gira Rola Mundo, de
Pretestato Melo.
29 Informaes analisadas a partir de depoimento de Jorge Melo ao autor deste trabalho em 11 de setembro de 2013. 30 Entrevista cedida ao autor deste trabalho em 25 de janeiro de 2011.
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Ah! Como bom voar de caravele/Salve, salve a minha terra/E viva o resto do pas/Papel picado l no cu/Cai da cidade contra lei da gravidade/Eu vou voando at o fim/Ah! Como bom voar de caravele/Salve, salve a minha terra/E viva o resto do pas/Papel picado l no cu/Cai da cidade contra lei da gravidade/Eu vou voando at o fim/Tinha razo e valor/O inventor do avio/Velocidade meu bem melhor diverso/O crebro eletrnico/O rapaz e os megatons/As clulas das mquinas/Olhos do computador/Voc o meu amor.31
O sucesso das garotas nas eliminatrias locais as levou at as finais nacionais no
Rio de Janeiro, onde ficaram conhecidas como as Garotas 70. Sucesso este que abriu
grandes possibilidades de profissionalizao para o grupo com a exposio em rede
nacional no festival. Porm, as barreiras familiares envolvidas impossibilitaram as
Garotas 70 de seguirem na carreira musical, j que a vida artstica naquele perodo era
bastante associada marginalidade, principalmente para as mulheres, que enfrentavam
dificuldades muito maiores para o envolvimento com o meio artstico por conta das
imposies dos pais.
Garotas 70, Belchior e Fagner em programa da TV Cear.32
No ano seguinte, por conta do sucesso da pea O Morro do Ouro, na qual
Belchior e Jorge Melo haviam despontado por terem produzido e dirigido as
composies do musical, surgiu a chance de viajar para o sudeste para a participao no
Festival Internacional de Teatro Amador, em So Jos do Rio Preto. Alm de realizar
apresentaes no cenrio teatral do Rio de Janeiro. A partir da, j se tornou possvel
perceber uma definio na atitude de ambos pelos rumos na vida artstica, e, com a
viagem ao sudeste, o centro da produo cultural do pas, no restavam dvidas de que
as oportunidades que eles teriam em suas vidas de conquistar espaos na indstria
31 A cano Caravele, de Belchior, foi retirada de CASTRO, Wagner. Op. Cit. p. 137. 32 Idem. p. 138.
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fonogrfica seriam naquela regio. J havia uma experincia bastante recente e concreta
com os artistas baianos que migraram para o sudeste e l conseguiram se firmar como
dolos do cenrio nacional da Msica Popular Brasileira. Era certo para eles, e para
todos os jovens artistas cearenses em incio de carreira, que o caminho para a
profissionalizao no mercado musical passava por Rio de Janeiro e So Paulo. Sobre
essa experincia, Jorge Melo nos contou que:
[...] nessa altura era 1971, ms de junho, Belchior j estava no Rio de Janeiro. Todo o elenco da pea voltou de So Paulo para o Cear, menos eu que fiquei para me juntar ao Belchior no Rio para a aventura de virar profissional da msica [...] No Rio fui contratado como Diretor Musical na TV Tupi do Rio e inscrevi o Belchior no Festival Universitrio produzido pela Tupi e resultou que ele ganhou [...].33
No tivemos possibilidade de investigar com mais profundidade o que de fato
levou Belchior a encarar esse desafio que era se apresentar, como compositor e
intrprete, com sua cano em um festival musical de grande porte no eixo sudeste,
quando o mesmo s havia conquistado sucesso nos bastidores de uma pea teatral e no
com suas participaes em festivais, inclusive com dificuldades para apresentar suas
prprias canes nesses eventos por conta da timidez. Porm, temos a possibilidade de
utilizar ferramentas interpretativas para sanar essas lacunas do processo de investigao
histrica.
Ao levar em considerao os elementos contextuais e o conjunto de
possibilidades presentes na situao em que o indivduo est inserido, mesmo com as
lacunas documentais, o historiador, na construo da narrativa, tem abertura para
interpretar a lgica do processo histrico e tentar estabelecer suas hipteses.34 Nesse
sentido, acreditamos que a empreitada de Belchior de permanncia no sudeste para a
participao no festival citado no se deu enquanto uma ao de coragem individual
realizada ao acaso, mas sim como uma atitude alicerada pelas suas experincias com os
festivais locais, principalmente com a sua participao na edio anterior do festival
universitrio, e com as apresentaes nos programas da TV Cear, alm do importante
suporte e influncia de Jorge Melo, recm-contratado diretor musical da emissora que
organizava o evento. Esse sucesso no festival da TV Tupi se mostrou um importante
catalisador na carreira artstica de Belchior e pode ser considerado como o incio do
33 Entrevista cedida ao autor deste trabalho em 26 de janeiro de 2011. 34 LEVI, Giovanni. Op. Cit.
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processo que desembocou na gravao de seu primeiro lbum. Foi atravs dessa
conquista que a sua insero no mercado fonogrfico se tornou palpvel.
Desde sua infncia em Sobral, passando pela sua vivncia de seminarista na
congregao franciscana, at suas experincias universitrias, onde se percebe a
centralidade das suas relaes com os movimentos polticos e com a produo artstica,
Belchior teve a msica como fio condutor de sua trajetria. A anlise das fontes e o
trabalho de construo da narrativa histrica neste captulo nos mostram que a sua
migrao para a capital, no contexto de implantao do regime militar no pas, se
estabeleceu como marco na sua vida por iniciar o seu contato com uma juventude
urbana em ebulio e por abrir possibilidades de aproximao com a msica. Podemos
chegar a uma concluso de que a sua trajetria, nesse perodo, se construiu como uma
sntese das experincias da juventude das classes mdias: na militncia poltica, na
boemia e no engajamento artstico, com nfase nas iniciativas de produo musical e na
busca pela projeo no cenrio artstico.
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CAPTULO 2
CABELO AO VENTO, GENTE JOVEM REUNIDA: CULTURAS JOVENS E
OS FESTIVAIS MUSICAIS.
Ns jovens estvamos no meio de um furaco de mudanas sociais. A gerao de 50 estava ouvindo e danando bolero e freqentando festinhas em casas de famlia e a nossa se jogou no mundo, deixou crescer os cabelos, se aventurou no sonho e no som [...]. A nossa gerao foi pra rua fazer passeatas e festivais, abandonou os terninhos e vestiu colorido, liberou o sexo, a bebida, a droga e caiu na inveno da arte. A gente fazia o que o corao mandava.35
Neste captulo trabalharemos uma ampliao da escala de anlise das
experincias de Belchior durante sua vida universitria para tentarmos elaborar uma
compreenso da sua relao com o cenrio da juventude no qual ele estava inserido,
alm de enriquecer a construo da narrativa sobre sua vida. Ao relacionar sua trajetria
com os elementos comuns vivenciados pelos jovens universitrios nesse processo de
envolvimento com a msica, produziremos uma anlise mais qualificada desse sujeito
coletivo que foi protagonista na produo cultural do pas durante a dcada de 1960.
A princpio, podemos dizer que temos elementos contraditrios desse contexto
que repercutiram diretamente nos rumos da indstria fonogrfica brasileira e,
consequentemente, no cenrio nacional da MPB. Dentre eles, podemos expressar o
sucesso estrondoso da bossa nova no final da dcada de 1950, inclusive reverberando no
mercado americano, e a situao de descenso que a economia brasileira vinha
enfrentando, fruto de uma poltica de desenvolvimento que alavancou a dvida pblica
do pas. As condies econmicas limitaram o crescimento da indstria nacional da
msica nesse perodo em que a MPB, ou aquilo que conhecemos como MPB, era um
produto fortemente consumido pelas classes mdias no Brasil. Ao mesmo tempo, a
poltica de importao massiva de bens materiais americanos trouxe consigo tambm a
importao de fortes elementos culturais.
As dificuldades que a msica brasileira encontrava para ser difundida,
reproduzida e consumida atravs de disco no foram encontradas pela msica vinda de
fora, que no tinha os custos de gravao em estdios locais. Muitos artistas e conjuntos
musicais americanos acabaram repercutindo muito no pas, e tiveram insero no
35 Jorge Melo em entrevista ao autor deste trabalho em 13 de agosto de 2013
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processo de transformao das juventudes desse contexto. Aliados com a fora da
literatura beat36 e as tendncias da contracultura que animavam o movimento hippie
mundo afora, o sucesso mercadolgico de bandas como The Beatles e Rolling Stones
atingiu o Brasil da dcada de 1960 causando fortes reverberaes nas mudanas
comportamentais e na produo artstica dos jovens.37
As trajetrias dos msicos cearenses nesse perodo possuem reflexos dessa
dinmica cultural que se estabelecia no pas em relao aos produtos estrangeiros. As
influncias que grupos de juventude sofreram das musicalidades britnicas e
americanas, entre outros elementos, eram expressas em comportamentos, vestimentas,
prticas e produes musicais, podendo ser analisadas como parte de uma
transformao cultural mais abrangente que seria um divisor de guas na vida de muitos
dessa gerao. Para o entendimento dessas mudanas, se faz necessria a utilizao de
ferramentas tericas que auxiliem a anlise dessa categoria social, e para isso, nos
apropriamos de elementos das Cincias Sociais na realizao de nosso estudo.
Trabalhar com a categoria sociolgica juventude na anlise de um processo
histrico tarefa complicada por conta da dificuldade encontrada em se conceituar de
maneira adequada um grupo social que, tradicionalmente, entendido enquanto unidade
a partir da sua faixa etria. necessrio que outros elementos sejam levados em
considerao para analisar as confluncias existentes entre indivduos de uma mesma
idade, que o tornem um sujeito coletivo.
No entanto, a questo central que se coloca sociologia da juventude a de explorar no apenas as possveis ou relativas similaridades entre jovens ou grupos sociais de jovens (em termos de situaes, expectativas, aspiraes, consumos culturais, por exemplo), mas tambm e principalmente as diferenas sociais que entre eles existem.38
A sociologia da juventude tem trabalhado com esta categoria, principalmente,
entre duas tendncias: uma que homogeneza os jovens a partir dos elementos comuns
entre sujeitos de uma mesma faixa etria, como j citamos, e outra que diversifica a
36 Movimento literrio americano da primeira metade do sculo XX cujos componentes eram pejorativamente chamados de beatnicks. Romperam com os paradigmas literrios da poca ao produzirem obras que enfatizavam as experincias dos marginalizados da sociedade americana, como os mendigos, os vagabundos, as prostitutas e os andarilhos. Tem como expoentes Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. Cf. WILLER, Claudio. Gerao Beat. Porto Alegre: L&PM, 2009. 37 Cf. NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit. 38 PAIS, Jos Machado. A Construo Sociolgica da Juventude. IN: Anlise Social, vol. XXV (105-106), 1990. p. 143.
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juventude entre as heterogeneidades de classe, gnero, etnia, linguagem, e que
impossibilita encontrar um elo mais abrangente que unifique um grupo enquanto jovens.
Segundo Pais, a juventude na modernidade considerada um problema social
que deveria ser analisado enquanto problema sociolgico, e que os desafios em se
entender a juventude cientificamente coloca dificuldades para lidar com ela
socialmente. Podemos entender a juventude a partir do seu carter geracional, no qual o
grupo social caracterizado por uma fase da vida, onde, dentro de uma sociedade
hegemonizada por determinados valores, existiria uma conscincia de juventude que
teria como elo a sua faixa etria; e a de carter classista, onde, dentro da diviso social
em classes, existiria a expresso da juventude da classe trabalhadora e a expresso da
burguesia.39
Entendemos que o trabalho terico com a categoria de juventude deve ser mais
aprofundado do que isso, e somente pode dar-se a partir da compreenso da
heterogeneidade e da pluralidade dos jovens enquanto grupo social. Dentro dessas
diferenas, possvel perceber determinadas prticas e signos que se estabelecem
enquanto elementos comuns que aproximam esses indivduos. a partir desses elos que
podemos analisar a formao de sujeitos coletivos. A forma de compreender a categoria
juventude nesta pesquisa a partir da anlise do conjunto de prticas e signos, que
caracterizam determinados grupos sociais heterogneos, enquanto expresso de uma
cultura jovem.
No caso de Belchior, como vimos no captulo passado, a sua trajetria marcada
pela sua insero no cenrio urbano de Fortaleza e na ambincia universitria do final
da dcada de 1960, alm da sua interao com a juventude militante, boemia e engajada
artisticamente das classes mdias. Os elementos trazidos a partir da investigao desse
processo em escala reduzida enriquecem a nossa anlise das aes de Belchior e seus
pares nesse perodo, possibilitando o entendimento sobre uma cultura jovem que
produzida, e, ao mesmo tempo, produto, das aes desse grupo social.
As trajetrias das juventudes na dcada de 1960 perpassam o crescimento da
expressividade da esquerda no mbito poltico e a chegada ao poder do ento presidente
Joo Goulart, a partir da renncia de Jnio Quadros. Essa esquerda buscava novas
formas de politizar o povo e de aprofundar sua influncia nas lutas sindicais e,
inclusive, nas diretrizes do prprio governo federal. Foi o governo Jango que trouxe
39 Cf. PAIS, Jos Machado. Culturas Juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1993.
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consigo as bases de sustentao poltica de muitas das aes da esquerda nesse perodo.
As articulaes entre formulao poltica e produo cultural desenvolvidas pelo PCB,
tiradas em seu V Congresso, em 1960, tinham como objetivo atingir e conscientizar,
alm dos trabalhadores e camponeses, tambm as classes mdias para a construo da
revoluo democrtico-burguesa no pas, para fazer com que a nao superasse supostas
estruturas semi-feudais que entravavam o desenvolvimento das foras produtivas
capitalistas no pas.40 A articulao dessa frente nica entre operrios e trabalhadores
rurais com as classes mdias trouxeram fortes reverberaes nesta ltima.
A primeira iniciativa de produo cultural da esquerda nessa dcada foi atravs
do teatro engajado, com o protagonismo da juventude no movimento estudantil, mais
especificamente a partir da ao da UNE. A criao do CPC foi fomentada pelo Servio
Nacional de Teatro do governo Jango, que transferiu verba para a entidade no intuito
arcar com os custos de transporte e produo de material. A nova iniciativa j nasceu
com objetivos claros e caminhos bem definidos, em dois anos de atividade, o CPC
fixou duas etapas de ao cultural: a primeira, de formao da intelectualidade, e a
segunda, de conscientizao das massas.41 Essa experincia conseguiu aglutinar e
formar um considervel nmero de jovens artistas que ento passaram a se engajar em
uma produo cultural que, na sua concepo, fosse emancipadora e voltada para os
interesses do povo. Isso tambm reverberou com bastante fora no mbito da msica,
promovendo a articulao de artistas como Carlos Lyra, Nelson Barros e Lins e Srgio
Ricardo para a produo de uma Bossa Nova nacionalista e engajada, que se
popularizou bastante entre as classes mdias e que serviu de base esttico-ideolgica
para a msica que se desenvolveria no contexto dos festivais.
No mbito do cinema, uma importante mudana de paradigmas, alinhada com
esse processo de crescente nfase na produo cultural por parte da esquerda, se deu
com o lanamento de grandes obras cinematogrficas de Nlson Pereira dos Santos,
Glauber Rocha e outros. Estas tinham como marca o trabalho com imagens e
personagens mais naturais em filmes produzidos fora dos grandes estdios, como
podemos perceber em Deus e o Diabo na Terra do Sol, principal referncia dessas
produes. As mazelas da seca nordestina paralelamente aos infortnios da vida nas
favelas cariocas eram fios condutores da filmografia deste Cinema Novo, que buscava
se fundamentar em um compromisso esttico de reproduo da misria e da fome em
40 Cf. RIDENTI, Marcelo. O Fantasma da Revoluo Brasileira. So Paulo: Editora da UNESP, 2010. 41 SOUZA, Miliandre Garcia de. Op. Cit. p. 44.
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suas obras, criticando a produo que escondia ou maquiava as imagens da pobreza
do pas.
[...] a inteno era precisamente chocar, no s o pblico mdio brasileiro, mas tambm a viso dos estrangeiros sobre o nosso pas. A proposta desses filmes era mostrar a realidade brasileira e as relaes sociais conflituosas, ambientadas sobretudo no mundo rural, sem romantizar os personagens e as situaes (como at ento se fazia). Alm disso, optavam por um cenrio natural e uma linguagem crua, evitando transmitir um clima de estdio ou de artificialidade nos dilogos e nas personagens, marcas do cinema convencional.42
Em linhas gerais, a experincia das juventudes das classes mdias brasileiras era
de forte interao com essa nova realidade de produo cultural no pas e com as
grandes mudanas na conjuntura social e poltica: o processo de importao e abertura
para bens culturais estrangeiros, crescimento da expressividade e da ao da esquerda e,
principalmente, o golpe militar e a implantao de um regime autoritrio no pas.
Os jovens do meio universitrio, os intelectuais e os artistas foram, em um
primeiro momento, deixados de lado pela perseguio da ditadura militar, que, entre
1964 e 1968, priorizou a dissoluo de organizaes populares, a perseguio de
parlamentares de esquerda, sindicalistas e lideranas polticas em geral. Na viso dos
militares, isolados de movimentos sociais e da articulao com operrios e camponeses,
os jovens artistas e intelectuais das classes mdias, nesse processo, no representavam
uma ameaa mais profunda sua ascenso ao poder, pois estes s estariam dialogando
com as prprias classes mdias consumidoras de seus prprios produtos culturais. Foi
de 1968 em diante, quando a radicalizao desses setores, engajados na produo
artstica, construindo aes de massa atravs do movimento estudantil e at com
participaes na guerrilha urbana e rural, se intensificou, que a estratgia do regime teve
que mudar. Foi nesse contexto que Belchior iniciou sua trajetria de envolvimento com
a produo musical e de busca pela profissionalizao no mercado fonogrfico, tendo a
cultura jovem como fio condutor desse processo.
2.1. CABELO AO VENTO, GENTE JOVEM REUNIDA: A MEMRIA
SOCIAL DE UMA JUVENTUDE NA ERA DOS FESTIVAIS.
O conjunto de artistas cearenses que iniciou sua carreira musical na segunda
metade da dcada de 1960 e conquistou sua insero no cenrio nacional da MPB nos 42 NAPOLITANO, Marcos. Op. Cit. p. 45.
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anos 70 ficou conhecido no imaginrio do povo alencarino como Pessoal do Cear. Em
sua obra, Pedro Rogrio define esse grupo de intelectuais e jovens artistas a partir das
suas vivncias compartilhadas em espaos comuns, das suas articulaes e
estabelecimento de parcerias, e, por fim, do processo de construo esttica de sua
produo musical. Essa obra fundamental para nossa pesquisa por embasar nosso
entendimento sobre a existncia de sujeitos que, naquele perodo, possuam razes em
comum, estavam ligados por afinidades pessoais e que promoveram aes no mesmo
sentido no mbito da msica, ou seja, podemos sim estabelecer uma anlise sobre esses
indivduos enquanto parte de uma coletividade.
Porm, o que fica de polmico no estudo sobre esses sujeitos naquele momento
histrico a atribuio da insgnia de movimento musical, que comumente feita
quando se remete a esse grupo.43 Nossa pesquisa no vem no sentido de esgotar essa
discusso ou de almejar dar uma resposta definitiva sobre essa problemtica, mas,
buscaremos elaborar uma construo histrica que traduza com mais profundidade as
aes individuais de Belchior e de seus pares, nesse contexto inicial de envolvimento
com a produo musical, e o sentido que essas aes desenvolviam no mbito da
coletividade, no processo de insero profissional no cenrio nacional da Msica
Popular Brasileira.
Para tanto, preciso evidenciar com mais preciso como se construiu a relao
entre Belchior e os outros jovens artistas daquele perodo, e sua crescente aproximao
com a msica. O ano de 1968, alm de ter trazido consigo o momento maior de
radicalizao das classes mdias, nico setor ainda articulado na oposio ao regime
militar, com o ascenso das manifestaes de massa, aes diretas do movimento
estudantil e crescimento da luta armada no pas, trouxe tambm a principal resposta dos
militares a essa radicalidade, o Ato Institucional N 5, que cerceava direitos polticos e
promovia uma maior perseguio a todo e qualquer desafeto do regime. Belchior estava
cursando o primeiro ano da faculdade de medicina e trabalhando como professor para
custear suas despesas. Com suas economias, comprou um carro usado e, com isso,
conseguiu transitar com mais facilidade entre a escola que dava aula, o local onde
estudava violo e a faculdade. Mesmo atuando na rea da educao, quando podia,
43 No nos referimos obra de Pedro Rogrio quando afirmamos isso, e sim sobre o que ficou popularmente estabelecido no senso comum a partir da construo miditica em cima desse grupo de artistas ao longo dos anos.
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promovia iniciativas voltadas para a msica, aproveitando-se da estrutura da escola e da
vontade dos alunos, como pudemos entender a partir do depoimento de Rodger:
Esse colgio Santo Incio tava promovendo um festival de msica eu fui convidado pra participar da seleo das msicas [...] e eu aceitei [...]. E eu conheci o Belchior porque o Belchior era professor l do Santo Incio, ensinava biologia, era estudante de medicina e ensinava biologia l, e era ele que tava promovendo o festival, era ele que tava organizando com os estudantes [...]. Isso era em 68 ou em 69 [...] na seqncia eu fui encontrar o Belchior j na TV Cear.44
Rodger Rogrio foi um dos principais artistas cearenses dessa gerao e teve
como palco do incio da sua aproximao musical com os outros jovens msicos os
espaos da universidade. O Diretrio Acadmico do Curso de Arquitetura da UFC foi
um dos grandes plos aglutinadores de estudantes em torno da msica e da arte, muito
por conta da atuao de seu ento presidente, Fausto Nilo, que iniciou uma poltica de
utilizao da verba do DA para a compra de lbuns e para a formao de uma discoteca
aberta aos estudantes. Muita msica internacional e os novos sons da Bossa Nova, tanto
a tradicional quanto a nacionalista e engajada, embalavam o cotidiano dos que
frequentavam esse espao, que foi aglutinando cada vez mais pessoas, inclusive artistas
dos conjuntos teatrais, como Cludio Pereira, participante e militante do GRUTA. E
estes, que seriam o embrio do chamado Pessoal do Cear, foram levando suas
experincias com a msica para outros espaos da cidade.
Tti, outra artista dessa gerao que foi figura importante na trajetria do
Pessoal, nos conta que no DA de Arquitetura era comum escutar [...] muito Milton
Nascimento, ouvia muita Bossa Nova, Chico, Tom Jobim, era uma miscelnea [...] e se
ouvia os Beatles, na poca tava numa efervescncia danada [...] era ou Beatles ou Bossa
Nova [...]45, e que esse grupo de jove