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Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y Portugal
Sistema de Informacin Cientfica
Zioni Ferretti, Danilo Jos
Entre profecias e prognsticos: Janurio da Cunha Barbosa, a escravido e o futuro da nao (18301836)
Tempo, vol. 20, 2014, pp. 1-22
Universidade Federal Fluminense
Niteri, Brasil
Como citar este artigo Nmero completo Mais informaes do artigo Site da revista
Tempo,
ISSN (Verso impressa): 1413-7704
Universidade Federal Fluminense
Brasil
www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto
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DOI: 10.1590/TEM-1980-542X-2014203625 Revista Tempo | 2014 v20 | Artigo
Entre profecias e prognsticos: Janurio da Cunha Barbosa, a escravido e o futuro da nao (18301836)1 Danilo Jos Zioni Ferretti[1]
ResumoNeste artigo, busca-se compreender o papel que o embate em torno da escravido e do trfico de escravos desempenhou na cultura letrada oitocentista brasileira, com destaque para as formas de imaginar a nao. Analisa-se a forma como o Cnego Janurio da Cunha Barbosa, importante poltico e intelectual ilustrado, relacionava projees de futuro nacional e tratamento da questo da escravido, entre os anos de 1830 e 1836. Discute-se o uso de duas modalidades de projeo de futuro: a profecia e o prognstico. Por meio delas, Janurio envolveu-se nos embates polticos em torno do fim do trfico de escravos e fez uso poltico da revolta dos mals e do haitia-nismo. Indica-se a constituio de um horizonte de expectativa antiescravista pelo Cnego, entendido como uma das condies para a criao do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (1838).Palavras-chave: intelectuais; escravido; temporalidade.
Entre profecas y pronsticos: Janurio da Cunha Barbosa, la esclavitud y el futuro de la nacin (18301836)ResumenEn este artculo, tratamos de comprender el rol que la lucha contra la esclavitud y la trata de esclavos jug en la cultura literaria brasi-lea del siglo 19, destacando las formas de imaginar a la nacin. Analizamos cmo el cannigo Janurio da Cunha Barbosa, importante poltico y intelectual ilustrado, relacionaba las proyecciones de futuro nacional y el abordaje de la cuestin de la esclavitud, entre los aos 1830 y 1836. Se discute el uso de dos modalidades de proyeccin de futuro: la profeca y el pronstico. Por intermedio de ellos, Janurio se involucr en las luchas polticas en torno al final de la trata de esclavos y hizo uso poltico de la rebelin de los mals y del haitianismo. Indicamos la formacin de un horizonte de expectativa antiesclavista por el cannigo, comprendido como una de las condiciones para la creacin del Instituto Histrico y Geogrfico Brasileo (1838).Palabras clave: intelectuales; esclavitud; temporalidad.
Between prophecies and prognoses: Janurio da Cunha Barbosa, slavery, and the future of the nation (18301836)AbstractThis article aims at understanding the role played by the discussions about slavery and slave trafficking in the literate culture of Brazil in the 19th century, especially regarding the forms of figuring out the future of the nation. The way Canon Janurio da Cunha Barbosa, an important politician and an illustrated intellectual, related projections of the future of the nation and treated the slavery issue (from 1830 to 1836) is analyzed. We discuss the use of projection modalities: prophecy and prognosis. Through them, Janurio was involved in political discussions regarding the end of slave trafficking, and made political use of the Mal Revolt and Haitianism. The constitution of a horizon of antislavery expectation is indicated by the Canon, which is seen as one of the reasons to create the Brazilian Historic and Geographic Institute (1838).Keywords: intellectuals; slavery; temporality.
Entre prpheties et pronostics: Janurio da Cunha Barbosa, lesclavage et lavenir de la nation (18301836)RsumCet article cherche comprendre le rle du dbat sur lesclavage et le trafic desclaves dans la culture rudite du dix-neuvime sicle au Brsil, notamment les faons dimaginer la nation. On examine la manire comme le chanoine Janurio da Cunha Barbosa, un impor-tant homme politique et intelectuel, se rfraient les projections de lavenir de la nation devant la question de lesclavage entre 1830 et 1836. On discute lusage de deux faons de se projeter vers lavenir: la prophtie et le pronostic. Avec ces vues, Janurio sa impliqu dans chocs politiques sur la fin du trafic desclaves et a us la revolte des mals et lhaitianisme. On indique une expectative anti-esclavage par le chanoine, considre une des conditions pour la cration de lInstitute Historique et Geographique du Brsil (1838).Mots-cls: les intellectuels; esclavage; temporalit.
Artigo recebido em 04 de fevereiro de 2014 e aprovado para publicao em 29 de setembro de 2014.[1] Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal de So Joo del-Rei (UFSJ) So Joo del-Rei (MG) Brasil. E-mail: daniloferr[email protected]
1Este artigo resultado de pesquisa financiada pela Fundao de Amparo Pesquisa de Minas Gerais (FAPEMIG - Edital Universal 2008).
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E studos recentes tm questionado a existncia de um consenso escra-vista entre as elites brasileiras do incio do sculo XIX, indicando a vigncia de um debate pblico sobre a escravido e o trfico escravo, de forte impacto no universo poltico.2 Aqui procuro compreender como essa politizao da escravido se relacionou com o universo da cultura letrada brasileira oitocentista. Mais especificamente, cabe questionar se a escravido teria marcado a forma como os intelectuais imaginaramanao brasileira.3 Considero, em termos tericos, que a reflexo sobre a nao, no Brasil oitocentista, deva levar em conta a dimenso temporal das for-mas como foi imaginada, com diferentes modos de projeo de futuro em sua relao indissocivel e variada com avaliaes de experincias passa-das.4 Ainda que a maior parte dos trabalhos sobre a construo da nao no Brasil, quando se dedicam ao estudo da dimenso temporal, tenha se voltado s representaes do passado nacional, neste texto, busco inverter essa prioridade.5 Meu objetivo estudar as projees de futuro nacional e seus usos polticos, elaboradas pelo Cnego Janurio da Cunha Barbosa, no incio da dcada de 1830, atentando especialmente para a forma como a questo da escravido era equacionada nesse processo. Essa via nos auxilia tambm a avaliar a importncia do debate sobre a escravido na definio das condies de criao do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB), notoriamente a instituio de saber mais prestigiosa do sculo XIX brasileiro.
A questo tanto mais interessante na medida em que Janurio da Cunha Barbosa era uma figura verstil, de dupla face, tal qual o deus Jano, patrono da
2Antonio Penalves Rocha, Idias antiescravistas da ilustrao na sociedade brasileira escravista, Revista Brasileira de Histria, vol. 20, n. 39, So Paulo, 2000, p. 43-79. Joo Pedro Marques, Os sons do silncio: Portugal de oitocentos e a abolio do trfico de escravos, Lisboa, Instituto de Cincias Sociais, 1999. Mrcia Berbel; Rafael Marquese; Tmis Parron, Escravido e poltica. Brasil e Cuba, 17901850, So Paulo, HUCITEC; Fapesp, 2010. Tmis Parron, A poltica da escravido no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2011. Quando este artigo estava quase terminado, entrei em contato com o estudo de Alain El Youseff, Imprensa e escravido: poltica e trfico negreiro no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, 18221850, Dissertao de mestrado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010. 3Considerando a nao como uma comunidade poltica imaginada, ser dada nfase ao estudo das formas de criao de imagens de Brasil e mais especificamente de seu futuro. A centralidade da dimenso simblica presente nessa perspectiva enriquecida pelo aporte dos referenciais terico-metodolgicos de uma histria intelectual que no se restrinja a uma anlise dos condicionantes externos e societrios da ao dos intelectuais, mas que tambm busque dar conta de uma anlise de elementos internos aos textos que produziram. Sobre nao, ver Benedict Anderson, Nao e conscincia nacional, So Paulo, tica, 1989. Sobre histria intelectual, ver Franois Dosse, La Marche des ides: histoire des intelectuels, histoire intelectuelle, Paris, La decouverte, 2003. 4Mais especificamente, a questo da nao ser aqui considerada em relao ao complexo processo de afirmao de um regime moderno de historicidade, que legitima e orienta as aes coletivas pelo futuro, considerando-se, conforme Hartog, que: Ao longo de todo um sculo, que foi to marcadamente aquele das nacionalidades, a histria nacional e a escrita em nome do futuro estiveram efetivamente relacionadas. Franois Hartog, Regimes dhistoricit: presentisme et experience du temps, Paris, Seuil, 2003, p. 144. Sobre as relaes entre passado e futuro, ver Reinhard Koselleck, Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos, Rio de Janeiro, Contraponto, Editora da PUC-Rio, 2006, p. 305-327. 5Valdei Lopes de Arajo, A experincia do tempo: conceitos e narrativas na formao nacional brasileira, 18131845, So Paulo, HUCITEC, 2008; Rodrigo Turin, Tempos cruzados: escrita etnogrfica e tempo histrico no Brasil oitocentista, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
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famlia do santo (So Janurio, da Gens Januaria) que lhe inspirou o nome.6 At sua morte, em 1847, atuou como um intelectual que combinou em si os trs principais tipos de intelectuais vigentes no Brasil da poca: o clrigo, o burocrata ilustrado e o jornalista poltico liberal.7 Foi um homem que viveu e trouxe, em suas aes e reflexes, referenciais de dois mundos que se ante-punham: o do Antigo Regime e o dos valores liberais e iluministas, com seus correspondentes regimes temporais. Poderamos considerar que Janurio Barbosa debateu-se com as tenses do Sattelzeit luso-brasileiro, em sua luta por criar o novo, mas ainda lanando mo de referenciais culturais pretritos. Isso fica claro na tenso constante entre referncias a um modelo passado a ser aplicado no presente e o empenho em criar um futuro qualitativamente diferente. Tenses evidentes nas modalidades de projeo do futuro de que lanou mo, que aqui analisaremos: a profecia e o prognstico.8
A profecia viso do Pico do Itajuru e o uso poltico do levante escravo
Para compreendermos o uso que Janurio da Cunha Barbosa fez da profecia e sua relao com a questo da escravido, importante remontarmos ao incio de sua atividade poltica ao ano de 1821 , quando participou, junto com Gonalves Ledo, Clemente Pereira e outros, da criao do jornal Revrbero Constitucional Fluminense, que se destacaria como um dos grandes defensores do constitucio-nalismo liberal e, posteriormente, da causa da Independncia do Brasil. Ligados a comerciantes e produtores do recncavo da Guanabara, nesse contexto, esses liberais defendiam a explorao do trabalho escravo e do comrcio de escravos,
6Nascido no Rio de Janeiro, em 1780, de uma famlia de comerciantes do recncavo da Guanabara, ordenou-se clrigo, sendo, em 1808, admitido como um dos oradores da capela imperial. No ficou preso, contudo, a esse universo tradicional: foi, tambm, um dos nossos principais ilustrados, lder manico, professor de Filosofia moral (a partir de 1814), leitor e difusor de expoentes do pensamento iluminista e figura central no incentivo s primeiras academias letradas, sendo, de 1833 a 1847, scio ativo e redator do peridico da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional, censor do Conservatrio Dramtico e fundador do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB). Por fim, o Cnego Janurio foi um poltico de intensa atividade, atuando como entusiasta dos valores liberais e constitucionais. Mais do que se destacar em mandatos pblicos (somente participou de duas legislaturas como deputado geral, de 1826 a 1829 e de 1845 a 1846), se inseriu na luta poltica como jornalista, tendo sido redator de peridicos como Revrbero Constitucional Fluminense (1821 a 1822), Dirio Fluminense (de 1830 a 1831), Correio Oficial (de fins de 1833 at 1837, com interrupes em 1835), A Mutuca Picante (1834) e, cremos, O Fluminense (1835 a 1836). Para a trajetria de Janurio da Cunha Barbosa, ver Paula Porta Santos Fernandes, Elites dirigentes e projeto nacional: a formao de um corpo de funcionrios do estado no Brasil, Dissertao de mestrado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2000, p. 165-168; 310-313. 7Sobre o uso aberto do conceito de intelectual, sigo a sugesto de Franois Dosse, para quem a histria dos intelectuais no pode se limitar a uma definio a priori do que deveria ser o intelectual segundo uma definio normativa. Ela deve, ao contrrio, permanecer aberta pluralidade dessas figuras que destacam todas as declinaes diferentes da maneira de tocar sobre o teclado da expresso intelectual. Franois Dosse, La marche des ides: histoire des intelectuels, histoire intelectuelle, Paris, La decouverte, 2003, p. 32. Sobre o tipo do burocrata ilustrado, ver Paula Porta Santos Fernandes, op cit. Sobre o tipo intelectual do jornalista poltico, ver Marco Morel, As transformaes dos espaos pblicos: imprensa, atores polticos e sociabilidades na cidade imperial, 18201840, So Paulo, HUCITEC, 2005, p. 167-199. Sobre o tipo intelectual do clrigo, ver Maria Renata da Cruz Duran, Ecos do plpito: oratria sagrada no tempo de D. Joo VI, So Paulo, Editora da UNESP, 2010. 8Reinhard Koselleck, Futuro passado: contribuio semntica dos tempos histricos, Rio de Janeiro, Contraponto, Editora da PUC-Rio, 2006, p. 21-39.
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opondo-se recente presso britnica contra o trfico atlntico, estando, por-tanto, na contramo do antiescravismo de seu desafeto poltico Jos Bonifcio.9 Ao defenderem o caminho da Independncia, posio que somente se afirmou no desenrolar do ano de 1822, o grupo do Cnego Janurio viu-se na necessidade de anular algumas projees pessimistas que contra ela se lanavam.
Assim, o Revrbero rebatia os boatos lanados por uma ala de deputados portugueses s cortes de Lisboa, que mobilizaram a temtica da escravido. Insuflando o medo de um levante escravo no Brasil, os reinis tentavam impe-dir a alternativa de uma autonomia poltica da parte americana do Imprio. ORevrbero se ops a essa argumentao, respondendo aos portugueses:
seguramente bem estlida esta ameaa contnua de sublevao de escravos. Como no veem essas toupeiras que a sublevao de escravos em que tanto falam lhes [aos portugueses] h de ser mais fatal que a ns. [...] os pardos e os pretos no Brasil dividem-se em duas classes forros e cativos dos primeiros tm bastante que temer os autmatos fardados de Portugal; dos segundos nada receiam os brasileiros.10
Em outros termos, a ameaa de rebelio escrava no impediria o futuro do Brasil como nao independente e constitucional. Ainda que o artigo no fosse assinado, o Cnego Janurio alinhava-se com posies que negavam a incom-patibilidade entre o sistema representativo liberal e a escravido. Umfuturo de liberdade constitucional com escravido era o nico horizonte conceb-vel, sob a condio da predominncia da forma monrquica, que garantiria ordem e unidade.
No entanto, passados oito anos, a questo da escravido voltava tona, mas em um contexto bastante diferente. Em 30 de abril de 1830, o Cnego tornou-se redator do Dirio Fluminense (DF), o jornal oficial do governo de D.PedroI, a quem passou a defender das crescentes acusaes. Como jornalista oficial de um governo que havia, h pouco (1826), celebrado um tratado com a Inglaterra, comprometendo-se com a represso ao trfico, Janurio iniciava um processo de mudana de posio quanto escravido. Passava a manifestar um antiescra-vismo crescente que se tornaria uma marca de seu posicionamento particular. Ele lentamente rompia com o escravismo anterior, conforme atesta um dos nmeros do DF, em que encontramos uma crtica escravido:
Os nossos lavradores acostumados a tirar de uma terra frtil, e pelo trabalho de miserveis escravos, um produto de que se mostram contentes, no ousam arredar-lhes da velha rotina, em que os puse-ram os seus antepassados, muitos h que nem querem ouvir dizer que a fora dos braos africanos substituda por braos livres, e por mquinas aumentam os seus produtos, sem a perda de enormes fundos empregados na compra continuada de africanos.11
9Ceclia Helena Lorenzini de Salles Oliveira, A astcia liberal: relaes de mercado e projetos polticos no Rio de Janeiro, 18201824, Bragana Paulista, EdUSF; cone, 1999, p. 161. 10Ibidem, p. 227.11Dirio Fluminense, Rio de Janeiro, 19 de junho, 1830.
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Havia uma clara desqualificao da escravido, entendida como uma fora que impedia um futuro de progresso material. O argumento bsico mobilizado era o smithiano da menor produtividade do trabalho escravo em relao ao livre. Pelo vis da economia poltica, o Cnego ilustrado relacionava a escra-vido com a rotina: ela seria fruto de um passado negativo que teimava em persistir no presente, devendo ser suprimido. Iniciava, assim, um processo que somente tenderia a se aprofundar de desqualificao da escravido, considerando-a como instituio incompatvel com a nao futura.
Mas, nesse contexto especfico, a questo das instituies polticas assumia papel de destaque. Foi nessa conjuntura que o Cnego lanou mo da profe-cia. Em um momento politicamente delicado, quando D. Pedro I voltava de sua viagem a Minas Gerais para tentar consolidar a adeso de seus sditos diante da crescente oposio de liberais moderados e exaltados, em janeiro de 1831, foi publicado um texto que ficaria conhecido como sendo a Viso do Pico do Itajur.12 O texto tem sido comentado por historiadores como Gladys Ribeiro e Thomas Flory.13 Consegui identificar pelo menos quatro verses existentes, sendo a mais antiga (e provavelmente a original) aquela publicada no DF, jor-nal que tinha como redator, no momento da publicao, o prprio Cnego Janurio da Cunha Barbosa.14 Sendo difcil atestar a autoria do escrito, uma vez que no foi assinado, com segurana podemos destacar o uso dele feito pelo Cnego Janurio, que o publicou no jornal de que era redator, responsa-bilizando-se por sua ampla divulgao.
O texto tem vrios pontos em comum com a longa tradio lusitana desonhos profticos, que remete pelo menos ao sculo XVI, fruto da fuso de variantes do messianismo judaico difundidas por comunidades de cristos novos ou por meio do franciscanismo joaquimita. Tendo fincado fortes razes na cultura por-tuguesa, essa tradio proftica identificada como presente at pelo menos a dcada de 1820, tendo sido retomada no contexto da invaso napolenica
12Annimo, Viso achada entre os papis de um solitrio, morto nas imediaes de Macac, vtimas das febres de 1829, Dirio Fluminense, 24 de janeiro, 1831. 13Gladys Sabina Ribeiro, Metforas e aes na longa luta pela liberdade: conflitos entre portugueses e homens de cor, corte do Rio de Janeiro, 18271834, Tempo, vol. 5, n. 10, 2000, p. 97-117. Thomas Flory, Judge and jury in Imperial Brazil, 18081871. Social Control and Political Stability in the New State, Austin; London, University of Texas Press, 1981. 14As quatro verses encontradas seriam: 1) uma impressa em separata em Lisboa, no ano de 1831. Disponvel em: . Acesso em: 1 de janeiro de 2013; 2) uma manuscrita e intermeada de comentrios de um segundo autor desconhecido, atualmente sob a guarda da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, intitulada Apario extraordinria e inesperada do Velho Venerando ao Rosseiro [sic]: dilogo havido entre eles, sobre a atual situao poltica do Brasil, e aos acontecimentos extraordinrios desde o dia 5 de Abril em diante, e sobre a Viso do Pico de Itajur, achada entre os papis de hum solitrio morto nas imediaes de Macac, vitima das febres de 1829, e publicada nos Peridicos desta Corte em Janeiro deste ano, com reflexes feitas sobre ela pelo Velho, e conselhos em conseqncia dados a todas as Classes da Sociedade para o bem, e a felicidade do Brasil. Oferecido aos Concidados pelo Rosseiro, a pedido do Venerando Velho. Essa verso, em que se baseiam as anlises de Gladys Sabina Ribeiro, indicava que havia sido elaborada a partir de textos publicad[os] nos peridicos desta corte em janeiro deste ano; 3) uma reproduo do texto em O Verdadeiro Patriota, do dia 28 de janeiro de 1831, cujo microfilme no traz a ltima parte, onde normalmente eram feitas as referncias a transcries de outros peridicos; 4) por fim, foi encontrada a verso do Dirio Fluminense, de 24 de janeiro de 1831. Nele, no h notcia de que tenha sido reproduzido de outro jornal. Sendo o de data mais recuada, salvo novas descobertas, pode ser considerado a verso original do texto. Ainda que no tenha assinatura, foi publicado sob a responsabilidade de Janurio da Cunha Barbosa, que era ento o redator do Dirio Fluminense.
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da Pennsula Ibrica.15 Vale lembrar que a oratria sagrada (vide o exemplo do Padre Vieira) foi um dos veculos privilegiados para a difuso dessa tradi-o, e o papel desempenhado pelo Cnego Janurio, como um dos principais oradores sacros da corte joanina, seguramente auxilia a compreender a sua presena no Rio de Janeiro do incio do sculo XIX.
Mas, se existem continuidades, tambm existem pontos de originalidade, tal como a prpria figura do agente escolhido para profeta inspirado: o velho do Itajur algum que faz s vezes de naturalista. No melhor estilo do sbio ilus-trado, ele vai ao pico do Itajur buscar compreender as revolues da superfcie da Terra pelo estudo das montanhas. Por outro lado, um ponto em comum com a tradio proftica est em que a viso do futuro propiciada por meio do sonho: fatigado pelo forte calor e pelo esforo da caminhada, o velho naturalista ador-mece e acordado por uma voz que surge da montanha. Ainda que nunca seja explicitada a natureza da voz, ela assume o papel de iluminao divina, outro elemento central da tradio proftica. A repreenso que ela volta ao velho significativa da ruptura com os objetivos que orientavam a ilustrao luso-bra-sileira. Pois, para a voz da montanha, muito mais importante que compreender os segredos da natureza seria questionar-se sobre as revolues dos homens.
Diante da argumentao do velho de que seus contemporneos esto to empolgados com a poltica radical que nada os distanciaria do rumo que tomam, a voz da montanha apela para o futuro como agente pedaggico eficaz, sendo-lhe este revelado por Deus. Comea, ento, a descrio propriamente da viso. Toda ela se baseia na imagem inicial de um navio [que] se afastava da costa e por isso toda a multido saltava de alegria, gritando Repblica ou Morte a que respondia o eco da montanha: morte, morte. Esse ato inicial remetia sada de Dom Pedro I do Brasil. Dele, seguia-se uma srie de acontecimentos sangrentos em que, pelo ataque a proprietrios e autoridades, iniciava-se um processo de reverso da ordem social. Leis, hierarquia, propriedade, honra familiar, tudo sucumbia aos clamores da massa por igualdade. Passava-se, ento, para um novo movimento da profecia em que, reverso da ordem social, sucedia-se a dissoluo da unidade entre os prprios agentes da nova ordem. Estes se dividiram em diversos magotes, correspondendo a regies diferentes: os do Sul, os do Norte, os das Serras e os das Costas. Sob o princpio da Federao, cada qual buscava a separao dos demais. Ao fracionamento interno, seguia-se a invaso do territrio por estrangeiros, em que o Cnego
15Lus Felipe Silvrio Lima, O Imprio dos sonhos: narrativas profticas, sebastianismo & messianismo brigantino, So Paulo, Alameda, 2010.
O resultado final do cataclismo social da onda negra seria o desaparecimento de
todo um povo, a morte da nao
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abusava das metforas animalizantes:16 Leopardos, simbolizando provavel-mente os britnicos, Condores, as republicas andinas vizinhas, e Urubus, as republicas platinas. Resultado claro da reivindicao por Federao, a guerra civil grassava entre irmos, e o pas ficava submetido aos estrangeiros.
Mas o ponto culminante do processo corresponderia a uma nuvem negra que o velho via se formando ao Norte. Vale a pena recuperar as palavras textuais:
A nuvem era negra e semelhante a um enxame de formigas de correio que saem dos bosques para correr toda a terra. [...] E a nuvem crescia, dilatando-se como a torrente de um rio que trans-borda e, bem depressa, ela circulou todos os magotes e se introduziu nos fossos que os separavam. Ela crescia, crescia pouco a pouco, mas sem nunca cessar. E a multido se assustou: quis opor-se inundao negra que avultava de mais em mais e que, recuando algumas vezes, como a vaga sobre a praia voltava logo mais vio-lenta e coberta de escumas. Ora as escumas eram de sangue. /Doseio destas vagas negras ouviam-se estrondos semelhantes aos de cadeias que se quebram, erguendo-se ao mesmo tempo uma voz que dizia: a liberdade ou a morte. Esta voz retumbava mais que o estampido do trovo e o eco das montanhas, depois de a repe-tir por trs vezes, dizendo: A morte, a morte, a morte, calou-se.17
No parece difcil interpretar a nuvem de formigas negras como uma clara referncia a um levante de escravos. Na viso do autor, eles podiam parecer pacficos carneiros, mas, quando unidos, tornavam-se ameaadores a ponto de levar destruio de toda a sociedade. Pois disso que trata a viso, uma vez que se conclui apelando para a metfora do dilvio, indicando que a onda negra no deixava de subir e nenhum ponto do territrio era alto o suficiente para dela se resguardar, resultando no ltimo olhar: eu olhei e todo o povo havia desparecido. O resultado final do cataclismo social da onda negra seria o desaparecimento de todo um povo, a morte da nao.
Sem dvida, a viso do velho do Itajur mobilizava o medo senhorial de um grande levante escravo, que se apresentava como uma possibilidade real. Maso principal objetivo visado pelo autor, a questo central, parece ter sido mais o reforo da necessidade do monarca como elemento garantidor da ordem. Acentralidade desse objetivo poltico torna-se patente ao analisarmos a linha editorial seguida pelo Cnego Janurio no DF no contexto da publicao da viso. Elasurge no momento em que todas as foras eram mobilizadas pelo redator para consolidar a legitimidade bastante desgastada de D. Pedro I, sendo essa a linha predomi-nante no jornal, expressa em diversos artigos. Quanto escravido ou ao trfico, somente de forma muito secundria eles apareciam nas pginas do DF.18
16Sobre o seu uso e sentido, ver Marco Morel, As transformaes dos espaos pblicos: imprensa, atores polticos e sociabilidades na cidade imperial, 18201840, So Paulo, HUCITEC, 2005, p. 83-98. 17Annimo, Viso achada entre os papis de um solitrio, Dirio Fluminense, 24 de janeiro de 1831, p. 68. 18Do perodo em que o Cnego Janurio foi redator do Dirio Fluminense (abril de 1830 a abril de 1831), localizei poucos artigos que tratavam dessas questes: 19 de junho de 1830, 23 de setembro de 1830 e 13 de dezembro de 1830. O primeiro j foi analisado anteriormente; os dois ltimos buscavam lembrar que j estava em vigor a proibio do trfico. Revelavam um esforo, ainda que tmido, em defender a aplicao do tratado antitrfico pelo governo pedrino.
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Poucas vezes se apresentou de forma to clara a relao entre monarquia e escravido. A primeira era apresentada como necessria, em um contexto escravista, para garantir a propriedade, a ordem social, os valores constitucio-nais e a unidade nacional. Vale destacar a relao de causa e efeito subjacente narrativa da viso: a supresso do monarca, incio do texto, era apresen-tada como levando necessariamente reverso da ordem social e anulao da nao por meio de um enorme levante de escravos, ponto culminante do escrito. Todo o texto se estruturava em torno de argumentos polticos de defesa da figura do monarca contra os agentes sociais identificados menos pela sua composio racial do que pela defesa dos princpios polticos de Repblica, Igualdade e Federalismo, vistos como inadequados realidade escravista bra-sileira, levando aos flagelos sociais indicados. O problema maior estaria no radicalismo poltico, que desencadearia o conflito racial, sendo este conse-quncia involuntria, mas inescapvel, daquele. De certa forma, ao publicar o escrito, Janurio da Cunha Barbosa utilizava a mesma estratgia que recha-ara nos deputados portugueses s cortes: atiava o medo dos proprietrios e usava a presena da escravido como argumento para obstaculizar reivindica-es por maior liberdade poltica e igualdade social. Dessa forma, quanto ao sentido poltico de seu uso, a viso do velho do Itajur um caso de profecia com fins conservadores. Ela no visava incentivar mudanas, mas reforar a manuteno de um status quo poltico e social, rompendo com certa modali-dade de profecias marcadas por um carter utpico e que buscavam a criao de futuros diferentes.19 Da o investimento em traos apocalpticos, sem as perspectivas de renovao permitidas pela verso milenarista ou mesmo pela noo de palingenesia.20
Mas essa negatividade na representao do futuro, se no chega a ser anu-lada, era pelo menos atenuada por um eplogo esperanoso. Nas ltimas linhas do texto, logo aps o velho naturalista acordar do sono que lhe propiciara a viso, abriam-se lhe os Cus e aparecia-lhe uma Matrona fulgurante pelos raios da eterna glria, que lhe dizia:
Eu tenho posto ante o Trono de Deus e protejo os meus filhos, o Pai dos meus filhos e aquela que lhes faz as vezes de Me. Ento a paz se restituiu ao meu corao; eu disse comigo mesmo: o que tenho visto sobre a montanha do Itajur no o futuro, uma falsa viso que no deve causar susto aos que sabem quanto o Cu nos protege e quanto pode a prudncia contra as tentativas de alguns loucos que pouco alcanam com a vista em roda de si [grifo do autor].21
Mas, nas ltimas frases, ainda sustentava a pertinncia de divulgao da viso, que deveria ser escrita para ser lid[a] dos que podem meditar e aproveitar
19Lus Felipe Silvrio Lima, O Imprio dos sonhos: narrativas profticas, sebastianismo & messianismo brigantino, So Paulo, Alameda, 2010, p. 244-245. 20Jean Delumeau, Duas leituras diferentes das profecias apocalpticas, In: ______.; Histria do medo no Ocidente: 13001800 uma cidade sitiada, So Paulo, Companhia das Letras, 2009. 21Annimo, Viso achada, Dirio Fluminense, 24 de janeiro de 1831, p. 68.
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com tempo estas lies que ainda em fico horrorizam aos que sabem quais so as infalveis consequncias das amotinaes populares [grifo do autor].
Assim, a ltima viso tenderia a anular a primeira, apresentada como sendo uma falsa viso, ou um discurso sem status epistemolgico realista, um discurso ainda em fico: os termos indicam um esforo do autor para se distanciar do modelo proftico que, no entanto, to bem pusera em funciona-mento. Elaindicaria a relutncia de um peridico redigido por um ilustrado em dar crdito a essa modalidade arcaica de projeo do futuro que, no entanto, no deixava de mobilizar pela eficcia poltica que parecia ter junto ao pblico. Sobre esse ltimo ponto, vale lembrar que, ao invs de ser uma prtica de todo banida pela modernidade, o recurso profecia como mvel de ao poltica teve, no perodo posterior Revoluo Francesa, um momento de florescimento, como uma contrapartida angustiante da era das revolues. Isso ocorreu no somente no mundo lusitano posterior invaso napolenica, ou nos sertes brasileiros, mas um pouco por todo o Ocidente, sendo um importante fator de mobilizao das massas e chegando mesmo a assumir um espao importante na cultura erudita, por meio do romantismo e em alguns movimentos sociais organizados, como o abolicionismo britnico.22
Contudo, a viso do velho do Itajur no conseguiu impedir a destituio de D. Pedro I do trono. Janurio da Cunha Barbosa parece no ter feito uso nova-mente da profecia, o que no significa que tenha deixado de empenhar-se na projeo do futuro. Mas o contexto poltico assim como o seu posicionamento mudaram. Com o 7 de abril, ele deixou a redao do DF e, aps um breve hiato, retornou, em fins de 1833, s lides do jornalismo poltico como redator do jor-nal governista Dirio Oficial, mas, ento, alinhado aos liberais moderados que antes combatera. Naquele momento, a questo da escravido passou ao centro de suas preocupaes, redefinindo seu horizonte de expectativas.
Entre mals e haitianos: o prognstico de um levante escravo atlntico
A partir de finais de 1833, como redator do Dirio Oficial, o Cnego Janurio se envolveu na luta poltica, combatendo os anarquistas exaltados e os mons-tros da retrogradao23 caramurus. Foi, portanto, como agente alinhado aos liberais moderados no poder que Janurio Barbosa trouxe a questo da escra-vido para o primeiro plano de sua preocupao. No se trata, porm, de um movimento individual, restrito ao Cnego. Naquele incio da dcada de 1830, observava-se uma intensa politizao da escravido e do trfico, que teve na imprensa da Corte uma de suas arenas privilegiadas.24 Janurio Barbosa
22Sobre profecia e romantismo, ver Ian Balfour, The rethoric of romantic prophecy, Stanford, Stanford University Press, 2002, p. 48. Paul Benichou, Le temps des prophtes, In: ______., Romantismes franais I, Paris, Gallimard Quarto, 2004. Sobre profecia romntica e abolicionismo britnico, ver Helen Thomas, Romanticism and slave narratives: transatlantic testimonies, Cambridge, Cambridge University Press, 2004.23A Mutuca Picante, 30 de janeiro de 1835.24Tmis Parron, A poltica da escravido no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2011, p. 84-103.
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fazia parte de um grupo de liberais moderados que esboou um discurso e algumas medidas de carter antiescravista, concentrando-se em defender o fim do trfico de escravos. No questionavam, porm, a propriedade escrava existente (da qual usufruam), rechaando medidas abolicionistas de car-ter imediato. Tendo a Sociedade Defensora da Liberdade e Independncia Nacional (SDLIN) do Rio de Janeiro como principal espao de sociabili-dade, capitaneados pelo deputado Evaristo da Veiga, polticos e jornalistas alertavam contra a retomada crescente do comrcio negreiro a partir de 1833.25 OCnego Janurio, em uma das reunies da Sociedade Auxiliadora da Indstria Nacional (SAIN), propunha que a comisso redi[gisse], com urgncia, um projeto de representao ao Governo,26 solicitando medidas mais duras contra o trfico, reforando a tendncia do movimento de pres-sionar as autoridades para fazer cumprir a lei antitrfico de 1831. Ao invs de ter sido pensada como mero subterfgio formal para atenuar a presso bri-tnica, interpretaes recentes indicam que a lei correspondeu ao empenho antiescravista de setores da elite poltica brasileira, tendo papel importante em fragilizar a propriedade escrava no longo prazo.27
Esse empenho antiescravista no deixou de despertar forte oposio pol-tica por alguns setores francamente pr-escravistas e vinculados ao trfico que renascia ao embalo da forte demanda da produo cafeeira em expanso no Vale do Paraba. Esses setores eram capitaneados pelo ento deputado liberal moderado Bernardo Pereira de Vasconcelos. Essa mobilizao pr-escravista foi um dos pivs da ciso entre os liberais moderados, que se transformaria no regresso conservador e incio de uma poltica sistemtica de defesa da escravido.28 A partir de setembro de 1834, Vasconcelos iniciou uma srie de ataques, na Cmara e pelo jornal O Sete de Abril, a Aureliano Coutinho, ento um superministro liberal moderado, tambm scio da SAIN, que acumulava as duas pastas mais envolvidas na represso ao trfico: a da justia e a dos estrangeiros. Alm de ser desafeto de Vasconcelos, Aureliano esforava-se por fazer cumprir a lei de 1831, pressionando autoridades locais para averiguar boatos de desembarque clandestino de africanos e para julgar e condenar contrabandistas, todas medidas divulgadas, exausto, pelo prprio Cnego Janurio, no jornal Correio Oficial. Em setembro de 1834, Aureliano propunha Cmara recursos para reenviar frica os negros apreendidos na repres-so ao trfico e ainda a aceitao da proposta britnica de um acordo que
25Sobre a diminuio e retomada do trfico, ver Robert Edgard Conrad, Tumbeiros: o trfico de escravos para o Brasil, So Paulo, Brasiliense, 1985. Sobre a oposio ao trfico, ver Marcello Otvio Neri de Campos Basile Rodrigues, O Imprio em construo: projetos de Brasil e a ao poltica na corte regencial, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p. 102-106. Alain El Youseff, Imprensa e escravido: poltica e trfico negreiro no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, 18221850, Dissertao de mestrado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010, p. 116-127. Robert Edgard Conrad, op cit.26Aurora Fluminense, 10 de maro de 1834.27Beatriz Mamigonian; Keila Grinberg, Dossi Para ingls ver? Revisitando a lei de 1831 (dossi), Estudos Afro-asiticos, ano 29, n. 1-2-3, 2007. 28Tmis Parron, A poltica da escravido no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2011, p. 130-134.
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aumentasse (pela aceitao da clusula de equipamento) o poder das comis-ses mistas anglo-brasileiras para uma mais eficaz represso ao comrcio negreiro, ento sabotada pelas autoridades e por magistrados locais.29 As pro-postas despertaram a forte oposio do deputado Vasconcelos. Clamando, na Cmara, contra o atentado soberania nacional, que, em sua opinio, repre-sentava um acordo que submetesse cidados brasileiros a juzes britnicos, e contra o mau uso de vultosos recursos pblicos para reenviar os africanos, Vasconcelos defendia o status quo escravista e buscava anular as iniciati-vas contrrias ao trfico levadas adiante por Aureliano.30 Argumentando em defesa da soberania brasileira, mobilizava uma verso prpria do discurso da razo nacional, invertendo-lhe o sentido antiescravista identificado por Jos Murilo de Carvalho.31
Vasconcelos ainda organizou um ataque pela imprensa, mobilizando toda a sua verve e ironia custica nO Sete de Abril. O ataque no era somente ao ministro; resvalava sobre os moderados em geral e atingia diretamente o grupo de polticos mais prximo a Aureliano Coutinho (chamados de marrecos), formado pelo ento mordomo do pao imperial, Paulo Barbosa da Silva, pelo tutor do Imperador, Manuel Incio de Andrade (Marqus de Itanham), pelo diretor da alfndega e irmo de Aureliano, Saturnino de Sousa e Oliveira, todos componentes do que ficou conhecido, a partir dos anos 1840, como faco ulica.32 Chamada, pelo jornalismo ligado a Vasconcelos, de sacra camari-lha, a definio do grupo surgia de forma indissocivel da questo do trfico de escravos, sendo tambm acusado de formar um partido secreto que con-trolava o poder dos bastidores em proveito seu, de seus apaniguados e dos diplomatas ingleses.
Vasconcelos tambm no poupou os jornalistas liberais moderados mais empenhados em defender o ministro Aureliano: Evaristo da Veiga, da Aurora Fluminense, e, principalmente, o Cnego Janurio da Cunha
29Dentre outros, Ministrio da justia, Correio Oficial, 18 de agosto de 1834. Ministrio dos estrangeiros, Correio Oficial, 25 de setembro de 1834. Cmara dos senhores deputados. Sesso de 24 de setembro, Correio Oficial, 27 de setembro de 1834. 30O Sete de Abril, 30 de setembro de 1834.31Jos Murilo de Carvalho, Escravido e razo nacional, In: ______., Pontos e bordados: escritos de histria e poltica, Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1998. 32A pouca ateno da historiografia acadmica brasileira com a faco ulica comea a ser superada pelos estudos de Julio Bentivoglio. Aqui, procuro indicar a poltica da antiescravido como um dos possveis elementos constituintes do programa do grupo e que merece maiores estudos. Ver Julio Bentivoglio, Palacianos e aulicismo no Segundo Reinado: a faco ulica de Aureliano Coutinho e os bastidores da corte de D. Pedro II, Esboos, vol. 17, n. 23, 2010, p. 187-222.
Naquele incio da dcada de 1830, observava-se uma intensa politizao da
escravido e do trfico, que teve na imprensa da Corte uma de suas arenas privilegiadas
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Barbosa. O ltimo, acusado de venalidade e camaleonismo poltico, recebeu, dOSete de Abril, uma avalanche de apelidos injuriosos, tais como Cnego sem vergonha, Frei mutuca, Padre das molhaduras, o exorcista, Padre mosca varejeira, moralista, Frei risota. Mas a ao de Vasconcelos no se restringia a uma campanha contra os ulicos e Aureliano, que, por fim, seria triunfante, com a queda desse ministro em janeiro de 1835. Houve um claro empenho em criar uma frente de defesa poltica dos interesses do trfico e na legitimao simblica da escravido, como indicam Tamis Paron e Alain El Youssef.33
Configuravam-se, dessa forma, em finais de 1834, grupos polticos divergen-tes, a partir da dissoluo da frente liberal moderada, sendo o tema do trfico de escravos um dos pontos de clivagem. Como forma de fazer frente inicia-tiva capitaneada por Vasconcelos, foi criado, em setembro de 1834, A Mutuca Picante, jornal sob redao do Cnego Janurio, que adotava o tom custico e agressivo do adversrio para defender o governo. Por suas pginas e pelo Correio Oficial, Janurio defendia o ministro Aureliano e acusava Vasconcelos de ser traidor dos moderados e de ser negreiro.34
Para anular seus adversrios, Janurio lanaria mo de uma estratgia pol-tica que j experimentara anteriormente: a mobilizao do medo do levante escravo.35 Mas, diferentemente do caso da viso do Pico do Itajur, dessa vez, a escravido e o trfico de escravos apareciam como questes centrais do embate, que ia muito alm da defesa de uma autoridade pblica. Tratava-se, antes de tudo, de fazer valer a lei antitrfico de 1831.
Nesse sentido, em novembro de 1834, nas pginas do Correio Oficial, Janurio publicava noticias aterradoras que chegavam de Granada, Trinidad, Monserrate, Saint Kitts e Dominica, no Caribe britnico. Alm de epidemias, pela mala da Trindade sabemos que as cidades nestas paragens pareciam praas fortes em estado de sitio. Os negros, no 1 de agosto, juntaram-se aos centos, e recusaram trabalhar na maior parte das fazendas. Muitos foram presos e encarcerados, e dizia-se que a ilha seria imediatamente posta sob o imprio da lei marcial. Mesmo com essas medidas, a ameaa escrava fazia-se presente, pois, Na Dominica temia-se que os negros lanassem fogo s casas dos brancos enquanto dormiam.36 Cruzando o espao Atlntico, a notcia evidenciava angstias senhoriais comuns e os impasses efetivos do processo de abolio da escravido nas colnias britnicas que, nesse mesmo dia 1de agosto, libertava os escravos, tornando-os, no entanto, aprendizes
33Tmis Parron, A poltica da escravido no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2011, p. 130-156. Alain El Youseff. Imprensa e escravido: poltica e trfico negreiro no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, 18221850, Dissertao de mestrado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010, p. 116-127.34Correio Oficial, 06 de outubro de 1834. Correio Oficial, 10 de outubro de 1834. Mutuca Picante, 26 de outubro de 1834. 35Sobre a importncia e limites do estudo das estratgias em uma histria dos escritos, ver Dinah Ribard; Nicolas Schapira (dirs.), On ne peut pas tout rduire des stratgies: pratiques dcritures et trajectoires sociales, Paris, PUF, 2013. 36Correio Oficial, 21 de novembro de 1834.
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sob controle senhorial at 1838.37 Contudo, o Cnego Janurio nenhuma meno fazia abolio. Nas reflexes que seguiam, buscava tirar outras lies da experincia apresentada:
Este quadro triste merece as vistas dos nossos cegos plantadores, que a ttulo de no perderem as suas lavouras infringem escan-dalosamente uma das mais salutares leis, que no Brasil se tem promulgado, e preparam em prximo futuro ou a si ou a seus filhos os mesmos horrores que j esto sofrendo aqueles insula-res. Desenganem-se de vez os nossos patrcios, que cada africano que metem em suas fazendas um novo barril de plvora, que tem de fazer terrvel exploso; o interesse presente no os deve fazer cegos a respeito de gravssimos males futuros. Umescravo foi sempre inimigo de seu Senhor; e quando souber que este a des-peito da Lei o priva da sua liberdade, far desesperados esforos para vingar-se, e colher o beneficio da lei que to injustamente se lhe nega [grifos do autor].38
Com os olhos no contexto escravista internacional, Janurio redefinia, em seu discurso, a relao entre escravido e o futuro, destacando os efeitos cata-trficos da primeira sobre o segundo. A experincia do Caribe britnico era mobilizada para sustentar o prognstico de que o contrabando de escravos criaria um futuro prximo de violncia e destruio, semelhante quele profe-tizado pelo velho do Itajur que, no entanto, no era mencionado. Aomesmo tempo, rechaava a alternativa de uma abolio imediata que, diferente-mente da via gradual implcita na lei de 1831, levaria turbulncia e ao caos social. Paulatinamente, o Cnego Janurio redefinia seus parmetros tem-porais e rompia com a postura condescendente, que defendera no contexto da Independncia, quando via como compatveis, no futuro, a escravido e a constituio de uma nao livre. Cada vez mais, escravido e futuro da nao tornavam-se termos excludentes. E a preparao desse futuro era algo que no poderia mais ser postergado; deveria comear em seu presente, com a efetiva supresso do trfico.
Assim, a questo da escravido no somente passava a assumir um lugar central nas preocupaes de Janurio Barbosa, mas tambm a estratgia de sua escrita antiescravista mudava de teor. No se tratava mais de destacar, como fizera em 1830, o aspecto econmico da pouca produtividade do traba-lho escravo. O importante, para o Cnego, era destacar o carter ameaador do escravo, apresentado como barril de plvora lanado mina, topos maior da retrica do medo mobilizado pelos setores antiescravistas brasileiros. Aestratgia de escrita dos adversrios brasileiros do trfico, a partir de mea-dos dos anos 1830, parece ter sido marcada pela intensificao da imagem, j existente, de um escravo brbaro, nos limites da animalidade, inimigo de seu senhor e ameaa maior segurana fsica (no somente moral e econmica,
37Seymour Drescher, The mighty experiment: free labor versus slavery in British emancipation, Oxford, Oxford University Press, 2002.38Correio Oficial, 21 de novembro de 1834.
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como antes se afirmava) da sociedade em conjunto.39 O Cnego o explicitava ao considerar serem os africanos inimigos figadais, de cuja barbaridade ficam dependentes as suas [dos proprietrios compradores] vidas, as de suas mulheres e filhos; inimigos que, at por seu nmero, podem alguma vez faz-los arrepender de sua imprudncia; e oxal que alguns fatos no viessem em apoio dessa hiptese!40
Dessa forma, os antiescravistas brasileiros iam na contramo do dis-curso de abolicionistas norte-americanos e europeus que, mesmo apelando, por vezes, a tons apocalpticos, tendiam a privilegiar a empatia entre seus interlocutores e os escravos, empenhado-se em ressaltar a humanidade e sensibilidade do africano.41 J os antiescravistas brasileiros, naquele momento, tendiam a uma estratgia de escrita que invertia a ordem de prio-ridades. Mesmo que, por vezes, apelassem para o sofrimento do escravo, predominava a difuso de uma imagem do negro marcada pelo crivo da negatividade e da ameaa, em uma estranha verso de negrofobia com finalidades antiescravistas.
Esse processo de progressiva centralidade da imagem do escravo como ameaa segurana de senhores teve como condio importante a pr-pria ao escrava, por meio da revolta dos mals, em Salvador, evento de grande impacto no debate em curso.42 Ocorrido no final de janeiro de 1835, quando escravos muulmanos tomaram de assalto a segunda maior cidade do Imprio, ele conferiu uma dramtica concretude s expectativas catastrficas que recomeavam a ser mobilizadas pelo Cnego. Comoj indicou a historiografia, a revolta dos mals espalhou o terror entre os pro-prietrios, temerosos de que se alastrasse pelas demais provncias e pela Corte, implicando forte controle e violenta represso sobre os escravos e
39Mudana semelhante pode ser observada no discurso do outro expoente do antiescravismo liberal moderado: Evaristo da Veiga. Considere-se seu artigo publicado na Aurora Fluminense, de 14 de maio de 1834, em que a ameaa social aparecia discretamente como ltimo argumento mobilizado em um texto que se concentrava nos males econmicos e morais da escravido. Compare-se a linha argumentativa desse artigo aos textos posteriores revolta dos mals, em que o topos do barril lanado mina tornou-se o argumento central de seus discursos antiescravistas. Sobre a negatividade crescente na representao do negro na dcada de 1830, ver Jaime Rodrigues, O infame comrcio. Propostas e experincias no final do trfico de africanos para o Brasil (18001850), Campinas, Editora da UNICAMP; CECULT, 2000, cap. 1. Ela seria mantida at os anos 1880 pelos abolicionistas brasileiros que, diferentemente de seus congneres norte-americanos, baseavam-se em uma representao fortemente negativa do escravo como inimigo do senhor e da sociedade, conforme estudo de Clia Maria Marinho de Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma histria comparada sculo XIX, So Paulo, Annablume, 2006, p. 99-146. 40O Fluminense, 16 de dezembro de 1835. 41David Brion Davis afirma que a difuso de uma opinio antiescravista, a partir do final do sculo XVIII, s pde ocorrer por uma mudana na imagem do negro, que resgatou sua plena humanidade, ao identific-lo como um homem de virtude natural e sensibilidade. Ver David Brion Davis, O problema da escravido na cultura ocidental, traduo de Wanda Caldeira Brant, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2001, p. 522-531. Sobre o uso do apocalipse no discurso antiescravista britnico, ver Helen Thomas, Romanticism and slave narratives: transatlantic testimonies, Cambridge, Cambridge University Press, 2004, p. 76. Sobre a empatia com o escravo como estratgia discursiva antiescravista dos romnticos britnicos, ver Debbie Lee, Slavery and the romantic imagination, Philadelphia, University of Pensilvania Press, 2002, p. 33. 42Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835, So Paulo, Companhia das Letras, 2003.
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negros libertos por todo o imprio.43 O prprio Cnego Janurio clamava por medidas repressivas contra os nags do Rio de Janeiro, indicando que seu antiescravismo no prescindia do violento controle sobre escravos e libertos.44 Mas a historiografia pouco explorou o contexto poltico em que a revolta surgiu, marcado pela ciso dos moderados e o acirrado embate entre os partidrios de Vasconcelos e Aureliano, negligenciando o impacto que o levante teve nesse embate imediato e no conjunto da dinmica cul-tural do Imprio, o que procuramos aqui priorizar.45
Dificilmente, por suas dimenses, a rebelio dos mals deixaria de impressionar os contemporneos, mas, seguramente, o ambiente pol-tico acirrado existente na Corte potencializou ainda mais a repercusso do evento. Ocorridono momento de ascenso da estratgia pr-escravista de Vasconcelos, forneceu combustvel para seus adversrios, que buscaram incentivar e direcionar, contra o deputado escravista, a onda de pnico que tomou conta da Corte. Evaristo da Veiga, por meio de artigos inflamados na Aurora Fluminense, tomou a frente na mobilizao do medo e conseguiu impor um temporrio recuo a seu adversrio que, por cerca de cinco meses, no mais realizou investidas pr-escravistas.46
Vasconcelos somente tornou ao tema no final de julho de 1835, quando pediu a anulao da lei de 1831, e, depois, em outubro. Naquele momento, ficou claro que Feij, recm-empossado regente, abandonara a defesa que
43Joo Jos Reis, Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals em 1835, So Paulo, Companhia das Letras, 2003. Flvio Gomes, Histria de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX, So Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 213-247. 44Nesta cidade h ruas, aonde os Nags ocupam as casas de quadras inteiras, e em cada casa moram 10, 12 e mais; eles continuamente ajuntam-se e fazem reunies, a ttulo de festas, batizados, etc. e ningum os pesquisa, os vigia. O Fluminense, 03 de novembro de 1835. 45Exceo deve ser feita dissertao de Alain El Youssef, a que tive acesso quando j havia terminado este artigo e com a qual convirjo em vrios pontos. Ela constitui, de longe, o principal trabalho sobre o debate poltico sobre a escravido na imprensa brasileira oitocentista. Joo Jos Reis estudou a repercusso da revolta em jornais da Corte, mas sua anlise pouco considerou o contexto de luta poltico-partidria vigente e restringiu-se, basicamente, ao Jornal do Commercio e ao Po de Acar. Joo Jos Reis, op cit., p. 509-518. 46A ao mais contundente de Vasconcelos na imprensa foi a publicao, nO Sete de Abril, no dia 10 de fevereiro de 1835, do artigo que Feij publicara anteriormente no Farol Paulistano, de 24 de dezembro de 1834, favorvel supresso da lei antitrfico de 1831. Ele no contava, porm, com a chegada, na Corte, nesse mesmo dia, da notcia da revolta dos mals. A partir da, seu adversrio Evaristo da Veiga tomaria a iniciativa no embate das penas, publicando diversos artigos que relacionavam a continuidade do trfico com a revolta de escravos, incentivando, publicamente, a onda de pnico que tomou conta da Corte e barrando, por quase meio ano, a ofensiva pr-trfico que Vasconcelos vinha promovendo desde outubro de 1834. Somente em 1 de agosto de 1835, O Sete de Abril publicaria artigo favorvel ao trfico. Sobre a contraofensiva de Evaristo, ver, dentre outros, Aurora Fluminense, 15 de fevereiro, 22 de fevereiro, 20 de maro e 27 de maro, todos de 1835.
Essa mobilizao pr-escravista foi um dos pivs da ciso entre os liberais moderados, que se
transformaria no regresso conservador e incio de uma poltica sistemtica de defesa da escravido
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fizera anteriormente (dezembro de 1834) da anulao da lei antitrfico de 1831 e passara a sugerir Cmara leis mais severas contra o comrcio negreiro e a favor da imigrao europeia. Iniciava-se, ento, nova arrancada pr-escravista de Vasconcelos que, alm de atacar diretamente Evaristo da Veiga e o governo Feij, argumentava no sentido de mostrar a escravido como compatvel com a religio e a moral, mobilizando autores antigos, cristos e modernos.47
Como reao a essa rearticulao pr-escravista, os setores prximos ao governo desencadearam nova onda de ataques a Vasconcelos e aos defensores do trfico, mobilizando, mais uma vez, a estratgia do medo. Nesse sentido, o poltico paraense Joo Cndido de Deus e Silva, sucessor do Cnego na reda-o do Correio Oficial (Janurio sara no final do ano de 1834), no deixou de identificar, na revolta dos mals, a nuvem negra que to melancolicamente fora pintada pelo velho do Itajur nas vises, que precederam a sua morte; ela pode despejar milhares de flagelos sobre aqueles mesmos que hoje sua sombra dormem sem lembrana de tantos perigos.48
Outro terror antigo resgatado foi o do levante de escravos haitianos, mobi-lizado como experincia negativa a ser exorcizada.49 Nesse terreno, ningum superou o prprio Cnego Janurio da Cunha Barbosa, provvel redator de OFluminense, jornal criado em outubro de 1835 expressamente para defender o governo Feij e que serviu de difuso para o caso de mais agudo uso poltico do haitianismo, tendo Vasconcelos como alvo primordial.50 O Fluminense bus-cava identific-lo como cabea de um movimento mais amplo, apelando para teorias conspiratrias. E, para tanto, usava o expediente de diminuir a respon-sabilidade do jornal sobre a informao que divulgava, fazendo-a passar por boato do qual seria mero transmissor, mas que no deixava de reforar e pro-pagar com claros fins polticos. Assim, escrevia:
47A escravatura, O Sete de Abril, 31 de outubro de 1835. 48Correio Oficial, 13 de novembro de 1835. 49Sobre os usos do haitianismo, ver David Geggus (ed.), The impact of the Haitian Revolution in the Atlantic World, Columbia, University of South Carolina Press, 2001; Flvio Gomes, Experincias transatlnticas e significados locais: idias, temores e narrativas em torno do Haiti no Brasil escravista, Tempo, vol. 7, n. 13, p. 146-209, 2002. Alain El Youseff, Imprensa e escravido: poltica e trfico negreiro no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, 18221850. Dissertao de mestrado, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2010, p. 128-140. 50No h referncia alguma identidade do redator de O Fluminense nem nos estudos sobre histria da imprensa no Brasil que sequer mencionem o jornal (Alaim El Youssef trata dele, mas o considera annimo), nem nas biografias do Cnego Janurio. Para atribuir a ele a redao do peridico, me baseio nas grandes afinidades de postura identificadas ao longo deste artigo, mas, principalmente, nas diversas notcias publicadas no jornal O Sete de Abril. Assim, O Sete de Abril de 16 de dezembro de 1835 comentava que o Fluminense nos fica, verdade; porm, esse um bobo que quase ningum l, principalmente depois que se divulgou ser o seu redator o Revm. Cnego Janurio, talento pobre e hoje envelhecido; nO Sete de Abril de 16 de janeiro de 1836: O Janurio, que se vende por sabicho a 80rs, depois de nos dizer no seu Fluminense N 19 que ...; nO Sete de Abril de 08 de junho de 1836: o dignssimo Sr. Cnego Janurio da Cunha Barbosa, ex-redator ou alugado colaborador de Mutuca Picante, Fluminense e outros peridicos do governo.... Essas afirmaes, que atribuam a redao dO Fluminense ao Cnego Janurio, nunca foram desmentidas pelas pginas desse peridico. Sua redao pelo Cnego mais certa que a influncia de Vasconcelos sobre o jornal O Sete de Abril, cuja nica prova existente a atestao pelos adversrios, no entanto, sempre recusada pelos redatores dO Sete, o que no impede a historiografia contempornea de tomar essa influncia como certa.
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sabe-se, segundo a voz pblica (e os fatos parecem confirmar o que se diz) que uma grande associao se formar para a intro-duo clandestina de escravos, a qual [...] tem procuradores to ativos que no s triunfam do zelo dos apresadores, como tam-bm fazem publicar pelos seus peridicos doutrinas contrrias extino da Lei do trfico [sic],51 e o que mais , tem depositado (valha a verdade)12:000$000 rs. para quem mais concorrer para a abolio dessa lei [...]. Pregar a necessidade da escravatura no Brasil? chamar utopias as providncias que se tomam para que ela se v extinguindo em virtude da Lei que probe a sua intro-duo no pertencer a essa sociedade negrfila, de que todos falam, ou pelo menos fomentar o seu interesse baseado na infra-o da Lei?52
Se Vasconcelos mobilizava o fantasma conspiratrio da sacra camarilha para atacar ulicos e o governo moderado, O Fluminense, por sua vez, respon-dia equiparando os defensores do trfico a uma sociedade negrfila, com toda a carga de desqualificao e terror que o termo trazia no imediato ps-mals. Mas, nos nmeros seguintes dO Fluminense, o redator procuraria hiperdi-mensionar as aes da dita sociedade, sugerindo que no eram restritas ao territrio nacional. Novamente, o peridico apelava para o boato:
No falta quem diga que uma sociedade poderosa se criara em pas estrangeiro, com o fim de desinquietar os escravos africanos hoje derramados por toda a superfcie da Amrica, e que diver-sos emissrios trabalham incansveis nessa tarefa, querendo a custo de nossos incmodos apressar um beneficio que deve ser lento, e com muita prudncia preparado. No sabemos que grau de crdito merea um tal boato, mas talvez que vrios movimen-tos dessa gente em alguns pontos do Brasil nos faam ter como certa essa notcia. Apesar de que uma empresa desta natureza se disfarce com as aparncias da filantropia, com tudo ela se torna horrorosa pelos perigos a que expe a raa no africana, que ter de lutar com muitos males, e sofrer bem srios detrimentos. Masseja ou no verdade o que se diz, parece que tambm a sr-dida cobia, por caminhos diversos, conspira a envolver-nos a este respeito em muitas desgraas, porque a introduo de afri-canos continua mais ativa do que antes de ser proibida por uma lei que honra a sabedoria de quem a propusera.53
Janurio avanava em sua estratgia do medo e difundia um diagnstico marcado pelo sinal da tragdia iminente sobre o presente: o Brasil estaria sob a ameaa de um compl internacional para o levante dos escravos. Seguindo essa lgica, dias depois, O Fluminense ainda reproduziu uma notcia do Times, mostrando que alguns estados do sul dos Estados Unidos estavam alvoroados com a distribuio de papis cheios de doutrinas venenosas e inflamatrias
51Aqui se trata, claramente, de um erro de redao em que o texto coerente com o restante da nota deveria ser doutrinas contrrias extino do trfico, sem a palavra Lei.52O Fluminense, 14 de novembro de 1835. 53Idem, 09 de dezembro de 1835.
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por membros de sociedades abolicionistas dos estados do Norte. Indicava que cidados sulistas invadiram o correio e queimaram os papis. O alvoroo che-gou a tal ponto que conduziu a alguns atos manifestos de violncia. Apesar de a situao ter-se acalmado, no Estado do Mississipi tem as coisas chegado a um ponto mais srio. Tinha-se descoberto atualmente uma conspirao para a emancipao dos negros.54 O redator trazia ao Brasil notcias dos levantes antiabolicionistas de 1835 do sul dos Estados Unidos, resposta crescente radicalizao do abolicionismo do Norte, que assumia, ento, carter imedia-tista. Especialmente selecionada e inserida em um contexto argumentativo que vinha sendo progressivamente construdo, a notcia do exterior reforava a ideia de que a mobilizao pela liberdade dos negros no estava restrita Bahia e nem aos prprios negros, mas tinha uma dimenso continental e rami-ficaes entre agentes diferentes (como alguns abolicionistas provavelmente brancos), o que amplificava exponencialmente a sua periculosidade, como se o Atlntico todo fosse um barril prestes a explodir.
A importncia de ambas as notcias est no fato de que apresentavam s claras no espao pblico, e como estratgia retrica com fins polticos o mesmo temor de uma articulao abolicionista atlntica que a historiografia atual identificou como presente em comunicaes internas e sigilosas, restritas a setores especficos do governo. Tamis Parron mostrou como, desde 1833, o agente diplomtico brasileiro em Londres, Eustquio A. de Melo Matos, enviava relatrios alertando o governo de possveis maquinaes motivadas pelos abolicionistas ingleses e os proprietrios de plantations do Caribe britnico.55 Diretamente ligado s notcias publicadas nO Fluminense, h o caso, recupe-rado por Flvio Gomes, da mensagem reservada enviada em 02 de setembro de 1835 ao Ministro da Justia tambm pelo agente diplomtico brasileiro em Londres. Ela relatava o caso do envio de vrios abolicionistas do norte para cidades do sul dos Estados Unidos, que, visando promover a liberdade dos escravos, iam excitando a levantes, considerando parecer bastante provvel que iguais comissrios sejam daqui mandados para o Imprio.56 O caso rela-tado pelo agente diplomtico era o mesmo que Janurio publicava no dia 16 de dezembro, visando enfraquecer seu adversrio poltico e sua poltica pr-trfico.
54O Fluminense, 16 de dezembro de 1835. 55Tmis Parron, A poltica da escravido no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2011, p. 127-128. 56Flvio Gomes, Histria de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX, So Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 218.
Janurio avanava em sua estratgia do medo e difundia um diagnstico marcado pelo
sinal da tragdia iminente sobre o presente
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Como arremate desse processo de uso poltico do haitianismo, deixando de lado os boatos e qualquer prurido de preocupao com uma informao mais confivel, o Cnego aprimorou seus dotes imaginrios e partiu para a inven-o. Publicou duas cartas supostamente interceptadas, escritas por um sujeito que tinha todas as caractersticas de ser Vasconcelos e remetidas a ningum menos que Boyer, ento presidente do Haiti. Na primeira, e mais longa, lia-se:
Ao meu amigo e futuro aliado, o Presidente Boyer. Rio de Janeiro .....
[...] A disposio dos nossos hoje excelente, se bem que as tentativas frustradas da Bahia devessem contribuir para desa-nim-los. Todo o meu cuidado trabalhar para que no percam a esperana. [...] graas minha sagacidade tenho arranjado as coisas de modo que alguns fazendeiros abonam com o favor que lhes do a importao de nossos soldados. [...] hoje posso contar, quase seguro, que o triunfo h de ser nosso, com tempo e pacin-cia. O presidente Boyer e o Presidente V...... sero os regaladores da Poltica desta rica metade do Mundo, e ser-nos- fcil, coliga-dos, darmos cabo desta detestvel Nao, que o objeto do meu dio, desde longo tempo.
Vrios movimentos tm j aparecido em diversos pontos dessa provncia; e posto que no seja provvel o bom resultado, eles convm para afervorar a nossa gente, e t-la sempre com as mos na massa. [...] Meu futuro aliado, por ora o essencial entreter a ideia de que no se pode dispensar no pas a importao de Africanos, animar nessas partes todas as prevenes dos nossos agricultores, fazer coro com os contrabandistas, e gritar to alto contra algum que se anime a erguer a voz em descrdito de to til comrcio.57
O texto elencava os elementos do discurso do medo que vinha sendo ela-borado pelo Cnego. Retomava mesmo um argumento semelhante ao das profecias do velho do Itajur e sugeria que a continuidade da poltica hai-tiana de Vasconcelos levaria nada menos que aniquilao da nao brasileira. Subjacente notcia, e independentemente do sarcasmo, havia um prognstico, to catastrfico quanto a profecia do velho do Itajur, de que a continuidade da poltica de perpetuao indefinida da escravido no Brasil levaria a um futuro marcado pela prpria inviabilidade da nao. Revertia-se plenamente a compatibilidade entre escravido e futuro nacional, que marcara a atuao do Cnego no contexto da Independncia.
Na perspectiva do Cnego, esse sentimento angustiante perante o presente e o futuro era ainda mais agravado pela forma que iam assumindo as lutas pol-ticas em diferentes regies do Imprio. Especialmente os desdobramentos mais sangrentos da cabanagem, no Par, potencializaram o carter catastrfico do diagnstico que o Cnego fazia sobre seu presente. O Fluminense fazia men-o aos Batista Campos, Malchers, Vinagres, que tm levantado um padro
57O Fluminense, 02 de janeiro de 1836.
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de horror sobre milhares de cadveres de brasileiros honrados.58 Mais adiante, refletindo sobre o Par, o Cnego Janurio instigava o medo coletivo ao confes-sar que os cabelos se nos eriam quando consideramos nos males [...] [de] um negcio de to graves consequncias. Eram negcios que no se restringiam a embates polticos nos confins do Imprio, mas eram vistos como indissociveis da ameaa escrava que apresentava como pairando at na Corte, uma vez que no Par, segundo as participaes dos comandantes das foras navais, a guerra j feita a tudo quanto tem cor branca; na Bahia, os nags empenham-se por fazer o mesmo; e quem nos pode assegurar que outro tanto no pretendem aqui e nas outras provncias do Brasil?59 Para o redator de O Fluminense, nags e cabanos constituam parceiros de uma mesma onda negra de dimenses atlnticas, semelhante da viso do velho do Itajur, que ameaava a gente proprietria e tudo quanto tem cor branca.
Mas, ainda que o Cnego apresentasse o pas beira do precipcio, no fazia coro com os grupos que usavam os exemplos de anarquia local para pressionar pela reviso das reformas institucionais de 1834, no sentido de uma maior centralizao do poder. Mesmo que o Cnego Janurio tenha se esme-rado em solicitar o respeito crescente s leis e s autoridades, algo compatvel com os princpios de liberdade na ordem que sempre professou e que se tor-navam ainda mais pertinentes na condio de jornalista alinhado ao governo, no podemos identific-lo imediatamente como partidrio do regresso con-servador.60 Os indcios apresentados, pelo menos para os anos de 1834 a 1837, indicam o exato contrrio. Alm da oposio ferrenha que fazia a Bernardo de Vasconcelos, o articulador maior do movimento regressista, esse distanciamento ficava ainda mais claro nos artigos em que criticava, explicitamente, a defesa da criao de uma aristocracia hereditria e reviso das reformas descentra-lizadoras de 1834, com especial destaque para o Ato Adicional, fortemente defendido pelo Cnego.61
Contudo, todos os esforos do Cnego para paralisar o contrabando, por meio do incentivo do temor do levante escravo, no parecem ter surtido o efeito dese-jado. Muito pelo contrrio, a partir do incio de 1836, a Cmara dos Deputados passou a receber uma enxurrada de pedidos formais de cmaras municipais, principalmente da regio cafeeira do Vale do Paraba, em pleno auge de expanso produtiva, solicitando a anulao da lei antitrfico de 7 de novembro de 1831.62 Amplamente divulgadas pelo Sete de Abril, de Vasconcelos, elas atestavam o alinhamento crescente dos proprietrios poltica pr-escravista do nascente regresso. Parafraseando uma afirmao de David Brion Davis, poderamos dizer
58Interior, O Fluminense, 03 de outubro de 1835.59Rio de Janeiro, O Fluminense, 03 de outubro de 1835.60Sobre o Regresso conservador, ver Ilmar Rohloff de Mattos, O tempo Saquarema: a formao do Estado Imperial, So Paulo, HUCITEC, 2004; Marcello Basile, O laboratrio da nao: a era regencial (18311840), In: Keila Grinberg; Ricardo Salles (orgs.), O Brasil imperial - volume II, 18311870, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2009. 61O Fluminense, 17 de fevereiro, 13 de abril e 27 de abril de 1836. 62Tmis Parron, A poltica da escravido no Imprio do Brasil, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2011, p. 138-142.
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que, no Brasil do incio do regresso, a ambio vencera o medo.63 Contudo, o terror no pode ser tomado somente como um recurso retrico, entendido como um discurso falso e vazio. Ele era retrico na medida em que se voltava ao convenci-mento dos interlocutores e dificilmente teria alguma eficcia se no mobilizasse uma ansiedade difusa na sociedade. Ainda que essa ansiedade no tenha sido suficiente para frear o trfico, ela no deixou de ter diferenciados desdobramentos em prticas sociais, implicando, dentre outras coisas, medidas de maior controle de escravos e libertos por parte de proprietrios e governantes.64 Tambm teve desdobramentos no universo da cultura, sendo o IHGB, aqui somente indicado, uma dentre outras iniciativas que buscavam possibilitar um futuro sem escravi-do, que necessitam ser mais bem estudadas.
Consideraes finais
O acompanhamento da trajetria poltico-intelectual de Janurio da Cunha Barbosa indica sua participao ativa em um dos momentos de maior politi-zao da escravido e a centralidade que essa questo assumiu na elaborao de prognsticos sobre o futuro da nao brasileira e no direcionamento dado sua atividade intelectual posterior.
A partir de meados dos anos 1830, em sua atividade jornalstica, Janurio comps um prognstico condicional alternativo que, segundo Koselleck, caracteriza-se pela clara formulao de duas possibilidades, baseando-se na experincia constantemente presente da catstrofe no caso, o levante escravo (mal ou haitiano) com a inteno de formular uma alternativa.65 Pelas projees do Cnego, a primeira dessas duas possibilidades seria seguir a poltica pr-trfico de Vasconcelos, que apontaria para um futuro catastrfico, marcado por um novo levante escravo, semelhante ao mal, mas com possibi-lidades de sucesso e dimenses da experincia haitiana, que corresponderia anulao da nao brasileira. J a segunda possibilidade de futuro implica-ria acabar, efetivamente, com o trfico pelo cumprimento da lei de 1831 e dar incio a uma forte poltica de investimento no experimentalismo para a subs-tituio da mo-de-obra escrava por formas de trabalho pretensamente livre, tais como o imigrantismo europeu e a catequese indgena, temas que debateu pelas pginas do Correio Oficial e na SAIN66. Essa segunda possibilidade, que
63Matizando o impacto do medo da experincia haitiana entre os proprietrios, Davis considerou que in humam life, fear seldom overcome greed. David Brion Davis, Impact of french and Haitian Revolutions, In: David Geggus (ed.), The impact of the Haitian Revolution in the Atlantic World, Columbia, University of South Carolina Press, 2001, p. 5.64Alm das medidas repressivas governamentais dos anos 1830 e 1840, reveladas por Flvio Gomes, eloquente o caso dos proprietrios de Vassouras, no ponto central da zona cafeicultora fluminense, que, em 1854, explicitaram, em documento, os procedimentos adotados para anular a constante ameaa de levante escravo. Ver Flvio Gomes, Histria de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX, So Paulo, Companhia das Letras, 2006, p. 233-247.65Reinhard Koselleck, El futuro ignoto y el arte de la prognosis, In: ______., Aceleracin, prognosis y secularizacin. Traduo, introduo e notas de Faustino Oncina Coves, Valencia, Pr-textos, 2003, p. 90. 66Sobre o experimentalismo como modalidade de projeo de futuro sem escravido, ver Seymour Drescher, The mighty experiment: free labor versus slavery in British emancipation, Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 88-89.
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paulatinamente desarmaria a mina prestes a explodir do sistema escravista brasileiro, nem precisamos indicar, constitua a alternativa de futuro defen-dida pelo Cnego, correspondendo definio de um horizonte de expectativa antiescravista para a nao brasileira, que pautaria seu projeto intelectual e poltico subsequente.
Se a mobilizao do espectro do levante escravo no impediu que o escravismo e o regresso se afirmassem no terreno poltico, por outro lado, o investimento no universo cultural aparecia, ao Cnego, como um campo alternativo de atua-o. Com a paulatina conquista do terreno poltico pelos partidrios regressistas de Vasconcelos, que assumiram a regncia em 1837, o espao privilegiado pelo Cnego para essas modalidades de experimentalismo seria cada vez mais o universo das academias letradas, com destaque para a SAIN, de onde surgiria a proposta, em 1838, para a criao do IHGB. O instituto se tornaria reduto de todo o grupo dos ulicos, quando Aureliano Coutinho assumiu a vice-presidncia.67
Coordenando as atividades dessa instituio por quase uma dcada, a atuaode Janurio seria decisiva para a centralidade assumida pelo ind-gena, entendido como agente privilegiado de substituio do escravo negro, na reflexo dos scios sobre o passado e o futuro da nao.68 Sua atuao mar-caria, dessa forma, tambm o nascente nacionalismo indianista. Evidencia-o, dentre outros traos, um poema de 1847, dedicado ao recm-falecido Janurio, da lavra de Gonalves Dias, h pouco integrado ao grupo de intelectuais da Corte. Nele, o jovem poeta louvava exatamente o carter proftico da atuao do Cnego: Janurio causaria inveja a um poeta como o clssico Claudiano, pela forma exemplar como nos retrata o cataclismo horrendo.69 Pelo enc-mio, o poeta maranhense demonstrava um elo entre as projees catastrficas antiescravistas do Cnego e o esforo de alguns romnticos da primeira gera-o em lanar mo da retrica do medo como meio de critica escravido, conforme deixou claro em seu poema em prosa Meditao, vazado na forma de profecia apocalptica e escrito dois anos antes, em 1845.70 O antiescravismo potico de Gonalves Dias seria complementado por sua atuao no interior do IHGB. Contudo, cabe a outros estudos indicar o quanto e de que forma esse horizonte de expectativa antiescravista marcou a produo intelectual oitocen-tista e, especificamente, a escrita da histria elaborada pelo IHGB.
67Sobre o IHGB como reduto da faco ulica, ver Lucia Paschoal Guimares, Debaixo da imediata proteo de Sua Majestade Imperial: o Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (18381889), Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, n. 388, 1995, p. 459-613.68Sobre a reflexo a respeito do indgena no IHGB, ver Kaori Kodama, Os ndios no Imprio do Brasil: a etnografia do IHGB entre as dcadas de 1840 e 1860, Rio de Janeiro, FIOCRUZ; So Paulo; EDUSP, 2009, e Rodrigo Turin, Tempos cruzados: escrita etnogrfica e tempo histrico no Brasil oitocentista, Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. 69Inveja Claudiano pincel vlido, / Que nos retrata o cataclismo horrendo, / Que ele poeta no achou no combros / Da ignvoma Tesslia. Dcima estrofe do poema Canto Inaugural. memria do Cnego Janurio da Cunha Barbosa, publicado nos Segundos Cantos. Antnio Gonalves Dias, Poesias completas, So Paulo, Saraiva, 1957, p. 319. 70Wilton Jos Marques, Gonalves Dias, o poeta na contramo: literatura e escravido no Romantismo brasileiro, So Carlos, EdUFSCar, 2010.