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ENTRE PROJETOS, MEDIÇÕES E BAMBUS: UM CURRÍCULO VAI SE INVENTANDO Paulo Ricardo Ramos Pereira 1 Sônia Maria Clareto 2 Universidade federal de Juiz de Fora, [email protected] Universidade Federal de Juiz de Fora/ Departamento de Educação, [email protected] Resumo: Este artigo se compõe junto a uma pesquisa que vem sendo realizada em uma escola de tempo integral, no município de Juiz de Fora. A escola tem aulas da grade curricular pela manhã e projetos realizados na parte da tarde. Um desses projetos se tornou nosso foco de estudo para realização deste artigo. Uma possibilidade de ocupação de um terreno pertencente à escola foi o disparador do projeto. Durante sua elaboração e construção, algumas inquietações sobre medida, área e escala se tornaram questões. Que medida? Que área? Neste texto vamos trazer o trabalho realizado pelos alunos e as afetações e atravessamentos de um currículo, com o movimento da vida escolar. Um currículo vai se inventando em meio a bambus, medidas, quases e esboços. Escola e currículo sempre em movimento, atravessados por bambus, por brincadeiras, pelo quase, pelas (im)possibilidades, pela vida... Palavras-chave: Medidas. Escala. Escola de tempo integral. Introdução Uma escola de tempo integral, no município de Juiz de Fora (MG), com turmas do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental, além da Educação Infantil. Nesta escola vem acontecendo, desde 2013, a pesquisa: Por uma educação matemática menor: currículo e formação de professores junto à sala de aula de matemática3 . O interesse da investigação gira em torno de estudar a formação de professor de matemática e o currículo escolar, junto à matemática que acontece na sala de aula. A equipe executora é formada por dois alunos de licenciatura em matemática (bolsistas de Iniciação Científica no projeto), uma mestranda professora de matemática, o professor de matemática da escola e a coordenadora, professora na Universidade Federal de Juiz de Fora. Na pesquisa são acompanhadas as aulas de matemática, além de diversas atividades realizadas na escola. 1 Aluno na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursando oitavo período do curso de Licenciatura em Matemática. 2 Professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora e professora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). 3 Pesquisa financiada pela Capes e pela Fapemig (Acordo CAPES/FAPEMIG, Processo nº APQ 03480- 12) e coordenada pela Sônia Maria Clareto.

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ENTRE PROJETOS, MEDIÇÕES E BAMBUS:

UM CURRÍCULO VAI SE INVENTANDO

Paulo Ricardo Ramos Pereira1

Sônia Maria Clareto2

Universidade federal de Juiz de Fora, [email protected]

Universidade Federal de Juiz de Fora/ Departamento de Educação, [email protected]

Resumo:

Este artigo se compõe junto a uma pesquisa que vem sendo realizada em uma escola de

tempo integral, no município de Juiz de Fora. A escola tem aulas da grade curricular

pela manhã e projetos realizados na parte da tarde. Um desses projetos se tornou nosso

foco de estudo para realização deste artigo. Uma possibilidade de ocupação de um

terreno pertencente à escola foi o disparador do projeto. Durante sua elaboração e

construção, algumas inquietações sobre medida, área e escala se tornaram questões. Que

medida? Que área? Neste texto vamos trazer o trabalho realizado pelos alunos e as

afetações e atravessamentos de um currículo, com o movimento da vida escolar. Um

currículo vai se inventando em meio a bambus, medidas, quases e esboços. Escola e

currículo sempre em movimento, atravessados por bambus, por brincadeiras, pelo

quase, pelas (im)possibilidades, pela vida...

Palavras-chave: Medidas. Escala. Escola de tempo integral.

Introdução

Uma escola de tempo integral, no município de Juiz de Fora (MG), com turmas

do primeiro ao nono ano do Ensino Fundamental, além da Educação Infantil. Nesta

escola vem acontecendo, desde 2013, a pesquisa: “Por uma educação matemática

menor: currículo e formação de professores junto à sala de aula de matemática”3. O

interesse da investigação gira em torno de estudar a formação de professor de

matemática e o currículo escolar, junto à matemática que acontece na sala de aula. A

equipe executora é formada por dois alunos de licenciatura em matemática (bolsistas de

Iniciação Científica no projeto), uma mestranda professora de matemática, o professor

de matemática da escola e a coordenadora, professora na Universidade Federal de Juiz

de Fora. Na pesquisa são acompanhadas as aulas de matemática, além de diversas

atividades realizadas na escola.

1 Aluno na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursando oitavo período do curso de Licenciatura em

Matemática. 2 Professora associada da Universidade Federal de Juiz de Fora e professora-pesquisadora do Programa de

Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). 3 Pesquisa financiada pela Capes e pela Fapemig (Acordo CAPES/FAPEMIG, Processo nº APQ 03480-

12) e coordenada pela Sônia Maria Clareto.

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Por tratar-se de uma escola de período integral, tem buscado estabelecer modos

de organização espaço-temporal que atendam mais dinamicamente esta realidade.

Assim, durante as manhãs acontecem as aulas das disciplinas curriculares, que são

realizadas em salas de aula com duração de cinquenta minutos, começando às sete horas

e trinta minutos e terminando às doze horas. Há um intervalo de dez minutos, entre as

nove horas e dez minutos e as nove horas e vinte minutos, no qual os alunos lancham no

refeitório. Ao término das aulas pela manhã, os alunos almoçam na escola e ficam no

pátio brincando, cantando, andando de skate, jogando pingue pongue, jogando bola,

namorando... São disponibilizados alguns jogos em mesas no centro do pátio, como

xadrez, kalah4, quebra-cabeça, e os alunos podem usá-los ou, se preferirem, podem ficar

na biblioteca lendo livros ou contando histórias com os alunos mais novos.

Figura 1: Alunos no intervalo do almoço

Foto compõe o banco de dados do projeto.

Durante as tardes são realizados projetos, ofertados para todas as turmas do

quinto ao nono ano e são elaborados pelos professores junto à coordenação pedagógica.

Cada professor define o que pretende trabalhar e, durante uma semana, são visitadas

todas as salas do quinto ao nono ano, com o intuito de fazer uma apresentação das

propostas para o trabalho com os projetos de cada um dos docentes.

Quando todos os projetos são apresentados, cada aluno tem o direito de escolher

um deles para se inscrever e participar. Existem projetos variados, como xadrez, música,

contadores de história, futebol, informática, teatro, mágica, fotografia... As vagas para

cada projeto são limitadas, porém todos os alunos participam de pelo menos um desses

projetos, mesmo não sendo o projeto que desejavam a princípio. A escolha do projeto é

feita individualmente e a ordem de priorização da escolha varia a cada ano. Por

exemplo, se em um ano os primeiros a escolherem são os alunos do sexto ano; em

4 Trata-se de um jogo da família das mancalas. “Mankala é uma palavra árabe, que significa „transferir‟.

Pedras ou sementes são transferidas de um recipiente a outro em um tabuleiro com duas, três ou quatro

filas de recipientes. [...] O jogo tem sido praticado por reis, em belos tabuleiros entalhados em madeira ou

em tabuleiros de ouro, e por crianças, que fazem buracos no chão” (ZASLAVSKSY, 2000, p. 32). Jogo

muito difundido em todo o continente da África. Acredita-se que tenha chegado ao Brasil trazido por

escravos africanos. O Kalah, muito praticado na escola em questão neste artigo, tem duas fileiras de

recipientes. Esta escola toma a cultura africana como centro de sua construção curricular.

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segundo lugar, os alunos do nono ano; em terceiro, os alunos do quinto ano; e, por

último, os alunos do oitavo ano; no ano seguinte, é feita uma nova ordem de escolha, de

maneira que, ao final do nono ano, os alunos tenham tido a oportunidade de passar por

toda a ordem de escolha.

Em 2014, um desses projetos foi se inventando junto à equipe executora da

pesquisa e que atua na escola. Com o professor de matemática, responsável pela criação

do projeto, cogitamos a possibilidade de criar um projeto que estudasse propostas de

utilização de um terreno ocioso que pertence à escola. Este terreno se situa dentro dos

limites da escola. Com este trabalho pretendíamos investigar como seriam pensadas e

elaboradas situações de uso daquele espaço. Temas como noções de medida, área,

escala, ocupação de espaço apareceram como possibilidade no planejamento da

atividade.

Dialogando com os alunos, apresentamos nossa proposta de projeto. Foi

cogitada a possibilidade de levarmos à direção as propostas de ocupação do espaço para

estudos de viabilização de efetivação de tais projetos. Os alunos ficaram empolgados

com esta possibilidade e começaram a ponderar acerca da viabilização do projeto. Uma

aluna questiona se a escola teria condições financeiras para bancar os gastos com tais

projetos. Porém, os próprios colegas afirmam que, caso não houvesse dinheiro

suficiente, eles poderiam vender rifas, fazer doces, gincanas... Logo percebemos que a

turma tinha se interessado pela criação do projeto.

Enquanto isso, o terreno esperava....

Esta escola funciona no prédio atual desde 2009, quando da sua construção.

Anteriormente ocupava um espaço adaptado para escola, uma vez que a sede oficial

estava correndo risco de desabamento. O espaço adaptado era uma casa de campo.

Como se tratava de um local temporário, a escola teve que se adaptar ao espaço e não o

contrário. Ao se adaptar ao espaço, a escola criou possibilidades de flexibilização em

seu currículo e em suas práticas educativas, tais como criação de espaços de

convivência nos ambientes externos da escola-casa, flexibilização de horários,

adaptação de atividades ao ar livre etc. Havia, ali, muito espaço externo e a adaptação às

novas condições espaciais propiciaram também novos modos de convivência5.

Ao ser projetado a nova unidade, a comunidade escolar se organizou para

reivindicar mais espaço externo para que as atividades adaptadas – que efetivamente

estavam funcionando bem – pudessem ter continuidade.

Reivindicaram os seguintes ambientes para constituir o espaço

escolar: no que se refere ao prédio escolar – nove salas de aula, duas

salas multiusos (artes em geral e artes cênicas), seis banheiros, dois

banheiros adaptados (para alunos portadores de necessidades

especiais), uma biblioteca, uma secretaria, uma sala para

administração, uma sala para a coordenação pedagógica, uma sala

de apoio pedagógico (sugestão da engenheira), uma sala de

informática (sugestão da secretária de educação), refeitório para cem

alunos, cozinha e dispensa; no que se refere à área externa: quadra

poliesportiva coberta e com vestiário, pátio com área aberta, área

para horta, área verde com parquinho de madeira e, ainda, a

5 Duas dissertações defendidas no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFJF) discutem

essas transições espaciais desta unidade escolar: Sá (2006) e Nascimento (2009).

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construção de um bebedouro de alvenaria (SÁ, 2006, p. 64-65,

destaque nosso).

Neste momento começa a surgir o terreno com o qual lidamos na atividade

discutida neste artigo... Longe de ser aquilo que habitava o sonho de professores e

professoras e da direção da escola, este prédio foi a negociação possível.

Em Sá (2006), são explicitados alguns desses sonhos, como o da então diretora

da escola, que fala do modo como compreende que a escola poderia funcionar:

É uma escola com uma área de administração e chalés organizados

numa área verde muito grande. Que não seja um prédio todo

terminado. Mas, com chalés independentes para que a gente pudesse

trabalhar numa perspectiva de educação por oficinas [...]. E que as

crianças pudessem trabalhar independente da idade, mas pelo gosto,

pelo gosto de conhecer. [...] Eu penso, assim, uma escola que não

tenha muro, que não seja dividida, como aquela que a gente tem lá,

né? (referência à sede antiga da escola Experimentar). Ou que os

muros sejam baixos, uma escola onde o acesso para a rua seja... Que

as pessoas vejam o que está acontecendo lá dentro. Uma escola sem

muro. (SÁ, 2006, p. 66, destaque nosso).

O espaço ao qual este artigo se refere foi conseguido pela comunidade escolar

para que pudesse atender às demandas desencadeadas pela necessidade de adaptação da

escola ao espaço da escola-casa.

E o terreno lá, esperando...

Projeto em movimento

Organizamos os alunos em três grupos. A turma era formada por vinte e um

alunos, do quinto ao nono ano. Cada grupo contou com o apoio de um dos bolsistas do

projeto (dos dois alunos de graduação ou da mestranda)6, e cada grupo recebeu um

caderno com folhas em branco7 para a elaboração das atividades do projeto.

Começar: por onde? Como começar um projeto? O primeiro passo foi uma

conversa levantando os interesses de ocupação daquele espaço: fazer uma horta,

construir uma piscina, uma quadra de esportes ou um jardim. Várias opiniões, inúmeras

possibilidades. Mas, será que cabe uma piscina naquele terreno? Ou uma quadra?

Sim, precisávamos medir o terreno para saber o que efetivamente poderia ser aí

projetado.

E o terreno lá, esperando...

Para projetar o que seria construído era necessário, então, saber a área do terreno.

Mas, que área? Área?

6 Neste artigo será abordado o trabalho realizado com um desses três grupos.

7 Cada grupo recebeu um caderno com folhas em branco. Este caderno funcionou como um diário, no

qual os membros do grupo se organizavam para registrar as atividades desenvolvidas pelo grupo ao longo

do projeto. Alguns alunos levaram o caderno para casa com o objetivo de continuar e expandir os

registros.

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s.f. Superfície plana delimitada. Medida de uma superfície. Em

matemática, a área de uma superfície é o número de unidades de área

que ela contém. A área pode ser medida em unidades como metros

quadrados, quilômetros quadrados, ou hectares. Você pode recortar

um retângulo de 3 cm por 2 cm em seis pedaços quadrados de 1 cm de

lado. A área é igual à soma das áreas dos seis pedaços. A palavra

área também se refere ao espaço de dentro de triângulos, círculos e

outras curvas. Espaço aberto no interior de um edifício. Fig. Campo,

âmbito de certos ramos de conhecimento, de determinada atividade

ou competência: área das ciências. (SANTOS; NEVES, 2015)

Área de uma superfície plana delimitada. Medida de uma superfície. Surge outra

questão. Que medida?

[...] para medir o comprimento de um objeto o aluno precisa saber

quantas vezes é necessário aplicar uma unidade previamente

escolhida nesse objeto, ou seja, executar duas operações: uma

geométrica (aplicação da unidade no comprimento a ser medido) e

outra aritmética. (BRASIL, 1997, p. 54).

Corpos ansiosos: era hora de colocar a “mão na massa”. Era preciso saber a área

do terreno. Era preciso medir. Era preciso ter uma unidade de medida. Grupos no local.

Mas mesmo estando ali, ainda à dúvida: como poderíamos medir o terreno?

Medição. Ação ou efeito de medir. Adotar uma ação. Uma ação de medir... Mas,

não iríamos utilizar fitas métricas. Era preciso inventar. Uma aluna diz: vamos medir

com a régua! Outra contesta: a régua é muito pequena. Vamos medir com a régua esse

pedaço de bambu, e depois vamos medir o terreno com o bambu. A medida como ação

de medir, como invenção de medir.

Vamos medir o terreno. Vamos medir o bambu: a régua “cabe” quase cinco

vezes no bambu. Há! Então o bambu tem quase um metro e meio! Tínhamos quase a

medida do bambu. Tínhamos quase uma unidade de medida. A medida do bambu para

achar a medida do terreno, para achar a área do terreno. Faltava a medida do terreno.

Grande parte do cálculo realizado fora da escola é feito a partir de

procedimentos mentais, que nem sempre são levados em conta no

trabalho escolar.

Nas situações práticas, frequentemente, não se dispõe de lápis e

papel, tampouco é necessário, pois a maioria das respostas não

precisa ser exata, basta uma aproximação. Existem ainda as balanças

e as calculadoras que informam resultados com precisão. Por essas

razões, uma das finalidades atuais do ensino do cálculo consiste em

fazer com que os alunos desenvolvam e sistematizem procedimentos

de cálculo por estimativa e estratégias de verificação e controle de

resultados.

Para atender a esse objetivo, é primordial que aprendam a

reconhecer se certos resultados relacionados a contagens, medidas,

operações são ou não razoáveis em determinadas situações. A

estimativa constrói-se juntamente com o sentido numérico e com o

significado das operações e muito auxilia no desenvolvimento da

capacidade de tomar decisões. O trabalho com estimativas supõe a

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sistematização de estratégias. Seu desenvolvimento e aperfeiçoamento

dependem de um trabalho contínuo de aplicações, construções,

interpretações, análises, justificativas e verificações a partir de

resultados exatos. (BRASIL, 1997, p. 76-77)

E o terreno lá esperando?...

Corpos lançados. Tínhamos o bambu. Medimos os lados do terreno. Descobrimos

que o terreno tem quase trinta e um bambus de frente, e quase trinta e seis de lado.

Considerando aqui a frente como sendo a parte do terreno que é paralelo ao muro lateral

da escola e o lado sendo a parte perpendicular à parede da escola que faz a divisa do

terreno. Tínhamos a área: quase mil cento e dezesseis bambus quadrados. Tínhamos a

medida? Bambus ao quadrado? Bambus ao quadrado!

Figura 2: Imagem aérea do terreno

Disponível em

https://www.google.com.br/maps/place/Escola+Municipal+Jos%C3%A9+

Calil+Ahouagi. Acesso em 22 de jun.

O que foi feito? A identificação da “medida como um número que representa o

resultado da comparação entre duas grandezas de mesma natureza, por meio da divisão

(quantas vezes cabe)” (BRASIL, 2007, p. 10).

Figura 3: Medindo o terreno

Foto do acervo da equipe executora da investigação.

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Esboço

Hora de por no papel, pois tínhamos um projeto a fazer!

Porém, algo surpreendente aconteceu e nos atravessou de um modo que não

conseguimos controlar: antes de sairmos do terreno em direção à sala de aula, foram

encontradas “munições”: bolinhas, de algum tipo de semente, que brotam em árvores.

Uma criança lançava na outra, e outra lançava em outra e elas se lançavam. Todos

entramos na brincadeira. Sorrisos e sorrisos. As bolinhas quando em contato com o

corpo impulsionavam certa coceira. Estávamos todos lançados. Todos se coçando...

Uma coceira, um certo incômodo na pele... O que, em um currículo, causa coceira? O

que, em um currículo, causa incômodo? Aquilo é escola? Aquilo é projeto? Aquilo é

trabalho? Aquilo é escape? Aquilo é?

Corpos se coçando, se incomodando, se implicando...

E o terreno lá esperando, esperava por isso?

Corpos lançados, tramando encontros, tramando medições, tramando outros

corpos.

O que define um corpo é esta relação entre forças dominantes e

forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo:

químico, biológico, social, político. Duas forças quaisquer, sendo

desiguais, constituem um corpo desde que entrem em relação; por

isso o corpo é sempre fruto do acaso, no sentido nietzscheano, e

aparece como a coisa mais “surpreendente” [...]. O corpo é

fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças

irredutíveis; sua unidade é a de fenômeno múltiplo, “unidade de

dominação” (DELEUZE, 1976, p. 21).

E o terreno lá esperando e tramando...

De volta à sala. Era hora de organizar o que seria feito. Vamos fazer um esboço

primeiro. Era uma possibilidade. Vamos usar a folha do caderno do projeto para fazer

o terreno. Um esboço do terreno é feito na folha.

Esboço: Reunião dos traços primários que, sendo provisórios, dão

início a uma obra de arte, a um desenho etc. O que pode representar

um resumo; síntese: realizou um esboço concreto das notícias. Aquilo

que se apresenta de maneira breve e provisória: esboço do trabalho.

Figurado. As ideias iniciais acerca de alguma coisa; começo. Ação

que teve seu desenvolvimento interrompido por alguma coisa (no

início). Os princípios iniciais que definem alguma coisa. Aquilo que

se apresenta com a configuração (contorno) de vultos; sombra.

(SANTOS; NEVES, 2015)

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Começou-se a esboçar, então, um início, uma sombra, uma reunião de traços

primários que, sendo provisórios, daria início a uma obra de arte. O terreno já estava na

folha.

Figura 4: Esboço do terreno

Imagem extraída da folha de um dos cadernos realizados na pesquisa.

O terreno já estava na folha? O terreno esperava, na folha, pelo lápis.

O terreno espera na folha?

Uma lista de possíveis modos de ocupação do espaço foi feita. Uma árvore no

meio, em volta alguns bancos. Um campo de futebol. Uma horta próxima ao muro da

escola, pois fica perto da torneira. Um jardim. Alguns brinquedos (brinquedos com os

quais os alunos mais velhos pudessem brincar, pois a escola tem um parquinho, mas só

os alunos da Educação Infantil podem usá-lo).

E o terreno, lá esperando?...

Conversando acerca daquilo que poderia ser elaborado em cada uma das regiões

desenhadas as opiniões vinham e decisões iam sendo tomadas: a árvore será uma

mangueira, pois faz lembrar a antiga escola em que estudavam8; os bancos serão de

madeira, porque o pai de uma das integrantes dos grupos é marceneiro. Segundo a

aluna, seu pai poderia construir os bancos para escola em um preço abaixo do preço de

mercado. O campo de futebol será gramado, e a grama poderia ser comprada em uma

loja que fica perto da escola, cujo dono é pai de um dos alunos. As traves do gol podem

ser de madeira, de tal forma que o mesmo pai que fizer o banco, pode fazer os gols. Na

horta teremos couve, alface, tomate, abóbora, dentre outros legumes e verduras. Serão

8 Muitos alunos que participam deste projeto estudam naquela escola desde a Educação Infantil e,

portanto, estudaram no antigo prédio da unidade escolar, a escola-casa. Aquela experiência, naquele

espaço improvisado, parece ter marcado muitos deles, pois, em diferentes momentos, a imagem daquela

escola volta e, em especial, a memória das atividades desenvolvidas no espaço externo. A mangueira,

árvore frondosa, vigorosa que compunha aquele espaço, é retomada em diferentes momentos. Três

investigações desenvolvidas nesta escola, uma delas se constituiu em tese de doutorado e duas em

dissertações de mestrado, estudam esta dinâmica espacial: Borges (2011), Nascimento (2009) e Sá

(2006).

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plantados também pés de frutas como laranja, limão e mexerica... Todos os materiais

serão conseguidos com familiares, já que a escola, mesmo não ficando em uma zona

rural, encontra-se em uma região de muitas casas de campo, o que pode facilitar a

obtenção desses produtos. No jardim teremos vários tipos de flores, como orquídea,

begônia, flores do campo, que também poderão ser doadas por moradores locais e

familiares de alunos. E, por fim, os brinquedos que, de todas as possibilidades pensadas,

era a que provavelmente representaria maior custo para a escola. Foram planejados: um

escorregador, uma gangorra, um túnel, uma balança... Esses brinquedos teriam que ser

construídos com materiais mais resistentes para serem duradouros, pois seriam usados

por alunos que, em média, tinham treze anos.

E o que esperava o terreno? O que esperar de um terreno?...

Com as medidas do terreno e com o esboço feito, era necessário concluir o

projeto. Tínhamos tudo o que seria feito no terreno. Tínhamos as medidas, os materiais,

os lugares onde ficaria cada material, cada objeto. Como, então, colocar o terreno em

um papel de forma que pudéssemos ter uma dimensão exata dos tamanhos? A medida

não é exata. A área do terreno é quase mil cento e dezesseis bambus ao quadrado. Os

lados são de quase trinta e um e trinta e seis bambus. A escala aparece quando uma

aluna afirma: - Vamos fazer cada bambu igual a um centímetro na folha. Fizemos como

foi falado, mas o terreno ultrapassou a folha. Outra aluna contesta: - O terreno é muito

grande, não cabe na folha. A outra aluna responde: - Os bambus que estão grandes.

Vamos fazer cada bambu igual a meio centímetro. E assim foi feito. Dessa vez o terreno

coube na folha. Ele está na folha. Ele está na folha? O bambu é meio centímetro?

Como a medida ganha medida? O bambu estava jogado e perdido em um

terreno, agora é uma unidade de medida. Foi usado. Foi usado? Tudo aproximado. Será

que as medidas não são aproximadas? Conseguimos a exatidão ao usar uma trena, uma

régua, uma unidade de medida padrão? Que exatidão?

Quanta exatidão suporta um terreno?

Com a escala feita, temos o terreno para ocupar. Discutindo acerca do tamanho

de cada região que seria ocupada, decidimos colorir onde ficaria cada uma das coisas

programadas. A parte amarela é o parque, a verde é a horta, azul é o campo, roxa são as

flores, marrom é a árvore, rosa são os bancos, vinho é uma rampa que sai da escola para

os alunos que usam cadeira de roda.

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Figura 5: Desenho escala do projeto

Imagem extraída de um dos cadernos realizados na pesquisa.

E o terreno? Lá esperando?...

Coceira

Enquanto se ocupa o terreno, no papel, muitas outras ocupações vão se dando:

um currículo vai sendo ocupado... entre medidas, bambus, réguas e esboços, um

currículo vai sendo esboçado: vai reunindo “traços primários que, sendo provisórios,

dão início a uma obra de arte, a um desenho etc”. Um currículo como obra de arte?

Um currículo vai se fazendo na vida que corre em um projeto, entre os muros da

escola, em composições com aquilo que está para além da escola... Currículo que se faz

entre vidas em uma escola, entre matemáticas em uma escola, entre educações em uma

escola. Um currículo vai sendo inventado...

Porque a Educação aprende que as verdades de um currículo não

preexistem a ele, mas decorrem da reformulação das suas formas de

conteúdo e de expressão; da invenção de problemas e suas condições;

da suscitação de originais modos de ver, sentir, pensar. Intui que os

saberes, poderes e subjetividades, produzidos por um currículo, são

sempre verdadeiros, segundo as verdades que ele introduz, passa, faz

fugir. Logo, que não existem resultados melhores ou piores de um

currículo, em relação a outros, apenas os mais apropriados às

verdades formuladas por cada um (CORAZZA, 2010, p. 152).

O que incomoda em um currículo? A coceira que reverbera de bolinhas-

sementes lançadas? O lançar-se em um terreno? As pontas da bolina? Quantas

possibilidades se abrem todos os dias quando uma pergunta é lançada? Quando

bolinhas-sementes são lançadas? Quando um incômodo move uma implicação? Quando

um projeto é disparado?

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Quanto de incômodo, de coceira reverberada, de quases cabe em um currículo? O quase

passa a ser um currículo. O que incomoda passa a ser uma implicação. Escola e

currículo sempre em movimento, atravessados por bambus, por brincadeiras, pelo

quase, pelas (im)possibilidades, pela vida...

E o terreno lá, aqui e acolá compondo currículo,

compondo escola,

compondo vida...

Referências

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narrar e de ser. 2011. 250 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,

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