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VÍTIMAS DE ATROCIDADES E DIREITO INTERNACIONAL Entre universalismo e vida nua

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Vítimas de atrocidades e direito internacional

Entre universalismo e vida nua

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Vítimas de atrocidades e direito internacional

Entre universalismo e vida nua

GUSTAVO BUSSMANN FERREIRADoutorando em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de

Pos-Graduacão da Universidade Federal do ParanaMestre em Direitos Humanos e Democracia pela mesma instituicão (2015)Visitante do Grotius Centre of International Legal Studies, Universidade de

Leiden, Holanda (2016). Pesquisador Visitante da Birkbeck - University of London, departamento de Direito e Teoria Política (2017)Membro da Comissão de Diversidade Sexual e Genero da Ordem dos Advogados do Brasil

Advogado

Belo Horizonte2017

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341.272 Ferreira, Gustavo Bussmann F383v Vítimas de atrocidades e direito internacional: entre2017 universalismo e vida nua / Gustavo Bussmann Ferreira. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017. p.148

ISBN: 978-85-8238-273-8

1. Direito internacional. 2. Direitos humanos internacionais. 3. Direitos humanos globais. I. Título.

CDD(23.ed.)–341.48 CDdir – 341.272

Belo Horizonte2017

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À minha Avó, por estar sempre comigo. Por desde sempre não me deixar esquecer que é o brilho dos

meus olhos, que ver o mundo assim é muito mais bonito.

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agradecimentos

Os últimos anos foram uma grande viagem e uma incrível descoberta iniciada com a aprovacão no Programa de Pos Graduacão em Direito na Universidade Federal do Parana; mas além destes dois anos em tempo corri-do como chronos, com kairós aprendi que ha momentos certos e oportunos; além da percepcão da vida em todas as suas facetas, ha descobertas afortuna-das e doces surpresas. Na conjugacão do tempo, um exercício de memoria e reconhecimento me mostra que em nenhum momento estive sozinho nessa construcão e ressignificacão da minha identidade. Percebendo o trabalho empreendido, ha muito a agradecer.

Acredito que um trabalho de pesquisa é uma obra que jamais termina, mas que é abandonado em algum ponto; e o ponto final desta dissertacão de mestrado não teria sido este sem a singular orientacão da Professora Katya Kozicki. Desta forma, agradeco intensa e especialmente por seu exemplo e seus questionamentos, bem como pela sua acolhida junto à Universidade Federal do Parana.

Agradeco também, antes da academia e da vida em sociedade, a meus pais, meus primeiros professores. A meu Pai por desde sempre me apontar a importância da alteridade e do reconhecimento, pelo incentivo aos meus estudos e confianca no caminho que decidi trilhar; por me mostrar que o amor pode vir de todos os lugares. À minha Mãe, exemplo de docura e hu-manidade, agradeco principalmente por me ensinar a arte, a sensibilidade e a poesia; por me fazer acreditar em Leminski e que “isso, de ser exatamente o que se é, ainda vai nos levar além”. Na trajetoria que segui, seu exemplo e seu incentivo me mostraram o que de melhor ha em mim. Ao meu irmão, agradeco por diariamente me mostrar que a vida não tem so uma face, por me fazer rir e desconstruir conviccões.

Não posso deixar de reconhecer, também, o papel dos meus grandes e valorosos amigos na partilha dos caminhos percorridos: na experiencia dos afetos, no suporte, no incentivo e no brilho dos olhos. Sem voces a vida seria cinza. No exercício de nossa pluralidade, dialogo e capacidades,

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nas discussões acaloradas entre o Direito e o bar, entre o sentido da vida e a expectativa no amanhã, ha muito a agradecer. A todos que contribuíram nesta jornada, que entenderam minhas ausencias ou foram presentes quan-do precisei, em maior ou menor grau, meu muito obrigado.

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“Sem a experiência dos corpos misturados, sem essas sarapinturas tangíveis e essas multiplicidades atenuadas, iríamos confundi-los por muito tempo. Essa confusão em

que a morte se assemelha à glória, em que a vida bem-aventurada tem lugar no túmulo, fizera da metafísica uma

preparação para o assassinato. No entanto ela é uma arte de amar”.

Michel Serres

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sumário

PREFÁCIO ................................................................................................................. XI

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... XIV

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 1

CAPíTUlO 1DIREITOS HUMANOS MULTICULTURAIS: A BUSCA DE CONVERGÊNCIA ENTRE AS PARTICULARIDADES PARA A UNIVERSALIDADE DE DIREITOS .................................................................... 71.1. Da pretensa universalidade dos direitos humanos nas declaracões e nos tratados ...................................................................................................... 81.2. Entre o universalismo e particularismo: por um caminho harmônico e multicultural..................................................................................................... 201.3. A interlocucão entre o particularismo local e universalismo para a possibilidade de um agir global ....................................................................... 32

CAPíTUlO 2A PERDA DA CONDIÇÃO HUMANA E OS LIMITES AO PARTICULARISMO ......................................................................................... 462.1. O Homo Sacer e a condicão humana: desafiando a gravidade e identificando Homni Sacri ............................................................................... 482.2. Multiculturalismo e justica internacional em Ruanda: Tradicão e reconciliacão ..................................................................................................... 582.3. Serra Leoa e o Casamento: A fronteira entre forca moral e fìsica, entre o crime e a tradicâo ................................................................................. 67

CAPíTUlO 3PERSPECTIVAS ACERCA DA JURISDIÇÃO DA CORTE PENAL INTERNACIONAL: A POSSIBILIDADE DE INGERÊNCIA EM PAÍSES NÃO SIGNATÁRIOS E O RECONHECIMENTO DO HOMO SACER... 773.1. A globalizacão e o surgimento da Corte Penal Internacional ................... 78

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3.2. O Caso Darfur e a consolidacão da Corte Internacional como protetora subsidiaria dos direitos humanos globalmente .......................... 903.3. O reconhecimento do Homo Sacer e a plenitude do ser humano ........... 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 120

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PreFácio

Chronos e kairós. O tempo dos homens e o tempo dos deuses. O tem-po linear, que se mede quantitativamente e o tempo da oportunidade. É assim, fazendo referencia a essas duas dimensões/concepcões do tempo que o autor inicia os agradecimentos que tece na sua dissertacão de mestrado – trabalho que agora se transforma em livro e o qual tenho o prazer e a res-ponsabilidade de prefaciar. E com ele me utilizo dessas dimensões do tempo para, antes de falar da obra, falar do seu autor.

Kairós aqui tomado como o tempo do encontro, do acontecimento. O tempo presente, nem passado e nem futuro. O início do mestrado do Gus-tavo, momento em que o conheci, tempo que se abria para ele no espaco do prédio historico da UFPR, encontro marcado pelo desencontro do nosso ch-ronos pois, enquanto ele chegava, eu partia para um período de estudos fora do Brasil. E assim, nesse encontro/desencontro do tempo iniciou-se não ape-nas a nossa relacão academica, orientadora/orientando, mas também uma amizade que nascia no encontro das preocupacões comuns com os direitos humanos e, especialmente, com uma concepcão de direitos humanos não pautada pela perspectiva rígida do universalismo dominante nesse campo mas que, simultaneamente, não foge ao compromisso da responsabilizacão quando confrontada com a violacão do humano. Um autor que, a partir da sua obra, não pretende tão somente analisar os direitos humanos sobre um aspecto teorico, refletindo sobre eles a partir da realidade concreta de quem são os seus sujeitos. Mas indo além, um verdadeiro ativista dos direitos hu-manos, naquilo que esse termo revela no melhor sentido arentiano para o termo acão; praxis e discurso, a intervencão concreta no acontecer historico.

A apresentacão do livro feita pela Professora Melina Girardi Fachin é precisa ao descrever esse trabalho e torna supérflua qualquer outra descricão que do mesmo possa ser feita. E por isso tematizo, ainda que brevemente, o contexto teorico no qual o mesmo esta inserido. Ao falar do livro impossí-vel não me deter, de imediato, em seu título e toda a carga simbolica que o mesmo carrega: Vítimas de atrocidades. Entre o universalismo e a vida nua.

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De quem falamos ao falarmos em direitos humanos? A quem tomamos por vítimas? Parafraseando José Saramago, ao encerrar a introducão do livro Terra, de Sebastião Salgado:

O Cristo do Corcovado desapareceu, levou-o Deus quando se retirou para a eternida-de, porque não tinha servido de nada pô-lo ali. Agora, no lugar dele, fala-se e colocar quatro enormes painéis virados às quatro direções do Brasil e do mundo, e todos, em grandes letras, dizendo o mesmo: UM DIREITO QUE RESPEITE, UMA JUSTI-ÇA QUE CUMPRA.

Saramago faz mencão ao Brasil mas podemos tomar em consideracão todo e qualquer lugar pois o cenario de violacões aos direitos humanos é, esse sim, universal. A preocupacão central do autor é reconhecer o sujei-to concreto que pauta o arcabouco teorico dos direitos humanos e, nesse reconhecimento – ou a partir desse reconhecimento – revelar quem são as vítimas de atrocidades, essas muitas vezes cometidas justamente em defesa de uma concepcão abstrata de direitos.

A partir de uma solida construcão teorica, pautada principalmente em Agamben mas com os pressupostos marcantes da Filosofia da Diferenca, o autor vai pensar o homo sacer e a nocão de vida nua. Logo no início do capítulo 1 do livro Homo Sacer, Agamben afirma que o “paradoxo da so-berania esta, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. E então reformula esse paradoxo para dizer “que a lei esta fora dela mesma”. Inclusão e exclusão. Excecão e regra. A lei que esta além de si e direitos que não se realizam no direito. A lei que esta sempre adiante. E o homem do campo kafkiano que, refletindo, pensa que a lei deveria ser a todo o tempo acessível a todos. E durante anos la se posta ele, diante da Lei, buscando em vão nela entrar. A inacessibilidade da lei ao homem do campo, o não aces-so aos direitos. Direitos dos quais somos todos sujeitos mas que, para um número cada vez maior de pessoas, permanecem inacessíveis – assim como na extraordinaria parabola de Kafka que adia, indefinidamente, o acesso do homem do campo à LEI.

Severino, os Severinos de quem nos fala o poeta João Cabral de Melo Neto devem ser tornados concretos, para além da voz do poeta e somente nesta perspectiva é que a enunciacão jurídica dos chamados direitos hu-manos pode ganhar vida, para além de sua construcão retorica. É difícil defender, so com palavras, a vida. Eis o porque de necessitarmos de um di-reito que respeite, uma justiça que cumpra. Os direitos humanos, enquanto discurso e construcão jurídica, constituem um arcabouco importante mas não suficiente para que possamos efetivamente defender a vida, entendida

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esta não somente enquanto existencia física, em todas as suas manifestacões concretas, mas compreendida também a partir das teias e tramas que nos tornam sujeitos únicos e atores sociais diferenciados em nossas singularida-des e envolvimentos.

É nesse sentido e com esse pressuposto que se desenvolve esse trabalho. Falar do – dos – sujeitos concretos dos direitos humanos, eis o que o autor nos convida, com muita propriedade, a fazer. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, com seus pressupostos universalizantes, deve ser tornado concreto, para além das palavras e premissas jurídicas, indo ao encontro do outro, esse outro que, enquanto tal, jamais se da plenamente a conhecer. O reconhecimento do outro enquanto outro, dentro de suas praticas e tradicões específicas. Como conciliar o universalismo dos direitos com a alteridade, a realidade específica de cada comunidade? E como faze-lo sem que isso implique em permissão para que se cometam atrocidades em nome de praticas culturais? Esse tentativa de equilíbrio, difícil de ser encontrado e sempre muito tenue, é o fio condutor desse trabalho.

Se kairós é o tempo da oportunidade, digo que o momento da publica-cão desse trabalho não poderia ser mais oportuno. O mundo se confronta hoje com o problema que talvez – e muito provavelmente – é o holocausto do século XXI – me refiro aos refugiados e a terrível tragédia das migracões. Esse outro absoluto que, parafraseando Hannah Arendt, não tem direito a ter direitos. Em tempos de tantas indagacões sobre o significado, alcance e titularidade de direitos, o livro que agora chega ao leitor é uma importante contribuicão para, não apenas falando abstratamente de direitos, falar dos seus sujeitos concretos, falar também da vida nua.

Curitiba, verão de 2016

KATYA KOZICKIProfessora dos programas de graduacão pos-graduacão

Em Direito da UFPR e da PUCPR

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aPresentação

Conheci o autor Gustavo Bussmann Ferreira no auspicioso ambiente da Pos-Graduacão em Direito da Universidade Federal do Parana. Atendi ao honrado convite do autor e de sua Orientadora, a Profª Drª Katya Kozicki, para fazer parte da banca de avaliacão da dissertacão, ao lado da Profª Drª Cecília Caballero Lois – a quem a circunstância me propiciou conhecer. Assim, para além de tomar parte nas relevantes discussões, o elogiavel trabalho proporcionou-me uma experiencia academica e pessoal de grande valia ao poder debater com distintos – e permito-me acrescer queridos – interlocutores os dilemas e desafios envolvidos na luta por di-reitos humanos e democracia.

Não foi a minha surpresa quando – ja parceiros do fortalecimento da cultura de direitos humanos em nossa casa, a Faculdade de Direito da UFPR – recebo do autor Gustavo Bussmann Ferreira, agora doutorando, o belo convite de apresentar a publicacão de sua dissertacão de mestrado. Outra afortunada circunstância que este trabalho veio me propiciar.

Como a obra é um pedaco de seu proprio autor, gostaria de, neste paragrafo antecedente, sem pretensão exauriente, dedicar a ele algumas pa-lavras. Gustavo Bussmann Ferreira é um vocacionado da causa dos direi-tos humanos, comprometido com a construcão de um pensamento teorico capaz de permitir sua protecão efetiva. É atualmente associado de muitas iniciativas para articular um (re)novado olhar sobre os direitos humanos em nosso contexto academico. Nesse intento, assume destaque seu trabalho e largo conhecimento dos sistemas internacionais de protecão aos direitos, sobretudo no âmbito da jurisdicão da Corte Penal Internacional – a que a obra se dedica.

O traco predominante do livro que ora se apresenta é a centralida-de subjetiva sensível. É a partir do sujeito concreto, de carne e osso, que o autor buscou o reconhecimento de um mínimo ético irredutível dos direitos humanos, apto a ensejar o acionamento da Corte Penal Interna-cional. Apoia-se em importante pesquisa doutrinaria e jurisprudencial,

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ressaltando-se a obra de Giorgio Agamben e os casos julgados pelos Tribu-nais Penais Internacionais.

É justamente a partir deste conjunto de ideias que a obra se descor-tina. Parte-se, no seu primeiro capítulo, de uma abordagem complexa, plural, miscigenada e não dicotômica de direitos, a partir de um enfoque multicultural que permite – antes de categorias teoricas e instituicões – enfocar os sujeitos em suas particularidades, e a partir de aí abstrair uma universalidade possível de ponto de chegada, parafraseando o saudoso Joa-quín Herrera Flores.

Ao mesmo tempo que destaca a importância da concepcão contempo-rânea de direitos humanos, erigida no pos 2ª Guerra e a criacão de um apa-rato jurídico internacional unicamente baseado na concepcão de dignidade, aponta sua independencia das peculiaridades culturais e individuais, denun-ciando seu carater excessivamente eurocentrico e ocidental. Pugna, assim, o desafiador caminho harmônico e multicultural de possível equilíbrio entre o universal e o particular, conforme as palavras do autor:

“De um lado, a necessaria consideracão de cada local em sua cultura e identidade, e em contrapartida a nocão de que a relativizacão extremada de todas as praticas cultu-rais ou das sociedades em seus de liberalismo e tolerância levaria o mundo à divisão em guetos e comunidades de excluídos”.

Em virtude disso, a obra toma como premissa a (re)significacão do universal pelo agir localizado, lancando mão de um modelo universalizavel de baixo para cima, sempre a posteriori como um vir a ser. A partir daí, traca, à luz das previsões internacionais da justica penal, um universalismo mínimo que ofereca mecanismos de protecão em contextos nos quais as violacões de direitos naturalizaram-se como regra, funcionalizando-se para a manutencão do status quo.

Nesse cenario, o autor destaca que direito internacional penal pode ofe-recer salvaguarda ao proibir os crimes internacionais, impondo aos Estados a obrigacão de submeter tais crimes à jurisdicão nacional, regulando os pro-cedimentos internacionais para processar e julgar os acusados pelos crimes.

A hipotese enunciada é posta à prova, no capítulo seguinte, com as reflexões de experiencias concretas – dos tribunais penais de Ruanda e Serra Leoa. Em ambos os casos se ressaltou a necessidade de reconhecimento e protecão aos sujeitos, fornecidos pelo direito penal internacional, para que possam se reconciliar com o passado e se restabelecer nas sociedades pos--conflito. Apesar das críticas cabíveis erigidas às experiencias – post fato, seletividade, visão excessivamente ocidental de Direito, e.g. – o combate à

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impunidade das atrocidades cometidas permitiu, na analise empreendida, reconciliar-se com o passado na medida em que os padrões culturais e ten-dencias sociais violadoras saem à luz – daí também o aspecto multicultural, emergindo como garantia de não repeticão.

O equilíbrio em jogo é tenue, pois, de um lado, convém destacar a relevância das instâncias internacionais – em observância ao princípio da complementariedade com às domésticas e, por outro, ha que se respeitar a soberania dos países – sem descurar da dimensão mais vulneravel entre estes dois polos – o indivíduo em sua completa nudez vital; o homo sacer. Se, de um lado, a experiencia ruandesa demonstra a necessidade de observar a importância do componente de justica local na medida em que englobaram os cidadãos no processo de inclusão e reparacão; a serra-leonesa vem de-monstrar que não se pode tolerar qualquer conduta com base em tradicões. Portanto, a partir das reflexões e casos apresentados, a obra explicita os limites da autodeterminacão cultural no que tange a praticas desumanas de regimes autoritarios. Nestes casos o direito internacional (penal) deve agir justamente para garantir a diversidade.

O último capítulo do livro destina-se às perspectivas da jurisdicão do Tribunal Penal Internacional e a possibilidade de sua ingerencia em países não signatarios do Estatuto de Roma, como um meio de protecão do homo sacer. Ressalta-se, assim, a forca apaziguadora do jus cogens e da atividade jurisdicional internacional, em uma visão complementar e não adversaria com o constituinte local. Isto porque, ressalta o autor, que “um entendi-mento razoável sobre os direitos humanos” caminha rumo à inclusão e acei-tacão dos indivíduos castigados por uma vida nua.

A título ilustrativo do que se alega, a obra traz a primeira experiencia da Corte Penal Internacional em relacão à países não signatarios, relativa ao caso de Darfur. A decisão proferida sentenciou à prisão Omar al Bashir, presidente do Sudão, país que não figura no rol signatario do Estatuto de Roma. No caso, a imunidade presidencial (prevista pela lei doméstica) fora afastada para que o Tribunal internacional pudesse exercer sua jurisdicão, conformando assim a limitacão da soberania local.

Com um enfoque centrado nas vítimas e em sua vida nua marcada por praticas tradicionais que sejam violentas e excludentes – e não mais nas classicas concepcões estatocentricas de uma soberania moderna incompa-tível com os (des)caminhos do mundo globalizado – o autor aponta para o novo paradigma nascente: a protecão dos direitos humanos que respeita particularidades, mas não se compatibiliza com tolerância à impunidade, e é, portanto, propiciadora de inclusão e reconhecimento.

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Os leitores encontrarão além de uma boa leitura, subsídios para a luta contemporânea por direitos humanos.

Curitiba, verão de 2017.

MELINA GIRARDI FACHINProfessora Adjunta dos Cursos de Graduacão e Pos-Graduacão da

Faculdade de Direito da Universidade Federal do Parana.

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