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  • @ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.3, n.2, jul.-dez., p.121-146, 2011

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    Antropologia e Psicanlise: entrevista com Christian Dunker

    Por Maria Carolina A. Antonio, PPGAS/UFSCar

    & Tssia N. Eid Mendes, PPGFil/UFSCar

    Christian Dunker Psicanalista Clnico e Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Clinica do Instituto de Psicologia da Universidade Estadual de So Paulo USP, com ps-doutorado na Universidade Metropolitana de Manchester. Analista Membro de Escola (AME) da Escola de Psicanlise dos Fruns do Campo Lacaniano, Membro da Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, coordena o projeto de pesquisa Patologias do Social: crticas da razo diagnstica em psicanlise e coordenador - junto ao professor Dr. Vladmir Safatle do Departamento de Filosofia da USP - do LATESFIP Laboratrio de Filosofia, Teoria Social e Psicanlise da USP. autor, entre outros livros, de Estrutura e Constituio da Clnica Psicanaltica. Uma arqueologia das prticas de cura, psicoterapia e tratamento (Editora AnnaBlume, 2011), Zizek Critico - Poltica e Psicanlise (Editora Hacker, 2005), O Clculo Neurtico do Gozo (Editora Escuta, 2002). Estabelece dilogo com os chamados filsofos da nova esquerda, a saber, Slavoj Zizek e Alain Badiou, que versam sobre a relao entre psicanlise lacaniana e teoria crtica do social, e atualmente servem de referncia a redes de movimentos sociais de esquerda espalhados pelo mundo. Em recente artigo publicado na revista Tempo Social, Mal-estar, sofrimento e sintoma: releitura da diagnstica lacaniana a partir do perspectivismo animista1, o autor apresenta de forma original e instigante uma homologia entre a diagnstica psicanaltica orientada pelos trabalhos do psicanalista francs Jacques Lacan e a noo de perspectivismo amerndio desenvolvida pelo antroplogo Viveiros de Castro. Foi acerca desta leitura perspectivista da psicopatologia psicanaltica e sobre a antiga, porm tmida, relao entre Antropologia e Psicanlise que se seguiu esta conversa com o autor.

    1 DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento e sintoma: releitura da diagnstica lacaniana a partir do perspectivismo animista. Tempo soc., So Paulo, v. 23, n. 1, 2011. Disponvel em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-20702011000100006&script=sci_arttext

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    R@U Antes de tudo, queremos agradecer imensamente sua solicitude em

    aceitar o convite para essa entrevista. Para comear, gostaramos que voc

    falasse um pouco sobre sua trajetria profissional e intelectual, do trabalho

    desenvolvido no Latesfip, grupo de pesquisa interdisciplinar que vincula

    Departamento de Filosofia e o Instituto de Psicologia da USP, e de como

    surgiu o encontro, ou tich, com a antropologia, mais especificamente, com o

    conceito de perspectivismo amerndio de Viveiros de Castro.

    CHRISTIAN DUNKER uma grande satisfao conversar com pesquisadores da

    antropologia e da etnologia, uma antiga paixo, jamais suficientemente

    aprofundada. Nos anos 1980 era possvel fazer dois cursos de graduao ao

    mesmo tempo na USP. Foi a poca na qual cursei psicologia e cincia sociais,

    tendo aula com Silvia Caiuby Novaes a partir de quem me interessei

    primordialmente pela antropologia, leia-se Lvi-Strauss. Durante o mestrado em

    psicologia estudei a estrutura simblica da oposio entre brincar e agredir em

    crianas com diagnstico de psicose. Na poca procurava reunir a teoria do

    estdio do espelho, de Jacques Lacan, com as novas hipteses etolgicas sobre a

    funo ldica na criana. Nesta poca convivi com Renato Queirz, tambm a

    antropologia da USP, que discutia muito seriamente o problema da hominizao

    e de certa atitude antropolgica, que no sei bem como, ligou-se ao que seria,

    para mim, a propedutica de qualquer atitude clnica possvel. O problema

    metodolgico representado pela observao de crianas, fora de um escopo

    estritamente clnico, me levou a discutir problemas homlogos em etnologia de

    campo. De certa maneira percebia uma proximidade entre a atitude etolgica e a

    prudncia como ela articulava hipteses, com a atitude etnolgica. Li Deveraux,

    Laplantine, Tobie Nathan e descobri uma antiga tradio de estudos

    antropolgicos sobre a loucura e os estados alterados de conscincia. Vi como

    esta tradio derivava de uma espcie de crtica interna ocorrida no campo da

    psicopatologia, das prticas de apresentao de pacientes, dos estudos descritivos,

    posteriormente afetados pelos argumentos da fenomenologia (Minkowski,

    Bisnwanger e o prprio Merleau-Ponty). Os problemas clssicos em etnologia de

    campo pareciam-me os mesmo que enfrentava ao lidar com observaes que no

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    eram exatamente clnicas, pois as crianas que eu pude acompanhar nas diversas

    instituies que frequentei no eram exatamente meus pacientes. Mas tambm

    no me conformava com a ideia de toma-las como sujeitos que poderiam ter

    seus comportamentos objetivados em categorias. No fundo estava supondo que o

    uso que Lacan fazia das observaes de crianas, feitas por Wallon, Bock ou

    Khler, notadamente na relao com o espelho, e que serviam de base para sua

    teoria do imaginrio, era apenas e to somente uma espcie de recurso

    antropolgico e no propriamente uma importao da teoria do desenvolvimento

    para a psicanlise. A etologia, a nica psicologia verdadeira, como dizia Lacan,

    era verdadeira porque no era bem uma psicologia, mas um mtodo, uma

    maneira de observar, uma posio crtica ou advertida diante da universalidade de

    certos fenmenos. No doutorado, estudei o problema do tempo na linguagem da

    criana psictica (funo dixica, identificao espacial, teoria freudiana da

    retranscrio de signos). A temporalidade da qual queria falar parecia-me

    insuficientemente concernida na concepo de tempo lgico, mas tambm no era

    apenas uma tipo de temporalidade psicolgica ou histrica. Persegui a questo em

    Lvi-Strauss, no limite de minha ingenuidade antropolgica, especialmente em

    suas observaes sobre a temporalidade do mito, presentes em A Estrutura dos

    Mitos e acabei introduzindo algumas solues derivadas dos estudos de Edmund

    Leach sobre a temporalidade (ucronia, acronia, etc), o que hoje me parece

    criminoso do ponto de vista epistemolgico. No doutorado estava mais claro a

    importncia do autor de Estruturas Elementares do Parentesco para a teoria lacaniana

    do simblico. Era uma poca que se discutia muito as diferenas e aproximaes

    entre o inconsciente lacaniano e o inconsciente levistraussiano. Depois do

    doutorado, j como docente, passei por muitos cursos de psicologia e de ps-

    graduao, sempre tentando aprofundar as relaes genticas e epistemolgicas

    entre Lacan e a filosofia, notadamente com as cincias da linguagem, de onde

    migrei para um pouco de teoria poltica. Em outras palavras, acabava sobrando

    para mim disciplinas sobre, por exemplo, mtodos de pesquisa, fundamentos

    epistemolgicos, histria da ...,filosofia para ... e eu acabei gostando disso.

    Foi neste ponto que fui fazer meu ps doutorado na Inglaterra e descobri que o

    que significava ser psicanalista e pesquisador ... no Brasil. Meio que s pressas,

    tive que pensar o que significava psicanalisar no Brasil, revistar o que poderia ser

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    um sintoma ou uma forma de sofrer que tivesse relao com nosso pas e nosso

    povo. Da lembrei-me das aulas sobre a noo antropolgica sobre o conceito de

    marginal e comecei a estudar algumas coisas sobre a chamada brasilidade.

    Publiquei um ou outro estudo sobre a insero cultural da psicanlise no Brasil

    (mais para a antropologia do que para a histria). Descobri alguns estudos

    interessantes sobre grupos e instituies de psicanalistas e suas peculiaridades

    etnolgicas, orientei uma ou outra tese sobre o assunto. Quando voltei para a

    USP em 2004, tinha j a ideia de que era preciso reinventar os estudos

    psicanalticos em Lacan, eventualmente ligando-os com a antiga tradio crtica

    uspiana. Foi a poca em que reencontrei Vladimir Safatle e Nelson da Silva

    Jnior, que estavam mais ou menos na mesma situao que eu: voltando de fora,

    novos na USP, interessados em ajustar as contas com tudo o que vamos de

    errado no mundo universitrio (para no dizer o mundo ele mesmo).

    Queramos mudar o modelo que conhecamos, e no qual havamos sido

    formados, da pesquisa piramidal baseada em um professore mais experiente e seus

    alunos. Pensamos um modelo realmente transversal de trabalho no qual nosso

    alunos da psicologia (os meus da Psicologia Clnica e os do Nelson da Psicologia

    Social) pudessem conviver, publicar e trabalhar com alunos da filosofia (no s de

    Vladimir). Nossa ideia era aproveitar a antiga tradio de estudos epistemolgicos

    em epistemologia da psicanlise (Bento Prado, Roberto Monzani, Osmir Gabby

    Faria Jr.) e reverter seus ganhos para uma anlise da estrutura da prtica, da

    lgica do tratamento e da insero direta na clnica psicanaltica. Surgiu assim

    nosso projeto de pesquisa sobre as Patologias do Social, que reuniu nestes ltimos

    cinco anos mais de cinquenta pesquisadores (da iniciao cientfica ao ps-

    doutorado). Fundamos o Latesfip-USP, Laboratrio de Teoria Social, Filosofia e

    Psicanlise, no escopo do qual realizamos inmeros congressos, editamos livros e

    efetivamos convnios, agrupamos outros centros de pesquisa semelhantes, no

    Brasil e no exterior. Na verdade ficamos surpresos como havia gente trabalhando

    com perspectivas parecidas na Inglaterra, na Frana, na Alemanha e nos Estados

    Unidos. A ideia de patologias do social resume-se em uma espcie de retomada

    dos cinquenta anos de importao de conceitos psicanalticos pela teoria social

    crtica (Adorno, Althusser, Lasch, Senett, Bauman, Zizek, Badiou) de tal modo a

    verificar se esta dobradura crtica poderia ser revertida para a clnica, se afinal se

    poderia fazer uma crtica das coisas absolutamente ideolgicas que vem se

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    fazendo em termos de psicopatologia, da psiquiatria clssica aos atuais

    diagnsticos tipo bomba de fragmentao (sempre atinge algum de algum

    modo) tipo DSM-IV. Foi a que reencontramos a antropologia. Primeiro por que

    lembramos que historicamente a antropologia uma das reas que fundou a

    psicopatologia (junto com a neurologia, a psicologia e a psiquiatria), mas que hoje

    tornou-se um territrio totalmente alheio e estranho matria, o que abriu

    caminho para a naturalizao radical e em massa da doena mental (com suas

    consequncias inadmissvel em termos de concepo de gnero, de neurtico-

    centrismo, de medicalizao a diferena, etc.) . Segundo por que estamos fazendo

    uma reconstruo da teoria do reconhecimento (conforme o ltimo livro do

    Vladimir, Grande Hotel Abismo) que requer por um lado a crtica da noo de

    individualismo, para o qual Hegel e Axel Honeth so recursos interessantes, e

    uma crtica da antropologia humanista, remanescente nos esquemas universalistas

    do primeiro estruturalismo. Aparentemente Deleuze seria um caminho sugestivo

    aqui, mas que funciona melhor o diagnstico do que na teraputica do problema.

    No fundo se poderia dizer que um projeto que envolve a reformulao completa

    do que se deve entender por diagnstico (em seu sentido clnico mesmo) partindo

    da psicanlise de Lacan, mas pensando seu potencial crtico. Foi neste momento

    que Viveiros de Castro surgiu como uma daquelas peas lgicas que voc vai

    buscar em um outro universo mtico, para preencher uma necessidade interna na

    qual sua prpria combinatria de solues se mostra insuficiente. At onde

    consigo entender, ele permite fazer a crtica do mtodo estrutural sem destruir

    suas intuies fundamentais, rever a noo de universal, de forma compatvel com

    a reinterpretao que fazemos do hegelianismo lacaniano, lidar com situaes

    etnolgicas de alta relevncia para nossa temtica (xamanismo transversal, ritos

    funerrios, anlise lingustica, abordagem sensvel lgica do significante,

    formalizao lgica de outra teoria do reconhecimento). Isso sem falar em um

    inimigo comum, ou seja, a ontologia da identidade. Tudo bem, ele se declara

    mais deleuziano do que estamos dispostos a admitir como necessrio, mas a

    estamos imaginando uma longa e produtiva conversa. Em sntese, Viveiros de

    Castro a antropologia que falta ao ltimo Lacan, o dos ns, o dos registros, o da

    teoria da sexuao, o da indeterminao.

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    R@U A relao entre antropologia e psicanlise acompanha os

    desenvolvimentos de ambas as disciplinas. Nos anos 20, Malinowski dialoga

    com as ideias freudianas acerca do complexo de dipo e da sexualidade

    infantil2, assim como Kroeber analisa criticamente a publicao freudiana de

    Totem e Tabu3. Lacan, por sua vez, em sua tese de 19324, opera uma crtica

    ao reducionismo organicista e ao espiritualismo de uma fenomenologia

    psiquitrica com o intuito de reformular os preceitos psicanalticos atravs de

    uma fundamentao antropolgica para a psiquiatria (Simanke, 2002)5. nesse

    sentido que comea uma espcie de desventuras em srie de Lacan com a

    antropologia, primeiro com Levy-Brhl, depois com Mauss, at culminar em

    Kojve, com sua leitura antropognica da Fenomenologia do Esprito e, por

    fim, Lvi-Strauss. A rentabilidade das formulaes antropolgicas

    estruturalistas e ps-estruturalistas, pode ser facilmente observvel na

    economia do sistema lacaniano. Contudo, a via inversa no se apresenta to

    bvia, o que est relacionado com o fato de que as teorias antropolgicas esto

    aliceradas sobre o dado etnogrfico. Assim, at o momento - e por parte da

    antropologia - infelizmente h tmidas iniciativas de um aporte terico e

    epistemolgico que propicie um dilogo entre esses dois campos do saber.

    Como voc v atualmente essa relao entre Antropologia e Psicanlise? Em

    sua opinio, como os conceitos psicanalticos poderiam ser utilizados para

    pensar a antropologia?

    CHRISTIAN DUNKER Mas que timo mapa do problema vocs colocaram! E

    certamente ele converge para o problema central. Sim, de um lado temos o

    equvoco empirista, que faz a psicanlise advogar uma espcie de teoria universal

    do desenvolvimento infantil, que no se sustenta diante da crtica antropologia da

    diversidade cultural; e de outro lado temos a anexao demasiadamente idealista,

    que toma antropologia por mais do que ela , ou seja, torna ela o que alguns

    autores chamam de antropologia filosfica. Entendo que a crtica de Kroeber

    um tanto indireta, se baseia mais no apoio que Freud tira de Frazer do que das 2 MALINOWSKI, B. Sexo e Represso na Sociedade Selvagem. 2.ed.Petrpolis, 2000. 3 KROEBER. A. L. Totem and Taboo: An Ethnologic Psychoanalysis. American Anthropologist. New Series, Vol. 22, No. 1. Jan. - Mar., 1920, p. 48-55. 4 LACAN, J. Da psicose paranoica em suas relaes com a personalidade 5 SIMANKE,R. Metapsicologia lacaniana. Ed. UFPR, 2002.

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    teses psicanalticas elas mesmas. Argumento inverso, mas correlato, se pode

    extrair das crticas contra Lacan e seu apoio no discutvel Kojve. Ora a

    perseverante mudana de apoio exatamente o que se espera de uma

    fertilizao cruzada entre disciplinas. Ela no deve ser recusada com a uno

    preliminar de anacronismo, entre disciplinas h sempre um retardo de

    assimilao, o que at mesmo um trao de que estamos em uma dmarche

    cientfica. No sou antroplogo, mas tenho um palpite sobre por que a reabsoro

    antropolgica da psicanlise no funciona. porque ela, via de regra, se

    atravanca com os conceitos psicanalticos e no percebe, ou no est disposta a

    reconhecer, que nosso homlogo do dado etnogrfico so de um lado nossos

    casos clnicos, de outro, a regularidade (ou irregularidade) cultural das formas de

    sofrimento (a rica tradio clnico literria da psicopatologia). Os casos clnicos

    so sempre vistos como demasiadamente frgeis do ponto de vista etnogrfico,

    incompletos e parciais em sua exposio, no coletivos e formalizveis em sua

    descrio. Mas no diria que nossos analisantes, dos quais passamos anos

    escutando mitos individuais de neurticos, romances familiares, teorias sexuais

    infantis, fantasias e devaneios, giros discursivos e insistncias significantes, so

    apenas informantes de uma forma de vida com a qual teramos uma relao

    indireta. preciso reler o ltimo captulo de As Palavras e as Coisas, para lembrar

    como Foucault j havia indicado este problema: ns no interrogamos o homem,

    mas como possvel que tenha surgido um saber sobre este falso objeto.

    Psicanlise (pela transferncia) e etnologia (por sua relao singular que a ratio

    ocidental estabelece para a relao entre as culturas) estudam as persistentes

    formas de fracasso da humanizao. So ambas contracincias que se cruzam

    em perpendicular. Elas tm em comum, diria eu, certa relao comum de

    homologia com a negatividade. De acordo, somos os xams modernos, s um

    cientificismo tolo ver nisso um rebaixamento de nossa autoridade social. E os

    xams so sempre um tipo de antroplogo por dever de ofcio. A experincia

    clnica uma experincia antropolgica, no sentido do olhar viajante do

    antroplogo. O segundo ponto o que me parece mais prprio da antropologia

    nacional. Por motivos de formao o que se poderia chamar de escola de

    antropologia mdica, do estudo das modalidades de sofrimento, do impacto do

    adoecimento na vida coletiva, tornaram-se suspeitos. Como Lilian Schwartz e

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    tantos outros mostraram, este era o pior tipo de antropologia positivista brasileira

    (Nina Rodrigues, os higienistas, etc.), comprometida com ideologias de

    branqueamento e de progresso. Desta maneira, talvez o tema tenha se tornado

    maldito dificultando a importao psicanaltica, ou reduzindo nossa presena

    na matria a um normalismo ingnuo, de quem nunca leu nem Canguilhem,

    nem Foucault, nem passou pelas discusses bsicas no assunto. O que talvez seja

    mais difcil para o antroplogo perceber que a clnica est para a psicanlise

    assim como a poltica est para a antropologia. S quem acha que vai fazer

    etnografia de campo descomprometida e desinteressada, para produzir dados para

    uma poltica pblica neutra ou para uma acumulao universitria civilizatria,

    vai pensar que etnografia pura descrio de estados de coisas humanas. Assim

    tambm o clnico est interessado na transformao das formas de vida com as

    quais ele se compromete. o que Lacan chamou de desejo do psicanalista, o

    que se denomina tica da psicanlise, o que torna a clnica um campo de

    descries e narrativas concorrentes acerca do que vem a ser o mal-estar, o

    sofrimento e os sintomas para uma determina poca ou cultura. Em geral os

    antroplogos mais distantes da psicanlise nos entendem como um tipo de

    colonizadores da alma, que fazem os pacientes falarem nossa prpria lngua, alis,

    uma lngua terica deslocada, com altos teores de radioatividade ideolgica

    etnocntrica. No Latesfip estamos tentando refazer o sentido do que seria um

    caso clnico (voltando ideia de fato social total). No queremos trabalhar

    com aplainamentos narrativos, com descries triunfalistas e confirmatrias, com

    a lgica inclusiva do caso a sua regra. por isso que precisamos

    desesperadamente de etnografia.

    R@U A despeito das analogias que se possa assinalar, Lvi-Strauss sempre

    demarcou a distncia de sua noo estruturalista de inconsciente ante aquela

    desenvolvida por Freud. Para Lvi-Strauss6 o inconsciente teria um carter

    puramente formal, vazio, como uma funo simblica que organiza o social em

    ao no indivduo, sem limitar-se a uma srie de contedos pr-estabelecidos e

    particulares, como considera o inconsciente freudiano. A cientificidade

    esquadrinhada por Lvi-Strauss a partir do modelo fornecido pela lingustica 6 LVI-STRAUSS, C. "Introduo a Obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, M., Sociologia e Antropologia, So Paulo: EDUSP, 2003.

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    estrutural, e a noo de inconsciente, que dela derivou, foi o que aproximou

    Jacques Lacan da antropologia de Lvi-Strauss (LACAN, 1998)7. Assim, as

    teorias lacanianas de estruturas clnicas e de um inconsciente estruturado

    como linguagem estabelecem um vnculo indito entre psicanlise e

    estruturalismo. Levando em considerao a proposta lacaniana de um retorno

    Freud, fale-nos um pouco sobre a associao estabelecida por Lacan entre esses

    dois referenciais tericos, Lvi-Strauss e Freud, em sua verso psicanaltica do

    estruturalismo.

    CHRISTIAN DUNKER Lacan usou o mtodo estrutural para sanear o que ele

    mesmo detectava como intolervel em um certo entendimento do inconsciente

    freudiano. A anlise de Simanke correta a este respeito, Lacan adia, hesita e

    chega a duvidar da necessidade de um inconsciente composto por representaes

    e seus contedos, que nos seriam acessveis por uma hermenutica. Sua

    recalcitrncia no desprovida de tentativas de contornar o conceito com outras

    noes similares: imago, complexo, identificao ou mesmo estrutura social. Isso

    se deve s suas leituras crticas em epistemologia da cincia, efetuadas ainda nos

    tempos da psiquiatria: Meyerson, Politzer, Bataille. Notemos neste ltimo o

    pendor antropolgico. Ele s se reconcilia com o conceito de inconsciente quando

    encontra Lvi-Strauss, e lembremos que eles tinham o mesmo professor de

    matemtica (Guielbault) e os mesmo colegas matemticos (Andr Weil) e depois

    os mesmos amigos linguistas (Jacobson). Portanto o inconsciente composto por

    formas simblicas vazias, no representacionais, que so a matriz lgica de

    operaes de troca, em suas variantes de substituio metafrica ou metonmica

    o que Lacan usa para sanear o restava de romntico e expressivista no

    inconsciente freudiano. neste sentido que o saudoso antroplogo Luiz Tarlei

    Arago, apresentou no famoso congresso sobre o Inconsciente Vrias Leituras,

    ocorrido nos anos 1980, que o inconsciente de Freud no tinha relao com o

    inconsciente de Freud, e que na verdade Lvi-Strauss teria tomado a noo

    freudiana e a reinventado. De certa forma foi o que Lacan fez tambm. As

    diferenas comeam quando lemos esta expresso que vocs empregaram o

    social em ao no indivduo. Em paralelo com a influncia estruturalista Lacan

    7 LACAN, J. Escritos. Ed. Jorge Zahar, 1998.

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    realiza uma crtica do indivduo como categoria sociolgico atomizada que se

    expressava em uma teoria do narcisismo incongruente. Ou seja, esta oposio

    indivduo sociedade funciona de forma anmala em Lacan, porque o indivduo

    no o sujeito, o sujeito no s o particular, sua diviso se d pelo fato de que

    ele tambm lugar do universal (o tabu do incesto, por exemplo, a marca desta

    universalidade). Quando se imagina que a psicanlise lida com indivduos porque

    sua clnica se exerce com indivduos e da se conclui que sua teoria

    individualista, no leu a parte na qual Lacan afirma que o indivduo no o

    sujeito e o que ns escutamos na clnica o sujeito. Esta a categoria chave e

    difcil no dilogo Lacan Lvi-Strauss, sujeito, no inconsciente. Dito isso fica mais

    claro por que as formaes do inconsciente podem ser redescritas em termos de

    suas estruturas de linguagem: o sintoma com a metfora, o desejo com a

    metonmia, o trabalho do sonho pelo discurso, a realizao do desejo pelo

    fechamento da significao, o recalque com a negao, o representante da

    representao pelo significante, o valor pelos processos primrios de insistncia do

    significante, a significao pelos processos secundrios de consistncia do sentido,

    a funo paterna com o ponto de basta (ou de deteno da significao), a

    considerao de figurabilidade pela escrita. O que Lacan realmente tem

    dificuldade de localizar em sua estrutura de linguagem o sujeito. s vezes ele o

    aproxima da letra (ltre), outras vezes ele o associa provisoriamente ao lugar do

    significado, ou do shifter (dixico), s vezes ainda ele o desloca do registro

    simblico (que d a estrutura do inconsciente) e o aproxima o do registro real.

    Esta estratgia terica muda um pouco quando se trata de mostrar como os

    quadros clnicos, eles mesmos obedecem a uma estrutura da linguagem. A

    demonstrao para a histeria funciona melhor do que para a neurose obsessiva, a

    psicose acaba sendo prejudicada em sua deduo da neurose. A perverso decorre

    de uma comparao estrutural totalmente diferente. justamente este captulo

    pelo qual ns nos interessamos mais, ou seja, como uma determinada gramtica

    de sofrimento pode ser posta em sua estrutura de linguagem, o que se presta por

    um lado a sua desnaturalizao, e por outro nos move para debates muito

    interessantes sobre os limites da linguagem.

  • @ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.3, n.2, jul.-dez., p.121-146, 2011

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    R@U Como apontado, o problema maior com o qual a teoria lacaniana se

    depara o sujeito e no o inconsciente, uma vez que esse ltimo pode ser

    descrito em termos de sua estrutura de linguagem, o sintoma com a metfora,

    o desejo com a metonmia e o trabalho do sonho pelo discurso. Sobre o sonho,

    Lacan8 aps sua leitura do Cru e Cozido9, chega a sugerir que sejam coletados

    e analisados ao modo das mitolgicas. Isso parece indicar que o psicanalista

    acreditava em uma homologia entre a estrutura dos mitos e dos sonhos. Lvi-

    Strauss, por sua vez, em a A Oleira Ciumenta10 reconhece o carter estrutural

    dos sonhos, o que no quer dizer que ambos, sonho e mito, se encontrem no

    mesmo plano de significao. Contudo, se essa homologia se comprovasse isso

    significaria dizer que, assim como o mito, o sonho se colocaria para alm da

    linguagem. Desse modo, uma reformulao da teoria dos sonhos, embasada

    etnograficamente, poderia dar conta desse sujeito, que sempre parece escapulir

    de descries em termos de estrutura de linguagem? Dentro dessa temtica do

    sonho e de uma coleta sistemtica desses, dado etnogrfico e dado da clnica

    poderiam ser conciliados, apontando, assim, para a formulao de uma teoria

    do sujeito, que problemtica no s da antropologia e da psicanlise, mas das

    cincias humanas?

    CHRISTIAN DUNKER De certa forma a psicanlise manteve-se ao largo de uma

    vaga de pensamento que cobriu de desconfiana o conceito de sujeito,

    argumentando pela sua prescindibilidade. De certa forma foi apenas no interior

    do chamado pensamento crtico que a noo de sujeito, resistiu e se aprofundou,

    apesar das objees em contrrio, notadamente referidas aos compromissos

    metafsicos carregados em seu interior. Mas na aproximao entre sonho e mito

    h algumas diferenas substncias, que talvez no nos remetam a variaes entre

    planos de significao. Ambos se mantm, para Lacan, estritamente no campo da

    linguagem. Ambos permitem aferir a estrutura de linguagem do inconsciente.

    Lembremos que h uma ordem especfica na descoberta freudiana: primeiro ele

    descobre o estrutura simblica dos sintomas ao estudar a histeria (1893) e neste

    escopo formula a hiptese do inconsciente. Hoje, nem sempre fcil lembrar que 8 LACAN, J. Escritos. Ed. Jorge Zahar, 1998. 9 LVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido (Mitolgicas vol.1). So Paulo: Cosac & Naify, 2004. 10 LVI-STRAUSS, C. A Oleira Ciumenta. Lisboa, Portugal: Edies 70, 1987.

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    h um segundo passo, representado pela Interpretao dos Sonhos (1900). Os sonhos

    permitiam justamente universalizar o conceito de inconsciente, antes restrito aos

    sintomas. Poderamos dizer que antes disso o inconsciente era uma espcie de

    patologia que ocorria em situaes clnicas particulares. Formava-se ento uma

    segunda conscincia, uma diviso (Spaltung), um grupo psquico separado

    uma espcie de doena que brotava na cabea das histricas. A localizao dos

    mesmos processos formativos (condensao, deslocamento, considerao de

    figurabilidade, censura, processos secundrios, etc.) no sonho, desfazia assim uma

    tese importante historicamente, de que entre o normal e o patolgico h um

    descontnuo qualitativo. Em vez disso passamos a pensar a patologia como

    exageraes, isolamentos, miniaturizaes ou suspenses de processos de outra

    forma universais, esperados ou previstos, pelos menos como possibilidade, na

    constituio do sujeito. Contudo, no porque sintoma e sonho possuam uma

    homologia estrutural que eles so um nico e mesmo fato clnico. Queremos que

    os sintomas nos larguem, mas aquele que quiser se curar de seus sonhos tem um

    problema adicional mais srio. Sofremos com nossos sintomas, mas nem sempre

    com nossos sonhos. A posio do eu diferente, o carter repetitivo tambm. A

    tese de Lacan que o mito equivale neurose, e em um sentido um pouco

    reduzido da neurose, que a sua fantasia. A fantasia se expressa e coordena os

    sintomas e os sonhos, mas certamente algo diferente destes. Como se a fantasia

    fosse a gramtica de possibilidades e limitaes e os sintomas e sonhos fossem os

    casos contingentes tornados necessrios por suas ocorrncias. Mas o mito, neste

    caso deve ser tomado como um mito problemtico, um mito patolgico se voc

    quiser, porque ele perde sua funo coletiva, sua caracterstica oral-narrativa (alis

    isso que torna fundamental os protocolos de lembrana, rememorao,

    retomada de afetos), sua funo integrativa, sua dimenso referencial. O mito

    individual do neurtico, tem duas sries fundamentais: as teorias sexuais infantis (no

    qual, por exemplo, a criana imagina que as crianas nascem pelo nus, ao modo

    das fezes, em decorrncia de algo que a me comeu) e o romance familiar do

    neurtico (no qual, por exemplo, a criana se imagina filha de outros pais, que seus

    pais atuais so impostores, etc.). Ou seja, temos que incluir no conceito

    psicanaltico de mito, duas formaes de discurso que um etnlogo talvez

    hesitasse em qualificar como mito, ou seja, as teorias (como as teorias cientficas)

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    e os romances (como gnero literrio). Um mesmo mito remete a vrios

    fantasias, e um mesmo sintoma remete vrias fantasias. por isso que a relao

    mais rigorosa entre mito e fantasia. E estrutura da fantasia equivalente da

    estrutura do mito. Esta a tese que Lacan aprofunda depois de A Oleira Ciumenta,

    na qual Lvi-Strauss reaplica cinco vezes o seu instrumento chamado a frmula

    cannica do mito. A frmula cannica no vale para um mito em particular, nem

    para uma famlia de mitos, mas para todos os mitos possveis. O mito est para a

    fantasia assim como os sintomas e sonhos esto para os mitemas. assim que

    Lacan chega escrita da frmula da fantasia, como o conjunto de todas as

    relaes possveis do sujeito (barrado, dividido) e o objeto, menos uma. A nica

    relao proibida na gramtica da fantasia, entre sujeito e objeto a identidade.

    Ora, em O Cru e o Cozido, Lacan absorve de Lvi-Strauss o modelo topolgico da

    frmula cannica que a garrafa de Klein e que corresponde estrutura da

    fantasia para Lacan dos anos 1964. Portanto, quando Lacan menciona o catlogo

    dos sonhos a ser lido ao modo das mitolgicas ele est colocando prova sua

    teoria da fantasia, convidando os estudiosos a encontrar na prtica clnica o

    mesmo tipo de correlao entre fantasia e sintoma que o antropologicamente se

    poderia verificar entre mito e sonho. A ideia de uma concepo transversal de

    sujeito, que poderia unir as cincias humanas em um mesmo programa de

    pesquisa, talvez no seja nem muito factvel nem muito desejvel. Ao contrrio,

    penso que o solo comum deve ser a linguagem, as formas simblicas, as

    regularidades do pensamento selvagem, as estruturas lgicas. A necessidade do

    conceito de sujeito tico-poltica, o que significa que cada programa de

    investigao deve ponderar este conceito segundo seus interesses prticos e seu

    desejo prprio.

    R@U Ainda dentro da temtica do inconsciente, h outro ponto que se

    apresenta como nodal. O inconsciente levistraussiano, o qual Lacan toma pelo

    menos de emprstimo nas primeira fases de sua obra, revelado como

    universal e espontneo, aponta para a lgica de uma razo natural, uma vez

    que h uma homologia entre as estruturas desse inconsciente e aquelas

    encontradas pelas cincias da natureza, o que o identificaria com a ordem do

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    universo (Lpine, 1979)11. Como ficaria definido esse inconsciente dentro do

    corpus lacaniano aps a incorporao de uma concepo de multinaturalismo?

    Quais seriam as implicaes metodolgicas para a clnica?

    CHRISTIAN DUNKER Ponto muito sensvel, porque e aqui minhas observaes

    ficam sujeitas a correo pelos estudiosos da obra de Lvi-Strauss at onde

    acompanho o argumento no se trata de uma naturalizao da razo, mas de uma

    propriedade intrnseca do que chamamos de razo, ou seja, certa propenso a

    identificao. Mas uma identificao (como processo) que no se acasala de

    forma terminal com o produto (identidade). Ocorre que a ordem do universo

    exatamente o que se diz, ou seja, uma ordem. O inconsciente estruturado como

    uma linguagem uma ordem deste tipo, uma ordem simblica, que a cada

    incidncia sobre o sujeito produz efeitos de identidade e identificao, cujo hiato

    o que nos chamamos de desejo. Mas h outra maneira de entender o inconsciente,

    que o associa com a negao da ordem. Se a ordem aquilo que faz Um,

    podemos pensar tambm no que fracassa ao fazer Um (por exemplo a dimenso

    humana da sexualidade ou da proporo entre os gneros). Isto que alguns

    chamam de inconsciente real estaria definido justamente pela no identidade a

    si, pela no representabilidade, pela no ordem (no sentido da contagem e da

    formao de conjuntos). Ora isso que no cessa de no se inscrever, ao qual

    Lacan sempre ligou com o registro do impossvel (lembremos que a ordem uma

    articulao entre possibilidade e necessidade), adquire valncia neutra no quadro

    de uma oposio simples entre natureza e cultura. A natureza Una, porque ela

    faz ordem, e as culturas reencontrariam um similar desta unidade ao reconstituir-

    se, por operaes de identificao prprias ao pensamento (selvagem), como um

    sistema composto por outros sistemas simblicos. Mas se levamos em conta o

    conceito lacaniano de real teramos que admitir a existncia de uma natureza no

    una, de uma multi-natureza. No precisamos apelar para a fsica quntica ou

    para os Bson de Higgs para advogar a utilidade descritiva e conceitual deste tipo

    de materialismo, os Arawet j nos do um testemunho razovel e suficiente

    sobre isso.

    11 LPINE, C. O inconsciente na antropologia de Lvi-Strauss. Ed. tica , So Paulo, 1974.

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    R@U No artigo recentemente publicado, voc afirma que a noo de

    perspectivismo e multinaturalismo amerndio desenvolvida por Viveiros de

    Castro pode auxiliar conceitualmente a diagnstica psicanaltica, afastando o

    aspecto totmico/classificatrio encarnado pela autoridade paterna (ou

    metfora paterna, nome-do-pai, lei simblica) produtora de sintomas

    psquicos. Fale um pouco sobre essa relao entre diagnstica lacaniana e a

    noo de totemismo desenvolvida por Lvi-Strauss.

    CHRISTIAN DUNKER Aqui voltamos ao tpico da segunda interpretao da tese

    de que o inconsciente estruturado como uma linguagem, ou seja, a de que as

    estruturas clnicas se estruturam como uma linguagem, uma vez que a neurose, a

    psicose ou a perverso seriam elas tambm formaes (meta-formaes) do

    inconsciente. neste momento que Lacan toma a determinao da neurose ou da

    psicose como uma certa modalidade de incluso da funo simblica do pai, na

    formao da gramtica do desejo do sujeito. Ele associa a funo paterna ao

    conceito de lei, e este conceito possui dupla chave: lei como propriedade ideal dos

    sistemas simblicos e lei como matriz de convenes e regras sociais. A ligao

    entre as duas formas de lei nos daria a razo explicativa da humanizao do

    desejo, da socializao do sujeito, da identificao tpica que dele se espera at o

    limite do tipo ideal de seu sexo. Assim a diferena entre neurose ou psicose

    uma diferena na maneira de interpretar a soldagem entre estas duas formas de

    lei, e continuamos no registro da estrutura de linguagem, mas agora ampliado

    para o conceito limite de lei da linguagem. Ora o pai incide neste processo no

    como pessoa global ou como agente procedural, mas como nome (outro

    aspecto ainda no pareado da linguagem ao inconsciente). A lgica dos nomes os

    torna significantes especiais, que marcam a filiao e a descendncia, s vezes a

    aliana e a genealogia. No caso do Nome-do-Pai lacaniano ele articula

    metaforicamente duas sries de relaes: a srie das trocas me-criana

    (metonmia) e a srie da relao suposta pai-me. assim que o falo, produto e

    razo desta metfora, se instala no inconsciente, como posio representativa da

    falta no campo do Outro. Ele se instala por uma operao que ao mesmo tempo

    uma metfora e uma negao. A negao o similar lingustico da interdio, ou

    seja, do tabu do incesto. O Outro para Lacan o lugar de onde recebo minha

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    prpria mensagem invertida, mas tambm o discurso do inconsciente (a ordem

    simblica ela mesma) que presume e torna a lei de linguagem semelhante lei da

    interdio. Se diz ao pequeno dipo: voc vai crescer e ser como teu pai e poders

    casar com uma mulher que ser como sua me. Perceba-se neste como se a fora

    estruturante da metfora para a orientao do desejo. Portanto, tudo depende

    desta metfora e esta metfora depende do fato de que as relaes sociais so

    todas elas conversveis a trocas que possuem esta estrutura. Mas isso nos levaria a

    ler as posies sociais organizadas pela interdio, esta interdio que diz

    quem quem, e esta interdio possui uma estrutura totmica. Portanto, a

    teoria das estruturas clnicas em Lacan, desenvolvida entre 1954 e 1958, uma

    teoria totemista, como muitos aspectos da psicanlise. E uma teoria totemista no

    fundo uma teoria da gnese da identidade: do sujeito, do desejo, do Outro. Mas

    isso no quer dizer que a identidade gerada pela combinao entre negao e

    diviso seja a ltima palavra, na obra de Lacan, sobre a produo de sintomas. A

    teoria de sexuao e a concepo dos trs registros (Real, Simblico e Imaginrio)

    so teorias, ao menos parcialmente, no totemistas. Ora, mas onde est a

    antropologia capaz de nos prover uma teoria das trocas simblicas e uma

    concepo da formao de no identidades no prprio Lacan? No h, ou pelo

    menos no sabemos dizer onde exatamente ela est (porque a parceria com a

    antropologia vai se desfazendo, assim como com a lingustica, nos ltimos

    desenvolvimentos da obra de Lacan). E esta uma dificuldade grave para

    fundamentao diagnstica. Alguns argumentam que a antropologia seria

    desnecessria para isso, pois poderamos trabalhar apenas com modelos lgicos e

    expresses literrias (James Joyce naturalmente o modelo deste tipo de relao

    no identitria com a linguagem). No penso assim, por isso nos interessa o

    perspectivismo amerndio.

    R@U A psicanlise lacaniana associa a funo simblica do pai lei, j que a

    metfora paterna se instala no inconsciente enquanto representao da falta,

    constituindo a formao da gramtica do desejo no sujeito. Com isso, a

    negatividade do desejo seria o similar lingustico da interdio do incesto. Para

    Lvi-Strauss, Freud explica com xito no por que o incesto condenado, mas

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    como inconscientemente desejado12, assim, no pensamento psicanaltico

    como se o universal no fosse a proibio do incesto, mas o desejo em costum-

    lo. Tal concepo refere-se a uma ideia de sociedade, cara a tradio intelectual

    do ocidente desde Santo Agostinho, passando Hobbes, Durkheim e tanto

    outros, em que se afirma a necessidade da regra, da lei, para refrear os

    instintos egicos dos indivduos e possibilitar o convvio social. A questo

    que a antropologia coloca psicanlise que a noo de sociedade to diversa

    quanto s formas de sociabilidade em que se apresenta. Como o prprio Lvi-

    Strauss salienta, o que se considera estrutural a troca suscitada pelas regras

    matrimoniais, a proibio do incesto menos uma regra que probe casar-se

    com a me, a irm ou a filha do que uma regra que obriga a dar a outrem a me,

    a irm ou a filha13, a proibio do incesto seria, ento, mais positiva,

    prescritiva, que negativa e proibitiva. Nesse sentido, como a etnografia, que

    remete a contextos sociais to diversos, pode servir para esta redefinio da

    diagnstica psicanaltica?

    CHRISTIAN DUNKER Um dos benefcios que Lacan traz da leitura estrutural (em

    sentido antropolgico) do inconsciente e dos grupos clnicos diminuir o

    empirismo que dominava a matria. A interdio e o desejo so uma nica e

    mesma coisa, como uma folha de papel que se recortamos um lado o outro vir

    junto. Isso leva a uma concluso importante. Que seu pergunta tambm sugere,

    ou seja, que o incesto no fundo impossvel. exatamente isso, o neurtico

    defende-se de algo que em si impossvel, e, portanto, no importa se

    impossvel com a me, com a av ou com a tia trobriandesa. O convvio social

    pode ser analisado tanto do ponto de vista da regra (ou seja, das trocas e das

    relaes), quanto do ponto de vista das articulaes de desejo (ou seja, dos objetos

    que circulam e das palavras que se trocam em deslizamentos). Foi exatamente

    este movimento que vocs apontam que permitiu a Lacan inverter o sentido do

    conceito de superego, que em Freud tem uma conotao interditiva

    (interiorizao das restries e renncias impostas pelos pais ao longo da

    edipianizao-humanizante), quanto imperativa. Da que encontremos em Lacan,

    12 LEVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares do Parentesco. 3.ed. Petrpolis: Ed. Vozes, 2003, p.55) 13 Ibid. p.522.

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    depois de um primeiro dualismo entre desejo/lei, um segundo dualismo entre

    desejo/gozo. Neste ltimo caso h tanto uma retomada do problema do dom,

    quanto a introduo de um objeto que se pode ceder de forma particular (a cesso

    privativa), mas no se pode propriamente compartilhar, ou seja, o objeto a. A

    negao, por sua vez um processo mais amplo do que a interdio ou renncia,

    a negao em Lacan, uma forma de constituir objetos (inclusive objetos

    impossveis para a fantasia de incesto ou de castrao).

    A segunda parte da pergunta merece destaque. E se a diversidade das culturas

    fosse tornada homloga da diversidade das patologias? E se alterssemos de tal

    forma a noo de patologia, tornando-a um conceito social, tanto no sentido de

    que depende das formas de sociabilidade em sua expresso, quanto no sentido de

    que teramos diferentes formas de estar em uma cultura, uma sociedade e um

    sistema simblico, que nos remetem a diferentes formas de constituio de

    sujeitos. Neste caso tudo dependeria de quanto estamos dispostos a contar como

    diferenas que fazem realmente diferena. preciso repensar as noes de

    marginalidade e de pertencimento, em sentido antropolgico, de tal forma que

    estas sistematicamente remetem a fenmenos sazonais ou perifricos, como o

    adoecimento. H uma crena muito forte no poder da identidade social, e na

    normalidade genrica, que desconhece como a diversidade pode ser a regra e no

    a exceo no campo da psicopatologia. Esta uma parte difcil da histria porque

    a primeira releitura que Lacan faz dos processos defensivos, em termos de

    modalidades de negao (recalque, foracluso ou renegao) de natureza

    dialtica e no estrutural. No fundo os tipos de patologias como a neurose ou

    perverso e a psicose nada mais so do que formas diferentes de dizer no, sendo

    a forma tida por ideal a cada momento, apenas uma questo de hegemonia ou de

    imposio funcional. H que se reincorporar na psicopatologia uma teoria da

    loucura, que nos d o limite e a possibilidade da liberdade humana. Por que

    existem vrios problemas homlogos a este em antropologia: as castas, os

    estamentos, os subgrupos e cls. Geralmente estes grupos so pensados em termos

    de valncia de poder ou de economia, ou de aliana ou de parentesco. E se

    pensssemos a psicopatologia desta maneira? Tornando-a uma questo ao mesmo

    tempo universal, pensvel no quadro de uma poltica das diferenas, mas no

    indiferente s modalidades de sintomas, de sofrimentos e de relao com o mal-

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    estar. De certa maneira isso j est acontecendo, mas da pior forma possvel, da

    maneira menos crtica e com alta reduo da biodiversidade. S que em vez de

    pensar a patologia como universal que ainda no pode ser reconhecido (conforme

    a teoria do inumano de Vladimir Safatle) ou como universal que no pode mais

    ser reconhecido, a tendncia na matria substituir esta dimenso de

    universalidade (que s a antropologia ou a psicanlise poderiam sustentar) por

    prticas de totalizao envolvendo manuais classificatrios, supermedicalizao,

    superdiagnstico, quando no prticas de segregao, que em vez de tomar o

    particular como particular o entendem como mera exceo. simplesmente um

    erro de perspectiva achar que exceo significa poucos. Exceo pode significar

    a maioria e at mesmo quase todos, e ainda todos menos um. Mais uma

    vez Lvi-Strauss, contextos sociais to diversos podem partilhar formas

    mitolgicas comuns. Sob certas condies minha experincia pode estar muito

    mais prximo de um indiano ou de um habitante das plancies siberianas, do que

    de algum que mora h algumas quadras de minha casa.

    R@U De acordo com as colocaes de seu artigo, os trs pilares da diagnstica

    lacaniana so a linguagem, o trabalho e o desejo, todos relaes, o que

    demonstraria o carter relacionalista e no relativista dessa diagnstica.

    Tornando vivel, desse modo, uma homologia entre o perspectivismo animista

    e a diagnstica lacaniana. Levando-se em conta a viabilidade dessa homologia,

    haveria lugar possvel ou um papel operatrio do desejo dentro da teoria de

    Viveiros de Castro?

    CHRISTIAN DUNKER No iria to longe. Certamente desejo e linguagem so

    duas categorias maiores da diagnstica lacaniana, mas a ideia de introduzir o

    trabalho como terceira dimenso necessria para falar em uma forma de vida, e

    da entender o diagnstico como reconstruo de uma forma de vida, corre por

    nossa conta. A diferenciao entre relacionalismo e relativismo crucial. Quando

    desconhecemos que existem formas radicalmente distintas de estar no mundo, do

    ponto de vista do uso da linguagem e da insero nas prticas humanas,

    entendidas como sistemas de trocas simblicas, vamos nos deslocar para um

    entendimento, vamos dizer relativista, por exemplo, da psicose. A psicose no a

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    loucura, e muito importante reconhecer a dimenso diagnstica de ambas,

    mesmo que a loucura tenha sido excluda do discurso psiquitrico, e tambm

    parcialmente do discurso psicanaltico. A experincia psictica no uma

    experincia relativa, um ponto de vista incorrigvel ou corrigvel, mas, sobretudo,

    um ponto de vista, uma espcie de escolha. Ocorre que ns no conseguimos

    pensar que existam este tipo de varincia ou de invarincia se no apelamos

    para a existncia de um universal, e deste universal para sua definio na

    natureza, e da natureza para a ideia de natureza unria. Logo, ou a psicose

    reduzida a um tipo de loucura culturalmente sobredeterminada ou ela uma

    forma de doena dos circuitos cerebrais. Ora, no que a psicanlise esteja de um

    ou de outro lado desta oposio, mas que para ela esta oposio mal colocada,

    mas at agora no sabemos dizer muito bem porqu. Argumentos do tipo a pulso

    conceito limite, entre o psquico e o somtico, ou que o corpo em psicanlise

    um corpo falado, fantasiado, so argumentos defensivos, nominalistas e

    meramente metodolgicos. Ora a psicose uma experincia que exige ser pensada

    no quadro de um relacionalismo, ou seja, que ultrapasse a identificao entre

    forma social e totemismo. Nesta via suas descries sero sempre deficitrias:

    foracluso do nome do pai, fracasso de simbolizao, perda de contato com a

    realidade, crena no admitida pela sua poca, grupo ou estado social (neste

    sentido o DSM um tratado de etnocentrismo). Ora o animismo perspectivista,

    nos permite inverter problema. Em uma ordem social deste tipo, ou

    hegemonicamene assim organizada, ou que comporte solues deste tipo para

    problemas como parentesco, filiao, aliana e principalmente xamanismo

    (funo xamnica transversal) podemos entender muito melhor a precariedade da

    separao entre humanos e no humanos, formas transformativas da alma (e da

    identidade), experincia de vestimentas corporais instveis, e uma gama de

    relaes com o que chamamos de experincias produtivas de indeterminao. Ou

    seja, a articulao entre o que Lacan chama de Real, e a funo do Nome-do-Pai

    pode e deve ser pensada clinicamente luz de pelo menos duas antropologias

    no redutveis entre si: totemismo e animismo, ontologia fixa e ontologia varivel

    (em nosso caso ontologia negativa). A situao clnica onde isso foi pensado de

    forma mais sistemtica por Lacan so as chamadas frmulas da sexuao.

    Encontramos Viveiros de Castro quando pesquisvamos justamente esta

    possibilidade de reinterpretao da teoria lacaniana das estruturas clnicas

  • @ Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.3, n.2, jul.-dez., p.121-146, 2011

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    (definidas pela metfora paterna, pela gramtica de negao, pela posio do falo)

    luz da teoria da sexuao (definida pela no dualidade e pela dupla toro no

    reflexiva da gramtica do reconhecimento). A aproximao comeou a ficar mais

    rigorosa ainda quando reencontramos um aspecto pouco desenvolvido nas

    produes posteriores a 1950 em Lvi-Strauss, ou seja a ideia de frmula cannica

    do mito [ F(a) : F(b) = F (y)b : Fa-1 (x)]. Vimos que esta frmula, talvez sugerida

    por Andr Weil a matriz epistemolgica dos processo de formalizao da

    psicanlise em Lacan (cujo momento maior talvez seja as frmulas da sexuao).

    Ainda no estamos muito seguros disso, mas seria possvel que justamente o

    quarto grupo da frmula [(Fa-1 (x)] seja o ponto de contato ou de comutao

    entre as estruturas totmicas e as estruturas animistas. Disso se poderia

    depreender outra maneira de pensar o universal, congruente com o

    relacionalismo, mas tambm com outros desenvolvimentos contemporneos sobre

    a dialtica e a lgica. O importante que totemismo (sacrificial) e animismo

    (perspectivismo) no formam nem uma unidade nem um novo dualismo. S

    assim conseguimos sair do neurtico-centrismo e rever criticamente o conceito de

    sofrimento e de sintoma. Mas isso ainda mais uma hiptese de trabalho do que

    uma concluso.

    R@U No artigo voc prope uma redescrio da diagnstica lacaniana a partir

    da noo de formas de vida como conceito til a uma metadiagnstica da

    modernidade. Dessa maneira, a psicopatologia psicanaltica ganharia um

    estatuto de teoria social? Explique-nos, de que se trata essa metadiagnstica

    e como a teoria psicanaltica pode render conceitualmente para uma teoria

    crtica do social.

    CHRISTIAN DUNKER preciso fazer uma espcie de crtica da razo diagnstica,

    no s em psicanlise, mas em teoria geral. Isso significa perguntar pelas

    condies de possibilidade e pela racionalidade histrica que condiciona tanto a

    formao dos grandes sistemas psiquitricos, psicolgicos, psicopatolgicos e

    psicanalticos quanto pela forma mida, de nomear, interpretar e partilhar o

    sofrimento psquico. No estamos apenas no plano das variaes das formas

    expressivas da doena mental, das suas prevalncias e visibilidades ao longo da

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    histria, o que no fundo confirma uma nica essncia (mono-naturalismo) que se

    manifesta de modos culturalmente variveis ao longo do tempo e das

    comunidades (multi-culturalismo). Para tanto temos que incluir a psicanlise

    como um efeito e uma condio a modernidade. Com isso somos levados a

    pensar estas espcies de pr-diagnsticos, ou de meta-diagnsticos, que so dados

    antes destes sistemas se implantarem como prticas e instituies. Aqui o mtodo

    foucaultiano, se bem que as concluses sejam um pouco diversas das que se

    obtm em Histria da Loucura e O Poder Psiquitrico. Esta no uma tarefa para

    muitos esforos convergentes em histria, antropologia, estudos em literatura

    comparada, filosofia e tudo o que se puder mobilizar para tal. Da que nosso

    conceito de base no possa ser o indivduo, o eu, a pessoa e at mesmo o sujeito,

    pois estas categorias j esto indexadas nesta mesma racionalidade diagnstica

    que pretendemos examinar genealgica e arqueologicamente. Tentei fazer um

    tiro de longa distncia, sobre isso, em meu livro Estrutura e Constituio da

    Clnica Psicanalitica. Sinteticamente a ideia que a interpretao dominante sobre

    o sofrimento na modernidade entende que ele se refere a anomalias, desajustes ou

    inadequaes em torno do excesso de experincia improdutivas de determinao.

    Essa a interpretao liberal, romntica e at mesmo de boa parte do pensamento

    crtico de esquerda. No a toa que ao final o conceito universal para a doena

    mental seja o conceito de desordem (disorder). A ordem, o sistema, as regras, as

    instituies, enfim os dispositivos de determinao. A famlia, o dipo (segundo

    uma certa leitura), a transmisso do desejo por via paterna so exemplos

    psicanalticos disso. Ocorre que h uma segunda poltica (uso o termo para

    excluir qualquer naturalizao deste processo) que no aparece necessariamente

    em formas constitudas de interpretar, regular, dispor, excluir, visibilizar, etc. o

    sofrimento mental. o que chamamos de segunda meta-diagnstica da

    modernidade, aquela que l neste arco de experincias uma espcie de dficit

    crnico de experincias produtivas de indeterminao. s vezes uma imagem que

    se tem desta perspectiva de que ela entende a loucura como um estado de

    genialidade, originalidade ou incompreenso social, o que francamente uma

    afronta ao nvel de sofrimento que encontramos em certas formas de vida.

    importante separar a psicose ou a perverso do mito neurtico-cntrico que v

    nestas experincias condies de libertao e xtases epifnicos. preciso pensar

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    uma psicopatologia que consiga ser tambm pensvel e descritvel desde o ponto

    de vista de perspectivas noneurticas e sua unificao entre lgica da

    identidade, diferena e negao. Ora, est na hora de tentar uma teoria clnica que

    seja ao mesmo tempo crtica. Uma prtica clnica que leve em conta sua histria,

    que incorpore as conquistas levadas a cabo pela teoria social crtica, que nos

    ltimos cinquenta anos importou conceitos psicanalticos, com os mais variveis

    resultados. Temos, para uso interno, um lema circulante boa clnica crtica

    social feita por outros meios. E disso est completamente excludo doutrinaes,

    identificaes, educaes mais ou menos ideolgicas de nossos pacientes. Ou seja,

    no se trata de um discurso a ser aplicado aos outros, como uma viso de mundo,

    converso ou perspectiva de vida, mas de uma atitude clnica, etnologicamente

    informada, que no fundo no se distancia da psicanlise bem feita. Mais uma vez

    os Arawet, o xam transversal uma espcie de diplomata, sem sexo, ou com

    todos os sexos, um trikster, errante e meio deslocado, algum que precisa resolver

    problemas prticos entre pessoas de lnguas (e s vezes mundos) diversos. Muito

    longe de algum que est querendo fazer com que os outros falem a sua lngua,

    querendo propagar a sua boa nova sobre a essncia que nos une em nossa

    comunidade, local ou universal (como o xam vertical) ou incitar os espritos

    guerreiros contra as diferenas exteriores que garante nossa identidade interior

    (como o xam horizontal). Trabalhamos, at aqui com uma espcie de gramtica,

    presente nestas duas meta-diagnsticas, compostas por processos de passagem

    entre o mal-estar, o sofrimento e o sintoma. Uma forma de vida, em uma

    definio recursiva, uma maneira de interpretar o mal estar (como conjunto de

    condies existencirias, como a angstia, a morte, o sexo, a finitude, o tempo),

    em termos de modalidades de sofrimento (como um campo de leitura e uma

    gramtica de reconhecimento, como o narcisismo, o dipo, a sexualidade) que sob

    certas circunstncias capaz de produzir sintomas (no sentido de formas

    simblicas). O Mito Individual do Neurtico, expresso de Lvi-Strauss

    reaproveitada por Lacan, exatamente isso, um mito (uma gramtica de

    reconhecimento que se efetiva na linguagem), individual (ou seja, a

    individualizao de uma modalidade de mal-estar, marcado pela perda do que

    seria o anti-indivduo seja, l como o nomeamos) e neurtico (ou seja, produtora

    de sintomas que caracterizam a neurose como um tipo de lao social, de

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    identificao, de registro de relao com o Real-Simblico-Imaginrio). O

    importante que uma forma de vida define-se pela maneira como ela fracassa em

    formar uma unidade, diferente, portanto, de um indivduo (este projeto sempre

    adiando inconcludo de formar um), de um ego (sempre formado por

    identificaes mltiplas), de uma pessoa (determinada por semblantes que seriam

    convergentes), ou de um sujeito (que para Lacan se define por sua diviso). Lacan

    usava s vezes a expresso vivente, que nos adaptamos para forma de vida.

    Ora, nestes termos temos que parar de imaginar que o diagnstico a nomeao

    de uma condio de exceo da qual o sujeito se torna concernido ou submetido.

    Um diagnstico no a alocao de um trao que te inclui em um conjunto, mas

    a construo de excees que explicitam como uma forma de vida fracassa em

    fazer unidade e identidade. No preciso aceitar territrios do tipo normalidade e

    patolologia como definies ontolgicas, mas tambm importante no recusar o

    patolgico em troca de um relativismo preguioso do ponto de vista clnico. S

    um multi-naturalismo pode nos ajudar a entender o diagnstico como

    reconstruo de uma forma de vida.

    R@U O subttulo de Totem e Tabu14 indica uma correspondncia entre a vida

    psquica dos selvagens e dos neurticos. Diante dessa assertiva, Lvi-Strauss

    indica com sua anlise estrutural dos mitos que, na realidade, existe uma

    correspondncia entre a vida psquica dos selvagens e dos psicanalistas15, ou

    seja, certas categorias e noes psicanalticas, como afeces orais e anais, j

    estariam presentes nos mitos amerndios, sendo apenas reencontradas pelos

    psicanalistas, e no descobertas por estes. Assim, para Lvi-Strauss, a grandeza

    e o mrito de Freud est, em parte, num dom que ele tem no grau mais

    elevado: pensar maneira dos mitos16. Nessa linha de raciocnio, podemos

    afirmar que, assim como Freud pensa maneira dos mitos, Lacan pensa

    maneira dos amerndios?

    14 FREUD, S. Totem e Tabu. Alguns pontos de concordncia entre a vida mental dos selvagens e dos neurticos. In: Obras psicolgicas completas. Edio Standard Brasileira. vol.XIII, Rio de Janeiro: Imago, 1996. 15 LVI-STRAUSS, C. A Oleira Ciumenta. Lisboa, Portugal: Edies 70, 1987, p.180. 16 Ibid, p.184.

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    CHRISTIAN DUNKER Sim, este uma questo de fundo, que dificulta muito o

    dilogo da antropologia com a psicanlise. Freud, e mais ainda os ps-freudianos

    produziram uma verdadeira psicopatologia baseada neste isomorfismo entre o

    selvagem, o psictico (mas tambm certos estados e funes de fantasia no

    neurtico) e a criana. Portanto, este isomorfismo era a chave que ligava as

    experincias psicopatolgicas, em suas particularidades (neurtica, psictica ou

    perversa) aos eventos geneticamente formativos na passagem do estado de

    sociedade e da hominizao, e estes s exigncias universais do desenvolvimento

    de qualquer criana. A aproximao freudiana mais o nome de um problema do

    que de uma soluo, ou seja, como entender a o papel determinante da

    transmisso cultural, das ascendncias e das narrativas comunitrias na

    determinao dos quadros patolgicos? No h dvida de que nossa forma de

    sofrer tem que ver com a forma como nos inserimos e como nos interpretamos na

    histria que nos precedeu, o problema como. Para Freud haveria uma espcie de

    recapitulao antropolgica, o que no parece ser o melhor modelo para entender

    este processo, mas isso no afeta a dignidade do problema. Tambm no h muita

    dvida de que as formaes psicopatolgicas, a escolha de sintomas, sua

    expresso e reversibilidade, se relacionam fortemente com nossa histria

    individual, com nossas experincias infantis, com a maneira como lembramos,

    como narramos e como articulamos os hiatos de uma histria biogrfica. De

    novo a questo como isso se relaciona com uma rea dura como a psicologia do

    desenvolvimento. Neste caso a crtica de Lvi-Strauss no muito boa, porque

    Freud jamais pensou ter descoberto tais afinidades em termos de organizao

    pulsional ou gramticas de reconhecimento, de fato ele sempre remetia esta

    evidncia aos mitos, lendas, insistncias histricas e assim por diante. Ou seja, a

    psicanlise no interpreta esse material cultural, dando-lhe um novo sentido, mas

    apenas confirma ou reencontra a importncia destas interpretaes mais ou

    menos regulares que encontramos em diferentes pocas. E sim a correspondncia

    entre a vida selvagem (o pensamento selvagem?) e o psicanalista. S bastaria

    acrescentar que a psicanlise existe para ajudar cada qual a levar adiante sua

    prpria anlise, ou seja, somos todos psicanalistas de ns mesmos, ou de nossa

    prpria experincia. Mais uma vez recorro a Viveiros de castro, ou ao

    entendimento que venho tendo de seus trabalhos, ou seja, o xam no uma

    pessoa, mas uma funo social. Sim, o psicanalista um bricoleur em sua atividade

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    clnica, como si acontecer ao xam. Nos dois casos o autor de Tristes Trpicos

    tem toda razo e isso que a psicanlise veio a reconhecer. Sim, Freud pensa

    maneira dos mitos, mas lembremos que os mitos so a forma como nos pensamos

    a ns mesmos para alm de ns mesmos. Exatamente o que Lacan, em alguns

    momentos de sua obra, mas no em todos, consegue fazer pensar certos mitos (e

    ritos) que de certa maneira s so pensveis ao modo do perspectivismo

    amerndio e no dos mitos totmicos sacrificiais. Em meu livro sobre o Clculo

    Neurtico do Gozo, estudei a lgica sacrificial do neurtico que comanda sua

    economia de gozo. Na poca pensava em opor a antropologia do dom (Mauss,

    Caill ... e Bataille) antropologia das trocas (estruturalismo). O clculo do gozo

    a disparidade entre a lgica do falo, que gera proporcionalizaes de diferenas e

    a lgica do objeto a, que decompe a unidade especular e dissolve as condies de

    identidade pressupostas pela troca. J na ocasio meu interesse clnico centrava-se

    no que chamei de formas no clssicas de neurose (neurose de destino, neurose,

    traumtica, neurastenia, neurose de angstia, etc.), desconfiando da eficcia de

    interpretar tais sintomas no quadro das regras do totemismo edipiano. Sim,

    definitivamente h muitas coisas em Lacan que se agrupam em torno do

    perspectivismo amerndio: a escrita chinesa, os padadoxos, Joyce, os ns

    borromeanos, certos aspectos de sua teoria da angstia.... Alis neste ltimo

    ponto h um exemplo crtico, que reputo como plenamente legvel luz do

    perspectivismo no Seminrio sobre a Angstia, no qual Lacan compara o

    encontro de um homem com uma mulher como se este estivesse diante e um

    louva-deus fmea gigante. Sabe-se que nesta espcie de inseto a fmea come a

    cabea do macho durante a cpula. Pois diante de uma louva-deusa gigante seria

    urgentemente preciso saber se a perspectiva que ela assume sobre mim a mesma

    que eu assumo com relao a ela, ou se ela no estaria vendo por baixo de minha

    pela humana um louva deus macho? Ou seria o homem que v diante de si uma

    mulher vestida de louva-deusa, que se v como homem porque v a si mesmo

    diante de uma mulher disfarada de louva deusa? Enfim encontro na mata ... ou

    os Arawet entre ns ...