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Entre vozes dissonantes: Igreja do Rosário dos Homens Pretos do Paissandu como Patrimônio Cultural da Cidade de São Paulo. (1989- 1992) Se a venerável Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo pôde comemorar seus quase três séculos de existência, é porque, ao longo de sua trajetória sempre pode contar com a dedicação de seus valorosos irmãos. O fato de ser tão raro que sejamos os sujeitos no processo de resgate da nossa Memória histórica, só faz aumentar a importância do presente trabalho. (AMARAL, 1991,p.5) O trecho acima foi retirado da apresentação do Livro, Os Pretos do Rosário de São Paulo: subsídios históricos, escrito por Raul Joviano do Amaral 1 , um dos integrantes da irmandade do Rosário. O atual livro foi escrito para ser publicado no ano de 1988 durante as comemorações do centenário da abolição da escravatura no Brasil, mas em decorrência do falecimento do autor, no ano de publicação do livro, o mesmo só foi publicado no ano seguinte, em função dos esforços dos outros integrantes da irmandade do Rosário. Como visto acima, na epígrafe extraída do livro, os integrantes da irmandade ao apresentar o trabalho realizado por Raul Joviano do Amaral, vangloriam a permanência desta confraria que comemora seus quase três séculos de permanência em São Paulo, oferecendo a glória da permanência nesse espaço, aos irmãos e irmãs devotos que 1 Raul Joviano do Amaral (1914-1988) nasceu na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Possui bacharelado em direito pela Faculdade de Direito do Brasil (RJ), atuou na imprensa paulista, principalmente, na imprensa negra. Amaral iniciou sua jornada a favor da causa negra em 1927.Foi um dos fundadores da frente negra brasileira (FNB). Fundou e dirigiu o jornal A voz da raça, 1933, e Alvorada, 1945. Foi também presidente do Conselho da União dos Servidores Públicos, consultor jurídico da Associação José do Patrocínio, da Liga Eleitoral dos Servidores Públicos e do Centro Cultural Luiz Gama (MICHELETTE, 2008).

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Entre vozes dissonantes: Igreja do Rosário dos Homens Pretos do

Paissandu como Patrimônio Cultural da Cidade de São Paulo. (1989-

1992)

Se a venerável Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos

Homens Pretos de São Paulo pôde comemorar seus quase três

séculos de existência, é porque, ao longo de sua trajetória

sempre pode contar com a dedicação de seus valorosos irmãos.

O fato de ser tão raro que sejamos os sujeitos no processo de

resgate da nossa Memória histórica, só faz aumentar a

importância do presente trabalho. (AMARAL, 1991,p.5)

O trecho acima foi retirado da apresentação do Livro, Os Pretos do Rosário de

São Paulo: subsídios históricos, escrito por Raul Joviano do Amaral1, um dos

integrantes da irmandade do Rosário. O atual livro foi escrito para ser publicado no ano

de 1988 durante as comemorações do centenário da abolição da escravatura no Brasil,

mas em decorrência do falecimento do autor, no ano de publicação do livro, o mesmo só

foi publicado no ano seguinte, em função dos esforços dos outros integrantes da

irmandade do Rosário.

Como visto acima, na epígrafe extraída do livro, os integrantes da irmandade ao

apresentar o trabalho realizado por Raul Joviano do Amaral, vangloriam a permanência

desta confraria que comemora seus quase três séculos de permanência em São Paulo,

oferecendo a glória da permanência nesse espaço, aos irmãos e irmãs devotos que

1 Raul Joviano do Amaral (1914-1988) nasceu na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Possui

bacharelado em direito pela Faculdade de Direito do Brasil (RJ), atuou na imprensa paulista,

principalmente, na imprensa negra. Amaral iniciou sua jornada a favor da causa negra em 1927.Foi um

dos fundadores da frente negra brasileira (FNB). Fundou e dirigiu o jornal A voz da raça, 1933, e

Alvorada, 1945. Foi também presidente do Conselho da União dos Servidores Públicos, consultor jurídico

da Associação José do Patrocínio, da Liga Eleitoral dos Servidores Públicos e do Centro Cultural Luiz

Gama (MICHELETTE, 2008).

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construíram e resistiram com essa organização ao longo desses quase três séculos de

existência.

Os participantes da irmandade vangloriam o trabalho de resgate da memória

histórica dos negros, que é realizado pelos irmãos e irmãs negras que estão agora

tomando o papel de sujeitos históricos. Fato que podemos perceber, pois o livro é de

autoria de Raul Joviano do Amaral, mas a sua publicação, foi realizada pelos membros

da confraria, assim fazendo com que o processo de divulgação do livro fosse um projeto

coletivo.

Esse trecho evidencia a importância da realização desse livro para a comunidade

do Rosário de São Paulo, em que estes reivindicam a escrita da história dos pretos do

rosário, não somente, como parte de uma confraria religiosa, mas, também, como parte

de uma comunidade negra que reivindica ser sujeito de sua própria história.

O fato de esse livro trazer a importância da escrita da história dessa irmandade

para a comemoração do centenário da abolição é sintomático da importância que a

apropriação da história destas confrarias tomam ao final do século XX.

No entanto, entender como a igreja do rosário é entendida no presente enquanto

um patrimônio cultural, diz respeito a entender de quais formas o culto ao rosário, a

História das confrarias negras e as igrejas vinculadas às irmandades negras são vistas

pelo campo acadêmico, e ainda como essas são trabalhadas dentro do campo do

patrimônio cultural, essas são análises que se relacionam nessa pesquisa, mas que

normalmente são escamoteadas no rol das pesquisas acadêmicas.

Para compreendermos como as irmandades do rosário são trabalhadas dentro da

academia e quais são os vazios encontrados nos estudos que buscam atrelar a história

das irmandades negras ao campo do patrimônio cultural, necessitamos fazer uma breve

explanação acerca de como a história das irmandades negras vem sendo tratada dentro

da tradição historiográfica.

Irmandades Negras um debate:

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As irmandades no Brasil constituíam uma das organizações tipicamente urbanas,

atuavam no país, principalmente, no período colonial, em que o centro das relações

entre economia, política e classe econômica girava entorno das grandes fazendas de

açúcar, onde estavam situados junto aos senhores de engenho, os representantes oficiais

da igreja católica: os padres e vigários2. Essas organizações se realizavam em virtude do

compromisso de devoção por um santo.

No entanto, essa definição pouco revela sobre a complexidade dessas

agremiações no Brasil colonial, principalmente, quando restringimos a nossa análise a

irmandades que tinham como padroeiros, santos negros, e como irmãos e irmãs devotos,

sujeitos escravizados.

Desde os estudos clássicos da historiadora Julita Scarano e do historiador Caio

Boschi, os estudos acerca dessas agremiações buscam entender essas como instrumento

de domínio colonial ou como um espaço de resistência. Provavelmente esses dois

aspectos dicotômicos estavam presentes nas vivencias dos libertos e cativos dentro das

irmandades, já que como afirma A.J.R. Russel Wood 3 às irmandades tornaram-se

(juntamente com os terços de pardos e negros) porta-vozes de aspirações e demandas

dos negros e mulatos escravos, libertos e livres. Assim essas instituições são entendidas

como a uma rede de relações mantida entre os membros, em que os laços de parentesco,

compadrio e solidariedade estão presentes. (MONTEIRO, 2006, p.6).

Nos últimos anos, o tema tornou-se um rico campo de pesquisas sobre as

devoções, as cerimônias e festejos organizados por essas instituições, e sobre os temas

que dizem respeito à construção de identidades étnicas. Dentro desses estudos, as

2 Ver: SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos

no distrito diamantino no século XVIII. São Paulo: Editora Nacional, 1978. BOSCHI, Caio. Os leigos no

poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.

3 RUSSEL-WOOD, A.J.R. “Black and Mulatto brotherhoods in Colonial Brazil”. Hispanic American Historical Review, Vol.54, n. 4, 1974, p.567-602.

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irmandades dos Rosário são as preferidas para associação entre os cativos e libertos e

por essa razão também são mais frequentemente estudadas pelos historiadores4.

Outro tema bem debatido acerca das irmandades são os estudos relacionados aos

festejos, as tradicionais festas de Congada e Moçambique. Em alguns dos estudos

realizados sobre festas de congada compartilham das interpretações que esses eventos

eram formas de ludicidade e de autonomia dos povos escravizados no período pré-

abolição da escravatura no país.

É interessante salientar, que muito desses estudos trazem como objeto de

pesquisa a presença dos Congadeiros não apenas no passado colonial, mas como

manifestações existentes no presente. Só que como as acepções de Amaral acerca da

importância desses festejos no presente, essas festas trazem no bojo a manifestação de

uma comunidade que não é mais a do rosário que agregava homens e mulheres negros

de acordo com sua nação de procedência, mas no presente, essas associações se

organizam de forma diferente, pois é dentro da chave de interpretação da identidade

negra, de resiliência de um povo que é unido por um passado comum, que essas

instituições são recriadas.

As formas de se vivenciar\interpretar experiências que remetem ao passado, por

meio do sentimento de pertencimento a uma comunidade que é marcada, não mais pelas

diferenciações entre nacionalidades, mas pelo que é ser negro e devoto a santos que

remontam a história de identidade com povos negros5. Faz com que o passado seja

mobilizado em auxílio à construção de uma nova história, não mais balizada pela marca

da escravidão\submissão, mas sim pela resiliência\autonomia.

4 REGINALDO, Lucilene. O rosário dos Angolas. Irmandades de africanos e crioulos na Bahia Setecentista.São Paulo, Alameda , 2011. 5 Sobre as novas identidades criadas no presente a autor defende que: A Sra. do Rosário torna-se, desse

modo, símbolo da identidade englobante de escravizado, bem como da sua diversidade étnica e das

privações ligadas a essa condição social.( COSTA, 2006, P.24). Portanto a rememoração a santa torna-se

no presente, fonte de união e identidade.

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Podemos perceber isso nos estudos realizados pela historiadora Lívia Monteiro,

sobre as festas de congadas e as memórias da escravidão no tempo presente em Minas

Gerais6. Nesse trabalho, ela coleta as narrativas dadas pelos participantes dos festejos na

cidade de Piedade do Rio Grande, a partir desses relatos, ela afirma que esses eventos

para a nova geração, a questão da cor é amplamente afirmada no grupo. Ser negro e

participar da Congada e Moçambique7 são pontos fortes nas falas dos membros e nos

artigos distribuídos na festa, assim como nos postais entregues na porta da Igreja, após a

realização da missa. (MONTEIRO,2016,p.9).

As congadas são uma das manifestações ainda presentes dentro das comunidades

negras, e que tem forte ligação com a trajetória de devoção a Nossa Senhora do Rosário

e o seu vínculo com a experiência do cativeiro, aliás, mas que um vínculo, segundo

muitas estórias contadas pelos Congadeiro, a Santa tinha escolhido os homens de cor,

marcados pelo cativeiro, para estar com eles e os defende de todos os maus8.

Assim podemos concluir que tanto a memória e a história no século XX e no

início do XXI são mobilizadas como forma de se entender a importância da comunidade

negra – que se forja no pós-abolição - no presente, comunidade essa que atribui valor ao

seu passado e faz desde instrumento de identidade e de luta no presente.

Esse fato está tão presente nas narrativas que tecem a irmandade ao qual nos

debruçamos, que o próprio subtítulo do livro, que é a nossa fonte, tem por nome

“subsídios históricos”, isto em conjunto com a própria forma em que o livro é

composto, nos leva a pensar sobre a importância da reconstituição da história da

7 Em algumas regiões as festas de Congadas também são chamadas de Congadas e Moçambique, em outros apenas mantém o nome de festa do rei e rainha do Congo. 8 Relatos do congadeiros relatos pelas pesquisadoras Patrícia Trindade Maranhão da Costa, e por Lívia Nascimento Monteiro, descrevem como o culto a Nossa Senhora é renovado e transmitido por meio da oralidade, em duas regiões do Estado de Minas Gerais. Em suas pesquisas elas detectam como o fato de Nossa senhora ter escolhido os negros cativos para estar (proteger) eles é um fator de união entre os negros dessas cidades, assim recriando em histórias um passado que os une. Ver em: COSTA, Patrícia. As Raízes da Congada: A renovação do presente pelos filhos do Rosário. Tese de doutorado.UNB- Brasília, 2006. MONTEIRO, Lívia. A origem Mítica das festas de Congada e as Memórias da Escravidão o tempo presente em Minas Gerais. Observatório Quilombola. V.3 n.3 2016, p. 1-19.

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irmandade, para o projeto de Amaral9. Outro fator que devemos nos debruçar é sobre a

importância que o espaço em que a irmandade se localiza tem para história e a

manutenção dessas organizações no presente, fato que como veremos é de extrema

relevância para o autor.

A importância que ao longo do livro é dada a permanência da igreja na cidade,

ou mais de pertencimento a ela, já que quando o autor definiu os capítulos de sua obra

ele reservou grande parte para remontar a história de continuidade da irmandade no

centro da cidade de São Paulo, primeiro no antigo Largo do Rosário, e atualmente no

Largo do Paissandú. Fato que podemos perceber nos títulos dos seguintes capítulos: A

igreja velha (1725-1904); Os construtores; A marcha para o progresso; Desapropriação

parcial; O largo do Rosário; O “caso” Clark; A Cia Viação Paulista Joaquim Eugênio de

Lima, A nova igreja do Rosário, quase outra vez, terceira desapropriação- quase...

Esses capítulos têm como tônica a intrínseca relação da história da igreja com o

território, muitas vezes estabelecendo uma retórica da resistência da comunidade por

terem passado pela experiência do transplante do Antigo largo do Rosário para a atual

cede no Paissandú, sem falar nos inúmeros casos de tentativa de retirada da igreja que

aconteceram posteriormente10.

Acerca de uma das primeiras ameaças que a igreja sofreu Amaral descreve que:

Assim, a bocarra insaciável do progresso, em 1858, exigira reparos e

consertos na Igreja do Rosário dos Homens Pretos. Nessa época, o largo

fronteiriço não tinha a conformação da atual Praça Antônio Prado. Querendo

aproveitar a oportunidade, foi lembrado por um vereador, na Câmara

Municipal, que era “conveniente dar-lhe melhor alinhamento ao edifício, na

parte que faz frente para o Beco do Bom Jesus”, isto é o trecho compreendido

9 A ideia de projeto que usaremos neste trabalho tem respaldo nas ideias de que Amaral ao fazer o livro tinha em seus horizontes de expectativas a colocação da história da igreja no panorama das comemorações do centenário da abolição da escravatura, fato que vai de encontro com a própria trajetória política do autor, fato que discutiremos com mais profundidade no segundo capítulo. 10 Raul. J do Amaral traz relatos de que a igreja viveu em sua história, diversas ameaças de transposição do prédio da igreja, por estar em locais onde em diferentes momentos era o centro de atenção dos projetos urbanísticos da cidade. Ele fala sobre a negociação de anos que a igreja fez com comerciantes que gostariam de alugar os lotes pertencentes a igreja no antigo Largo do Rosário, acontecimento que ele denominou de caso Clark. Em outra parte do livro ele fala da tentativa de desapropriação da igreja feita pelo prefeito Preste Maia na década de 1940 que gostaria de retirar a igreja para construir em seu lugar o Monumento a Duque de Caxias. Ao relatar essas histórias Joviano cria uma intensa memória de resistência acerca da igreja, fato que iremos abordar com mais profundidade no terceiro capítulo.

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entre a atual Rua Quinze de Novembro e a Rua São Bento. Isso trouxe

desassossego à Irmandade, que via nisso a ingerência do poder público em

sua propriedade. (AMARAL, 1991, p.69).

Continuando sua análise sobre a história das tentativas de desapropriação,

Amaral relata que no mesmo período 11 o poder público não visava apenas retirar a

igreja do Largo do Rosário, mas, também, a população negra que residia no local:

Essa desapropriação, que reduzia o patrimônio, abrangia os pequenos prédios

e o terreno que servia de cemitério e pertencimento à irmandade da mesma

santa, sendo que aqueles pequenos cômodos térreos eram habitados por

casais de africanos, os quais, depois que conseguiam libertar-se do cativeiro,

estabeleciam-se nos mesmos prédios em que residiam “com quitandas, nas

quais vendiam doces, geleias, frutas, legumes, hortaliças, batata doce,

mandioca, pinhão e milho verde cozido, pamonha (milho verde ralado e

cozido na própria palha, também verde), piquira, peixe frito e cuzcus de

camarão de água doce 12” (AMARAL, 1991, p.70).

Essa argumentação continua ao longo do livro, a rememoração do passado da

Irmandade do Rosário em conjunto com a história do Largo do Rosário13 e,

posteriormente, o processo de transplante do edifício para o Paissandú. Toda essa

narrativa, sempre coloca como plano central a relação do edifício com o espaço em que

ele habita, e consequentemente, essa relação é crucial para a experiência e manutenção

da irmandade para o autor.

Apesar dos aspectos descritos acima serem centrais na narrativa de Amaral, ela é

pouco abordada pela historiografia, seja no campo que trabalha com a história das

11 Período de Urbanização da Cidade de São Paulo é um tema muito trabalhado pela historiografia. Dentre os trabalhos acerca do tema destaco esses: CAMPOS, Candido Malta. Os Rumos da Cidade: Urbanismo e Modernização em São Paulo. São Paulo: Editora SENAC, 2002. SILVA, Janice Theodoro da. São Paulo,1554-1880. São Paulo: Moderna, 1984. CERASOLI, França Josiane.Modernização no Plural Obras públicas, tensões sociais e cidadania em São Paulo na passagem do Século XIX para o XX. Tese de doutorado. Unicamp. Campinas, 2004. 12 O fato do antigo largo do Rosário ser um local em que havia a predominância de pessoas negras, seja enquanto local de moradia ou local de comercio majoritariamente negro, está presente no livro A cidade e a lei de Raquel Rolnik. Ver: ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei: Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo, Studio Nobel\fapesp, 1997. 13 A memória do transplante da Igreja para o Paissandu é tão marcante na narrativa de Amaral, que ele afirma que a perda que irmandade teve não foi só com a mudança de local do edifício, mas pelo próprio nome do triângulo histórico ter deixado de ser Largo do Rosário para se chamar Praça Antônio Prado, ocorrendo à perda de natureza material e simbólica. (AMARAL, 1991, p.119).

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irmandades negras no Brasil, que como visto acima, busca se centrar na experiência de

homens e mulheres libertos e escravizados no Brasil colonial. No que se refere à parte

dessa historiografia que reflete acerca das irmandades negras no presente, elas

trabalham dentro da chave de analise da permanência dos festejos, ou da chave da

resilencia em que as irmandades negras desenvolveram, ao longo do tempo, fato que

podemos ver na dissertação de mestrado sobre a igreja do Rosário de São Paulo, obra

que tem como título, Festa de Preto na São Paulo Antiga: um exemplo de resiliência na

Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (1887-1907).

Esse trabalho foi defendido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

para obtenção do título de mestre em ciências da religião. A autora, Maria da Conceição

dos Santos, explica que ela busca entender a trajetória de resistência da comunidade

negra em São Paulo (SANTOS, 2006, p. 13) por meio da Irmandade do Rosário, assim

dando a essa o qualificativo de resilente, já que em sua retórica ela toma o passado da

igreja como sinônimo de resistência. Assim o seu trabalho caracteriza-se por uma

analise de todas as dimensões desta irmandade, ou seja, ela aborda em cada capítulo

temas como história das irmandades no Brasil, historia dos negros em São Paulo,

história do transplante da igreja, os festejos. Assim o seu trabalho traz uma perspectiva

macro da história dessa irmandade, sem enfocar em um aspecto especifico, que busque

entender os meios que os seus integrantes buscam entender a sua própria história, por

meio da história da irmandade.

Quando buscamos referências dentro do campo do patrimônio, as irmandades

negras são normalmente tratadas como coadjuvantes, já que os olhares estão voltados

para a antiguidade de suas edificações, em que a ideia de preservação de a um estilo

arquitetônico é o foco14, ou é percebida dentro dos estudos voltados ao patrimônio

imaterial, um exemplo sintomático, é o do processo de registro que consta no Conselho

de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de

São Paulo, CONDEPHAAT, nesse processo é proposto à inserção da Irmandade do

Rosário dos Homens Pretos de São Paulo dentro dos registros de Reinados do Congo

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(Processo 01067\2007). Fato que sintetiza como a irmandade é vista enquanto um bem

cultural que deve ser preservado sobre o signo da imaterialidade.

Desse modo o espaço e a materialidade não são fatores de Salvaguarda por parte

dos estudos que se debruçam sobre a história e a existência das irmandades negras. Sua

história é constantemente vinculada a um passado que é interpretado dentro da

dicotomia escravização\ resistência. Assim não procuram interlaçar à história da cidade

– vivência – com a história\ permanência dessas comunidades religiosas. Relação que

na narrativa estabelecida por Amaral é indissociável. Já que tudo leva a entender que

quando o autor realiza essa reconstrução histórica, dá sentidos de mais que uma busca

por direito a história, mas também ao direito a cidade, tema que era muito discutido na

época em que o livro foi lançado.

A importância do espaço e da dimensão da materialidade fazem parte da

manutenção da memória da comunidade, e a retórica construída por Amaral diz muito

sobre as discussões presentes nas redes de relações que ele estabelecia. O que se faz é

trazer a tona como o campo da historiografia não se debruça nas experiências e nos

anseios das irmandades negras no pós- abolição. E o esforço feito de entrelaçar as

interpretações da historiografia com o que escreve R. J do Amaral é com o intuito de

entendermos o quanto interado o autor estava à época sobre os debates acadêmicos15 e

não de colocar esses em confronto.

Pois como vimos no percurso que realizamos aqui, até o momento, é que quando

se trata do campo de estudos sobre as Irmandades do Rosário, elas são em sua grande

maioria voltadas para períodos anteriores ao processo de abolição, acontecimento que

muda as formas com que as irmandades são constituídas internamente, principalmente,

no que se refere às estratificações dentro dessas congregações. Portanto, outro fator

importante que a obra de Amaral traz é a noção de comunidade negra, essa que começa

15 O fato de Amaral estar interado acerca dos debates acadêmicos de sua época é um importante fator para a nossa análise, pois ele faz referencia a rede de intelectuais que o autor estava em contato, tanto no que diz respeito, ao fato dele usar as armas desse campo como forma de inserir a irmandade como fator de respeitabilidade.

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a ser forjada no seio do século XX. Assim as estratégias que Amaral busca para

reconstruir o passado da irmandade tem como projeto a manutenção de uma memória

curativa e agregadora16, fato que não está só presente no autor, mas em outros agentes

negros no século XX.

Assim entender a existência e as experiências do negro no presente, é entender

também o seu passado como algo valoroso, não só para comunidade negra, mas para

sociedade, no caso de Amaral, a sociedade paulistana. Dessa forma a ação de

estabelecer uma narrativa como um meio de atribuir valor a um passado comum, e a sua

permanência no presente é, na percepção dos integrantes da irmandade, uma arma

política17.

Podemos perceber esse mesmo processo, quando analisamos o campo de estudos

acerca dos festejos, que são entendidos dentro das chaves de analise da sua resistência

em permanecer no presente, ou seja, por meio de um olhar que busca salvaguardar ou

registrar18 manifestações culturais que estão sempre reféns de uma retórica da perda19.

Considerações Finais:

Toda via, quando olhamos o trecho extraído do livro de Joviano, podemos inferir

o quão importante é para ele e para os irmãos e irmãs do rosário, o reconhecimento

socialmente dado a esses, por meio da história de resistência da igreja, história essa que

por meio da escrita -e dos artifícios acadêmicos- utilizada por Amaral, faz com que haja

16 Memória usada como um meio de cura ou de reconciliação com o passado é trabalhado pelo autore Michael Polack, no texto: POLACK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos históricos, Rio de janeiro, vol. 2 n.3, 1989, p.3-15. 17 Ideia de arma política aqui usada vai de encontro de a noção de política de reparação, que defende

que políticas progressivas e orientadas ao futuro foram substituídas pelo esforço de “acertar as contas com

o passado”. (SOTARO,2019, p.208). 18 Em algumas passagens do livro, R. Joviano do Amaral trabalha com a ideia da importância de se ter registros históricos para que a história e a memória dos negros não seja perdida, A importância dos registros para os intelectuais negros serão melhor debatidos no segundo capítulo desse trabalho. 19 O termo retórica da perda aqui usado é de empréstimo da Obra de José Reginaldo Santos Gonçalves, obra em que o autor discute o fato da construção narrativa do Patrimônio Cultural no Brasil ser fonte de uma argumentação que obedeça o imperativo do medo da perda. Ver em: GONÇALVES, Reginaldo José. A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1996.

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uma luta por reconhecimento (HONNETH, 2003), que as memórias dessa irmandade

sejam apropriadas pela história, a fim de dar legitimidade ao seu passado, a

permanência e o reconhecimento dessa comunidade como parte uma instituição

resiliente.

Por remontar a história de escravidão no país, buscando reescreve- lá, não mais

sobre o prisma da dor e da subordinação dos negros ao homem branco, mas, sim, sobre

o alicerce da resistência e da contribuição do negro para a história da cidade. Desta

forma a história dessa irmandade, contatada por Raul Joviano do Amaral, é o meio de

fazer com que na década de 1980, o debate tão comentado do direito a memória torne-se

uma prática.

Assim quando falamos de vozes dissonantes, estamos falando de vozes como as

de Amaral, que reconstroem a história da irmandade negra ao qual pertence como um

meio de fazer do passado um trunfo político. Ele dá sentidos à história da igreja de um

bem cultural, esse que deve ser resguardado e respeitado por valores como o de

ancianidade, entre outros. Vozes como as de Amaral, são comumente apagadas do

campo do patrimônio, e do campo da historiografia que trabalha com as irmandades

negras.

Bibliografia:

AMARAL, Raul Joviano. Os Pretos do Rosário de São Paulo: subsídios históricos. São

Paulo: Editora João Scortecci.1991. p.253.

BOSCHI,Caio. Os leigos no poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas

Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986.

CAMPOS, Candido Malta. Os Rumos da Cidade: Urbanismo e Modernização em São

Paulo. São Paulo: Editora SENAC, 2002.

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CERASOLI, França Josiane.Modernização no Plural Obras públicas, tensões sociais e

cidadania em São Paulo na passagem do Século XIX para o XX. Tese de doutorado.

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CHOYA, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo. Editora UNESP, 2001.

FONSECA, Maria Cecília L. Fonseca. O patrimônio em Processo: trajetória da

política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; MinC-

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