Entrega Ensaio Teorico 02 06

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INTRODUÇÃO Ao analisar a atual situação das políticas de preservação no Brasil, é impossível não retomar e evidenciar as palavras de Carlos Nelson Ferreira dos Santos que foram ditas 30 anos e ainda refletem tamanha assertividade e contemporaneidade: Quando se pensa em preservar, alguém logo aparece falando em patrimônio e tombamentos. Também se consagrou a crença de que cabia ao governo resguardar o que valia à pena. Como? Através de especialistas que teriam o direito (o poder-saber) de analisar edifícios e pronunciar veredictos [... atribuindo] caráter distintivo a um determinado edifício. [...] Do jeito que vem sendo praticada, a preservação é um estatuto que consegue desagradar a todos: o governo fica responsável por bens que não pode ou não quer conservar; os proprietários se irritam contra as proibições, nos seus termos, injustas, de uso pleno de um direito; o público porque, com enorme bom senso, não consegue entender a manutenção de alguns pardieiros, enquanto assiste à demolição inexorável e pouco inteligente de conjuntos inteiros de ambientes significativos. (SANTOS, 1985) Para ZEIN e DI MARCO (2008), apesar de não agradar muita gente - o tombamento, que já vinha sendo praticado como recurso quase exclusivo para promover a preservação - se tornou uma reivindicação das mais populares, tanto para governos como para o público em geral. Citando GUIMARÃES (2004), foi confirmada a tendência de consolidação do tombamento tanto como “um must do imaginário do movimento popular organizado”, e como uma “tábua de salvação para os municípios como contrapartida à escassez de verbas para obras”. Onde se constatava então que a conexão entre preservação, tombamento e construção simbólica da memória/identidade havia deixado de ser fruto dileto de um projeto de modernidade, assumido e liderado por elites intelectuais, trabalhando sob a égide de governos modernizantes, para se tornar um embate entre jogos de interesses os mais variados, e nem sempre os mais adequados: quando o Instituto Brasileiro de Políticas Culturais e suas congêneres fazem acordos e desfazem desacordos (e vice versa) na tentativa de tornar consistente a tarefa de revelar aos

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Apontamento sobre preservação e tombamento

Transcript of Entrega Ensaio Teorico 02 06

  • INTRODUO

    Ao analisar a atual situao das polticas de preservao no Brasil, impossvel no retomar e evidenciar as palavras de Carlos Nelson Ferreira dos Santos que foram ditas h 30 anos e ainda refletem tamanha assertividade e contemporaneidade:

    Quando se pensa em preservar, algum logo aparece falando em patrimnio e tombamentos. Tambm se consagrou a crena de que cabia ao governo resguardar o que valia pena. Como? Atravs de especialistas que teriam o direito (o poder-saber) de analisar edifcios e pronunciar veredictos [... atribuindo] carter distintivo a um determinado edifcio. [...] Do jeito que vem sendo praticada, a preservao um estatuto que consegue desagradar a todos: o governo fica responsvel por bens que no pode ou no quer conservar; os proprietrios se irritam contra as proibies, nos seus termos, injustas, de uso pleno de um direito; o pblico porque, com enorme bom senso, no consegue entender a manuteno de alguns pardieiros, enquanto assiste demolio inexorvel e pouco inteligente de conjuntos inteiros de ambientes significativos. (SANTOS, 1985)

    Para ZEIN e DI MARCO (2008), apesar de no agradar muita gente - o tombamento, que j vinha sendo praticado como recurso quase exclusivo para promover a preservao - se tornou uma reivindicao das mais populares, tanto para governos como para o pblico em geral. Citando GUIMARES (2004), foi confirmada a tendncia de consolidao do tombamento tanto como um must do imaginrio do movimento popular organizado, e como uma tbua de salvao para os municpios como contrapartida escassez de verbas para obras. Onde se constatava ento que a conexo entre preservao, tombamento e construo simblica da memria/identidade havia deixado de ser fruto dileto de um projeto de modernidade, assumido e liderado por elites intelectuais, trabalhando sob a gide de governos modernizantes, para se tornar um embate entre jogos de interesses os mais variados, e nem sempre os mais adequados: quando o Instituto Brasileiro de Polticas Culturais e suas congneres fazem acordos e desfazem desacordos (e vice versa) na tentativa de tornar consistente a tarefa de revelar aos

  • cidados o poder simblico dos bens artsticos, histricos, arqueolgicos e imateriais. Constata-se: no h mais aceitao naturalmente simblica. H, sim, jogo de pesos pesados. Portanto, tombar ainda preciso". Pouca coisa ou quase nada foi mudado nesse cenrio que os autores se debruam, as prticas de preservao se mostram obsoletas e excludentes. A problemtica surge diante da questo: se preservar no tombar, como preservar sem tombar? onde est o meio termo? quem define o que ser preservado ou destrudo? os critrios para definir a preservao vo ficar a merc da vontade dos poderosos? A partir dessas consideraes a cerca da preservao de bens que constituem a memria coletiva e identidade local, sendo manipulados de maneira desleixada e descomprometida com a sociedade e o conseqente uso exclusivo e indiscriminado do tombamento como ferramenta de gesto urbana de conservao. Que este trabalho prope uma reflexo sobre a resistncia demolio e descaracterizao do cais Jos Estelita no Recife PE e de como polticas de preservao, como o tombamento podem ser medidas isoladas e pequenas no processo de conservao e preservao do patrimnio cultural.

    OBJETO DE ESTUDO

    O Cais Jos Estelita um cais que se encontra na ilha de Antnio Vaz em Recife, Pernambuco. Liga o bairro do Cabanga ao de So Jos, dois importantes bairros histricos do Recife e banhando pela Bacia do Pina. Do lado oposto bacia existe uma srie galpes da extinta Rede Ferroviria Federal. No existia at o comeo do sculo XX, assim como boa parte da rea ocupada pelos armazns e linhas frreas do outro lado da avenida, surgiu como rea de aterro para interligar o forte das cinco pontas e forte prncipe Guilherme. A estrada de ferro Recife ao So Francisco foi inaugurada em fevereiro de 1858, a segunda do Brasil, era utilizada pelo porto do Recife para escoar a produo de acar da zona canavieira. O cais Jos Estelita funciona como um descortino do stio histrico de Santo Antnio e So Jos para a o rio Capibaribe, lugar que caracteriza o nascimento da

  • cidade, parte indelvel de sua identidade, de onde se pode visualizar a unio do Recife antigo e o Recife moderno.

    RECORTE TEMPORAL

    Em 2008 um consrcio de construtoras presidido pela Moura Dubeux, maior construtora de imveis de alto padro do Recife, arrematou com o valor de 55,4 milhes a rea de aproximadamente 101,7 mil metros quadrados que compreende o cais Jos Estelita e seus galpes, que anteriormente pertencia a unio e estavam abandonados pelo poder pblico estadual. Desde ento com a venda do importante terreno e o consequente anncio do projeto proposto pela construtora, deu-se incio a uma srie de manifestaes que seguem desde a tramitao irregular da venda do terreno at o projeto que visto como ofensa a unidade paisagstica do lugar por se localizar no stio histrico tombado pelo IPHAN, que tido para a maioria dos recifenses como um carto postal. O projeto denominado Novo Recife tem como proposta inicial a construo de 13 torres de no mnimo 40 pavimentos que contenham unidades residenciais, comrcio e servio, tudo dentro de um condomnio de alto padro no corao da cidade.

    RECORTE ESPACIAL

    O recorte espacial engloba toda rea do cais Jos Estelita e seus galpes, at seu entorno imediato, como o stio histrico de Santo Antnio e So Jos at sua visada dos bairros do Pina e Boa Viagem e o que ela implica no contexto de valor local.

  • Figura 01- So Jos preservado, aterro e torres residenciais. Fonte: Mapa Nucleao do Recife, 2002.

    JUSTIFICATIVA

    Por se tratar de uma rea que abrange a paisagem tombada do stio histrico, afeta a unidade da composio, tanto natural quanto arquitetnica. Alm de ser um local de enorme afetividade para a populao, que enxerga a regio como nascedouro da cultura pernambucana. Fez-se necessrio repensar o posicionamento quanto as polticas e prticas de preservao, com o questionamento da preservao s legitimada com o tombamento e voltada apenas para os mais favorecidos, que fazem pender a balana para os seus interesses. Onde j existe a prerrogativa que garante a preservao do entorno de reas tombadas, na tentativa de constituir a memria local, o que mais falta para assegurar a lei? e assegurar a permanncia da identidade do Cais Jos Estelita?

  • PROBLEMTICA

    Como foi dito anteriormente, a localizao do Cais Jos Estelita se configura como entorno de bens tombados, onde na legislao brasileira, o artigo 18 do Decreto-lei n25/1937, conhecido como a Lei do Tombamento, prev que, sem prvia autorizao do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional:

    [...] no se poder, na vizinhana da coisa tombada, fazer construo que lhe impea ou reduza a visiblidade, nem nela colocar anncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objto, impondo-se nste caso a multa de cincoenta por cento do valor do mesmo objto. (BRASIL, 1937)

    A partir disso, configura-se a paisagem como valor, como bem jurdico digno de proteo. Que tambm foi contemplada com a lei 6.513/1977, que trata de reas tursticas, instituindo zonas de entorno, onde o cais se enquadraria no entorno de ambientao: "o espao fsico necessrio harmonizao do Local de Interesse Turstico com a paisagem em que se situa" (BRASIL,1977). H a dificuldade de demarcar o entorno, j que a lei no clara, mas o cais s entraria nesse permetro de proteo apenas se tivesse algum interesse privado inserido? J que nas palavras de Carlos Nelson F. dos Santos o estado no pode ou no quer mais preservar tantos bens. O cais se localiza no entorno imediato da parte do bairro de So Jos que preservado e onde se encontra vrios bens como igrejas e fortificaes tombadas pelo IPHAN. Apesar de o entorno j configurar a proteo legal, a luta da populao se d pelo tombamento da paisagem, para que haja uma harmonizao das novas construes com a preexistente, respeitando o descortino dos bairros histricos de So Jos e Santo Antnio para o rio Capibaribe. Assim, a problemtica se desenvolve entorno do questionamento: S preservar se tombar? Onde a anlise e compreenso dos instrumentos de preservao e conservao no Brasil se fazem necessrias, de modo a apreender por que h a supervalorizao de apenas um instrumento especfico: o tombamento. Ser ele o nico capaz de conter as polticas elitistas e corruptas das gestes das grandes cidades? Ainda podem existir maneiras de impedir a especulao imobiliria de

  • engolir o patrimnio cultural e edificado: integrando a gesto da paisagem s polticas pblicas urbanas e a incluso de um plano diretor participativo.

    OBJETIVO GERAL

    Esclarecer questes a cerca da prtica de preservao e conservao do patrimnio, especificamente do tombamento, na tentativa de encontrar caminhos para a eficincia da preservao sem a pontualidade de instrumentos jurdicos. Analisando a constituio do patrimnio do cais Jos Estelita e sua legitimidade quanto memria coletiva da populao de Recife.

    OBJETIVO ESPECFICO

    Apreender o conceito de memria e sua relevncia na formao do conceito de patrimnio paisagstico, aplicado no cais Jos Estelita.

    Analisar os preceitos que envolvem o tombamento e o caracteriza como principal e primeiro instrumento para a conservao da paisagem histrica.

    Problematizar a partir das dificuldades do cais em preservar sua memria e identidade sem o tombamento e da luta que existe atualmente para o reconhecimento do seu valor pela sociedade leiga e pelos rgos competentes.

    Tentar encontrar caminhos para compreender como ser possvel a preservao e conservao do patrimnio cultural e edificado sem a necessidade de tomar medidas jurdicas na forma da lei, para que possa ser efetiva sua eficcia.

  • REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    CHAU, M. Natureza, Cultura e Patrimnio Ambiental. In: Meio Ambiente: Patrimnio Cultural da Universidade de So Paulo. So Paulo: EDUSP/Imprensa Oficial, 2003, p. 47-55.

    DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Interveno em jardins histricos: manual. Braslia: IPHAN, 2004.

    DETONI, Sandro Francisco. tombamento de reas naturais: a paisagem como elemento estruturador. Revista geonorte, edio especial, V.3, N.4, p. 1283-1291, 2012.

    LEOTI, Alice. Dossi do tombamento do conjunto histrico e paisagstico de Jaguaro/RS e seus reflexos na paisagem cultural. In: 3 colquio Ibero Americano: paisagem cultural, patrimnio e projeto Desafios e perspectivas. Belo Horizonte, 2014.

    RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos: a sua essncia e sua origem. 1 ed. So Paulo: Perspectiva, 2014.

    SANTOS, M. A Natureza do Espao. So Paulo: EDUSP, 1996.

    SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Preservar no tombar, renovar no por tudo abaixo. Projeto, n. 86. So Paulo, abr. 1986.

    VERAS, Lcia Maria de Siqueira Cavalcanti. Paisagem-postal: a imagem e a palavra na compreenso de um Recife urbano. Tese. (Doutorado em desenvolvimento urbano), Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

    ZEIN, Ruth Verde; DI MARCO, Anita Regina. Paradoxos do valor artstico e a definio de critrios de preservao na arquitetura, inclusive moderna. Arquitextos, So Paulo, ano 09, n. 098.00, Vitruvius, jul. 2008

    POULOT, Dominique. Uma histria do patrimnio no ocidente, sculos XVIII-XXI: do monumento aos valores. So Paulo: Estao Liberdade, 2009.

  • LINHA DE PESQUISA: Patrimnio cultural e edificado e patrimnio paisagstico.

    SUMRIO

    S preservar se tombar? Por que a poltica de preservao no Brasil se atm tanto ao tombamento.

    1. Construindo memrias: da individual a social, na apreenso do entendimento de patrimnio paisagstico.

    Discusso dos nveis de memria e sua aplicao noo de identidade e pertencimento da sociedade. Conceitos abordados na constituio do mbito do patrimnio paisagstico.

    2. Polticas de preservao: a constituio do tombamento. Apreenso dos conceitos sobre o tombamento, como ele se constitui, seus principais elementos e como aplicado de modo a preservar o patrimnio histrico e cultural com a interveno do estado.

    3. A resistncia do cais Jos Estelita falta de amparo para a preservao do seu patrimnio edificado e paisagstico.

    Apresentando como objeto de estudo o cais Jos Estelita no Recife e sua atual reivindicao de reconhecimento por parte do IPHAN como patrimnio paisagstico da cidade do Recife. Com uma anlise de sua constituio como paisagem segundo com requisitos do IPHAN, para se obter o tombamento do lugar e quais medidas devem ser feitas para que tais elementos imateriais, como a memria faa parte de polticas de gesto da cidade e do planejamento urbano.

    Palavras chave: Patrimnio cultural e edificado, patrimnio paisagstico, cais Jos Estelita, tombamento, Recife.