ENTREVISTA Antônio Jayro Fagundes A · que vai lhe dar isso. Um estágio, dois ou três trabalhos...

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Estudos de Psicologia 1998, 3(2), 307-326 Antônio Jayro Fagundes E N T R E V I S T A A ntônio Jayro da Fonseca Motta Fagundes, mais conhecido como Prof. Jayro, é doutor em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade Guarulhos. Professor desde os 16 anos de idade, jornalista, fundador da editora Edicon, passou a ser conhecido do grande público por um conjunto de trabalhos em televisão, cinema e publicidade envolvendo o treinamento de animais para atuar em cena, com uma peculiaridade, que faz questão de destacar: a de nunca utilizar técnicas aversivas. Nesta entrevista, concedida em São Paulo a Oswaldo H. Yamamoto, o professor Jayro fala sobre a sua trajetória profissional, sobre ques- tões ligadas à Psicologia como profissão e, principalmente, sobre as suas atividades em uma área na qual é pioneiro. EP: Alguns dados acerca da sua trajetória profissional. AJFMF: Estudei Filosofia e Teo- logia em Belo Horizonte, fiz com- plementação filosófica (bachare- lado em Filosofia) na Universida- de de Mogi das Cruzes, posteri- ormente fui para Campinas, na PUC, para fazer pós-graduação em Orientação Educacional. Em seguida, vim para a Universidade de São Paulo, onde fiz o Mestrado e, posteriormente, o Doutorado em Psicologia Experimental. As atividades profissionais que exer- ci sempre somaram às do magis- tério em Psicologia. Algumas por poucos anos: jornalismo, como redator, em Poços de Caldas (MG) e consultoria em RH, cuidando do treinamento de vendedores, em São Paulo. Outras, por mais de 15 anos: editor da EDICON e, final- mente, treinamento de animais para publicidade, cinema e televi- são, que é a minha atividade prin-

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307EntevistaEstudos de Psicologia 2000, 5(1), 287-312Estudos de Psicologia 1998, 3(2), 307-326

Antônio Jayro FagundesE N T R E V I S T A

Antônio Jayro da Fonseca Motta Fagundes, mais conhecidocomo Prof. Jayro, é doutor em Psicologia Experimental pelaUniversidade de São Paulo e docente da Universidade

Guarulhos. Professor desde os 16 anos de idade, jornalista, fundadorda editora Edicon, passou a ser conhecido do grande público por umconjunto de trabalhos em televisão, cinema e publicidade envolvendoo treinamento de animais para atuar em cena, com uma peculiaridade,que faz questão de destacar: a de nunca utilizar técnicas aversivas.Nesta entrevista, concedida em São Paulo a Oswaldo H. Yamamoto, oprofessor Jayro fala sobre a sua trajetória profissional, sobre ques-tões ligadas à Psicologia como profissão e, principalmente, sobre assuas atividades em uma área na qual é pioneiro.

EP: Alguns dados acerca da suatrajetória profissional.AJFMF: Estudei Filosofia e Teo-logia em Belo Horizonte, fiz com-plementação filosófica (bachare-lado em Filosofia) na Universida-de de Mogi das Cruzes, posteri-ormente fui para Campinas, naPUC, para fazer pós-graduaçãoem Orientação Educacional. Emseguida, vim para a Universidadede São Paulo, onde fiz o Mestradoe, posteriormente, o Doutorado

em Psicologia Experimental. Asatividades profissionais que exer-ci sempre somaram às do magis-tério em Psicologia. Algumas porpoucos anos: jornalismo, comoredator, em Poços de Caldas (MG)e consultoria em RH, cuidando dotreinamento de vendedores, emSão Paulo. Outras, por mais de 15anos: editor da EDICON e, final-mente, treinamento de animaispara publicidade, cinema e televi-são, que é a minha atividade prin-

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cipal. A secundária, no momento- não quero deixá-la - é o magisté-rio, na Universidade Guarulhos(SP), onde apenas oriento pesqui-sas de graduação e pós. Profes-sor há 40 anos, por vocação ecom orgulho, difundo desde 68meu entusiasmo pela linha expe-rimental e, a partir de 76, da ob-servação comportamental, sendoautor do primeiro livro em portu-guês sobre o assunto1 e incenti-vador e editor do segundo (sóexistem dois, infelizmente!).

EP: O seu trabalho de pós-gra-duação foi desenvolvido na áreado sorriso. Você tem ainda pes-quisado nesse campo?

AJFMF: Tanto o mestrado quan-to o doutorado foram estudos so-bre o sorrir, o rir, o gargalhar. Em-bora tenha concluído o mestradoem 1976, desde 1974 até hoje te-nho mexido com esse tema, ori-entando trabalhos de alunos. NaUniversidade Guarulhos sempretivemos, como meta da disciplinade Métodos e Técnicas de Pes-quisa, fazer com que o aluno pla-nejasse e executasse uma pesqui-sa nos moldes empíricos – privi-legiando áreas nas quais éramosmais competentes, embora o alu-

no tivesse liberdade de escolha.O sorriso era uma dessas áreas.

EP: Passando para a questão dasua prática profissional, hoje háum debate acumulado acerca daquestão das novas áreas de atu-ação do psicólogo. Você, de umacerta forma, foi um pioneiro nes-se trabalho de inovação, com asua inserção no campo da pu-blicidade. Como se deu a sua en-trada nesse tipo de atividade?

AJFMF: A minha entrada na áreafoi meramente casual: em 1982,quando eu fazia o doutorado naUSP, apareceu lá uma solicitaçãoaos veterinários para fazer comque um peru caminhasse sobreuma mesa e depois pulasse paradentro de uma tigela. Obviamen-te, os veterinários não tinham na-da com isso e remeteram à Psico-logia. Naquela ocasião, ninguémse interessou em mexer com isso.Uma colega nossa, a Wilma (San-toro Patitucci), que foi uma daspessoas consultadas, resumiabem a razão básica para não acei-tar o trabalho: “se fosse para fa-zer o trabalho no meu laboratório,com um mês pela frente, com to-das as circunstâncias de contro-le, eu faria”. Mas fazê-lo nas con-

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dições em que deveria ser feito,isto é, com a filmagem marcadapara dali a nove dias, era uma coi-sa de maluco. Naquela ocasião,inclusive, cheguei a pesquisar naliteratura, trocar idéias com o(João Cláudio) Todorov, com essepessoal todo e, na época, não ha-via relatos de trabalhos de condi-cionamentos de perus. Então, eraum desafio condicionar um peru;era um desafio fazê-lo em novedias. Havia, também, um aspectomenos nobre da questão: erasempre um “dinheirinho” que po-deria aparecer... Então, aceitei odesafio. O interessante é que aequipe de produção demorouquatro dias para arranjar o peru esobraram cinco para fazer o traba-lho... Como não sabíamos exata-mente como fazer, pegamos trêsperus. Eu testava com um, o quedava certo fazia com o outro. Oserros eu já não repetia no outro...Em síntese: a cinco dias da filma-gem, com três perus – praticamen-te internado com eles, das oito damanhã às nove da noite (obvia-mente, não com todos ao mesmotempo), conseguimos fazer comque dois deles executassem todaa tarefa e um terceiro fizesse par-te dela. Esse foi o primeiro traba-lho realizado.

EP: Com esse trabalho, o seunome ficou sendo conhecido domeio?

AJFMF: A partir daí, a coisa cor-reu entre os publicitários: “existeum Dr. Dolittle, um Prof. Pardal aíque mexe com os bichos...” E nãoparou mais, tanto que eu jamaisfiz marketing da minha ativida-de, mas o nome acabou se firman-do entre os publicitários. Eviden-temente, hoje sou bastante co-nhecido.

EP: Há mais alguém fazendotrabalhos semelhantes?

AJFMF: Há hoje outras pessoasmexendo com essa atividade;pessoas mais especializadas emdeterminados tipos de animais,como cachorros, por exemplo.Tem uma outra pessoa em SãoPaulo que é da área da Pedagogiaque mexia com cães e está seaventurando a mexer com diferen-tes bichos; no Rio de Janeiro háoutra pessoa que mexe ba-sicamente com cães, de modo queacabou se instalando uma novamodalidade de atividade na área.Pena que praticamente a únicapessoa da área da Psicologia tra-balhando seja eu; de um modo

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geral, as pessoas que lidam comisso não têm esse embasamento.

EP: Então você então acreditaque é a formação em Psicologiaque gabaritaria uma pessoa afazer esse trabalho? Comple-mentando: o que um aluno quese interessasse por esse trabalhodeveria privilegiar no seu cursode graduação e, eventualmente,de pós-graduação?

AJFMF: Eu começo com uma ob-servação. Numa ocasião, alguémme falou: “Ah, você mexia com aPsicologia; agora você está me-xendo com bichos...”. Eu não me-xia com a Psicologia; eu só façoPsicologia com os bichos! O fatode ter conhecimento da área daPsicologia é fundamental para arealização do meu trabalho. Coi-sas que são essenciais na forma-ção do psicólogos, que são ex-tremamente importantes e que fal-tam aos profissionais da área: emprimeiro lugar, os conhecimentosbásicos de aprendizagem, de con-dicionamento; em seguida, todosos conhecimentos e técnicas liga-dos à observação (aos cuidadosetológicos). Esses são dois em-basamentos absolutamente indis-pensáveis para um sucesso razo-

ável dentro da área. O psicólogoque fez bem o seu curso e conhecetodas essas técnicas de aprendiza-gem, de observação e dos cuidadosetológicos está absolutamentegabaritado para fazer o trabalho.

EP: Além dos conhecimentos dePsicologia, você teve algum ou-tro treinamento formal para tra-balhar nesse campo?

AJFMF: Embora eu tivesse essaformação em Psicologia, eu jamaistive aquilo que acaba se apren-dendo na prática, que são os cui-dados, os macetes específicos daatividade de cinema. Um dessesproblemas nós já comentamos:não existe, em publicidade, umtempo ótimo para se trabalhar. Di-ferentemente de uma área acadê-mica, em que é possível fazer umplanejamento do que é necessá-rio para fazer isto e aquilo, em pu-blicidade as coisas são inversas.Quando se recebe a proposta detrabalho, a mídia já está marcada,de modo que nunca se tem maisdo que uma ou duas semanas deatividade para fazer o que querque seja com quantos bichos vo-cê pode imaginar. Isso limita emmuito o resultado. Retornando:todas as coisas, como iluminação,

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posição da câmara e essas coisastípicas do cinema são importan-tes para quem queira mexer com osetor. Isso, na verdade, se apren-de na prática; não é a Psicologiaque vai lhe dar isso. Um estágio,dois ou três trabalhos você jácomeça a conhecer e entender.

EP: Pelo que você diz, trata-sede adquirir conhecimentos depelo menos dois campos diver-sos. Você acredita que seja umaárea eminentemente multiprofis-sional, uma especialidade dopsicólogo ou do publicitário?

AJFMF: Que é multidisciplinarestou absolutamente seguro. Voucitar um caso: no longa-metragem,Policarpo Quaresma, tivemos acolaboração de um biólogo. Emuma das cenas, por exemplo, exi-gia-se a atuação de 5.000 formi-gas. Tive a participação de umbiólogo para a localização doscampos mais promissores e cole-ta dos animais. É um trabalho noqual é possível e, mesmo, abso-lutamente desejável a colabora-ção de outros profissionais.

EP: Se um psicólogo recém-gra-duado pretendesse entrar nessecampo, haveria mercado para

ele? Como ele deveria proceder:procurar um estágio?

AJFMF: É uma questão compli-cada. Do ponto de vista teórico,o aluno que tenha terminado seucurso de Psicologia está, como jádissemos, qualificado para atuarno setor. A questão é que nãotemos no Brasil uma indústriacinematográfica. Temos obras deautores que, de vez em quando,conseguem dinheiro aqui e ali efazem os seus trabalhos. Não háuma distribuição que garanta aprodução dos filmes. É um círculovicioso. Há, também, a concorrên-cia avassaladora da filmografiaamericana que é, praticamente, adona do mercado mundial. Entrenós, ela é de 99,99%! A ausênciade uma indústria cinematográficasuficientemente desenvolvida di-ficulta a existência de muitos pro-fissionais. Nos Estados Unidos,onde isso não acontece, onde aindústria cinematográfica é bas-tante antiga, há uma quantidadegrande de profissionais. Por exem-plo, o conhecidíssimo casal depsicólogos Breland & Breland, hámuitos anos, faz nos EstadosUnidos esse tipo de trabalho querealizo há 17 anos. E lá, há deze-nas, centenas de pessoas que fa-

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zem isso. Existem inúmeros estú-dios e mesmo escolas que prepa-ram profissionais para treinar osmais diferentes bichos. Inclusivecom especialização: existem pes-soas que treinam só papagaios,só cachorros, só gatos. Entre nós,o campo é muito incipiente. Nãohá uma grande procura que favo-reça uma demanda muito grande.Então, acaba-se sendo um fran-co-atirador. Agora, que o profis-sional é reconhecidamente impor-tante no meio, isso é inquestio-nável. Por exemplo: fazer com queum cachorro faça uma série decoisas em uma filmagem sem queele tenha sido anteriormente pre-parado para isso é uma loucura.A presença de um profissionalque mexa com o bicho economizaenormemente o tempo de umaequipe, diminuindo o custo dotrabalho. Ou seja, o profissionalé importante, existe o campo detrabalho, mas infelizmente, aindaé muito limitado. Como fazer paraentrar na área? Como não existemescolas, não existem agências, apessoa iniciante pode oferecer oseu trabalho informando quaissão as suas competências. Nãohá, de fato, nem uma cultura nemuma demanda muito grande nosetor.

EP: Você tem idéia de quantostrabalhos você já realizou nessecampo?

AJFMF: Tenho. Desde 1982, eujá realizei algo em torno de 600trabalhos, a maioria deles, comer-ciais. De uns tempos para cá temaumentado muito os trabalhoscom fotografia. No ano passado,reparando nas minhas anotações,vi que havia uma porcentagembastante alta, algo em torno de60% dos trabalhos com fotos.Embora sempre tenha trabalhadopreparando animais para fotos,está havendo uma tendência mai-or nesse setor. E, evidentemente,está aumentando a realização defilmes. Só neste ano, eu já realizeiuns oito longa-metragens. Já queestamos falando de dados esta-tísticos, nesse tempo eu já traba-lhei pelo menos com umas 130espécies diferentes e já passarampelas minhas mãos uns 100.000bichos! Não é para estranhar mui-to, pois em alguns trabalhos, pelanatureza do bicho envolvido, háexigência de um número muitogrande – por exemplo,Policarpo Quaresma, nós tínha-mos 5.000 formigas. Eu creio queesta experiência com tal varieda-des de bichos é realmente invejá-

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vel: dificilmente, você encontraráno país alguém que tenha lidadocom tantas espécies de animais,em termos de condicionamento ecoisas do tipo que a gente faz.

EP: Alguns desses trabalhos fo-ram muito comentados. Quaissão aqueles que você consideraos mais marcantes?

AJFMF: Dois dos trabalhos queeu fiz e que as pessoas costumamlembrar muito são a campanha daCofap (oito filmes em 1990 e 1991)e a novela Pedra sobre pedra, naqual, quando o Jorge Tadeu (in-terpretado pelo ator Fábio Jr.)morre, há uma revoada de borbo-letas. O trabalho deu tanto IBOPEna ocasião que a borboleta tor-nou-se um personagem da nove-la. O rapaz, que morreu, quandoreencarna, é sempre precedidopor uma borboleta. Se a borbole-ta aparece em determinada casa,ele vai reencarnar aí. Que eu sai-ba, é a primeira vez que um insetoé personagem de uma novela!Esses são dois trabalhosmarcantes. Há também um traba-lho, bem antigo, para o Banco 24horas: uma coruja e um galo emcima do banco. Recentemente, fizoutros trabalhos menos conheci-

dos, como a da campanha da Pazno Trânsito: uma pombinha de-veria pousar em uma placa, quevai aumentando a indicação develocidade, até que ela explode.Tive quatro dias para prepararduas pombinhas para pousar evoar da placa. Houve também acampanha da Nintendo em quedois chimpanzés estão discutin-do. Um outro trabalho bonito deGatsy, feito há um ano, é de umgato que desce uma escada, pas-sa pela porta, sobe em uma cadei-ra e depois em uma mesa, em se-guida para uma mesa de passarroupa, daí pula em cima de um ar-mário, para ficar olhando a comi-da. Tivemos vários filmes, o Po-licarpo Quaresma, com a atua-ção de 5.000 formigas, um papa-gaio, um sapo... Um filme que saiurecentemente, o Ed Mort, tivebaratas e um rato... No BellaDonna, que aliás foi rodadopertinho do Rio Grande do Norte,fiz toda a bicharada básica. Tive-mos, por exemplo, 508 morcegosem uma igrejinha. Em um momen-to, eles devem estar voando nointerior e, em outro, sair de umaigreja... Por sinal, aconteceu umcaso engraçadíssimo: nós usamosmorcegos que foram coletados nodia, com licença do IBAMA, com

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acompanhamento de um veteri-nário, de um biólogo, ou seja, cap-turamos e soltamos na mesma re-gião. Trata-se de um bicho muitosensível, que não poderia ser ar-mazenado por dois ou três dias.Assim, os animais eram pegos e,na medida em que eram pegos,eram feitas as sessões. Em umadas cenas, no final do dia, preci-sávamos, em uma cena final, deuma revoada de pelo menos 200morcegos. Eu tinha, comigo, pou-co mais de 100. Estava aguardan-do outras pessoas que deveriamtrazer os morcegos – e elas nãochegavam. Então, o diretor deci-diu antecipar a filmagem, pois aluz estava caindo. Sem a hora depreparo antes acertada, foi umacorreria. Quando estava tudopronto, o diretor diz: “Jayro!” – eeu entendi: “Solta!”. Abri a caixaem que estavam os morcegos. Porsorte, saiu um único morcego nafrente. Quando passou esse mor-cego, o câmara ligou os apare-lhos. O diretor disse: “Corta!”. Elenão cortou. E então, a bicharadasaiu. Foi feito tudo errado mas acena saiu maravilhosa! Apesar denão termos todos os morcegosplanejados, aquela quantidade foisuficiente. Apesar de eu ter sol-tado na hora errada, de o câmara

ter ligado na hora errada, pois nãoesperou a ordem do diretor e denão ter cortado mesmo após aordem dele, a gente fez...

EP: Você tem uma equipe fixa?E sobre os fornecedores de ani-mais?

AJFMF: A quantidade de traba-lhos que eu faço é qualquer coisacomo um por semana. Faço 50 a60 trabalhos anuais. Não é umaquantidade que requeira umagrande equipe. Trabalho com au-xiliares nos momentos em que ostrabalhos demandam. Num dostrabalhos da Cofap, eu tinha oitopessoas me ajudando – eramvários cães de procedênciasdiferentes, machos e fêmeas mis-turadas. No Bella Donna eu ti-nha duas ou três pessoas quefaziam a coleta, me auxiliavam.Com relação aos fornecedores,tenho cerca de 12.000, que têm osbichos mais malucos! Se eu pre-cisar aqui mesmo de um escor-pião preto de 30 cm eu tenho. Sevocê precisar de um elefante noRio de Janeiro, eu posso lhe for-necer. Às vezes me ligam dizen-do: “eu quero um cachorro aqui”(numa cidade qualquer), e eu te-nho. Acabei levantando um fi-

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como se estivessem se beijando,bicando ao redor dos olhos e emtoda a cabeça, como a fazer carí-cias. À primeira vista, é bastantesimples. Em qualquer praça pú-blica, há pombos se beijando –os pombos se beijam (e gostamtanto de copular que até são ti-dos como símbolos do amor) ! Eaí, como fazer os pombos se beija-rem? Diante da falta de modelos– não há ninguém investigandoisso, nem os veterinários, nemetólogos estudando o comporta-mento de beijar dos pombos...Então, adotei a estratégia de fa-zer um condicionamento: apanheivários casais (literalmente) e, comum deles, comecei um processode modelagem - aproximaçõessucessivas para modelar a res-posta de bicar o bico do outro,inclusive com estratagemas dotipo colocar um pouco de mel paragrudar painço no bico. No decor-rer do trabalho, eu percebi quegastaria muito mais do que asduas semanas para chegar a essetipo de comportamento. Ocorreu-me uma outra linha de trabalho:se os pombos se beijam normal-mente, por que não reproduzir ascondições nas quais tais coisasocorrem? Então, passei a obser-var os bichos e verificar em que

chário, com pessoas me oferecen-do, ligando, escrevendo... Hou-ve até um caso engraçado de umapessoa de Minas que se ofere-ceu para ser meu “escravo”! Paranão ganhar nada: só pão, água emoradia, para poder me auxiliar,acompanhar meus trabalhos ecoisas assim!

EP: Sendo uma espécie de pio-neiro na área, sem relatos paraservir de inspiração, certamen-te você já se viu diante de situa-ções difíceis. Entre os trabalhosque você já vez, quais foram osmais difíceis?

AJFMF: De fato, a dificuldadeestá na ausência de relatos decondicionamento com certos ani-mais, pois ninguém está interes-sado em mexer com esse tipo decoisa. Não há, também, certos re-latos dos próprios comportamen-tos do animal. Vamos apanhar umcaso concreto. Eu tinha duas se-manas para fazer dois pombosdesempenharem a seguinte tare-fa: no estúdio, nós teríamos umfogão, uma modelo ao lado dofogão; os pombos estariam maisou menos três metros à frente dofogão, deveriam voar até o fogãoe, em cima dele, deveriam ficar

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circunstâncias acontecia o com-portamento de bicar na região dacabeça. E foi possível descobriro que desencadeia o processo,verificar as circunstâncias rele-vantes e reproduzir a situação naocasião da filmagem – o que é umoutro problema, pois numa filma-gem, existem muitas coisas quedificultam o desempenho dos ani-mais. Mas, para concluir o casodo pombo: descobrimos que ospombos se bicam por uma razãomeramente de toilette. Tal qual oscachorros e os gatos se lambempara se limpar, os pombos – as-sim como vários outros pássaros– pegam pena por pena e vão selimpando. Obviamente, a cabeçaé uma região de acesso impossí-vel. Então, a coisa acaba funcio-nando de uma maneira grupal.Sabe-se quanto os pombos sãoanimais gregários e, em estandojuntos, a coisa funciona assim:“estou limpinho mas a sua cara,tal como a minha, está suja; dálicença que eu vou limpar você,mas não se esqueça de me limpartambém...”. E, uma vez que estoufalando para psicólogos, há umacircunstância interessante aqui:esse comportamento só sedesencadeia quando o pomboestá de barriga cheia. Eles são

adeptos daquele aforisma: “pri-meiro comer e depois filosofar”...Assim, fomos capazes de execu-tar a tarefa, graças à observaçãodireta dos pombos em situaçãonatural.

EP: Esse é, de fato, um exemplode trabalho que foge ao esque-ma clássico de condicionamen-to operante...

AJFMF: Já tivemos desafios in-teressantes, que não são mera-mente comportamentos motoresa serem instalados, mas compor-tamentos às vezes complexoscomo é o caso dos pombos beija-dores que a gente comentou e umoutro, por exemplo, fazer um ca-chorro bocejar. E, numa outra, umcachorro espreguiçar. O espregui-çar é um comportamento absolu-tamente complexo; a topografiada resposta é muito ampla. Há umconjunto de comportamentos en-volvidos: o cachorro abaixa a par-te anterior, a posterior é erguida,as patas se espicham, abaixa acabeça... em síntese, uma coisaextremamente complexa que umamodelagem de resposta talveznão chegasse lá. E se viesse achegar, certamente não seria comuma ou duas semanas. Conse-

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guimos cumprir esses três desa-fios simplesmente reproduzindoas circunstâncias em que os com-portamentos ocorreriam na si-tuação natural, criando, em estú-dio, as condições propícias paraa eliciação da resposta.

EP: O aspecto interessante nes-ses relatos, especialmente aqueledos pombos, é que, ao contráriodo que reza a cartilha – privar eposteriormente modelar as res-postas, a observação o levou atrabalhar com animais saciados!

AJFMF: Eu sou absolutamenteadepto daquela orientação daEtologia de que você aprendecom o próprio bicho. O animal équem nos ensina o caminha corre-to. Eu posso até filosofar no meugabinete a respeito, mas quemestá realmente se comportando éque vai dizer como, porque, quan-do, em que circunstâncias, de quejeito, de que maneira etc. etc. ascoisas devem ocorrer. Não sou euquem vai arbitrar o que deve serfeito. “Internar-se” com o bichoé, realmente, a melhor tática parase aprender, principalmente por-que boa parte dos comportamen-tos com os quais sou obrigado alidar são coisas que não chamam

a atenção de ninguém e não exis-te uma tradição de estarpesquisando esse tipo de coisa.Principalmente em um país compouca produção de conhecimen-to e poucos profissionais. Quemestará preocupado com detalhesda vida do pombo, do cachorro,por exemplo, se boceja ou deixade bocejar? Há grande interessecom as coisas relacionadas à saú-de pública; no caso dos veteriná-rios, o que é necessário para en-gordar, mantê-lo sadio e abatermais rapidamente o bicho... Nin-guém está preocupado em estu-dar os repertórios de todos osanimais pelo simples conhecimen-to dos comportamentos, que étipo de conhecimento que neces-sito para planejar um procedimen-to para instalar respostas, ou re-produzir as ações que o animalfaria de maneira normal. A obser-vação direta é crucial para se tercondições de fazer um trabalhoem qualquer campo no qual o psi-cólogo esteja atuando.

EP: Como você encara a intro-dução da computação gráfica nocampo da publicidade e do cine-ma? Você crê que isso posso vir aeliminar a necessidade de um pro-fissional que treine animais?

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AJFMF: A computação gráfica é,de fato, um belo concorrente. Apartir da filmagem de animais an-dando ou fazendo uma série decomportamentos, é possível ge-rar coisas incríveis. Indiscutivel-mente. Com o meu trabalho maiso auxílio de computador, já con-seguimos coisas incríveis. Numaocasião, fizemos três fotos paraa Parmalat em que tivemos umavaca em pé - literalmente, comose fosse um bípede – executandoexercícios ginásticos. Numa delasela está pulando corda, noutraestá pedalando, noutra está comhalteres... A coisa foi feita parci-almente comigo e parcialmentecom o computador. Obviamente,a vaca não é um ser apetrechadopela natureza para ficar comobípede, muito embora ela possaficar numa certa angulação máxi-ma. Os bois precisam, naturalmen-te, galgar a fêmea para cruzar. Masnão são capazes de ficar em umângulo de 180º. Nesse caso, acomputação entrou naquilo queeu não fui capaz de fazer. Mas, épara se pensar se a computaçãovai conseguir fazer as vezes dopsicólogo. Até certo ponto, nãoé o caso, pois quem procura re-quintes jamais se contentaria comum trabalho meramente de com-

putação. Você está indo comigo,agora, para preparar um trabalhoque a computação sozinha pode-ria executar: um cachorro estar,em uma mesa de veterinário, en-volvendo-se carinhosamente comum gato. Seria possível, com com-putação, colocar um cachorro eum gato juntos. Mas as poses, aluz etc., jamais seriam os mesmosse se faz isso “ao vivo e em co-res”. Quando se procura requin-te, o trabalho do psicólogo é in-substituível. Quando se procuramagnificar o trabalho do psicólo-go, a computação pode ser de in-crível utilidade, mas somente elanão basta, por completo, quandose busca requinte na produção.

EP: Pelas suas palavras e peloscasos que você relata, há umademonstração de inequívoca con-fiança nos princípios da apren-dizagem. Existem algum limiteintransponível ou qualquer traba-lho é exeqüível? Em suma: qual-quer animal é condicionável?

AJFMF: É uma pergunta estu-penda. Partimos sempre da pre-missa que todos os bichos sãocondicionáveis até prova em con-trário. E, de fato, a história temdemonstrado que nem com todos

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os bichos se tentou o condicio-namento, até porque não foi ne-cessário, ou ninguém se preocu-pou com isso. Mas será que to-dos os bichos são condicioná-veis? Na prática, nos deparamoscom coisas muito interessantes.Já tive o desafio de fazer um galocantar. Seria o comportamento decantar condicionável? Eu não sa-bia e tentei fazer. Fiz uma primeiravez e consegui. Com perfeição,isto é, o galo cantava todas asvezes em que eu apresentava aminha estimulação. Tive um se-gundo caso e também fiz a mes-ma coisa. Tive um terceiro caso:o galo, depois que aprendeu, nãofez mais! Aprendeu, diante daminha estimulação, a exibir o com-portamento. Depois que eu tinhabem estabelecido o comporta-mento ele “disse”: “eu não façomais!”. Como havia necessidadede fazer a filmagem, tivemos delançar mão de outros estratage-mas. O galo cantou na hora dafilmagem mas graças à apresen-tação de estímulos semelhantesaos que, em situação natural,eliciam o seu canto. Isso me le-vantou a questão: os meus casosanteriores não foram baseados emcondicionamento? Foram! E porque esse simplesmente “se recu-

sa” a fazer o comportamento de-pois de aprender? Posteriormen-te, tive outros casos com galos,que deveriam bater as asas e can-tar, o que me deixou preocupadocom a possibilidade de a coisa nãofuncionar sempre... Há limites? Hálimites sim e, no exemplo do galo,a questão não está suficiente-mente respondida. E olha que,com um outro galo, consegui ins-talar a resposta de bocejar, coisaque não fora solicitada por nin-guém. Durante a sessão deensiná-lo a cantar, ele bocejou (deenfado com meus truques de Psi-cologia?) e, aí, resolvi experimen-tar o condicionamento de boce-jar. Tive a bela surpresa de des-cobrir que este também é um com-portamento que pode ser manti-do sob controle de estímulos!

EP: Já houve casos em que vocêtenha aceitado uma tarefa semter idéia do que fazer?

AJFMF: Necessito fazer algumasobservações preliminares. Paratrabalhar nesse setor é preciso,em primeiro lugar, saber trabalharcontra o relógio. Sempre as coi-sas são para ontem... É precisoser capaz de fazer o seu animaldesempenhar não em condições

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ótimas, mas em um local com 50pessoas circulando, tossindo,tomando café, jogando copinhosno chão, abrindo portas, entran-do, saindo, acendendo a luz... Emsíntese, aquelas condições óti-mas de laboratório não existemnesse trabalho! Se já era difícilconseguir que o bicho fizesse ascoisas, muito mais difícil nas cir-cunstâncias em que normalmen-te ocorrem as filmagens, fotos ecoisas do tipo. Voltando então àpergunta: quando me fazem asconsultas, a gente tenta imaginar.Não vou dizendo: “faço!” e de-pois resolver. Sempre vamos ima-ginando quais são as condiçõestécnicas de fazer o que foi pedi-do, do ponto de vista da Psicolo-gia, de instalar comportamentos,de propiciar a eliciação da respos-ta, mas também, usando um ter-mo da área, lançando mão de efei-tos especiais. Por exemplo: se eupreciso fazer uma cabra andar emziguezague e só tiver meia horapela frente, provavelmente nãoserá possível condicioná-la. Masé possível produzir esse resulta-do: é só colocar, com um animalprivado, uma comida na ponta deum anzol (e a câmara não capta aponta do anzol) e ir fazendo umziguezague com a comida, que o

animal é capaz de andar, seguin-do a comida. Mesmo com um bi-cho não privado é possível con-tar com o recurso de oferecer pe-tiscos muito especiais. Depois dealmoçar, somos capazes de comeruma sobremesa se for irresistível.Resumindo, eu sempre me per-gunto quando me é proposto umtrabalho: É possível condicionar?É possível recriar as condiçõesnaturais para a eliciação da res-posta? É possível usar efeitosespeciais? De um modo geral, euaceito os trabalhos que acreditoser capaz de resolver. Mas já acei-tei alguns trabalhos com desafi-os incríveis, como por exemplo,esse caso de fazer o cachorro es-preguiçar e bocejar. Eu fui abso-lutamente honesto. Disse: “ja-mais fiz isso, não sei como fazer,mas me disponho a pesquisar. Seeu for capaz de descobrir, nós fa-zemos; caso contrário, não tere-mos como”. Especificamente, bo-cejar era uma das tarefas das pro-pagandas da Cofap. Aliás, um fil-me que pouca gente viu, passouuma semana só... Minha tarefaera: o cachorro deveria bocejar epor uma licença cinematográfica,deveria bater a patinha na bocacomo, às vezes, os humanos fa-zem ao bocejar. Coisa que, evi-

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dentemente, não faz parte do re-pertório do animal! Enfim, eu nãoaceito trabalhos que não possaexecutar em uma daquelas três li-nhas de atuação, mas, dependen-do do serviço, sou honesto emdizer: “posso estudar!”. E paraque não fiquem muito curiosos,digo que consegui fazer o cãobocejar. Quanto à patinha, impos-sível. Por isso, usamos uma répli-ca que eu encostava na boca delee retirava, repetidamente...

EP: Você seguramente já en-frentou situações inesperadas noseu trabalho...

AJFMF: Já tive problemas sérioscom coisas simples, do tipo, fazerum cachorro ficar parado na fren-te da câmara. Um cachorro quesabia fazer isso não ficava! Entãoé preciso ter sensibilidade paradescobrir o que acontece com umbicho que sabe fazer uma coisa enão quer fazer. Eu tive um casomuito instrutivo: numa ocasião,numa propaganda de uma gelati-na vegetal (Pronto), um bulldogdeveria iniciar mordiscando a bar-ra da calça de uma senhora na co-zinha, em seguida ir atrás de umabola atirada pela senhora; umaporta se abre e várias crianças

entram esmagando o cão (porefeito de desenho animado, é cla-ro), e assim por diante. O cachor-ro já sabia fazer tudo direitinho:ficava, mordiscava, segurava abarra da calça... Fui ao cenário doisdias antes para adaptá-lo à situa-ção de filmagem. Ao entrar no ce-nário, o cachorro estirou as patasda frente e de trás, pranchou-seno chão e “disse”: “daqui nãosaio, daqui ninguém me tira!”.Algo acontecia com o cachorro!A coisa ficou tão séria que per-maneceu dias sem urinar e, trêsdias depois, o cachorro ainda nãoevacuava! O veterinário exami-nou o cachorro e ele não tinhanada! Finalmente, acabamos des-cobrindo o problema: a cozinhaera um lugar branquinho, uma me-sa branquinha, azulejos branqui-nhos... Na cabeça do cachorro,ele estava, certamente, entrandonuma clínica veterinária! Passoua exibir o comportamento que, de-pois o dono me relatou, ele exibiaquando ia ao veterinário, numaespécie de defesa. Foram neces-sários cinco dias de dessensibili-zação sistemática para o cachor-ro voltar a ficar de pé e andar nocenário, voltar a restabelecer oprocesso de condicionamento doque ele sabia fazer e executava

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fora dali. O problema era o cená-rio. Como não dava para mudar ocenário, tivemos de mudar o com-portamento do cachorro. Existemcoisas que são realmente comple-xas e é necessário estar atento.Inclusive, quando se executa essetipo de trabalho, tentamos criar,durante as filmagens, o melhorclima possível. De um modo ge-ral, eu isolo o bicho da convivên-cia das pessoas, resguardando-o, tanto quanto possível, para nãoficar muito excitado, com tantagente mexendo com ele. Damosmuitos intervalos, observando seele está cansado, precisa urinaretc. Às vezes, a pessoa vem e diz:“é só mais uma ceninha...”. Masnão faço, pois o bicho parece quenão está confortável. Você tem deficar atento e observar que coi-sas ou circunstâncias intervém epodem estar alterando o compor-tamento do animal.

EP: Ainda falando sobre as pos-sibilidades de atuação no cam-po em que você trabalha, exis-tem outros tipos de solicitação?

AJFMF: Além dos comerciais,fotos, cinema e teatro, há tambémcertos eventos. Por exemplo, fuiconvidado a participar de um ca-

samento para fazê-lo de maneiramais “refinada”. Na hora em que,ao som das Quatro Estações osnoivos deveriam dar um beijinho,a gente soltou uma nuvem de CO2

e 200 borboletas... Já em outrasocasiões, fiz dois trabalhos com-plicados: uma pomba deveria virpousar no ombro esquerdo de umator, num dado momento de umtexto que estaria lendo. Num ins-tante preciso. Imagine esse ator,num estádio, com 2.000 pessoas,canhão de laser, banda de músi-ca, CO2, fumaça, gritaria, algazar-ra de crianças e coisas do tipo. Édiferente de um comercial quevocê repete a cena. Aqui, não;ou você faz, ou você “dança”. Umoutro trabalho super-interessan-te que a gente já fez foi o de umaloja que queria uma decoração deNatal externa: uma árvore de Na-tal com pombos brancos portan-do gravatinhas borboletas, quemorassem naquela árvore ceno-gráfica que foi implantada do ladode fora da loja. Treinamos os ani-mais, de início, no meu estúdio,ambientamos os animais às con-dições pedidas e, por fim, no lo-cal, os animais foram soltos e fi-caram lá. Além disso, fizemos umoutro trabalho no teatro: um atordeveria andar com um cajado na

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mão com dois pombos que nãodeveriam sair de cima do cajado.Foi tranqüilo!

EP: Uma questão para finalizar:você faz parte de uma “geração”de psicólogos oriundos da USPque, por coincidência ou não, de-senvolve trabalhos relativamen-te fora do convencional da Psi-cologia. Veja, por exemplo, aHannelore Fuchs que não so-mente fez todo o trabalho decondicionamento dos animaisdo Simba Safari mas tambémtem feito um trabalho de con-sultório com animais.

AJFMF: É, ela terminou Psicolo-gia, tem consultório e é a únicapessoa que eu conheço no paísque faz “terapia animal”, incluin-do desvios de comportamento,reeducação de hábitos. E não so-mos os únicos a inovar. Da mes-ma “turminha” da USP, tivemos(falecido) o Dario, com o pionei-rismo de tratar de inter-sexo (“mu-dança” de sexo de pessoas nasci-das com ambas as genitálias), doEvandro, com construção ergo-nômica de equipamentos hospi-talares, e de outra colega, tratan-do de Psicologia e Arquitetura (aadequação, por exemplo, das di-

visões internas de uma moradia àcirculação mais racional).

EP: Você considera que esse tipode trabalho, seu, o de Hanneloree dos outros, abre perspectivasnovas para a Psicologia, dianteda virtual saturação de campostradicionais de atuação?

AJFMF: Mexer com bichos é umaatividade no qual o psicólogo temmuito a contribuir. E não neces-sariamente em termos do meu tra-balho específico que é condicio-namento para publicidade, cine-ma, televisão, eventos e coisasdo gênero. Esse é um setor que élimitado, mas existem outros emque o psicólogo teria uma contri-buição muito grande a dar. Umadelas é lidar com comportamen-tos “normais” de animais; eu nãoconheço um único psicólogo quelide com condicionamento de cães.As pessoas que estão na área têmpouca base teórica. De um modogeral, não acreditam que a gentepossa fazer o que faz, no tempocurto que se dispõe. Eles gastamum mês para treinar algo que agente é capaz de fazer em duasou três sessões. Mas, uma vezque os conhecimentos não sãocartoriais; as pessoas, com bom

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senso, acabam descobrindo,umas passando às outras. Existeum conhecimento sim, mas retira-do a fórceps da sua observação,da sua prática. Isso seria enorme-mente facilitado se as pessoasdispusessem de um mínimo deconhecimentos que a Psicologiaestá cansada de saber. Falta umaatuação do psicólogo junto àspessoas que lidam com treina-mento de cães para obediência,guarda etc. Não seria necessárioque o psicólogo saísse de casaem casa treinando os cachorros,mas ele poderia ter uma equipeque pudesse orientar ou prestarassessoria. Você teria condiçõesde fazer mais coisas, mais rapida-mente, muito bem feitas e compouca seqüelas, ao contrário doque se vê, de um modo geral, comas pessoas que trabalham no se-tor. Esse é um campo. Existemoutros que também lidam com ocondicionamento e dos quais opsicólogo está muito ausente.Aqui em São Paulo havia até re-centemente, uma psicóloga (fale-cida) que mexia com doma de ca-valos, que ela denominada “domaracional”. Utilizando princípios dePsicologia e coisas do tipo. Naárea em que se cuida de cavalos,corre muito dinheiro e haveria fa-

cilidade para contratação de umpsicólogo. Para ilustrar o que es-tou falando, para quem não estáno campo, devo dizer que essepessoal é capaz de trazer umamaquiadora dos Estados Unidospara trabalhar em um cavalo quevai a uma exposição... São áreasem que existe já um trabalho decondicionamento, mas o psicó-logo está ausente. É o caso dadoma de cavalos, de doma paramontaria... Outro campo no qualo psicólogo está absolutamenteausente é o lidar, no conhecer, nodescrever comportamentos ani-mais, fazendo etogramas, levan-tamento de repertórios compor-tamentais, coisas do tipo... É umacoisa mais acadêmica, pois nãohá uma aplicação prática normal,mas é muito importante. Tantopara o pleno conhecimento doanimal; e ajudar a melhorar suacondição de vida em zoológicos,reservas naturais, como melhorara qualidade de vida dos bichosde estimação etc. Exemplo dequão pouco sabemos sobre o re-pertório comportamental dos ani-mais e, por isso mesmo, do sofri-mento que lhes impingimos, podeser deduzido da nossa incapaci-dade de manter certos animais emzoológicos e conseguir que se re-

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produzam em cativeiro. Se istoestá acontecendo, é porque ain-da não descobrimos todas as suasreais necessidades e não estamosaptos, pois, a recriá-los no cati-veiro. Isso tudo só para dizer queexistem outros campos, com ani-mais, nos quais os psicólogosque adoram bichos bem que po-deriam oferecer seus serviços:zoológicos, clínicas, veterinários,reservas naturais, construturasde barragens que necessitam fa-zer retirada e transferência de ani-mais... Sozinhos, os veterináriose biólogos não podem dar contado recado na lida com os animais.Afinal de contas, o psicólogo é oespecialista em comportamento,o que inclui o dos animais.

EP: No próprio campo da publi-cidade, existem outras possibili-dade de atuação do psicólogo.

AJFMF: Sim, dentro da publici-dade, temos a criação de anúnci-os, de pesquisa de mercado. Aí,o psicólogo teria uma boa contri-buição, pela sua formação empesquisa, do conhecimento depessoal, da capacidade de colherdados. São poucas as pessoasque lidam com isso; eu mesmo sóconheço uma em São Paulo, o

Fernando (Leite). Existem muitospsicólogos que trabalham compublicidade, mas que, dentro dasagências, largam a Psicologiapara fazer outras coisas. O queeu acho importante é as pessoasestarem atentas, ao longo do seucurso, com as possibilidades di-ferentes que elas possam ter oufazer. Eu mesmo não escolhi lidarcom bichos, muito pelo contrário.Isso, como dizia a Wilma, foi uma“praga” que rogaram em mim, poiso tempo todo da minha pós-graduação, eu brincava e debo-chava dos colegas que mexiamcom bichos, com pitus, aranhas,caranguejos, formigas... Dizia: “eunão, eu quero mexer com gente!”.E orientei todos os meus cursospara tratar com gente; foram ra-ros os cursos com bichos. Issoocorreu na minha vida – e coisasdesse tipo ocorrem. Por que nãotentar uma coisa diferente, umacaminho diferente? É preciso fi-car atento às leituras, às conver-sas, aos seminários, aos congres-sos, para ver possíveis camposde atuação diferentes do psicó-logo. Recentemente, por exemplo,fazia consultoria de RH e, na em-presa World Tennis, tínhamos umserviço incrível, o que se chamahoje de “espionagem”. Você quer

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saber, por exemplo, como os ven-dedores estão tratando os clien-tes. Uma empresa é contratadapara mandar pessoas compraremna loja com o fito de fazer umcheklist, após a visita, de cente-nas de itens (por exemplo, se ovendedor estava sujo ou limpo,se deu bom dia, se ofereceu todasas coisas, se foi cordial etc.). Emsíntese: um trabalho de observa-ção, que qualquer psicólogo te-ria satisfação em fazer. É um tipode serviço que já se presta, masnão vejo psicólogo oferecendoisso. No nosso caso, os dados se-riam usados não para despedir ofuncionário, mas treiná-lo. Sãocoisas que o psicólogo pode fazere não estão, necessariamente, noslivros. Com o mundo em constan-te transformação, é preciso estaratento aos pequenos sinais que

porventura possam ser promisso-res para uma nova atuação – quenão é necessariamente aquela deo psicólogo montar um consultó-rio e achar que só pode fazer al-guma coisa na vida se colocar al-guém no divã e atendê-la de for-ma psicanalítica, principalmente...

EP: Você gostaria de dizer maisalguma coisa que eventualmen-te teria faltado na entrevista?

AJFMF: Não poderia terminarsem enfatizar que não penso quemuitos psicólogos devam tratardas questões relativas ao compor-tamento animal. Mas alguns preci-sam fazer isso, e logo. A maioriarestante necessitaria lembrar queé especialista em comportamentoe onde haja alguém se comportan-do, aí cabe um psicólogo.

Nota 1 Fagundes, A. J. F. M. (1980). Descri-

ção, definição e registro de comporta-

mento. São Paulo: Edicon.