Entrevista - Clodovis Boff Word 97

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Qual é a razão da polêmica atual sobre a teologia da libertação? Não estamos discutindo um tema de conjuntura, mas de fundo: o princípio primeiro da teologia da libertação. Qual é? O pobre? Eu respondo: não! É Cristo. Sem dúvida, o Cristo crucificado que preferiu os pobres, mas é Ele – e não os pobres – quem define a teologia em última instância. O resto vem depois. Como você vê a teologia da libertação hoje? A teologia da libertação como grupo constituído não tem mais tanta força real. A Renovação Carismática e outros movimentos da Igreja já absorveram a luta pelo social, mas dentro de um âmbito mais amplo da fé. Sem dúvida, devemos nos envolver com os pobres, mas não precisamos montar um grupo à parte, com quadros, com linhas de ação, com ideologia própria e em oposição a outros grupos cristãos. Isso contradiz o tecido sociológico da Igreja Católica, que é, por natureza, aberto/pluralista e não sectário/facciosista. Por faro espiritual e por cultura, o católico é inclusivo. Mas os teólogos da libertação ainda querem constituir um grupo específico, que, contudo, só se justificaria na comunhão com o todo. De qualquer forma, o artigo que escrevi reacendeu a discussão. Como resposta, até agora, quase não surgiu nada novo, mas repetição de clichês, lugares comuns reiterados nos últimos anos. Não se recomeçou da fonte sempre nova, capaz de renovar e elevar o nível do debate: Cristo, o Evangelho, a fé sobrenatural. De certa forma, com sua reação à minha defesa do "princípio- Cristo", os teólogos da libertação comprovam o diagnóstico do meu artigo: sua incapacidade para responder de modo inequívoco qual é o fundamento último da teologia da libertação. Respondem

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Qual a razo da polmica atual sobre a teologia da libertao?

No estamos discutindo um tema de conjuntura, mas de fundo: o princpio primeiro da teologia da libertao. Qual ? O pobre? Eu respondo: no! Cristo. Sem dvida, o Cristo crucificado que preferiu os pobres, mas Ele e no os pobres quem define a teologia em ltima instncia. O resto vem depois.

Como voc v a teologia da libertao hoje?

A teologia da libertao como grupo constitudo no tem mais tanta fora real. A Renovao Carismtica e outros movimentos da Igreja j absorveram a luta pelo social, mas dentro de um mbito mais amplo da f. Sem dvida, devemos nos envolver com os pobres, mas no precisamos montar um grupo parte, com quadros, com linhas de ao, com ideologia prpria e em oposio a outros grupos cristos. Isso contradiz o tecido sociolgico da Igreja Catlica, que , por natureza, aberto/pluralista e no sectrio/facciosista. Por faro espiritual e por cultura, o catlico inclusivo. Mas os telogos da libertao ainda querem constituir um grupo especfico, que, contudo, s se justificaria na comunho com o todo.

De qualquer forma, o artigo que escrevi reacendeu a discusso. Como resposta, at agora, quase no surgiu nada novo, mas repetio de clichs, lugares comuns reiterados nos ltimos anos. No se recomeou da fonte sempre nova, capaz de renovar e elevar o nvel do debate: Cristo, o Evangelho, a f sobrenatural.

De certa forma, com sua reao minha defesa do "princpio-Cristo", os telogos da libertao comprovam o diagnstico do meu artigo: sua incapacidade para responder de modo inequvoco qual o fundamento ltimo da teologia da libertao. Respondem que no bem Cristo, mas o pobre... o pobre com Cristo... os dois juntos... V-se, enfim, que a ambigidade conceitual total! No conseguem assumir o que to simples para qualquer cristo: Cristo o fundamento da Igreja, o princpio e a fonte de toda a vida crist. Isto no questo de teologia, mas de catecismo. Evidentemente, no me refiro aqui a todos os telogos da libertao, mas corrente dominante e mais em evidncia.

Quando voc mudou sua posio sobre a teologia da libertao?

S quem no me conhece ou no leu a fundo meus livros e artigos pode considerar que houve uma mudana substancial. Na minha tese de doutorado, em 1978, publicada como Teologia do Poltico e suas mediaes, eu j sublinho a necessidade de referir tudo a Bblia. Retomo so Toms de Aquino que diz que tudo em teologia deve ser discutido luz de Deus, sub ratione Dei na ptica e perspectiva de Deus , para ter a colorao exata. Sem esta referncia palavra de Deus, a teologia da libertao vira sociologia, um discurso entre outros. Alis, j naquela poca eu criticava certa tendncia panfletria que ameaava a teologia da libertao, como se confirmou em seguida. Na boca de certos militantes, ela se banalizou.

Fui convidado pelo Igncio Ellacuria (padre espanhol assassinado em El Salvador em 1989) para escrever a parte metodolgica da obra coletiva Misterium Liberationis, conceptos fundamentales de la teologia de la liberacin. L eu enfatizo explicitamente a tese de que os pobres so o ponto de partida da teologia da libertao. Mas deixo claro que h um ponto de partida anterior e ainda mais radical: Cristo. Ele o ponto de partida de toda teologia. Na caminhada, ela pode - e deve - apanhar a problemtica poltica, social, sexual, cultural... mas estes s podem ser pontos de partida segundos.

Um telogo protestante tcheco veio recentemente conversar comigo. Est fazendo sua tese de doutorado sobre teologia da libertao com base na minha obra. Ele insiste, com razo, que, desde o incio, eu distinguia entre "teologia 1" bsica, fundamental e "teologia 2" construda sobre a primeira e que pode tratar a questo do pobre, da poltica, da cultura, da arte, da ecologia, da mulher etc. Mas sem a "teologia 1" impossvel fazer a "2".

Eu mesmo chamei essa articulao de "arqueologia da teologia". Refletindo sobre este tema, h cinco ou seis anos, publiquei um artigo intitulado Volta arch. Arch a base, o princpio, o fundamento, a fonte. Dei uma palestra sobre o tema no Encontro Nacional de Telogos em Belo Horizonte. Mas quem atinou com o problema? Quem levou adiante a reflexo de forma crtica? Falta rigor e gravidade teolgica. Sem dvida, admirvel e necessrio o esforo para resolver as questes sociais. Mas tambm preciso fazer teologia sria e crtica, alis, em benefcio deste prprio esforo.

Depois do meu artigo publicado h um ano, dizem que mudei de lado, que agora sou "contra os pobres". H bobagem maior? Outra bobagem: "Ah, voc passou para o lado da hierarquia!" Como assim? preciso ser contra a hierarquia para ser telogo livre e comprometido? A Igreja hierrquica tem de estar, e em boa medida est, do lado dos pobres. Outra coisa ridcula: "Ah, voc at parece o Cardeal Ratzinger do Brasil!" Por essas reaes v-se em que patamar est colocado o debate. Francamente, ainda no se alcanou o nvel intelectual adequado para uma discusso em profundidade. Ainda no perceberam que a questo central o fundamento - Cristo - e que s a partir da todo o resto se arruma na Igreja e na teologia.

Ao formular a questo de uma forma to categrica, voc no reduz demais o debate?

No estamos discutindo um sistema teolgico. O problema mais simples: qual o princpio fundamental da teologia? um s, como diz So Paulo: Cristo. Ou como est escrito no evangelho de Mateus: "Voc Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja". Jesus disse isso depois de ouvir a confisso de f do apstolo: "Voc o Cristo, o Filho do Deus Vivo". Todos os Santos Padres da IgrejaAutores eclesisticos, gregos e latinos, ativos nos primeiros seis sculos do cristianismo interpretaram que a "pedra" o fundamento, a base da Igreja Pedro que confessa a f em Cristo, ou seja, Pedro enquanto confessante.

Repito: tudo isso no questo de teologia, mas de pr-teologia, de catecismo ou, at mesmo, de convico de f. Toda a discusso pode ser resumida na pergunta: "Afinal, voc acredita que Cristo a pedra fundamental da Igreja?" Quando pais e padrinhos levam uma criana para ser batizada, respondem trs indagaes do padre: Cr em Deus Pai? Creio... Cr em Jesus Cristo Nosso Senhor? Creio... Cr no Esprito Santo? Creio. Ento, o padre batiza. Ele no pergunta: "Voc opta pelos pobres?" Essa questo no deixa de ser importante, mas muito posterior. apenas implicao da f, no sua origem.

Em outras palavras, estamos aqui no b--b da teologia. Se h telogos da libertao que no compreenderam isso porque debandaram para o campo da ideologia, desgarrando do princpio da f cristolgica. E o que acontece quando nos afastamos do princpio? Perdemos o rumo, a qualidade, a essncia. Se o rio se separa da fonte, seca. Se a luz se desconecta da fonte de energia, apaga. Ento, a teologia da libertao torna-se ideologia da libertao, ou seja, mera "pobrologia".

Pergunto: Cristo ou no o princpio? ou no o constitutivo da teologia? A partir da adeso a Cristo da comunho com Ele, da opo por Ele que comea o cristianismo. Tambm o cristianismo libertador. Do contrrio, no temos nada de cristianismo. H muita gente que se preocupa com os pobres: o PT, as organizaes no-governamentais... Qual o diferencial dos cristos? S pode ser Cristo. No h outro.

Penso que a teologia da libertao que funciona no est mais restrita teologia da libertao convencional. O essencial dela est na boca do papa Bento XVI, nos grupos da Renovao Carismtica que se ocupam dos pobres de maneira humilde e discreta. Tantos outros cristos, sem gritaria nenhuma, ocupam-se das prostitutas, dos dependentes qumicos, das pessoas que vivem com o HIV. Assimilaram a opo preferencial pelos pobres como a normalidade do cristianismo: quem cr, ocupa-se dos mais necessitados. Simples assim.

No comeo, a teologia da libertao precisou gritar para criar sensibilidade social e poltica, pois a Igreja estava acomodada demais. Mas a lio foi aprendida muito bem. O tempo passou e agora h outras demandas. A cultura atual est voltada em outra direo. A juventude quer espiritualidade real. Obviamente, espiritualidade autntica, crist... sem alienao, comprometida com o social. Mas sempre em comunho com Cristo Ressuscitado, que vive no meio do povo e que nos leva ao mistrio de Deus, uma espiritualidade capaz de encher o corao do ser humano, para, assim, transformar a sociedade.

Voc escreveu que "no a f que confere um sentido sobrenatural ou divino luta... o inverso que ocorre... esse sentido objetivo e intrnseco que confere f sua fora". Ainda acredita nisto?

No. Um dos meus equvocos poderia chamar de "minha pesada hipoteca teolgica" foi o rahnerismo. Trata-se, na verdade, mais de uma simplificao das idias do jesuta alemo Karl Rahner do que da sua verdadeira teologia, dita transcendental (alis, sofisticada at o exagero). O rahnerismo sustenta que, para a salvao, basta existir a f dentro de ns, sem a estrita necessidade de uma confisso pblica. O testemunho no constituiria a f, que se manifestaria principalmente na relao tica.

Deus estaria dentro de cada um, sobretudo na nossa atitude frente ao outro. Tambm o ateu, na medida em que honesto, j estaria na graa de Deus, iluminado por Cristo, enfim, salvo. Surge ento, naturalmente, a questo: para que serve a Igreja, os sacramentos, a misso, a orao, a profisso de f ou o martrio? Seriam apenas explicitaes mais ou menos facultativas. Eu acreditava no rahnerismo. Por isso, escrevi a frase boba que voc citou.

Hoje, compreendo que a f no pertence s ordem da explicitao, mas da constituio da salvao. Ordinariamente, a f explcita que constitui a graa, a salvao, a Igreja, a presena de Cristo no meio dos homens. De modo extraordinrio, Deus tem outros caminhos... pode obviamente salvar pessoas que no conhecem Cristo, nem fazem parte da Igreja.

A f no s explicitao do que j existia, consciente ou inconscientemente, no nvel tico. A f verdadeira no pertence apenas ao nvel tico, embora tambm o envolva. Ela tem uma ordem prpria que poderamos chamar de espiritual ou religiosa. A tica o dever, a relao com o outro, a justia, a equidade, realidades que permanecem aqum da religio. Se a religio se reduz a isso, torna-se moralismo. Observamos esse risco no Rahner transcendentalista: o cristianismo torna-se um cdigo gnstico para voc interpretar a moral em termos de salvao. Um dos maiores telogos anglicanos, John Milbank, fez uma crtica pertinente: ao invs de sobrenaturalizar o natural, Rahner naturalizou o sobrenatural.

No contexto rahneriano, para que Igreja? Ela se torna um acessrio praticamente dispensvel. A salvao acontece na poltica, na histria, na praa pblica, ao lado dos sem-terra e dos pobres. Assim se compreende por que tantos militantes cristos abandonam a Igreja depois de um certo tempo. Vo para os partidos ou para as organizaes no-governamentais. No recebem mais os sacramentos, no rezam, no fazem retiro, porque veem tudo isso como pura perda de tempo. A Igreja passa a ser considerada, na melhor das hipteses, uma eficiente escola primria para a atividade poltica e social.

A teologia da libertao criou bons "onguistas" e militantes. Mas criou cristos realmente convictos de sua f e experimentados nos mistrios de Deus? De fato, para os "liberacionistas", "ser bom e justo" o mais importante e no tanto ter f, que pode permanecer implcita. Tal "cristianismo annimo" no tem nenhuma base na bblia, na tradio da f e menos ainda na prxis da Igreja. algo elaborado nos escritrios dos intelectuais alemes, que depois vendem mundo afora esse peixe mal-cheiroso, e muito telogo compra, como foi o meu caso. Na minha tese de doutorado, assumi muitas das categorias transcendentalistas do Rahner na convico de que a salvao constituda na relao tica concreta entre os homens e no na relao de f com Deus. Mas me enganei.

Quando voc rompeu com o rahnerismo?

Nos anos 80, o cardeal d. Eugnio Salles retirou minha licena para lecionar teologia na Pontifcia Universidade Catlica do Rio. A deciso contrariava a lei da Igreja, que prev um processo cannico para a aplicao deste tipo de sano. Meu superior geral em Roma moveu um processo contra essa medida, que ainda no se resolveu. Ou melhor, no se resolveu de iure, mas j se resolveu de facto.

O telogo que assessorava o cardeal, d. Karl Joseph Romer, conversou comigo na poca: "Clodovis, acho que nisso voc est equivocado: a palavra da f no s revela, mas tambm constitui." Repensei a questo. De fato, quando voc diz "eu creio", situa-se na sintonia de Cristo, no influxo da graa. A confisso da f necessria. Paulo afirma que, "se voc confessar com seus lbios e crer no seu corao que Jesus o Senhor, ser salvo" (Rm 10, 9). A confisso da f fundamental, pois constitutiva, performativa, eficaz em relao graa. Ela produz aquilo que afirma. Quando o padre diz "eu o absolvo", os pecados so perdoados. Quando afirma "eu os declaro marido e mulher", o casal se torna uma s carne. Quando fala "isso o meu corpo", o po se torna corpo de Cristo.

Refletindo melhor, abri os olhos. Quando respondi s crticas de D. Eugnio neste ponto, admiti meu equvoco. De fato, a palavra da f tem um carter sacramental ou performativo. Ela no s reveladora. At ento pensava que era s manifestativa e no constitutiva. Assumi uma postura mais crtica frente ao rahnerismo, sobretudo porque tornava a Igreja praticamente irrelevante. E no s ela: a prpria encarnao do Filho de Deus tambm perdia a importncia decisiva que a grande tradio sempre lhe atribuiu. Deus no precisaria se revelar em Jesus se quisesse simplesmente salvar o homem pela tica, pelas meras relaes sociais autnticas. Nos bastidores do seu mistrio, ele garantiria a salvao de cada um.

Se fosse assim, para que confessar a f? Os mrtires no passariam de uns tolos que perderam a vida por nada. Os missionrios, que montam igrejas e anunciam Cristo como salvador, seriam uns iludidos. No seria mais simples deixar os chineses se salvarem por conta prpria, seguindo simplesmente sua conscincia tica? O rahnerismo no d conta do fenmeno cristo em sua diferena qualitativa. Basta lembrar a experincia de todo convertido, um sujeito que v uma nova e grande luz se abrindo diante dele, como foi o caso de Paulo de Tarso. Todos percebem uma mudana qualitativa nas suas vidas. Com a f, a vida torna-se diferente no s psicologicamente, mas ontologicamente. Vive-se uma verdadeira "regenerao".

A partir da, comecei a considerar o rahnerismo um vrus que se disseminou na teologia moderna. Hoje em dia, quase todos os telogos "modernos" so rahnerianos sem se darem muita conta disso. verdade que Rahner tem duas faces. Uma delas a do jesuta piedoso, eclesial, que est acima de toda crtica. A outra a do Rahner da modernidade, do pensamento transcendental, que, na minha opinio, vende a f barato: realiza uma liquidao de todo o regime eclesial, sacramental e encarnacional da f crist. A f vira uma flor na lapela: bonitinho acreditar, mas no faz diferena sair de casa com ou sem ela. o Rahner kantiano. Para Kant, voc cr e ponto final. No d para discutir, questionar nada. A razo prtica apenas "postula" Deus para garantir a moral, mas nossos sentidos - e, portanto, nossa razo - so incapazes de alcan-lo. No d para conhecer nada sobre ele. Partindo desta premissa impossvel fazer teologia. Para responder ao Rahner transcendentalista, necessrio apontar o equvoco do Kant que est na sua base.

Na realidade, quem segue o rahnerismo acaba no pelagianismo: a salvao fruto do esforo do homem. E a f? apenas uma gnose: saber que na experincia tica acontece a salvao. A f deixa de ser uma realidade teolgica, tenoma e teocntrica. Mas, como j disse, o caso Rahner curioso. Nos escritos espirituais homilias e meditaes , ele profundamente inaciano, mstico, no sentido mais tcnico do termo: ele sente a experincia de Deus, que no consegue exprimir, apenas balbuciar. dele a clebre frase: "O cristo do sculo 21 ou ser mstico ou no ser nada". Mas quando senta no gabinete para fazer teologia se mostra um kantiano.

Por qu?

a seduo do moderno. O poder da tcnica, da cincia e da economia impressiona. Alm disso, h tambm a vontade da redimir os valores da modernidade: liberdade, razo, pluralismo, poltica, sociedade, sexualidade... que, verdade seja dita, sofreram muito sob o poder do cristianismo institudo, especialmente na forma de cristandade. Foram sufocados por um certo encratismo, maniquesmo e platonismo, correntes que, sob disfarce de certo agostinismo, penetraram na Igreja e prejudicaram esses valores humanos e sociais.

Penso que Rahner sofreu o impacto do processo de secularizao. Foi a mesma experincia do telogo protestante Dietrich Bonhoeffer, preso e executado pelos nazistas: a perplexidade diante do destino do mundo moderno que se afastava da religio. Surge ento a suspeita - e depois a convico - de que, mesmo que o mundo no saiba, Deus o guia e o salva. Ele providente. Numa mesma tacada, recupera-se, assim, o cristianismo, agora sob forma annima, e justifica-se ideologicamente o mundo moderno. Os rahneristas fazem isso at por uma questo de benevolncia, para no entregarem o mundo ao diabo: "Um homem ajuda outro homem? J est na graa de Deus! Bola para frente! Mesmo dentro do secularismo, redimimos o mundo." o que pensam.

A Igreja torna-se irrelevante, mas a substncia do cristianismo, entendido como essa realidade salvfica eticamente difusa, continua avanando na histria. Contudo, como lgico, surge ento uma dicotomia entre regime da Igreja e regime da graa, entre Igreja hierrquica e Igreja carismtica, entre cristianismo annimo e cristianismo confesso, entre f explcita e f implcita, entre Cristo na Eucaristia e Cristo no pobre.

Gostaria que o debate sobre a teologia da libertao chegasse tambm ao nvel de debater e esclarecer questes decisivas como essas. Por enquanto, nos meus artigos, s critiquei o rahnerismo de passagem. Sem dvida, necessrio uma argumentao forte para enfrentar aquele que considerado o maior telogo do sculo 20, um "monstro sagrado".

Mas, ao atacar esse lado do Rahner, toda a raiva teolgica cai sobre voc, mas sem argumentos rigorosos e convincentes. As rplicas se contentam, na maioria das vezes, com slogans e clichs. J responderam minhas crticas dizendo que h muita gente que cr em Cristo, mas depois faz safadezas. Crer em Cristo, portanto, no garantiria a salvao. um argumento vulgar. No em nome da f em Cristo que um sujeito safado, mas contradizendo essa f, por incoerncia.

Seu irmo Leonardo considera que voc se tornou muito pessimista em relao modernidade...

necessrio discutir o que a modernidade diante da f e a f diante da modernidade: fazer o confronto destas realidades. Evidentemente, a modernidade recupera grandes valores humanos: a liberdade, o pluralismo, a sexualidade... enfim, as realidades terrenas. Mas h uma dimenso do real para a qual ela permanece fechada: a transcendncia, a mstica, o sobrenatural. E isso sua fraqueza e seu limite mortal: a modernidade permanece presa ao imanente. O princpio da imanncia constitui o corao da modernidade. Na perspectiva moderna, o mundo, a histria, a cincia e os fenmenos naturais esgotariam a realidade. O resto seria apenas projeo, criao humana, fantasia ou, no mximo, elaborao simblica, desprovida, contudo, de contedos ontolgicos, substanciais.

Mas, para quem cr, a verdadeira realidade Deus, sua graa, seu Reino. O resto real em funo desta realidade fundamental. Mais: sombra e smbolo, como pensam msticos e poetas. O Conclio Vaticano II reconhece a autonomia das realidades terrenas: da sexualidade, da tcnica, da cincia, da poltica... Mas afirma que elas devem estar abertas aos valores transcendentes, sobrenaturais, sem os quais, os valores naturais perdem sua base, sua fundamentao. No foi outro o leitmotiv do discurso do papa Bento XVI na ONU: os direitos humanos devem, sem dvida, estar no centro de tudo, mas para garantir tais valores, para no deix-los merc de convenincias acordos, interesses, presses e tendncias culturais preciso fund-los na transcendncia, na dimenso religiosa da existncia. S assim eles escapam manipulao e se consolidam. Tal a contribuio da f para a modernidade. O mundo contemporneo revalorizou seguramente a dignidade humana, mas no sabe mais onde a ancorar e, por isso, confia nas convenes sociais. Nada pode ser mais perigoso. Basta a mudana do consenso social para tornar lcita a violncia contra idosos, nascituros, imigrantes ou seja l quem for.

Houve um projeto de cooptar a Igreja para um projeto revolucionrio de ndole gramsciana?

No acredito em um projeto deliberado. Na Itlia, os comunistas estavam convencidos de que Deus uma bobagem. Mas sabiam tambm que o catolicismo est na medula da cultura italiana. Era preciso levar em conta dois mil anos de cristianismo. Gramsci compreendeu isso. No creio que os marxistas italianos tivessem a idia maquiavlica de introduzir o marxismo no cristianismo para destru-lo por dentro. Mas, sem dvida, tentaram utilizar em seu proveito o capital religioso do povo italiano.

E na Amrica Latina?

Num encontro que, anos atrs, tivemos com Fidel Castro, o comandante confessava: "No conseguiremos transformar a Amrica Latina se no tivermos a Igreja do nosso lado. um continente catlico. Che Guevara j dizia isso e estou cada vez mais convencido." uma ptica poltica inteligente, que v a religio como fora social: no d para envolver o povo sem este apelo. Mas uma viso exterior religio, pois no a admite como verdade de salvao, mas s como funo da revoluo.

Uma das coisas que critico na teologia da libertao exatamente o funcionalismo, o utilitarismo da f, na medida em que acaba instrumentalizada pela e para a poltica. Como se a poltica fosse um fim e a religio, um meio. Concretamente, como se o pobre fosse um fim e Deus, um aclito do pobre. Os telogos da libertao desejaram ser ativistas, militantes, comprometidos.

Alguns, como foi o meu caso durante certo tempo, defenderam o modelo do "intelectual orgnico". No fim, essa figura no passa de um idelogo do movimento popular, das organizaes no-governamentais, dos sem-terra e das comunidades eclesiais de base. Na prtica, aquele que legitima, apoia e justifica as prticas em curso. Mas, como telogo autntico, devo legitimar apenas a palavra de Deus. E criticar as organizaes no-governamentais e os sem-terra quando se afastam desta palavra e lanam mo da violncia. O verdadeiro telogo um profeta, no protege grupos particulares de modo incondicional. Infelizmente, muitos telogos da libertao tornaram-se legitimadores do status quo sem dvida, de um status quo aberto, crtico, revolucionrio... mas, ainda assim, do status quo.

Os telogos da libertao assumiram o marxismo em favor do pobre e da sua emancipao. Mas nessa lgica a f se tornou, mais uma vez, instrumentum regni - um instrumento servio dos reinos terrenos. Com a nica diferena de que serviria agora o "reino dos pobres". Obviamente, no adotaram o marxismo ortodoxo, que v a religio como uma doena a ser curada. Gramsci, ao contrrio, viu a religio como uma fora til para a revoluo. A teologia da libertao tambm pensou assim e adotou uma ptica utilitria e poltica da religio.

Certamente, os telogos da libertao rejeitaram a acusao de marxismo porque admitiam Deus, a f e a orao, etc.. Mas eu pergunto: f em que? Orao para que? F para a libertao, orao para a poltica. No fica claramente reconhecido e respeitado o valor intrnseco e autnomo destas duas realidades. Considero isso um equvoco. Se creio em Deus, , em ltima anlise, porque sou uma criatura e quero me salvar, ou seja, realizar meu destino de transcendncia e imortalidade. Quero ser um homem pleno, filho de Deus, e alcanar minha dignidade de viver feliz e eternamente com Ele, de repousar nele. Pois fomos feitos para isso mesmo. Tal a questo essencial, de fundo, que atormenta todo corao humano, como diz Santo Agostinho: "Inquieto est nosso corao at no repousar em Voc".

Ora, quando percebemos isso, estamos a seis mil ps acima do nvel da poltica. Poltica, como dizia Aristteles, a arte de organizar a vida social para que, depois, o homem dedique-se s questes transcendentes da existncia, aquelas pelas quais vale realmente a pena viver. Mas os telogos da libertao insistem em colocar a religio, o sentido da vida, em funo da poltica, da organizao do Reino de Deus aqui neste mundo, deixando o que realmente conta para depois. Mas para quando?

Olhando para trs, a gente v que nenhum dos "liberacionistas" agiu de m vontade. Tambm participei desta luta e continuo lutando. Mas me dou conta de que faltou teologia: da boa, grave e rigorosa. Faltou, fundamentalmente, a vivncia da f: botar o joelho no cho, orar, contemplar, imergir-se no mistrio, enfim, alimentar a dimenso mstica da f! E fazer isso sem que seja como mera preparao para a "luta pelo povo". Faltou agir apenas pela realidade soberana de Deus, que tem valor em si mesma e a realidade de todas as realidades.

Meu irmo Leonardo discorda desta apreciao e diz que a teologia da libertao criou uma grande espiritualidade. Mas julgo que se trata de uma espiritualidade essencialmente funcional. O militante reza, mas para conseguir foras para enfrentar isto ou aquilo. No por Deus em si mesmo. Fico extremamente incomodado com a funcionalizao do mistrio, com a utilizao da transcendncia e das dimenses mais augustas da f em proveito da poltica, mesmo que seja pelos pobres. Na espiritualidade da libertao tudo parece girar ao redor dos conflitos terrenos, que possuem l sua importncia. Mas no se pode rebaixar o mistrio de Deus s para resolv-los. Certamente Deus existe tambm para isso, mas sempre a partir da sua soberania e graa, que devem ser reconhecidas na sua excelncia prpria. da, alis, que pode fluir a libertao, como por decorrncia. Assim assegurou Jesus: "Procurem primeiro o Reino de Deus e sua justia e tudo o mais lhes ser dado por acrscimo".

O debate sobre a teologia da libertao precisa se prolongar, amadurecer. J respondi no nmero de outubro da Revista Eclesistica Brasileira todas as crticas ao meu artigo de um ano atrs. Vou ignorar as ofensas pessoais, como a de que estou retrocedendo, a de que agora estou do lado da "instituio" etc. Tudo isso bobagem. O significado desta teologia est garantido e suas grandes bandeiras j foram largamente assimiladas na Igreja. Os telogos da libertao podem at agradecer as crticas que lhes fiz, pois trouxe para os holofotes um tema que j estava quase esquecido.

O que voc acha do papa Bento XVI?

Esse papa tem uma singular sensibilidade espiritual e um altssimo nvel intelectual. Essas duas qualidades ajudam muito no debate f e modernidade. Bento XVI dotado, em primeiro lugar, de uma grande sensibilidade religiosa, de uma conscincia profunda da identidade da f.

Em um debate com o cardeal Carlo Maria Martini alis, os dois eram cotados para papa , Ratzinger apontou o que considerava ser sua principal diferena do cardeal italiano. Enquanto Martini enfatiza a importncia do dilogo com o mundo, Ratzinger no deixa de valorizar o dilogo, mas, como bom discpulo de Romano Guardini, considera mais importante, no momento atual, marcar a identidade da f, pois o debate com o mundo se perde, se no h clareza quanto identidade prpria do cristo.

Qual deve ser o referencial para um cristo no dilogo? A verdade de Cristo. S depois de garantir este ponto, o debate pode fluir. Bento XVI tem muita sensibilidade para o chamado "especfico cristo", pelo "diferencial da f", ou seja, pela referncia a Cristo. Foi ele quem deu o toque final no lema de Aparecida: "Discpulos e missionrios de Jesus Cristo, para que nossos povos tenham vida nEle." Esta ltima palavra foi inserida pelo prprio papa, para salientar que os povos recebem a vida em Cristo, no em ideologias ou meros projetos polticos, pois a vida no s biologia, poltica ou economia, mas tambm espiritualidade. Considero o documento de Aparecida um retorno ao fundamento, ao princpio primeiro de toda teologia, inclusive a da libertao. o ponto mais alto do magistrio da Igreja latino-americana.

Em segundo lugar, Bento XVI um scholar, um doktor. Domina a cultura antiga e moderna. Pode assim elevar a discusso. Dialoga com o mundo moderno sem se tornar seu caudatrio. Ele finssimo na crtica modernidade. No s a entende muito bem, como no tem medo de sair a pblico para confront-la. Debateu na Sorbonne com a intelligentsia francesa e em Munique, h trs ou quatro anos, com o filsofo Jrgen Habermas. Iria debater em La Sapienza, a maior Universidade pblica de Roma, mas houve aquele episdio lamentvel da recusa de alguns estudantes em ouvir o papa. Bento XVI no tem medo da discusso, pois conhece bem o esprito da modernidade. Trata-a com respeito e altura, mas tambm com liberdade crtica.

Os telogos da libertao deveriam aprender com tais atitudes, mas preferem desqualificar o papa dizendo que tradicionalista, perseguidor dos telogos, hostil ao mundo moderno etc. Enfim, uma tolice, tagarelice de esquina, discurso de poltico atacando o concorrente. Infelizmente, as crticas ao papa, muitas vezes ecoadas pela mdia, difundem o preconceito construdo sobre ele, sem revelar suas ideias e seu verdadeiro perfil.

E os documentos que Bento XVI escreveu sobre a teologia da libertao quando era prefeito da Congregao para a Doutrina da F?

Os documentos da Congregao para a Doutrina da F sobre a teologia da libertao - o de 1984, mais crtico, e o de 1986, mais propositivo - devem ser levados a srio. Do ponto de vista dos princpios, so pertinentes, pois insistem na base especificamente teolgica - e no meramente poltica - da teologia da libertao.

Quanto a mim, noto dois momentos nos meus escritos sobre a teologia da libertao. Um deles o terico e nisso me mostro bastante seguro. Apesar das minhas "escorregadas" no rahnerismo, nunca abri mo da f em Cristo como princpio primeiro da teologia. O outro momento quando me alinhei com a teologia da libertao em sua produo concreta. A entrei na briga e adotei um discurso polmico, crtico da instituio eclesistica e defensor da ortodoxia liberacionista. Quando tentei responder aos ataques de outras correntes teologia da libertao, tambm aos que vinham do Vaticano, tomei as dores da teologia da libertao e a defendi sem medo. Fiz o papel do "intelectual orgnico".

Escrevi um artigo com Leonardo (Boff) no Jornal do Brasil, intitulado Carta ao Cardeal Ratzinger, um texto de duas pginas em resposta ao documento da Congregao para a Doutrina da F de 1984. Argumentvamos que o marxismo no o pai nem o padrinho da teologia da libertao, pois ela tinha suas fontes na f. Isso era verdade no incio e nas intenes dos "pais fundadores". Com o tempo, porm, a teologia da libertao deixou-se levar pela deriva poltica. Precisava, portanto, de uma advertncia autorizada. Eu poderia justificar nossa rplica a Ratzinger alegando que, naquele momento, era preciso agir como um advogado e defender a causa de fundo... mesmo quando a causa no era totalmente defensvel. No entanto, em teologia, uma estratgia assim desastrosa a longo prazo.

Voc concorda com o diagnstico, comum entre telogos da libertao, de que existe um distanciamento cada vez maior entre a Igreja hierrquica e a Igreja dos fiis?

Em boa teologia, h uma nica Igreja: "Creio na Igreja una", dizemos no Credo. A falta de um debate teolgico para valer faz com que slogans assim se perpetuem. Mas esto cada vez mais desgastados. Noto que meus alunos na Pontifcia Universidade Catlica do Paran bocejam quando os professores (muitos deles alinhados com a teologia da libertao) criticam a Igreja. A nova gerao quer idias positivas que a faam viver, busca espiritualidade. Meus alunos do perodo noturno todos eles leigos insistiram para que a faculdade ministrasse um curso especfico de teologia da vida espiritual. Assumi a tarefa com prazer.

Os telogos da libertao mostram-se duplamente desconectados: no s do princpio da f cristolgica, mas tambm da tendncia cultural, que agora se move na linha da experincia religiosa e espiritual. Vivemos um momento de kairs, um tempo oportuno para a f.

Na sua opinio, por que o pobre colocado como o princpio da teologia da libertao?

Porque nunca houve um debate aberto e para valer entre os prprios telogos. Quando os telogos da libertao se renem, a discusso crtica se volta para os capitalistas, para a mdia, para Roma, etc.. E a crtica terica interna? O prprio Karl Marx, que era socialista, detonou socialistas como Proudhon, Bakunin e Saint-Simon. No tinha medo de criticar seus companheiros para dar um estatuto cientfico s suas concepes.

Mas os telogos da libertao adotaram o caminho inverso: tornaram-se gregrios. Falta independncia intelectual com relao prpria tribo. Jon Sobrino diz: "A teologia nasce dos pobres, da realidade." Roma responde: "No, nasce da f apostlica, que a f em Cristo. No pode ser de outro jeito." Eu assino embaixo e digo: "A crtica do Vaticano justa." Mas, depois, eles vm me dizer: "Voc feriu o Jon Sobrino!" Ora, um intelectual que se preze no se sente ferido pela crtica argumentada de um companheiro. Se tem razo, defenda-se com argumentos; se no, admita o erro e se corrija. Quando recolhiam assinaturas em favor de Jon Sobrino, eu estava dando aulas em Roma. No quis assinar e me justifiquei parafraseando Aristteles: "Sou amigo do telogo, mas mais ainda da f." Esprito gregrio no amor; conivncia. O amor lcido, exigente e corrige quando julga necessrio.

O telogo deve fundamentar suas reflexes na f da comunidade eclesial e na sua tradio. E f no coisa de uma pessoa s, mas de um povo. No dou crdito para "telogos livres" que adotam como princpio de atuao o individualismo moderno - "cada um com sua f" - e o sincretismo uma pitada de cada religio. Sem dvida, o indivduo membro da Igreja e a Igreja composta por indivduos livres. Mas o grande sujeito da f - e, portanto, tambm da teologia - a Igreja, no o indivduo a parte.

Santo Agostinho disse que o bispo como o jumento que carrega Cristo. Por isso, deve saber perfeitamente que os aplausos que chegam aos seus ouvidos so para Cristo. Penso, com o telogo protestante Karl Barth, que tais palavras se aplicam tambm - e sobretudo - aos telogos.