Entrevista Com Eliade

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QUARTA-FEIRA, 22 DE ABRIL DE 2009 (2009/205) De uma velha entrevista de Mircea Eliade 1. Trata-se de um livro que registra uma longa conversa/entrevista entre Mircea Eliade e Claude- Henri Rocquet, publicado, em Paris, em 79, e, em Madri, em 1980: Mircea Eliade e Claude-Henri Rocquet, La prueba del laberinto: conversaciones con Claude-Henri Rocquet. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1980. Como tudo quanto Eliade disse e escreveu, a leitura dessa obra há de proporcionar, além de agradáveis, instrutivos momentos. Nele, por exemlo, fico sabendo que Eliade e Jung foram amigos, o que deve exercer a força de alguma precaução quanto ao que escrevi anteriormente, que, contudo, penso ainda ser procedente. 2. O que me traz a Peroratio é a seção "Desmitificar la desmitificación" (p. 128-134). A questão que Claude-Henri Rocquet propõe a Eliade é aquela própria das abordagens de Marx, Freud e do "estruturalismo", por exemplo, de um Lévi-Strauss, em face das culturas antigas, principalmente em relação ao seu espectro fenomenológico-religioso. Eliade tecerá algumas críticas às rotinas "desmitificadoras" das abordagens das Ciências Humanas. Dirá, por exemplo, que se trata de uma tarefa "fácil" reduzir as formas "primitivas" de compreensão aos seus elementos sociais, políticos, econômicos, dissolvendo suas criações culturais nos termos da crítica moderna.

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Q U A R T A - F E I R A , 2 2 D E A B R I L D E 2 0 0 9

(2009/205) De uma velha entrevista de Mircea Eliade

1. Trata-se de um livro que registra

uma longa conversa/entrevista entre Mircea Eliade e Claude-Henri Rocquet,

publicado, em Paris, em 79, e, em Madri, em 1980: Mircea Eliade e Claude-Henri

Rocquet, La prueba del laberinto: conversaciones con Claude-Henri Rocquet.

Madrid: Ediciones Cristiandad, 1980. Como tudo quanto Eliade disse e escreveu, a

leitura dessa obra há de proporcionar, além de agradáveis, instrutivos momentos.

Nele, por exemlo, fico sabendo que Eliade e Jung foram amigos, o que deve exercer

a força de alguma precaução quanto ao que escrevi anteriormente, que, contudo,

penso ainda ser procedente.

2. O que me traz a Peroratio é a seção "Desmitificar la desmitificación" (p. 128-

134). A questão que Claude-Henri Rocquet propõe a Eliade é aquela própria das

abordagens de Marx, Freud e do "estruturalismo", por exemplo, de um Lévi-

Strauss, em face das culturas antigas, principalmente em relação ao seu espectro

fenomenológico-religioso. Eliade tecerá algumas críticas às rotinas

"desmitificadoras" das abordagens das Ciências Humanas. Dirá, por exemplo, que

se trata de uma tarefa "fácil" reduzir as formas "primitivas" de compreensão aos

seus elementos sociais, políticos, econômicos, dissolvendo suas criações culturais

nos termos da crítica moderna.

3. Quanto a isso, Eliade afirma que a tarefa desse tipo de abordagem não deveria

ser a simples desmitificação, uma desmitificação por simples desmitificação, o que

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não levaria a nada, mas, sim, a pergunta pela razão intrínseca de os povos -

primitivos e contemporâneos - elaborarem teologias, cosmogonias, ritos, sistemas

simbólicos de referência, para situarem-se no mundo. Nada mais adequado, eu

diria.

4. No desenvolvimento da conversa, contudo, Eliade ensaia um diálogo imaginário

entre os herdeiros futuros dos homens primitivos e "nós", no qual os herdeiros nos

recriminariam o fato de termos reduzido a elementos não-míticos as expressões

criativas de sua cultura, ao passo que íamos recusando fazê-lo em relação a nossa

própria, denúncia de um preconceito civilizatório, que, se procedente, seria

legitimamente reprovável.

5. No entanto, em que sentido as Ciências Humanas operam segundo o regime de

tratar as culturas antigas como inferiores, e, a nossa, como superior? Quando, por

exemplo, Freud tratou a religião como "ilusão", e a "idéia" de "Deus", como

neurose, disse-o com relação apenas aos antigos - ou a fúria teológica contra-

freudiana não é justamente porque ele pôs sob seu dignóstico inclusive "nós",

cristãos ocidentais? Ora, se, de posse do material metodológico das "ciências",

pesquisadores carregados de preconceito cultural e civilizatório pronunciam-se

exatamente segundo o modelo da denúncia - "eles", os primitivos, eram inferiores,

e "nós", os "homens modernos", superiores, de modo que a religião deles é

mitológica, e a nossa, não -, isso nada tem a ver com a própria "ciência", mas com

atitudes e ideologias, eventualmente teológicas, da parte do "pesquisador".

6. O regime de desmitificação que as Ciências Humanas empregam, e devem

empregar, e segundo o qual operam, e devem operar, deve ser aplicado a tudo -

seja à cultura antiga, primitiva, seja às culturas clássicas, seja às culturas

medievais, bem como as modernas e contemporâneas - os Hinos Nacionais não

são, em todos os sentidos, pura mitologia? Além disso, devem estar atentas, ainda,

as Ciências Humanas, a aplicarem a si mesmas o princípio que a tudo aplicam,

porque aquela pergunta que se deve fazer - por que os homens criam para si

sistemas simbólicos de auto-referência - contnua operando, silenciosamente,

inclusive por trás das operações mais modernas das ciências de ponta, seja

o Hubble, seja o LHC.

7. Não se trata de não aplicar às culturas primitivas o princípio teórico-

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metodológico da desmitificação científico-humanista, já que e porque não o

aplicaríamos a nós mesmos - trata-se de aplicá-lo, sem dó, também a nós.